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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.2 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGO

Juízes indesejados? A contestação aos juízes de fora no Portugal medieval (1352-1521)

Unwanted judges? The protests against juízes de fora in medieval Portugal (1352-1521)

Diogo Faria

IEM - Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa; FL – Faculdade de Letras / Universidade do Porto, Portugal

É licenciado em História (2011) e mestre em História Medieval e do Renascimento (2013) pela Universidade do Porto. Atualmente, é estudante de doutoramento da mesma universidade e investigador do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, onde integra, como bolseiro, a equipa do projeto JUSCOM – Juiz da terra, juiz de fora (Justiça e comunidades num período de transição: 1481-1580)

Correio eletrónico: diogopintofaria@gmail.com

 

RESUMO

A criação do cargo de juiz de fora, no reinado de D. Afonso IV (r. 1325-1357), não foi bem recebida pelos representantes dos concelhos. Neste trabalho, analisa-se a evolução da contestação a esses oficiais entre os governos de D. Afonso IV e D. Manuel I (r. 1495-1521). Num primeiro momento, privilegia-se o estudo dos capítulos gerais de Cortes que tiveram esse ofício como objeto. De seguida, olha-se à forma como três concelhos com perfis diferentes (Lisboa, Porto e Tavira) lidaram com o provimento de juízes de fora.

 

PALAVRAS-CHAVE

Administração periférica / Justiça / Juiz de fora

 

ABSTRACT

The creation of the office of juiz de fora (“judges from outside”), in the reign of King Afonso IV (r. 1325-1357), was not well received by the representatives of municipalities. In this paper, we analyze the evolution of the protests against these officers between the governments of King Afonso IV and King Manuel I (r. 1495-1521). At first, we focus on the study of the general chapters of Cortes who had this position as an object. Then we look at how three municipalities with different profiles (Lisbon, Porto and Tavira) dealt with the appointment of juízes de fora.

 

KEYWORDS

Peripheral administration / Justice / Juiz de fora

 

 

INTRODUÇÃO

Os juízes de fora são figuras pouco conhecidas da Idade Média portuguesa. O essencial do que sabemos sobre eles foi escrito há mais de duzentos anos por José Anastácio de Figueiredo e João Pedro Ribeiro. Mais recentemente, Luís Miguel Duarte avançou com alguns dados novos na sua dissertação de doutoramento. Para além disso, em algumas monografias locais encontramos informações sobre o provimento destes oficiais para as respetivas comunidades. Mas continuamos a saber pouco sobre estes homens. Para muitos anos e muitos reinados, não fazemos ideia de quantos eram, para que terras eram nomeados e porque eram nomeados. Não conhecemos os seus nomes, os seus rendimentos e as suas habilitações literárias. Tampouco sabemos como e em que momento se passou de uma nomeação ad hoc de juízes de fora para um número reduzido de concelhos, como acontecia na Idade Média, para o cenário da Época Moderna, em que esses oficiais, em maior número e mais qualificados, surgem como um dos principais meios de controlo das comunidades locais por parte da Coroa. O projeto JUSCOM – Juiz da terra, juiz de fora (Justiça e comunidades num período de transição: 1481-1580), que está a ser desenvolvido no Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, tem como objetivo responder a algumas destas questões1.

Em linhas gerais, o que sabemos sobre os juízes de fora na Idade Média2? Com antecedentes no reinado de D. Dinis (r. 1279-1325), este ofício surgiu durante o governo de D. Afonso IV (r. 1325-1357). É costume dizer-se que na origem da criação deste cargo estava a necessidade de dar reposta aos problemas levantados pela execução dos testamentos durante a Peste Negra. Mais à frente, veremos que havia outros motivos, porventura bem mais relevantes na ótica do rei. A nomeação dos juízes de fora anulava as atribuições políticas, administrativas e judiciais dos juízes de foro locais. Estes homens, cujos mantimentos eram pagos pela Coroa e pelos concelhos, eram normalmente próximos dos monarcas, e nem sempre tinham habilitações académicas. Tal como os corregedores, os juízes de fora não eram queridos pela maior parte das comunidades locais, que durante muito tempo solicitaram a sua extinção em Cortes.

É sobre este último aspeto, a impopularidade dos juízes de fora, que se debruça este texto. Com recurso principalmente a capítulos de Cortes, mas também a alguma documentação local, serão analisadas as posições assumidas pelos concelhos sobre os juízes de fora, desde o tempo de D. Afonso IV até ao de D. Manuel I (r. 1495-1521). Num primeiro momento, com base em capítulos gerais, procurar-se-á conhecer os motivos que levaram os reis a nomear juízes de fora e o que levou os povos a rejeitá-los, tentando perceber como evoluiu a argumentação das duas partes ao longo de cerca de 150 anos. De seguida, com base em documentação local e em capítulos especiais, serão analisados casos particulares, verificando-se como três comunidades concretas reagiram ao provimento de juízes de fora. Por fim, em jeito de balanço, procurar-se-á responder à questão que serve de mote a este ensaio: os juízes de fora eram oficiais indesejados? Se sim, por quem e por que motivos? Mas não havia quem os quisesse?

 

1.OS JUÍZES DE FORA NOS PLENÁRIOS DE CORTES (1352-1498)

Entre 1352 e 1498 realizaram-se, tanto quanto sabemos, 64 reuniões de Cortes3. Os juízes de fora foram objeto de discussão em, pelo menos, 12 dessas assembleias4. Durante este período, as questões centrais sobre o cargo foram sofrendo alterações, assim como a argumentação dos povos e as respostas dos monarcas. Comecemos pelo princípio.

A primeira reunião em que se discutiu a existência dos juízes de fora foi a de 1352, que se realizou em Lisboa. A Peste Negra tinha chegado a Portugal quatro anos antes e arrasado com várias comunidades. Com tanta gente a morrer, houve muitos testamentos que tiveram de ser executados e muita riqueza que teve de ser distribuída. Foi o contexto perfeito para que se reacendesse uma contenda que já vinha colocando frente a frente o rei e os bispos de Portugal: quem tinha competência para abrir e executar os testamentos? Várias dioceses chamaram a si esse papel: todos os testamentos deviam ser apresentados aos vigários dos prelados, que os executariam. Afonso IV reagiu em março de 1349: os clérigos ficavam proibidos de abrir qualquer testamento, encargo que caberia aos juízes régios de cada lugar. Diz-nos Marcello Caetano que os juízes de foro dos concelhos eram “tíbios, atarefados e porventura mal recrutados no meio da confusão da epidemia” e, por isso, “não teriam a energia necessária para aplicar a lei enfrentando as iras do clero”5. Foi nesse momento e nesse contexto que o monarca começou a nomear juízes de fora para algumas localidades. Não sabemos ao certo quantos foram nem que concelhos os receberam. Mas também não é propósito deste ensaio analisar isso.

Estávamos em Lisboa, em 1352. Pela quarta vez no seu reinado, Afonso IV estava reunido com os três estados da sociedade portuguesa. Nessa ocasião, os povos apresentaram-lhe um problema novo: os concelhos eram agravados porque o rei vinha a nomear juízes de fora para alguns deles; acontece que as comunidades locais tinham o privilégio de eleger anualmente os seus próprios juízes ordinários; para além disso, as autarquias tinham muitas despesas, às quais então se acrescia o pagamento do salário dos juízes do rei. Por estes dois motivos, pediam ao monarca que deixasse de nomear juízes de fora6. Os dados estavam lançados. Ao longo de muitas décadas, estes mesmos dois argumentos seriam repetidamente avançados: a existência dos juízes de fora era incompatível com a dos juízes de foro e, por isso, colocava em causa os privilégios locais; o pagamento dos mantimentos destes oficiais onerava muito as finanças concelhias.

Ao contrário do que acontecia frequentemente, o rei não se limitou a deferir ou indeferir este pedido e a apresentar uma resposta lacónica ou evasiva. O monarca referia que a nomeação destes oficiais não tinha como objetivo agravar as comunidades locais, mas beneficiá-las, e justificava isso com três argumentos:

1) Os juízes da terra tinham parentes, amigos e inimigos na comunidade, “por as quaes rrazões o derecto presume que tam compridamente nom faram dereito como os estranhos en que nom am logar as dictas rrazões”; ou seja, os oficiais locais estão à partida condicionados e não dão tantas garantias de isenção como os de fora;

2) Os juízes de fora foram “espiicialmente” nomeados para executarem os testamentos dos que morreram devido à peste, uma vez que o rei teve notícias de que em algumas localidades isso não estava a acontecer devidamente;

3) Os juízes de fora, uma vez que também seriam pagos pelos concelhos, esforçar-se-iam por melhorar a situação financeira das autarquias, cobrando dívidas antigas e estimulando o cultivo de terras desaproveitadas.

Em suma, três argumentos que invocavam dois motivos estruturais e um conjuntural para justificar a nomeação de juízes de fora. Posto isto, qual foi a decisão de Afonso IV face ao pedido dos povos? Ao contrário do que seria de supor, o rei assentiu ao que lhe era solicitado e reafirmou o direito de os concelhos elegerem os seus próprios juízes todos os anos. Fê-lo, no entanto, com um tom algo ameaçador: esse juízes que tratassem de fazer bem aquilo que lhes competia; caso isso não acontecesse, teriam os corregedores à perna7.

Esta história não acaba aqui. Os juízes de fora continuariam a ser nomeados, os concelhos continuariam a não gostar disso, e os povos continuariam a queixar-se. Vemos então que Afonso IV argumentara num sentido, decidira noutro, mas não cumprira plenamente com o que garantira aos povos. Alguma surpresa? Nem por isso. Só poderíamos ficar surpreendidos se as situações deste género (em que as decisões tomadas em Cortes não eram plenamente cumpridas) não abundassem na história medieval portuguesa.

A D. Afonso IV sucedeu D. Pedro I em 1357 (r. 1357-1367). Durante os dez anos do seu reinado, as Cortes reuniram-se uma única vez. Foi em 1361, em Elvas. Os povos aproveitaram a ocasião para se queixarem: aquilo com que o Bravo se comprometera quase dez anos antes não estava a ser cumprido; havia juízes de fora em várias localidades e os seus mantimentos continuavam a pesar muito nas contas camarárias. A resposta do rei não foi muito diferente da do pai, ainda que menos detalhada: o monarca não queria desrespeitar os foros dos concelhos, e apenas nomeava juízes de fora “por nosso serviço e prol da nossa terra”; as comunidades locais que continuassem a eleger os oficiais como era costume e estes que governassem bem, para que não houvesse necessidade de intervenção régia. Novamente, o tom ameaçador era indisfarçável8.

Os termos deste debate mudaram no reinado de D. Fernando (r. 1367-1383). Os povos continuaram a pedir ao rei que não nomeasse juízes de fora, alegando os privilégios concedidos por monarcas anteriores e o estorvo que estes oficiais constituíam para as finanças locais. A resposta régia, porém, foi bem diferente. D. Fernando respondeu que os juízes de fora eram nomeados para garantir que as terras fossem mais bem governadas (até aqui, nada de novo) e que, por isso, não deixariam de desempenhar as suas funções (o que nunca tinha sido assumido pelos seus antecessores). Nestas Cortes de Lisboa de 1371, 20 anos depois da primeira discussão sobre este cargo, o rei rejeitou as pretensões dos povos e assumiu uma posição clara de defesa da existência de juízes de fora para um melhor funcionamento da administração local9.

No ano seguinte, no Porto, realizou-se nova reunião e este assunto voltou a ser discutido. Face à resposta contundente dada pelo monarca pouco tempo antes, os representantes dos concelhos interpelaram-no de forma diferente. Aos argumentos habituais, acrescentaram outro: nas terras onde existiam juízes de fora havia homens letrados que estavam aptos para governar e aplicar bem a justiça. Ao pedido do costume, também juntaram outro: depois de demitidos das suas funções, os juízes de fora deviam permanecer nas terras para onde estavam nomeados durante 50 dias após a eleição dos novos juízes de foro, para que pudessem ser confrontados com injustiças que tivessem cometido no exercício dos seus ofícios. A resposta do rei, desta vez, foi diferente, tendo sido mais evasiva e mais próxima das que foram dadas pelo seu pai e pelo seu avô: os juízes de fora eram nomeados para o bem das populações; ainda assim, os povos que elegessem os seus juízes de foro e vereadores; quanto ao resto, que se cumprisse o direito comum10. Em tão pouco tempo, o que poderá ter levado D. Fernando a alterar a sua posição? A insistência dos representantes dos concelhos em Cortes? Uma argumentação mais convincente? Ou um contexto diferente, em que se tornara mais conveniente para o monarca ceder aos povos? Não nos esqueçamos que 1372 não foi um ano qualquer do reinado do Formoso. Foi só o ano do seu casamento polémico e surpreendente com Leonor Teles. Foi só o ano em que, pela segunda vez em cinco anos de reinado, Portugal entrou em guerra com Castela…

Não tive oportunidade de consultar a maioria da documentação inédita relativa às Cortes realizadas no século XV. Sei, no entanto, que entre os reinados de D. João I (r. 1385-1433) e D. Manuel I foram apresentados sete capítulos gerais que tinham os juízes de fora como seu principal assunto:

1. Nas Cortes de Coimbra de 1400, os representantes dos concelhos solicitaram a extinção do cargo de juiz de fora e a sua substituição em todas as vilas e cidades por juízes ordinários; o rei deferiu11;

2. Na reunião de Leiria-Santarém de 1433, os povos solicitaram que os juízes impostos às terras pelos monarcas fossem pagos: pelo rei, quando a iniciativa do seu provimento fosse exclusivamente sua; pelos concelhos, quando eram os concelhos a requerê-los; por fidalgos ou poderosos, quando eram fidalgos ou poderosos a solicitá-los; a resposta do rei a este pedido foi positiva12;

3. Em 1446, nas Cortes realizadas em Lisboa, os povos pediram ao monarca que sempre que os juízes de fora se ausentassem temporariamente das vilas ou cidades onde exerciam o seu cargo deixassem um substituto, escolhido com o consentimento dos restantes oficiais municipais, e não fossem pagos; o rei deferiu parcial e condicionalmente este pedido13

4);Em 1451, os concelhos solicitaram que o rei só nomeasse juízes de fora a pedido das comunidades e que, caso fosse necessário prover oficiais deste tipo por motivo de revoltas, fossem os responsáveis por essas revoltas a pagar os seus mantimentos; pronunciaram-se ainda sobre o perfil dos indivíduos que ocupavam estes cargos: deviam ser “homens entendidos e de boa consciência, a fim de que o povo seja julgado com direito e o estado real condignamente servido”; o rei respondeu a este agravo com um deferimento parcial14;

5)Nas primeiras Cortes do reinado de D. João II (r. 1481-1495), em 1481-1482, os povos pediram novamente que os juízes de fora só fossem providos a pedido dos concelhos e que os que não o tinham sido nessa condição fossem extintos; solicitaram ainda que o mandato desses magistrados fosse limitado e que nunca fossem de alçada, ou seja, não tivessem “competência para decidirem por si sobre vida e morte e amputação de membros”15;

6)Na reunião de Évora de 1490, os representantes dos concelhos solicitaram ao rei que esclarecesse a que oficiais das correições e juízes de fora deveriam dar aposentadoria e que alfaias domésticas lhes deveriam disponibilizar; pediram ainda que esses oficiais pagassem a palha ao preço corrente e que não se intrometessem em matérias de almotaçaria; o Príncipe Perfeito deferiu16;

7)Já no reinado de D. Manuel I, nas Cortes de 1498, os povos voltaram a manifestar a sua insatisfação pela nomeação de juízes de fora para terras onde não havia grandes problemas sociais; para além disso, queixaram-se que alguns desses oficiais não cumpriam com as posturas e privilégios que os concelhos, com muito trabalho, haviam obtido dos monarcas anteriores; o rei confirmou a validade dos privilégios obtidos pelas comunidades locais e a obrigatoriedade de os juízes de fora os respeitarem, incentivando os homens-bons dos concelhos a denunciá-los sempre que isso não acontecesse17.

Em síntese, o que dizer sobre a evolução da contestação aos juízes de fora em plenários de Cortes ao longo do século XV? Parece que é possível identificar diferenças claras face às reivindicações apresentadas durante os reinados de D. Afonso IV, D. Pedro I e D. Fernando. À medida que o tempo foi passando e que os monarcas foram continuando a nomear juízes de fora para diversas terras, os povos conformaram-se com a sua existência. Em 1400, os representantes dos concelhos pediram pela última vez a D. João I que acabasse com estes oficiais. O rei deferiu, tal o como seu pai e avô haviam feito. E, tal como acontecera no tempo dos monarcas que o antecederam, os juízes de fora não deixaram de existir. Estava visto que era uma batalha perdida. Cinquenta anos depois de o cargo ter sido criado, já não seria possível eliminá-lo. A partir dessa altura, os povos apontaram baterias para os critérios de nomeação dos juízes de fora, para a responsabilidade pelo pagamento dos seus mantimentos, para a regulamentação do direito de pousada dos oficiais régios e para a sua atuação concreta nas comunidades. Não sendo possível que deixassem de existir, ao menos que fossem poucos, que trabalhassem onde eram necessários, que causassem pouca mossa às finanças locais e que respeitassem os privilégios das comunidades onde se inseriam.

 

2.OS JUÍZES DE FORA E AS COMUNIDADES LOCAIS (LISBOA, PORTO, TAVIRA)

O panorama que se tem vindo a apresentar diz respeito à forma como os concelhos representados em Cortes, no seu conjunto, se manifestaram sobre os juízes de fora. Esta visão global, no entanto, diz-nos pouco sobre a realidade de comunidades concretas: nem todos os concelhos tiveram juízes de fora; nem todos teriam problemas financeiros que os impedissem de pagar a estes oficiais (apesar de todos, provavelmente, o alegarem); nem todos teriam um conjunto alargado de homens-bons devidamente capacitados para executarem ‘direitamente’ a justiça. À visão da globalidade dos concelhos há que contrapor, então, olhares particulares. Há que verificar como reagiram determinadas comunidades nos momentos em que os reis decidiram que seriam tuteladas por juízes de fora e como as suas elites conviveram com esses oficiais. Optou-se por abordar neste trabalho três casos de cidades com perfis distintos que, em diferentes momentos da Idade Média, foram confrontadas com o provimento de juízes de fora: Lisboa, Porto e Tavira.

 

2.1 Lisboa

Lisboa tornou-se a principal cidade do reino português no tempo de D. Afonso III (r. 1248-1279). Ao longo da Idade Média, a sua preponderância política, económica e demográfica destacou-se face a qualquer outra cidade portuguesa. Não admira, por isso, que o concelho de Lisboa representasse para a Coroa “um poder que se queria controlado”18.

Como não podia deixar de ser, a nomeação de juízes de fora foi um dos principais meios de controlo da autarquia lisboeta levados a cabo pelos monarcas. A tese de doutoramento de Mário Farelo permite-nos conhecer a forma como evoluiu a dicotomia entre justiça de fora e justiça de foro em Lisboa entre os reinados de D. Afonso IV e D. João I. Em linhas gerais, verifica-se que foi nas décadas de 1330, 1370 e 1390 que a presença de juízes de fora no concelho mais se fez sentir. Pelo contrário, não há sinais da participação destes magistrados no governo da Câmara nos primeiros anos do reinado de Afonso IV e nos últimos de D. João I19. Apesar de não estarem devidamente identificados todos os juízes de fora que exerceram funções nas décadas seguintes, parece ter-se verificado uma tendência para, até ao reinado de D. Manuel I, raramente terem sido nomeados oficiais deste tipo para Lisboa. Tanto quanto sabemos, a capital não teve juízes de fora nem na segunda metade do reinado de D. Afonso V (r.1438-1481) nem durante o governo de D. João II. No tempo do Venturoso teve apenas um20.

São escassas as informações que temos sobre a contestação individual do concelho de Lisboa à nomeação de juízes de fora. Apesar disso, não são raros os documentos que demonstram que a intervenção de oficiais régios no governo municipal não era bem recebida pela oligarquia da cidade. Vejamos três exemplos:

1. Em 1368, os homens bons de Lisboa, alegando a autonomia do concelho para nomear e destituir os seus próprios oficiais, pediram ao rei D. Fernando que deixasse de emitir cartas de provimento ou confirmação de cargos da administração municipal21;

2. Quatro anos mais tarde, os homens da governança protestaram contra a nomeação de João Afonso Telo para alcaide--mor do castelo de Lisboa, por não ser natural da cidade22;

3. Em 1409, o alvo das queixas da elite municipal de Lisboa foi o corregedor Afonso Martins Albernaz, acusado de interferir no provimento e destituição dos oficiais concelhios, ao contrário do que haviam feito os seus antecessores no cargo23.

Se estas situações permitem supor que a nomeação de juízes de fora para Lisboa não seria bem aceite pela oligarquia municipal da cidade, um dos capítulos especiais apresentado pelo concelho nas famosas Cortes de Coimbra de 1385 demonstra-o de forma mais clara. Nessa ocasião, os procuradores lisboetas queixaram-se ao rei que o seu antecessor nomeava muitas vezes juízes de fora à custa do município. Alegavam que isso não respeitava os privilégios do concelho, onde existiam indivíduos que podiam ser juízes “tam boos e tam emtendidos” como aqueles que eram nomeados pelo monarca. Pediam, nesse sentido, que os homens bons da cidade pudessem escolher os seus juízes em cada ano. Num contexto muito especial, em que, muito à custa dos povos de cidades como Lisboa e o Porto, se acabava de escolher um novo soberano, cuja realeza estava longe de se encontrar consolidada, D. João I deferiu este pedido24. Seria sol de pouca dura. Poucos anos depois, no mesmo reinado, os juízes de fora estavam de regresso a Lisboa.

2.2 Porto

É sabido que as elites municipais do Porto durante a Idade Média foram muito zelosas da sua autonomia. Os conflitos que opuseram os homens-bons do concelho, em vários momentos, aos bispos e a famílias da aristocracia (como a dos Pereira) são bem conhecidos25. Acaba por se tornar evidente que a nomeação de juízes de fora para o Porto também não tenha sido bem aceite por estes indivíduos, e as atas das reuniões camarárias da cidade dão bem conta disso.

Tanto quanto sabemos, foi no dia 24 de julho de 1390, precisamente um mês depois de terem sido eleitos os oficiais para o ano camarário que então se iniciava no dia de S. João, que este assunto foi discutido pela primeira vez. O Porto estava prestes a receber o seu primeiro juiz de fora, e os homens-bons que nesse dia se encontraram no sobrado da vereação sabiam disso. Considerando que tal provimento “era contra os costumes e privilégios da cidade”, deliberaram “todos a huma voz” escrever ao rei, pedindo-lhe que voltasse atrás nessa intenção e que confirmasse os juízes de foro escolhidos pelos cidadãos do Porto26.

As diligências do concelho junto do monarca revelar-se-iam inconsequentes. Na reunião de 3 de agosto desse ano de 1390 foi lida a carta em que D. João I nomeava João de Alpoim juiz de fora do Porto27. A justificação para o provimento foi a habitual: “por prol e bem e milhor regimento desse logar”. As atas de vereação registam que João de Alpoim participou nas reuniões da Câmara a partir de 19 de setembro28. É possível que não tenha sido bem recebido e que os homens bons da cidade continuassem a desdenhar a sua presença. Os atos emanados pelo município, no entanto, não dão conta disso.

Em 1392, D. João I voltou a nomear um juiz de fora para o Porto. Dessa vez, escolheu um natural da cidade: João Afonso da Agrela. Porventura, esperava com isso matizar o desconforto que gerara o provimento de João de Alpoim, dois anos antes. A reação dos portuenses, no entanto, acabou por não ir ao encontro do que o rei pretendia. Domingos Anes, tesoureiro da moeda do Porto, foi enviado pelos homens da governança ao monarca, com o objetivo de lhe pedir por mercê o privilégio de a cidade passar a dispor de juízes de foro ordinários. A resposta régia, lida na reunião camarária de 22 de março de 1393, foi positiva, tendo D. João I determinado a destituição imediata de João Afonso da Agrela. Nessa mesma data, Vasco Fernandes Ferraz e Martim Pereira foram nomeados juízes para um curto mandato que duraria apenas até ao dia de S. João29.

Esta cedência do rei de Boa Memória, em 1393, esteve longe de ser definitiva. Maria Helena da Cruz Coelho, abordando as políticas régias em relação aos concelhos, já notou que “pontualmente o rei cedia para acalmar os ânimos e evitar fortes tenções. Mas, logo que as condições o permitiam, reincidia na sua política”30. Apesar de não terem chegado aos nossos dias as atas de vereação relativas a 1397, sabemos que nesse ano Gonçalo Anes de Carvalho era juiz por el-rei no Porto31. E, em 1401, voltou a ser polémica a nomeação de um juiz de fora. Dessa vez, porém, foi entre os próprios homens bons do Porto que a discussão se gerou. A sequência dos acontecimentos foi esta:

1. No dia 17 de dezembro foi lida a carta em que D. João I nomeava Lopo Dias de Espinho, que já tinha sido juiz de fora de Viseu, juiz por si no Porto, por tempo indeterminado (“em quanto nossa mercee for”)32.

2. Dois dias depois, como era habitual, discutiu-se o envio de João Ramalho junto do monarca para convencê-lo a voltar atrás na sua decisão.

3. O que se passou nessa reunião é que não era nada habitual: o vereador Afonso Anes e Gonçalo Esteves de Santa Clara não concordaram com o envio desse homem ao rei, pois isso acarretaria uma despesa grande para o concelho. Argumentaram que o porteiro que levaria os livros dos alardos a casa do monarca poderia perfeitamente dar esse recado, o que ficaria muito mais barato33.

Não sabemos exatamente o que se decidiu, até porque este assunto não voltou a ser debatido nas reuniões de Câmara que se seguiram. Mais do que qualquer certeza, esta discussão permite levantar uma dúvida: será que, no momento em que pela quarta vez em onze anos D. João I impunha ao Porto um juiz de fora, havia entre os homens bons da cidade quem achasse que já não valia a pena lutar contra estas nomeações? Ou seja, será que, da mesma maneira em que nas Cortes as posições radicais em relação a estes oficiais se iam esmorecendo, os homens-bons dos concelhos, à medida que o tempo passava, iam interiorizando a ideia de que, mais do que combater os juízes de fora, teriam de aprender a lidar com eles? Parece fazer sentido responder afirmativamente a estas questões, até porque é impossível dissociar as posições dos oficiais concelhios das maiores cidades do reino das dos representantes dos povos em Cortes.

Não deixa de ser curioso que esta polémica municipal tenha coincidido com o encerramento, durante quase um século, das questões entre o Porto e os juízes de fora. Tanto quanto a documentação nos permite saber, é preciso avançar até 1498 para vermos o rei D. Manuel I tentar nomear um juiz de fora para o Porto. Sem sucesso, face à forte contestação da oligarquia camarária da cidade. A resistência do concelho, porém, não se aguentaria por mais do que vinte anos. Em 1518, o bacharel João Lourenço foi nomeado juiz pelo rei no Porto, cargo que ocuparia, pelo menos, durante sete anos. A partir dessa altura, a existência de juízes de foro ordinários na cidade deixou de ser regra e passou a exceção34.

 

2.3. Tavira

Vejamos, por fim, o caso de Tavira. Longe de assumir a dimensão e a preponderância política de cidades como Lisboa e o Porto, Tavira parece ter sido um dos mais relevantes centros urbanos algarvios na Idade Média35. No século XV, assumiu-se como uma das principais plataformas de articulação entre a metrópole e o Norte de África. Ponto de partida e de chegada para muitos comerciantes, marinheiros e degredados, albergando comunidades cristãs, judaicas e muçulmanas36, estaria longe de ser uma vila fácil de controlar. Compreende-se, por isso, que sejam relativamente abundantes as nomeações de juízes de fora para Tavira nos séculos XV e XVI37.

Como era habitual, os locais não gostavam da intervenção direta de oficiais régios na governação da sua terra, e deram conta disso nas Cortes de Lisboa de 1459. Através de um capítulo especial apresentado pelos representantes de Tavira nessa assembleia, ficamos a saber que:

1. Aires Fernandes Barroso era juiz pelo rei na vila algarvia havia três anos;

2. Tavira não tinha mais do que quatro lugares onde o juiz fizesse correição;

3. As rendas anuais do concelho rondavam os 16 000 reais; um terço desse dinheiro era gasto nas obras dos muros e 6000 reais eram despendidos no mantimento do juiz de fora; o pouco que sobrava (cerca de 4700 reais) servia para fazer face a todas as outras “despesas certas e nam certas”.

Tendo estes aspetos em conta, os procuradores de Tavira nestas Cortes pediram a D. Afonso V que dispensasse a vila de ter um juiz de fora daí em diante. O rei acedeu, determinando que o mandato de Aires Fernandes Barroso terminasse no final de 145938. Esta cedência régia estaria, no entanto, longe de corresponder a uma decisão definitiva, visto que, três anos depois, em 1462, Tavira já tinha novamente um juiz de fora, Diogo Varela39.

Também diz respeito a esta vila um dos documentos mais interessantes que tive a oportunidade de ler relativo a juízes de fora40. Em 6 de junho de 1514, os tabeliães de Tavira enviaram uma carta a D. Manuel I protestando contra a substituição do juiz de fora Rui Fernandes por Simão Caeiro. Essa mudança devia-se ao facto de o primeiro ter casado na vila, o que, aos olhos do monarca, colocava em causa a sua independência face àquela terra (ou seja, já não era um juiz assim tão de fora…). Os notários desta vila algarvia referiram que o substituto, Simão Caeiro, era muito novo e pouco qualificado. Para além disso, tinha parentes em Tavira, o que o tornava “mais sospeito” do que Rui Fernandes. Não conheço a resposta do rei nem o desfecho desta querela. Mas esta carta é mais um elemento que demonstra como as comunidades concelhias, à medida que o tempo foi passando e que os monarcas foram continuando a nomear juízes de fora, se habituaram a conviver com estes oficiais e deixaram de pedir a sua extinção. Neste caso, coube aos tabeliães de Tavira procurar discutir o perfil e o nome do homem que tutelaria a sua Câmara durante os anos seguintes.

 

CONCLUSÃO

Para concluir, tendo em conta as informações avançadas, respondo às questões levantadas no título e na introdução desta comunicação.

a. Eram os juízes de fora indesejados? Claramente que sim.

b. Por quem? Pelos povos, ou seja, pelas elites concelhias.

c. Porquê? Porque os juízes de fora colocavam em causa os privilégios locais e eram pesados para as finanças concelhias. Para além disso, “as interferências alienígenas ameaçavam a rotatividade do grupo dirigente pelos cargos, cerceavam-lhes os lugares e impediam-lhes o secretismo das deliberações”41.

d. Como era manifestado esse descontentamento? De duas maneiras: os povos pronunciavam-se em conjunto, através dos capítulos gerais de Cortes, ou individualmente, através de capítulos especiais ou do contacto ad hoc com os monarcas.

e. O que pediam os povos ao rei? Num primeiro momento, que os juízes de fora fossem extintos. Depois, que este ofício fosse mais regulamentado, que os critérios de escolha destes homens fossem mais apertados e que os seus privilégios fossem bem delimitados.

f. O que respondia o rei? A maior parte das vezes, deferia total ou parcialmente os pedidos dos povos. São raras as situações em que a resposta do monarca foi negativa.

g. O rei cumpria com o que prometia? Umas vezes sim, outra vezes não. Frequentemente, cumpria durante um curto período de tempo, para logo depois voltar atrás.

Por fim, uma última questão: a resposta às perguntas anteriores pode ser sempre tão taxativa? É claro que não. As generalizações são perigosas em História. Ainda que pouco abundantes (ou pelo menos, até agora, pouco conhecidos), há exemplos de situações em que os juízes de fora eram desejados por determinados setores das comunidades, por serem vistos como a melhor solução para os problemas da terra. Nas Cortes de 1439, homens de baixa condição de Valença lamentaram que os mais influentes do concelho, associados aos fidalgos, tivessem feito impor à vila um juiz de fora42. Na própria carta que os tabeliães de Tavira enviaram a D. Manuel I em 1514, estes oficiais referiam que algum tempo antes haviam dado conta ao monarca da necessidade de a vila ter um magistrado deste tipo43. A identificação e o estudo conjunto de mais situações deste género é um problema que fica em aberto. Esse trabalho, a par de uma exploração mais sistemática dos capítulos especiais de Cortes que se referem a juízes de fora, poderá contribuir para uma resposta mais fundamentada à interrogação que serve de título a este estudo.

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

Arquivo Municipal de Lisboa

Livro dos pregos

Arquivo Nacional Torre do Tombo

Leitura Nova, Odiana, livro 3

 

Fontes impressas

Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques, Maria Teresa Campos Rodrigues e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982.

Cortes portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367). Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986.

Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-1383). vol. I. Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990.

Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-1383). vol. II. Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e João Paulo Salvado. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1993.

Cortes portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498). Edição preparada por João José Alves Dias, A. H. de Oliveira Marques, João Cordeiro Pereira e Fernando Portugal. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002.

DUARTE, Luís Miguel - Apêndice documental. In DUARTE, Luís Miguel - Justiça e criminalidade no Portugal medievo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 1999. p. 567-743.

“Vereaçoens”. Anos de 1390-1395. Edição de A. de Magalhães Basto. Porto: Câmara Municipal, 1937.

“Vereaçoens”. Anos de 1401-1449. Edição de J. A. Pinto Ferreira. Porto: Câmara Municipal, 1980.

 

Bibliografia

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APÊNDICE DOCUMENTAL44

1368, julho, 6, Santarém

O rei D. Fernando responde ao pedido dos homens bons de Lisboa para que não passasse mais cartas de provimento ou confirmação de oficiais concelhios. O monarca solicitou aos cidadãos lisboetas que lhe fizessem chegar as tais cartas, para que, em caso de agravo, pudessem ser desagravados.

AML, Livro dos pregos, doc. 97, f. 108v.

Dom fernando pella graça de deus Rey de portugal e do algarue A uos homeens boons e concelho da Cidade de lixboa saude vi uosso recado que me enujastes em que diziades que per mym e per os Reis que ante mym forom uos forom sempre aguardados vossos foros e costumes e liberdades de que esse concelho sempre husou antre os quaaes esse concelho per aqueles que pellos tempos ham e teem encarrego de Reger esse concelho derom e dam os ofiçios del e que a el perteeçem aaquelles que os merecem e os ham per suas cartas E que se a esses ofiçiaaes aconteçe alguuns negoçios ou fazem o que nom deuem per que nom sejam merecedores de husarem dos dictos ofiçios que aquelles que o dicto logar teem lhes tomam as dictas cartas per que assy ham os dictos ofiçios e os priuam dellos e os dam a outros que os mereçem E que agora alguuns uos mostram minhas cartas per que lhes dou e confirmo os45 dictos oficios e mando que os ajam e que usem delles como os outros que os ham per vossas cartas E por que em esto Recebyades agrauamento e era contra a jurdiçom desse concelho pediades me por merçee que taaes cartas nom passassem E entendi o que me enujastes dizer E uos sabede que minha voontade nom he dar taaes cartas em vosso perjujzo E se as alguuns teem ou lhe forem dadas vos auede o trellado dellas e enviade mo pera as eu ueer e uos desagrauar se achar que em ello sodes agrauados E se uollas dar nom quiserem uos defendee lhes de mha parte que nom obrem majs dellas Unde al nom façades dante em sanctarem seis dias de Julho Ell rrey o mandou per fernam martjnz seu vassallo domjngos ferrnandez a fez Era de mjl iiiic vi anos.

 

1372, novembro, 12, Lisboa

D. Fernando informa o alcaide mor de Lisboa, João Afonso Telo, que os homens bons desse concelho haviam protestado contra a nomeação de um não natural da cidade para o ofício de alcaide, desrespeitando o foro. O monarca ordenou que o foro fosse verificado e cumprido.

AML, Livro dos pregos, doc. 70, f. 74v.

Dom ffernando pella graça de deus Rey de portugall e do algarue A uos Joham afomso tello nosso alcaide mayor em na muj nobre cidade de lixboa Saude ssabede que os homeens boons e conçelho dessa cidade nos enujarom dizer que a dicta cidade ha seu foro em no qual he conthudo que aquel que lixboa de nos teuer. nom ponha hi outro alcaide senom natural dessa çidade E que ora uos posestes em esse castello por alcaide outro homem que nom he morador dessa çidade e que nom guardades o dicto foro per ho uos dicto e Requerido foy. E pedirom nos ssobr ello merçee E Nos ueendo o que nos pediam E querendo fazer graça e merçee ao comçelho dessa cidade Teemos por bem e mandamos uos que ueiades o foro que essa çidade ha e compri de lho e guarda de lho como em elle he conthudo E nom lhe uaades comtra ell em outra maneira Unde al nom façades dante em leireea doze dias de nouenbro El Rey o mandou per fernam martjnz seu uassalo fernam pirez a fez Era de mil e quatrocentos e dez annos.

 

1385, abril, 10, Coimbra

D. João I responde a um capítulo especial, apresentado pelos procuradores de Lisboa nas Cortes de Coimbra de 1385, sobre a existência de um juiz de fora na cidade.

AML, Livro dos pregos, doc. 129, f. 134

O xij capitollo he que diz que em esta Cidade sse acustomou aauer Juizes de seu foro E que Nosso Jrmãao per muitas uezes pos Juizes e corregedores de fora. aa custa do conçelho dando a elles proll e perda ao conçelho auendo na Cidade tamtos e tam boos e tam emtendidos come aquelles que hi poinham. por Juizes e Corregedores jndo lhe em esto contra seu foro. E ora pidenos por merçee que a dicta çidade. possa poer Juizes em cada huum anno como os sempre posserom de seu boo custume E que nos lhes nom posessemos hi outros Juizes nem corregedores. saluo o Corregedor da Nossa corte que liure e desembargue os fectos que a ell perteençem quando a corte ffor na Cidade.

A este capitollo rrespondemos que nos praz que a dicta. Cidade ponha seus Juizes como os sempre hussou de poer E porquamto nom sabe como se os fectos sijguirom ao adeante em na parte da Justiça nom auemos por ssua proll nem por Nosso seruiço de lhe prometermos que nom aja hi Corregedor. Pero emquanto os fectos amdarem como deuem nom entendemos que hi ponhamos Corregedor.

 

1429, dezembro, 19, Coimbra

D. João I, na sequência de uma queixa dos homens bons de Lisboa, ordena ao corregedor da cidade que deixe de interferir na nomeação e destituição de oficiais do concelho.

AML, Livro dos pregos, doc. 178, f. 158

Dom Joham pella gracça de deus Rey de purtugall e do algarue A uos afomso martjnz aluarnaz Corregedor por nos na nossa muy nobre e leall çidade de lixboa. E a outros quaaesquer que esto ouuerem de veer a que esta carta for mostrada. saude sabede que o conçelho e homens boons dessa çidade nos emuyarom dizer que Nos uos demos nosso poder que aquelles ofiçiaaes da dicta çidade que uos emtendessedes que mereçiam de seerem priuados dos ofiçios que os priuassedes delles e posessedes outros em seu logo. E que por quanto os ofiçios da dicta çidade som proprios e Jsentos do dicto comçelho Nos pediam por merçee que o nom quysesemos em ello agrauar E os leixasemos hussar dos seus ofiçios pella guissa. que senpre husarom ca a elles bem prazia que aquelles que mall fezessem fossem ponidos E Nos veendo o que uos asi dizer e pedir emuyarom Teemos por bem. E mandamos que em quanto tange aos ofiçios que som do conçelho da dicta çidade que se husse pella guissa que sse husaua no tempo dos outros corregedores que em essa çidade forom pellos Reis. E porem mandamos a uos que asi o façades e nom baades contra ello em nemhua guissa que seia Unde al nom façades dante em viseu XIX dias de dezenbro. El Rey o mandou per Ruy lourenço daiam de coinbra leçençiado em degredos e per Joham afomso escollar em lex seu uaasallo e ambos do seu desenbargo gonçallo caldeira a fez era de mill iiiic e vinte e noue annos.

 

1459, junho, 26, Lisboa

D. Afonso V responde a um capítulo especial, apresentado pelos procuradores concelho de Tavira nas Cortes de Lisboa de 1459, sobre a existência de um juiz de fora na cidade.

ANTT, Leitura Nova,Odiana, liv. 3, f. 130v.

Outrossi senhor vos nos destes por juiz aires fernamdez barroso escudeiro de vossa casa ha ora tres annos que serve e honde ho conde d’Odemira esta e seu ouvidor por correiçam escusado deue seer teermos juiz de ffora honde nam tem mais que quatro lugares em que faça correiçam e por este comcelho nam teer mais de renda que dezaseis mil reais e delles tirar o terço pera as obras dos muros e que seis mil reais que ho juiz leva e por outras despesas certas e nam certas nam podemos soportar juiz de fora pidimos aa vossa mercee que vaa em paz pera honde lh’aprouver.

A esto respondemos que lho outorgamos segundo pedem e acabado ho anno de servir façam juizes de seu foro.

 

submissão/submission: 29/07/2014

aceitação/approval: 19/09/2014

 

 

NOTAS

1 Este estudo foi desenvolvido no âmbito desse projeto (PTDC/EPH-HIS/4323/2012). Para mais informações, consulte-se: http://www2.uab.pt/juscom/projetoPT.php

2Sigo, fundamentalmente, DUARTE, Luís Miguel - Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 1999. p. 245-247.

3Foram contabilizadas uma reunião no reinado de Afonso IV (a de 1352), a única de D. Pedro I, as seis suficientemente documentadas de D. Fernando (no primeiro volume das Cortes de D. Fernando são referidas três outras reuniões que poderão eventualmente ter acontecido), as 55 que Armindo de Sousa considera suficientemente documentadas para o período 1385-1490, e as primeiras Cortes de D. Manuel I. Cf. Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques, Maria Teresa Campos Rodrigues e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982. Cortes portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367). Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986. Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-1383). vol. I. Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-1383). vol. II. Edição preparada por A. H. de Oliveira Marques e João Paulo Salvado. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1993. SOUSA, Armindo de - As cortes medievais portuguesas (1385-1490). Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. p. 464-465. Cortes portuguesas. Reinado de D. Manuel I (cortes de 1498). Edição preparada por João José Alves Dias, A. H. de Oliveira Marques, João Cordeiro Pereira e Fernando Portugal. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002.

4 São elas: 1352, Lisboa; 1361, Elvas; 1371, Lisboa; 1372, Porto; 1400, Coimbra; 1433, Leiria-Santarém; 1446, Lisboa; 1451, Santarém; 1459, Lisboa; 1481-1482, Évora-Viana; 1490, Évora; 1498, Lisboa. Para o período de 1385-1490 seguiu-se a síntese dos capítulos gerais de Cortes disponível no volume II da já citada obra de Armindo de Sousa. Para além de dois casos de que se dará conta mais à frente, não se sabe quantos capítulos especiais sobre juízes de fora foram apresentados em Cortes durante esse período.

5 CAETANO, Marcello - A administração municipal de Lisboa durante a 1ª dinastia (1179-1383). 3ª edição. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 66.

6 Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). p. 128.

7 Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). p. 128.

8 Cortes portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367). p. 35.

9 Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383). vol. I, p. 28-29.

10 Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383). vol. I, p. 88-89.

11 SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 255.

12 SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 291. Capítulo publicado em SOUSA, Armindo de - As cortes de Leiria-Santarém de 1433. Estudos medievais. N.º 2 (1982), p. 71-224, maxime p. 175-176.

13 Uma vez que não vi o documento, não tenho conhecimento do que foi aceite pelo monarca e das condições que foram impostas. SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 338.

14 Uma vez mais, pelo motivo enunciado na nota anterior, não sei ao certo o que foi aceite e o que foi rejeitado pelo rei. SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 341.

15 SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 455.

16SOUSA, Armindo de, 1990, vol. II, p. 489.

17 Cortes portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498), p. 77-78, 87 e 308-309.

18 FARELO, Mário Sérgio da Silva - A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433). Lisboa: [s.n.], 2009. Tese de doutoramento em História, apresentada à Universidade de Lisboa. p. 253.

19FARELO, Mário Sérgio da Silva, 2009, p. 279-281.

20Os dados relativos ao reinado de D. Afonso V foram verificados em DUARTE, Luís Miguel - Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481). Porto: [s.n.], 1993, vol. II. Tese de doutoramento em História, apresentada à Universidade do Porto. As informações sobre os juízes de fora nos reinados de D. João II e D. Manuel I foram levantadas por mim e por Nuno Rodrigues no âmbito do projeto JUSCOM.

21 Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Livro dos pregos, doc. 97, f. 108v.

22 AML, Livro dos pregos, doc. 70, f. 74v.

23AML, Livro dos pregos, doc. 178, f. 158.

24AML, Livro dos pregos, doc. 129, f. 134.

25Vários desses conflitos são abordados em: MIRANDA, Flávio; SEQUEIRA, Joana; DUARTE, Luís Miguel - A cidade e o Mestre: entre um rei bastardo e um príncipe perfeito. In História do Porto. Matosinhos: Quidnovi, 2010. vol. 4, p. 75-89.

26 “Vereaçoens”. Anos de 1390-1395. Edição de A. de Magalhães Basto. Porto: Câmara Municipal, 1937. p. 24-25.

27 Que, de resto, já tinha sido escrita no dia 19 de julho, ainda antes de este assunto ter sido discutido na Câmara do Porto. Cf. “Vereaçoens”. Anos de 1390-1395. p. 34.

28 “Vereaçoens”. Anos de 1390-1395. p. 35 ss.

29 “Vereaçoens”. Anos de 1390-1395. p. 184-185.

30 COELHO, Maria Helena da Cruz; MAGALHÃES, Joaquim Romero - O poder concelhio: das origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 14.

31 “Vereaçoens”. Anos de 1401-1449. Edição de J. A. Pinto Ferreira. Porto: Câmara Municipal, 1980. p. 88.

32 “Vereaçoens”. Anos de 1401-1449. p. 64-67.

33 “Vereaçoens”. Anos de 1401-1449. p. 68-69.

34 MACHADO, Maria de Fátima - O central e o local: a vereação do Porto de D. Manuel a D. João III. Porto: Edições Afrontamento, 2003. p. 33-38.

35 Documentos como o rol das igrejas de 1320-1321 e os róis de besteiros dos séculos XIV e XV permitem-nos ter alguma noção desta posição relativa de Tavira no contexto dos centros urbanos do Algarve. Para além disso, Tavira era, a par de Silves, um dos concelhos algarvios que mais frequentemente participava em Cortes. Cf. MARQUES, A. H. de Oliveira -Portugal na crise dos séculos XIV e XV. In SERRÃO, Joel (dir.); MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) - Nova história de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1987. vol. IV, p. 19, 25 e 295.

36 MARQUES, A. H. de Oliveira, 1987, p. 33 e 35.

37Foram pelo menos seis na segunda metade do reinado de D. Afonso V, um no tempo de D. João II, quatro no de D. Manuel I e três no de D. João III. Cf. DUARTE, Luís Miguel, 1993, vol. II, p. 191-194. Tese de doutoramento em História, apresentada à Universidade do Porto. Os dados relativos aos reinados de D. João II, D. Manuel I e D. João III foram levantados por mim e por Nuno Rodrigues no âmbito do projeto JUSCOM.

38 Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Leitura Nova, Odiana, liv. 3, f. 130v.

39DUARTE, Luís Miguel, 1993, vol. II, p. 192-193.

40 Publicado em DUARTE, Luís Miguel, 1999, p. 700.

41COELHO, Maria Helena da Cruz – Relações de domínio no Portugal concelhio de meados de Quatrocentos. Revista portuguesa de História. N.º 25 (1990), p. 235-289, maxime p. 273.

42 COELHO, Maria Helena da Cruz, 1990, p. 273.

43 DUARTE, Luís Miguel, 1999, p. 700.

44 Os documentos aqui publicados correspondem às fontes inéditas a que recorri para a elaboração deste estudo, não tendo qualquer pretensão de exaustividade em relação ao assunto tratado.

45 Repetido: “os”.

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