SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número1EditorialOs passos da Bemposta da Serenicima Senhora Raynha da Gram Bretanha: contributos para a história da colina de Santana índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-2176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.1 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGO

Evolução urbana de Lisboa antes de 1755: alargamento de ruas

Lisbon urban evolution before 1755: enlargement of streets

Adélia Maria Caldas Carreira*

Investigadora do Instituto de História da Arte da Faculdade deCiências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.

 

RESUMO

Lisboa passou por importantes transformações urbanísticas nos reinados de D. Pedro II, D. João V e inícios do de D. José I, abruptamente interrompidas pelo grande Terramoto de 1755. A maioria dessas intervenções deveu-se à iniciativa régia e, em menor quantidade, à do Senado municipal e a particulares, e consistiram, fundamentalmente, na abertura de vias periféricas e, dentro da cidade, no alargamento, regularização e calcetamento de diversas ruas. Foram melhoradas as comunicações da capital com as áreas envolventes, assim como a qualidade do ar que se respirava.

 

PALAVRAS-CHAVE

Tráfego / Estradas periféricas / Regularização e pavimentação de ruas / Expropriações / Limpeza urbana

 

ABSTRACT

Lisbon went through important urban transformations during Pedro II, João V and the beginning of José I reigns, abruptly interrupted by the1755 Great Earthquake. Most of these interventions were due to the royal initiative and, in less extension, to the Municipal Senate and private initiative. They consisted essentially by opening of peripheral roads and, within the city, in the extension, regularization and paving of several streets. Communications between the capital and its surroundings areas were improved, as well as the quality of the air.

 

KEYWORDS

Traffic / Peripheral roads / Street regularization and paving / Expropriations / Urban sanitation

 

 

Foram numerosas as realizações urbanísticas verificadas no período joanino, tendo o monarca promovido e (ou) apoiado importantes intervenções em diversas zonas da capital, umas de iniciativa municipal e outras particulares, em que se inseriram o alargamento e regularização de ruas e largos, o calcetamento de vias periféricas, as novas construções, etc 1.

Algumas das obras de alargamento, de regularização e de calcetamento das principais artérias da Corte 2, foram iniciadas no último quartel do século XVII, sendo justificadas pela necessidade de melhorar o tráfego urbano e de contribuir para a “fermosura” da cidade.

De facto, as dificuldades de circulação de pessoas e de bens na Corte foram-se agravando com o tempo, originando acidentes diversos (sendo os atropelamentos os mais graves) e motivando frequentes discussões entre os condutores de coches e liteiras, sobretudo nas artérias mais concorridas e (ou) mais difíceis.

Com o intuito de resolver ou, no mínimo, minorar alguns desses problemas, a Coroa e o Senado criaram regras de trânsito e afixaram sinais ou placas de sinalização nas ruas mais problemáticas da época, subsistindo uma dessas placas num edifício da rua do Salvador (Alfama). Datada de 1686, regulava a prioridade de passagem dos veículos, estipulando o seguinte: “Sua Magestade ordena que os coches, seges e liteiras que vierem da portaria do Salvador recuem para a mesma parte”.

Mas, as normas e os sinais de trânsito não podiam, só por si, acabar com os problemas viários, uma vez que eles decorriam das péssimas condições das ruas, estreitas, tortuosas, sem calcetamento ou muito mal calcetadas. Tornou-se, por isso, imperioso melhorar a rede viária da capital, começando pelo alargamento das artérias mais movimentadas, nomeadamente as que estabeleciam a ligação às duas principais praças, as do Rossio e do Terreiro do Paço, como era o caso das ruas dos Ourives da Prata e dos Ourives do Ouro.

A propósito do alargamento da rua dos Ourives da Prata, o Senado consultou o monarca a 23 de novembro de 1676, (Figura 1)justificando a urgência dessa obra devido ao grande desenvolvimento da cidade e ao facto de as ruas serem estreitas e já não terem “capacidade para o concurso da gente, coches, liteiras e seges, cujo uso, introduzido pelo tempo, [era] necessário (…) para o serviço da nobreza”4. Referia-se no documento que deveria fazer-se tudo o que pudesse “facilitar a mais necessaria serventia d’esta côrte, fazendo a rua dos Ourives da Prata capaz de rodarem por ella os coches, sem os embaraços e dificuldades da Padaria”5 e explicava-se ainda que, para a rua ser feita em conformidade com a planta apresentada, seria necessário “derrubar vinte e seis moradas de casas, da parte que começa nos Livreiros e acaba na Correaria”6.

 

3

 

Alguns anos mais tarde, em 1687, o Senado iniciou as obras de alargamento da rua dos Ourives do Ouro, as quais continuaram no reinado de D. João V, como se depreende de vários documentos desse período. Assim, a 15 de janeiro de 1716, aquele órgão municipal explicava ao monarca que, para fazer face às despesas que tais obras comportavam, fora forçado a utilizar “as sobras do Real [imposto] na carne, e vinho para a limpeza da mesma Cidade e o procedido da venda dos officios, que [vagassem]”7, embora as referidas “sobras do Real d’água” se destinassem à reparação das “calçadas fora dos muros” e os proventos da “venda dos officios” se destinassem à obra do Lazareto8.

A conclusão das obras de alargamento das referidas ruas dos Ourives do Ouro e dos Ourives da Prata inseriu-se na primeira fase do vasto programa de intervenções urbanísticas que se desenrolou ao longo dos quarenta e quatro anos do reinado de D. João V, visando o embelezamento e a modernização da capital embora, a nosso ver, visassem também a melhoria do saneamento urbano e a garantia do ar puro9.

No conjunto das intervenções implementadas por iniciativa régia e municipal, destacaram-se, além da obra do Aqueduto das Águas Livres, as obras de alargamento, de regularização e de calcetamento de várias ruas, umas localizadas no coração da urbe e outras em zonas tampão, ou seja, próximas dos limites periféricos e das saídas/entradas da cidade.

Socorrendo-se de documentação coeva, Freire de Oliveira referiu as importantes transformações urbanas verificadas no período joanino, incluindo a abertura de novas ruas e a construção de novos palácios, associadas ao processo de expansão e desenvolvimento de áreas limítrofes: a ocidente - da Pampulha a Belém -, a noroeste - de Campolide à Cotovia – e a nordeste - dos Anjos ao Campo de Santa Clara10.

A 25 de setembro de 1724, o Senado Figura 1 consultou o monarca acerca da obra “de calçada e rebaixos”11 que deveria ser realizada na rua que subia da Boa Vista para Santa Catarina, para que as carruagens pudessem subir “sem o tropeço e perigo”12. Segundo essa consulta, para alargar a via era necessário “tomar parte de duas moradinhas de casas (…) no topo da subida (o que permitiria aos coches subir com melhor desafogo e virar) e ainda tomar-se um pardieiro que foi estancia e [ficava] no meio do largo que se [pretendia] fazer junto à porta da egreja dos religiosos de S. João Nepomuceno (…), para que [coubessem] e [voltassem] no dito largo as carruagens”13. Por fim, o Senado referia os entraves levantados pelos proprietários das casas e do pardieiro14 e requeria ao monarca autorização para tomar dessas propriedades o “necessário para a dita obra ficar com a regularidade e perfeição que se [requeria]”15.

No ano seguinte, o próprio monarca ordenou ao Senado que realizasse, com urgência, os necessários melhoramentos em vários caminhos, nomeadamente no que ia “para N. Srª das Necessidades e no que [ia] da Cotovia para o Mosteiro de Campolide”. De acordo com o que determinava o ofício de 11 de fevereiro de 1727, o Senado deveria concertar “o caminho das Necessidades”16 e averiguar a situação de um prédio arruinado que aí se encontrava, notificando o dono para o consertar e, caso este não o fizesse, “se lhe demolir”17. E, quanto ao caminho da “Cotovia para o Mosteiro de Campolide”, o rei ordenava que o mesmo fosse alargado, uma vez que tinha uma “calçada muito estreita”18.

Alguns meses mais tarde, a 12 de maio, D. João V ordenou ao Senado que mandasse consertar a rua da Caridade (transversal da rua direita de S. José), porque havia sido informado de que a mesma se encontrava “descalsada e em muito mao estado”19.

No mesmo bairro de S. José e ainda no mesmo ano de 1727, ocorreu uma nova intervenção urbanística também por determinação do monarca que, por carta datada de 12 de agosto, ordenou ao Senado que realizasse obras de melhoramento na rua das Portas de Santo Antão, a começar pela alteração das referidas portas, que deveriam ficar “mais Largas, e altas”20, de acordo com o projeto que, para o efeito, fora “feito por João Fedirico Lodovici”21.

Referindo-se à Porta de Santo Antão22, Baptista de Castro depois de descrever a sua localização junto à igreja de S. Luís dos Franceses23, explicou que por ela se “fazia trânsito para a praça do Rocio”24 e afirmou que ainda se lembrava de aí ver “collocadas nas suas couceiras as portas com que se fechava, chapeadas de ferro, as quaes no anno de 1727 se tirarão”25 para se preparar uma condigna receção ao Embaixador Extraordinário de Espanha, o marquês dos Balbazes (receção que viria a ocorrer a 6 de janeiro de 1728).

As obras de alteamento e de alargamento das Portas de Santo Antão contribuíram, como se deduz, para o alargamento da própria rua, vindo, por isso, a facilitar a circulação dos veículos e dos peões. Mas, se tão benéficos melhoramentos agradaram à maioria dos citadinos, em nada agradaram ao conde da Ponte, que se sentiu lesado com tais obras. Começou por se queixar junto do monarca dos “incómodos” sofridos com a morosidade das referidas obras, o que levou D. João V a exigir ao Senado que as mesmas fossem concluídas “com a brevidade possível”26.

Posteriormente, o conde27 queixou-se dos prejuízos materiais sofridos, uma vez que as referidas obras tinham afetado a sua residência (reduzindo o número de compartimentos) que encostava à muralha e englobava uma das torres das Portas de Santo Antão. O Senado, confrontado com o pedido de indemnização apresentada pelo fidalgo, dirigiu-se ao monarca a 27 de novembro de 1733, expondo-lhe que a pretensão do conde não devia ser atendida porque, quando o seu antepassado Garcia de Mello, obtivera licença para fazer casas na torre e muros contíguos, fora informado das “condições a que se sogeitava, que pudecem acontecer (como, por exemplo, a demolição parcial ou total daquelas construções) e se obrigou a si, e a seus sucessores”28 a aceitá-las.

Além do alargamento da rua das Portas de Santo Antão, D. João V promoveu novas obras de melhoramento da rede viária (abertura de novas artérias e alargamento, a regularização e o calcetamento das existentes), como se constata pela documentação da época. A 18 de fevereiro de 1729, ordenou ao Senado que executasse a planta que fora enviada, respeitante ao traçado da rua que ia da que se estava a abrir “nos douradores para a Igreja de S. Nicolao principiando-se a demolir as duas moradas de cazas, do Canto da dita rua dos Douradores e juntamente a parte necessária das cazas que [iam] para a Capella que instituiu o Prior da dita Igreja”29.

E, a 12 de outubro de 1743, ordenou a demolição das casas que José da Costa Calheiros estava a reconstruir “na rua direita que [ia] do Convento de São João de Deos para Alcantara, porque apresentavam hum grande estrocimento para a parte da rua, ficando esta com grande disformidade, devendo ser tomadas dellas o chão (…) necessário para a rua cordear30 direita”31.

Foram realizadas outras intervenções com o objetivo de criar e (ou) regularizar praças, como se deduz da análise de uma consulta feita pelo Senado ao rei, datada de 14 de abril de 1742, a propósito da petição apresentada por António da Silva Rego, o qual pretendia aforar um chão municipal para regularizar a fachada da sua habitação, situada no Campo de Santana. Face aos objetivos propostos pelo “supplicante”, o Senado concordava com o aforamento do terreno (estipulando o foro anual de “um tostão por cada um palmo de frente”32) e pedia ao rei “faculdade para poder continuar no mesmo estorcimento a mesma obra, aforando o chão a quem o [pretendesse], com a mesma formalidade de foro e com a condição apontada”33, argumentando que dessas intervenções poderia surgir “uma formosa praça” que seria do “real agrado (…) e de grande gosto para o povo”34.

O “programa” de alargamento das principais vias urbanas tornou-se mais claro e rigoroso quando, a 13 de abril de 1745, D. João V decretou que, independentemente de “quaesquer Leys, ordenaçoens, ou costumes em Contrario”35, fosse proibido abrir qualquer rua ou serventia alguma que [tivesse] entrada, e sahida publica, e geral, menos de sinco varas, ou vinte e cinco palmos craveiros de Largo, que seja dentro, ou fóra de povoado; porém que nas ruas e Estradas principaes e de muito concurso se [seguiria], quanto à Largura, o estylo observado com que se formarão algumas que já (…) feitas, assim dentro como fóra desta Corte, como [eram] as dos Ourives (…) e outras semelhantes36.

O decreto joanino foi publicado com o intuito de estabelecer normas que regularizassem daí para a frente quaisquer intervenções urbanísticas para se evitar, como o próprio documento referia, “a desformidade com que (…) se [iam] formando novas Ruas e bairros, quando se devia esperar que augmentando-se, se melhorassem”37. De facto, as medidas estabelecidas para a abertura e (ou) a regularização das ruas de menor e de maior circulação viária (com as dimensões mínimas de 20 a 25 palmos e máximas de 40 palmos) condicionaram, daí em diante, todas as realizações urbanas da Corte e do respetivo Termo38.

Nalguns casos, a aplicação dessas novas regras por parte do(s) Senado(s) colidiu com interesses estabelecidas por normas anteriores, gerando situações de conflito, como a que ocorreu em 1746, devido à pretensão do marquês do Louriçal39 de fazer melhoramentos no seu palácio da Anunciada. Incluíam-se nesses melhoramentos, a ampliação de umas casas térreas localizadas entre o seu palácio na rua da Anunciada até à esquina da rua dos Condes e, segundo a exposição apresentada pelo fidalgo, uma vez que essa obra não podia ser feita “pelos mesmos alicerces das cazas térreas, porque não ficaria direita a rua, mas com reconcavos, decidira abrir novos alicerces tomando para a parte da Rua dous palmos e meio, [e] tomando porem no meio do cordiamento seis palmos e meio de rua (…)”40.

O Senado, depois duma primeira vistoria, embargou as obras já em curso, com a justificação de que as mesmas iriam “estreitar a rua mais publica d’esta cidade”, o que contrariava o disposto no decreto régio de 13 de abril de 1745, mas o marquês do Louriçal apelou à intervenção do monarca.

Por decisão régia, o Senado foi obrigado a fazer uma nova vistoria ao local das obras e, em consulta datada de 27 de agosto de 1746, informava o monarca de que, após essa segunda vistoria (a 9 desse mês), não surgira “couza algua de novo que [fizesse] alterar o parecer (…)”41. E, para justificar a posição do órgão municipal sobre essa matéria, foram incluídos os pareceres de alguns vereadores, nomeadamente a de Manuel Martins Ferreira que, sobre a ocupação da rua em questão, entendia que “a grande parte que della se [tomava], que ainda que [ficasse] Larga não [correspondia] à Largura que Vossa Magestade [mandava] no Decreto de treze de abril de mil settecentos e quarenta e cinco (...)”42.

Verificamos, pois, que o(s) Senado(s) passaram a cumprir com zelo as normas do decreto joanino acima mencionado, quer nas obras de ampliação e de regularização das ruas dentro da área da Corte, quer nas intervenções realizadas nas freguesias do Termo. Num documento datado de agosto de 1755, relativo às obras de ampliação do dormitório do Convento de Nossa Senhora da Luz, em Carnide, determinava-se que as mesmas teriam de processar-se sem afetar a rua contígua, do lado norte, a qual se conservaria “em Largura de mais de quarenta e sinco palmos”43.

A par da iniciativa régia e municipal, a iniciativa privada também deu um forte contributo para a melhoria da rede viária urbana, como se patenteou no caso das obras realizadas nas ruas das Farinhas, de S. Cristóvão, das Pedras Negras e da Correaria (entre outras). Numa consulta enviada ao rei a 28 de janeiro de 1735, o Senado informava-o do pedido apresentado pelo visconde de Vila Nova da Cerveira relativo à avaliação de umas casas que pretendia comprar para alargar a rua das Farinhas44.

Numa outra consulta, datada de 24 de outubro de 1739, referia a exposição do conde de Atalaia, informando que este pretendia comprar umas casas na descida de S. Cristóvão para alargar essa via e garantir melhor “serventia ao seu palácio junto à Costa do Castelo”45.

A 2 de julho de 1751, D. João V consultou o Senado camarário sobre o pedido de João Almada46 para alargar as ruas que iam “para as Pedras Negras e Correaria”47, onde possuía casas e, a 26 de abril do ano seguinte, o órgão municipal apresentou a resolução tomada sobre esse assunto, devidamente justificada com a vistoria realizada, com a planta elaborada e com os pareceres do ”syndico, architecto e mestres da cidade”48, do presidente e dos vereadores. Todos tinham sido unânimes quanto às vantagens para o bem público das obras de alargamento dessas ruas e quase todos alertavam para a necessidade de se respeitar o disposto no decreto de abril de 1745. No caso específico da rua da Correaria, alguns vereadores defendiam que, em concordância com o referido decreto, a sua largura deveria ser de 40 palmos, “de modo que [coubessem] por ella duas carruagens grandes, com commodidade de ambas, por ser a serventia principal da cidade para aquellas partes, e para o serviço da grande porção da mesma cidade que por ali se [servia]”49.

Por ofício de 9 de agosto de 1753, o Secretário de Estado, Diogo Mendonça Corte Real, informou o Senado de que o monarca tomara conhecimento da “ruina que ameaçava a parede do Convento dos Padres Quintaes”50 e que, informado do perigo que isso representava para todos os que “passavão pela Rua Nova do Almada para o Chiado”51, decidira mandar alargá-la “para cima da Igreja dos ditos Padres, e o Chiado”52, visto tratar-se da “mayor passagem da Corte por aquele sítio”53.

Cumprindo as ordens régias, o Senado encarregou o arquiteto Eugénio dos Santos para fazer a vistoria com os mestres da cidade e, em seguida, levantar a planta da área em questão. Tal como noutras intervenções já realizadas, o alargamento da rua Nova do Almada e de parte da rua do Chiado implicaria o derrube de várias propriedades, competindo ao Senado mandar fazer a sua avaliação, para posterior pagamento do valor estipulado aos respetivos proprietários.

Mas, não dispondo de “dinheiro pronto (…) para se lavrarem as escrituras e se efectuarem as compras [das casas]”54, o município dirigiu-se ao monarca a 22 de novembro, pedindo-lhe a devida autorização para utilizar, temporariamente, uma percentagem “do produto aplicado á obra da condução da agoa livre (…)”55. Anexaram-se ao pedido, os pareceres dos vereadores camarários e dos “quatro Procuradores dos Mesteres”56 os quais reconheciam a utilidade da obra de alargamento do Chiado mas, cientes de que “o Senado não [tinha] meyos porporsionados a esta despeza”57 entendiam que o rei deveria autorizar a solução proposta para que a obra da rua Nova do Almada se concretizasse.

Paralelamente às obras de alargamento das artérias urbanas (e do Termo), realizaram-se obras de ampliação e (ou) de regularização de prédios (fachadas principalmente), as quais se submeteram igualmente às disposições do decreto joanino de 1745. Ou seja, tal como vimos no caso das obras que o marquês do Louriçal pretendera realizar no seu palácio em 1746, o Senado fiscalizava todas as alterações arquitetónicas que os particulares queriam introduzir nas respetivas propriedades, mostrando-se particularmente atento quanto às alterações das fachadas que confrontavam com ruas e praças públicas, por recear que as mesmas provocassem a “desformidade” desses espaços.

A 28 de junho de 1755, o Senado consultou o rei sobre uma petição apresentada pelo desembargador Manuel da Costa Mimor o qual, desejando “emdereytar a frontaria das suas casas no Campo de Santa Ana”58, pedira permissão para ocupar alguns palmos de chão público. O Senado mostrou-se disposto não só a autorizar a alteração da fachada das referidas casas mas também a permitir a ocupação de terreno público com isenção do pagamento de “foro”59, justificando a sua decisão com o argumento de que a obra prevista consistia num “simples estrocimento”60 e que “o estilo”61 proposto para a fachada se adequava ao disposto no Decreto de 13 de abril de 1745, no qual se estipulava que “as propriedades de cazas [fossem] em fermoza e perfeita regularidade (…) para o melhor aspecto da cidade”62.

Como se constata pela documentação citada, na maior parte das intervenções urbanísticas realizadas, particularmente nas que respeitavam à alteração das ruas (ou no grande empreendimento das Águas Livres), tornava-se imperioso derrubar, total ou parcialmente, muitas propriedades privadas, as quais eram expropriadas em prol do interesse público. Ao Senado interessava, naturalmente, que tais expropriações ocorressem sem grandes prejuízos para a autarquia, embora houvesse a preocupação de não lesar os interesses dos privados.

À falta de uma legislação específica sobre tal matéria, foram-se generalizando algumas práticas e normas de intervenção (ou seja, de expropriação), que muito se aperfeiçoaram nos reinados de D. Pedro II e de D. João V. Assim, sempre que se tornava necessário derrubar total ou parcialmente alguma propriedade, o Senado camarário mandava fazer a sua avaliação, sendo para o efeito designados dois avaliadores, ou “louvados” (um por cada parte interessada) e um oficial da Fazenda.

O Senado acatava os valores calculados e responsabilizava-se pelo seu pagamento mas, porque isso constituía sempre um grande esforço financeiro para os cofres do município, requeria muitas vezes “à Coroa a isenção do pagamento de sisa sobre a aquisição de bens imóveis, ou ajuda financeira na retribuição a garantir em caso de propriedades com vínculo, como o caso das capelas”63.

A sistematização das práticas e normas relativas às expropriações, que tanto contribuiu para acelerar todo o processo de reconstrução urbana, após o Terramoto de 175564, só foi possível graças ao crescente reforço da autoridade régia, verificado a partir do reinado de D. Pedro II. De facto, como explica Cláudio Monteiro, “o direito antigo português não configurava a expropriação como um instituto jurídico autónomo (…) capaz de, por si só, obter o efeito de extinção do direito de propriedade privada e a consequente transferência do bem para a esfera pública”65 e, por isso, “a aquisição forçada desses terrenos pressupunha (…) um ato de autoridade régia”66 que ultrapassasse o consignado nas Ordenações Filipinas (ainda em vigor no século XVIII), segundo o qual ninguém podia ser “constrangido a vender seu herdamento e cousas que tiver, contra a sua vontade”67. Fundamentando as suas afirmações, o autor aponta como caso paradigmático, o da expropriação de terrenos decretada por D. Afonso VI em 1665 tendo como objetivo a abertura da rua Nova do Almada.

Os complexos problemas surgidos com a reconstrução de Lisboa pós-1755, exigindo uma ação rápida por parte das instituições envolvidas nesse processo, determinaram a produção de um apreciável conjunto de normas jurídicas específicas destinadas a sustentar todas as obras implementadas.

Até 1755, um bom número de realizações urbanas - incluindo as referidas obras de melhoramento da rede viária - foram justificadas pela necessidade de melhorar o tráfego e (ou) de contribuir para a “fermosura” da Corte. Na nossa opinião, porém, a maior parte as obras visaram igualmente melhorar o saneamento e a qualidade do ar na cidade, de acordo com as ideias expressas pelo discurso higienista68.

Na ótica do pensamento higienista, a limpeza e o alargamento das ruas e das praças eram apontados como meios adequados (entre outros) para incrementar a permanente ou frequente circulação dos ventos no interior das cidades, sendo estes tidos como indispensáveis para afastar os ares pútridos ameaçadores da saúde pública69. No contexto europeu e particularmente nas sociedades mais esclarecidas, as novas propostas arquitetónicas e urbanísticas de Setecentos relacionaram-se com essas reflexões sobre o ar e (ou) derivaram da crescente reivindicação por parte dos higienistas de um ar puro e saudável. Parece-nos lógico, por isso, associar muitas das obras empreendidas no reinado de D. João V e nos primeiros anos do reinado de D. José I (particularmente as que se destinaram a melhorar o saneamento urbano), a tais reflexões e preocupações.

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

Arquivo Municipal de Lisboa

 

Livro 5º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V

Livro 6º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V

Livro 9º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V

Livro 10º de Consultas, decretos e Avisos de D. João V

Livro 18º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V

Livro 23º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V

Livro 2º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I

Livro 3º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I

Livro 4º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I

 

Fontes impressas e estudos

CASTRO, João Baptista de - Mappa de Portugal antigo e moderno. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luís Amado, 1763.         [ Links ]

MACEDO, Luís Pastor de - Lisboa de lés a lés: subsídio para a história das vias públicas da cidade. 2ª ed. Lisboa: Câmara Municipal, 1960. vol. 2.         [ Links ]

MADUREIRA, Nuno Luís - Lisboa 1740-1830: cidade, espaço e quotidiano. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.         [ Links ]

MONTEIRO, Cláudio - Escrever Direito por linhas rectas: legislação e planeamento urbanístico na Baixa de Lisboa (1755-1883). Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito, 2010.         [ Links ]

MURTEIRA, Helena - Da Restauração às Luzes. Lisboa: Presença, 1999.         [ Links ]

OLIVEIRA, Eduardo Freire de - Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal, 1887-1943.         [ Links ]

ROSSA, Walter - Além da Baixa: indícios do planeamento urbano na Lisboa Setecentista. Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico, 1998.         [ Links ]

SERAFIM, Paula - Tentativas para uma eficaz limpeza urbana de Lisboa nos princípios do século XVIII. Cadernos do Arquivo Municipal. Lisboa. 1ª Série. Vol.10 (2009/2010), p. 93-111.         [ Links ]

SILVA, Augusto Vieira da - Plantas topográficas de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal, 1950.         [ Links ]

SILVA, Maria de Lurdes Ribeiro da - Aspectos da intervenção do Senado da Câmara na reconstrução Pombalina: os livros de cordeamento. In Colóquio Temático de Lisboa, 1, Lisboa, 1995 - O Município de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XIX): actas. Lisboa, Câmara Municipal, 1997.         [ Links ]

TEIXEIRA, C. Manuel; VALLA, Margarida - O urbanismo português, séculos XIII-XVIII: Portugal e Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.         [ Links ]

 

submissão/submission: 11/03/2013

aceitação/approval: 07/03/2014

 

 

NOTAS

* Doutora em História da Arte Moderna pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL). Investigadora do Instituto de História da Arte da FCSH da UNL, tendo apresentado comunicações relacionadas com a cidade de Lisboa em diversos colóquios e congressos. Correio eletrónico: adeliamcaldas@yahoo.com

1Vide ROSSA, Walter - Além da Baixa: indícios do planeamento urbano na Lisboa Setecentista. Lisboa: IPPAR, 1998.

2O termo Corte como sinónimo da cidade de Lisboa era frequentemente utilizado nos séculos XVII e XVIII, como se pode constatar na documentação da época.

3Fotografia da autora.

4OLIVEIRA, Eduardo Freire de - Elementos para a história do município de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal, 1887-1943. vol. VIII, p. 173-174.

5Idem, ibidem.

6Idem, ibidem.

7 Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Livro 6º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V do Senado Oriental, f. 292.

8Idem, ibidem.

9Acerca deste tema vide SERAFIM, Paula - Tentativas para uma eficaz limpeza urbana de Lisboa nos princípios do século XVIII. Cadernos do Arquivo Municipal. Lisboa. 1ª Série. Vol. 10 (2009/2010), p. 93-111.

10OLIVEIRA, Eduardo Freire de, op. cit., vol. XV, p. 15, nota 1.

11Idem, ibidem, p. 496-497. AML (Livro 21º de Consultas e Decretos de D. João V, f. 17).

12Idem, ibidem.

13Idem, ibidem.

14Os problemas não chegaram a ser resolvidos, uma vez que a 17 de janeiro de 1754, o Senado informou o monarca de que as obras na referida calçada se encontravam paradas, porque os proprietários das casas a expropriar não concordavam com as indemnizações propostas.

15OLIVEIRA, Eduardo Freire de, op. cit., vol. XV, p. 496-497. AML (Livro 21º de Consultas e Decretos de D. João V, f. 17).

16AML, Livro 5º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 14.

17Idem, ibidem.

18Idem, ibidem.

19Idem, ibidem, f. 25.

20Idem, ibidem.

21Idem, ibidem, f. 65.

22No capítulo intitulado “Fortificação Antiga e Moderna” do seu Mappa de Portugal, vol. I, p. 75-80, João Baptista de Castro inventariou as 12 portas e postigos da primitiva muralha (a cerca moura) e as 25 da muralha fernandina. Segundo as suas informações, a maioria destas 25 portas e postigos ainda existiam no seu tempo e quanto às derrubadas até 1757, indicou: a Porta da Ribeira (situada entre o Ver-o-Peso e a travessa do Açougue, em 1619; a Porta de S. Lourenço (no cimo da calçada da Rosa), em 1700; a de Santa Catarina (junto da igreja do Loreto), em 1702; a Porta de Santo Antão, em 1727; o postigo do Carvão e a Porta da Oura (ou Arco do Ouro) em 1754, devido às obras do Teatro Régio; a Porta do arco das Pazes (próxima do Terreiro do Paço), em 1757.

23A igreja de S. Luís dos Franceses e respetivo hospital foram construídos, em 1552, fora da muralha fernandina e nas proximidades de uma das torres das Portas de Santo Antão. O edifício foi ampliado e melhorado em 1622 e passou por obras de reparação depois do sismo de 1755.

24CASTRO, João Baptista de - Mappa de Portugal antigo e moderno. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luís Amado, 1763. p. 79.

25Idem, ibidem.

26AML, Livro 5º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 156.

27Segundo OLIVEIRA, Eduardo Freire de, op. cit, vol. XV, p. 25, trata-se de António José Mello e Torres, senhor donatário das vilas de Sande e de Ponte e alcaide-mor de Ferreira que, entre outras funções, foi vedor da casa da princesa e conselheiro régio.

28AML, Livro 9º Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 150.

29Idem, Livro 5º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 163-163v.

30Como explica SILVA, Maria de Lurdes Ribeiro - Aspectos da intervenção do Senado da Câmara na reconstrução Pombalina: os livros de cordeamento. In Colóquio Temático, I, Lisboa, 1995 - O Município de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XIX): actas. Lisboa: CML, 1997. p 102, “A etimologia do termo cordear aponta genericamente para a acção de tomar as medidas com corda, bem como traçar alicerces [estando assim] implícito no acto de cordear o de traçar de alicerces, tanto no que respeita a obra nova, como no caso de reconstruções fora do balizamento inicial.” Esse método de medir com corda, que decorria sempre da vistoria realizada in loco pelo Mestre e Medidor das obras da Cidade, tornou-se um elemento indispensável para o licenciamento de todas as obras.

31AML, Livro 9º de Consultas e Decretos de D. João V, do Senado Ocidental, f. 208-208v.

32OLIVEIRA, Eduardo Freire de, op. cit., vol. XIV, p. 39-40. (AML, Livro 15º de Consultas e Decretos D’el-rei D. João V, do Senado Ocidental, f. 283).

33Idem, ibidem.

34Idem, ibidem.

35AML, Livro 23º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 14-14v.

36Idem, ibidem.

37Idem, ibidem.

38Área administrativa criada por D. João I em 1385 e extinta em 1885, que englobava um vasto conjunto de freguesias rurais, nomeadamente as de Benfica, Carnide, Lumiar, Ameixoeira, Olivais e Belém.

39Atendendo à data do documento, trata-se, sem dúvida, do 2º marquês do Louriçal e 6º conde da Ericeira, D. Francisco Xavier Rafael de Meneses (1711-1755).

40AML, Livro 23º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, Senado Ocidental, f. 7-7v.

41Idem, ibidem, f. 1.

42Idem, ibidem.

43Idem, Livro 2º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I, f. 83.

44Idem, Livro 10º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 66-67.

45Idem, Livro 18º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, f. 178-181.

46João de Almada e Melo, primo do futuro marquês de Pombal e ele próprio futuro governador do Porto e presidente do Tribunal da Relação dessa cidade.

47AML, Livro 3º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I, f. 7-11.

48Idem, ibidem.

49Idem, ibidem.

50Os padres Oratorianos ou Congregação de S. Filipe Néry, chegados a Portugal em 1668 com o apoio da rainha D. Luísa de Gusmão, obtiveram em 1671 a Casa do Santo Espírito da Pedreira e respetiva igreja e aí se mantiveram até 1755, altura em que, dado o estado de ruína do então designado convento do Espírito Santo, se mudaram para o convento das Necessidades.

51Mandada abrir em 1665, por Rui Fernandes de Almada, nas então chamadas Fangas da Farinha, onde se localizavam o convento do Espírito Santo, a norte, e o da Boa-hora, a sul.

52AML, Livro 4º de Consultas, Decretos e Avisos de D. José I, f. 68.

53Idem, ibidem.

54Idem, ibidem.

55Idem, ibidem.

56Idem, ibidem.

57Idem, ibidem, f. 288-292.

58Idem, Livro 3º de Consultas e Decretos de D. José I, f. 135.

59Idem, ibidem.

60Idem, ibidem.

61Idem, ibidem.

62Idem, ibidem.

63MURTEIRA, Helena - Lisboa antes de Pombal: crescimento e ordenamento urbanos no contexto da Europa moderna (1640 - 1755). Monumentos. Lisboa. Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Nº 21 (Setembro 2004), p. 53-54.

64Vide MADUREIRA, Nuno Luís - Lisboa 1740-1830: cidade, espaço e quotidiano. Lisboa: Livros Horizonte, 1992. p. 17-20.

65Idem, ibidem.

66Idem, ibidem.

67MONTEIRO, Cláudio - Escrever Direito por linhas rectas: legislação e planeamento urbanístico na Baixa de Lisboa (1755-1833). Lisboa: AAFDL, 2010. p. 44-45.

68Em 1721, Francisco da Fonseca Henriques, médico pessoal de D. João V publicou o 1º tratado higienista português, intitulado Anchora Medicinal para conservar a vida com saúde e, em 1755, Ribeiro Sanches publicou o 2º Tratado Higienista Português, intitulado Tratado da conservação da Saúde dos Povos.

69A partir do último quartel do século XVII, multiplicaram-se os estudos relativos ao ar (sobre as suas características em diferentes latitudes e em diferentes épocas do ano; sobre a deslocação das massas de ar e a direção e força dos ventos; sobre os efeitos, positivos ou negativos, exercidos sobre os seres vivos e os homens), empreendidos por químicos, médicos e outros estudiosos. Esses estudos conduziram às teorias aeristas, que estabeleceram uma relação de causa-efeito entre o ar e a saúde (ou a doença).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons