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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa Sept. 2020

 

Recensão do livro de Gonçalo de Almeida Ribeiro, The Decline of Private Law: A Philosophical History of Liberal Legalism, Hart Publishing, Oxford, 2019

Book review by Gonçalo de Almeida Ribeiro, The Decline of Private Law: A Philosophical History of Liberal Legalism, Hart Publishing, Oxford, 2019



Miguel Nogueira de Brito

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Alameda da Universidade, Lisboa
1649-014, Portugal
miguelbrito@fd.ulisboa.pt



RESUMO

O livro de Gonçalo de Almeida Ribeiro The Decline of Private Law: A Philosophical History of Liberal Legalism, apresenta a evolução do legalismo liberal, entendido como a doutrina que, com base nas «afinidades eletivas» entre liberalismo e legalismo, faz dos juristas os guardiães da racionalidade liberal. O declínio do direito privado resulta da crescente dissociação que o mesmo apresenta em relação à teoria política liberal de Kant, naquela que é porventura a tentativa recente mais conseguida de uma filosofia da história do direito privado moderno.

Palavras-chave: Liberalismo político; Kant; Savigny; John Rawls; história do direito privado.

 

ABSTRACT

Gonçalo de Almeida Ribeiro’s book The Decline of Private Law: A Philosophical History of Liberal Legalism, presents the evolution of liberal legalism, understood as the doctrine that, based on the «elective affinities» between liberalism and legalism, presents lawyers as the guardians of liberal rationality. The decline of private law is a product from its growing dissociation from Kant’s liberal political theory, in what is perhaps the most successful recent attempt at a philosophy of the history of modern private law.

Keywords: Political liberalism; Kant; Savigny; John Rawls; history of private law.

 

 

1. Introdução

O título do livro de Gonçalo de Almeida Ribeiro The Decline of Private Law: A Philosophical History of Liberal Legalism, baseado na sua dissertação de doutoramento discutida na Universidade de Harvard em 2012, indica com clareza o seu objeto e propósito. Trata-se de apresentar a evolução do legalismo liberal, entendido como a doutrina que, com base nas «afinidades eletivas» entre liberalismo e legalismo, faz dos juristas os guardiães da racionalidade liberal (pp. 5-6). O liberalismo reporta-se aqui ao pensamento de Kant, em particular à sua teoria da vontade, isto é, à teoria segundo a qual os «direitos e deveres – todos os títulos jurídicos – se baseiam no princípio da vontade universal ou legislativa; quer dizer a vontade comum ou a vontade das partes. Este princípio é o derradeiro padrão de validação de todos os direitos, a base de todo o sistema de Direito Privado, em relação ao qual as instituições e normas do Direito Público desempenham um papel instrumental ou auxiliar» (p. 102). O legalismo, por seu turno, consiste na «noção de que existe um tipo de decisão técnica que é orientada por razões jurídicas e não políticas» (p. 4).

Não vou aqui resumir as principais ideias do livro, até porque o autor se encarrega dessa tarefa com admirável poder de síntese e clareza expositiva no prólogo da obra (cf. pp. 1-13), mas antes (i) procurar descrever o seu propósito e o sentido geral do argumento desenvolvido; (ii) apresentar uma leitura weberiana desse mesmo argumento; (iii) problematizar aquela que me parece ser uma das principais ideias do livro, isto é, a ideia de que a doutrina do direito de Kant antecipa o liberalismo político de Rawls e, em certa medida, cumpre a promessa que esta última apenas articula.

 

2. Sentido geral do argumento desenvolvido em The Decline of Private Law

Neste contexto, importa, antes de mais, compreender o que significa o «declínio» no «Declínio do direito privado»; perceber a metodologia que confere sentido e unidade à história filosófica apresentada no livro; por último, problematizar brevemente o conceito de liberalismo político desenvolvido logo no primeiro capítulo do livro.

A história apresentada no livro de Gonçalo de Almeida Ribeiro é a do declínio do direito privado. Mas o que significa este declínio?

A primeira ideia que pode surgir ao leitor incauto é a de que estaria em causa uma narrativa do declínio do direito privado um pouco à luz do modelo clássico de Edward Gibbon na sua monumental obra The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, publicada em seis volumes entre 1776 e 1788, depois várias vezes retomado, como sucedeu ainda recentemente com Bruce Ackerman no seu livro The Decline and Fall of the American Republic, de 2010.

Mas não é o caso. O livro do Gonçalo de Almeida Ribeiro não apresenta uma história de declínio no sentido tido em vista por Gibbon e Ackerman, isto é, uma história sentida como uma perda, com uma dimensão nostálgica.

O declínio de que se trata no livro aponta antes para a dissolução, ou pelo menos a erosão, da aliança entre o liberalismo político e a ciência jurídica. O direito privado moderno surge aqui como o contraponto de uma teoria política liberal, com a qual apresenta uma conexão necessária, mas de que se autonomiza claramente. A ideia geral que alimenta a narrativa do declínio do direito privado é a de que, para cada época histórica desse declínio, existe uma correspondência entre a teoria política liberal da época considerada e um método jurídico determinado. Assim, à teoria da vontade do liberalismo clássico (pp. 119-124) corresponde o formalismo jurídico do século dezanove (pp. 161-170); ao liberalismo social (pp. 187-190) do período entre as duas guerras mundiais corresponde a jurisprudência teleológica desse mesmo período (pp. 205-215).

A partir daqui, no entanto, as coisas complicam-se, tornando-se muito mais difícil efetuar uma distinção clara entre uma teoria política liberal e o correspondente método jurídico. Essa dificuldade é natural, uma vez que estamos precisamente perante o momento da politicização do direito privado (1920-1970) e o momento subsequente da migração para o direito constitucional (de 1945 em diante). Este último momento é, aliás, um desenvolvimento natural do anterior: como refere Gonçalo de Almeida Ribeiro, numa democracia constitucional «a politicização conduz à constitucionalização» (p. 275).

Existe ainda uma outra razão que dificulta a autonomização entre uma teoria política liberal e um método jurídico para as fases da politicização e da constitucionalização. É o surgimento do princípio da proporcionalidade, cuja caracterização como parte de uma teoria política especificamente liberal, pelo menos no sentido kantiano, se apresenta muito mais problemática e desafiante.

Parece ser este, pois, o sentido do declínio do direito privado: o declínio do direito privado como uma disciplina cuja autonomia e unidade se alimentam de uma teoria política liberal consistente, tal como se alimentou da redescoberta, sensivelmente na mesma época, dos grandes textos do direito romano. Mas a relação íntima entre direito privado e teoria política liberal pressupõe, ao mesmo tempo, uma clara separação entre as duas áreas. Tudo se passa como se o direito privado aceitasse os pressupostos de uma teoria política liberal e individualista, mas a partir daí se desinteressasse de quaisquer implicações políticas das suas próprias categorias e se auto compreendesse como uma teoria pura, no sentido de livre de quaisquer compromissos políticos e filosóficos.

Este sentido de autonomia foi questionado, em primeiro lugar, logo no decurso do século dezanove, pelo advento da designada «questão social» e, depois, pelo fenómeno mais recente da crescente importância que os direitos fundamentais adquirem no direito constitucional. Em certa medida, em ordenamentos jurídicos sem reconhecimento judicial dos direitos fundamentais, como sucedeu em todo o continente europeu desde a revolução francesa até ao final da Segunda Grande Guerra, o direito privado funcionava como um sucedâneo da tutela dos direitos fundamentais. A partir daí, pode bem dizer-se, pelo contrário, que «a justiça constitucional coloniza todas as áreas do direito – incluindo, é claro, o direito privado» (p. 281).

O direito privado tido em vista na narrativa de declínio apresentada por Almeida Ribeiro é certamente o direito privado clássico, fruto da elaboração teórica de Savigny e dos pandectistas, aquele que ainda hoje largamente se ensina nas faculdades de direito. Mas história do seu declínio é certamente baseada em pressupostos filosóficos muito distintos daqueles que são adotados por James Gordley, por exemplo, que apresenta a história do declínio do direito privado como a de um desaparecimento da relação simbiótica entre o direito promulgado pelas autoridades e o direito tal como compreendido pelos juristas1. Do que se trata é da verificação, de resto num nível consideravelmente mais profundo, da crescente incapacidade, nas condições históricas existentes a partir da segunda metade do século dezanove, para manter uma «afinidade eletiva» (p. 5, nota 26) entre uma teoria política liberal e o direito privado. Como o autor afirma, «na teoria social, “afinidade eletiva” (Wahlverwandtschaft) é uma adaptação weberiana de um conceito de química anteriormente aplicado por J. W. Goethe a relacionamentos românticos». A este conceito regressarei adiante.

Se o sentido do declínio do direito privado é o exposto, surge de imediato a questão de saber como foi possível uma reinvenção do direito privado no século dezanove como uma espécie de alter ego de uma teoria política liberal?

Na visão de Gonçalo de Almeida Ribeiro o declínio do direito privado resulta da crescente dissociação que o mesmo apresenta em relação à teoria política liberal de Kant. Kant é apresentado como o filósofo que conseguiu a proeza de elaborar uma teoria política liberal que estabelece uma «afinidade eletiva» com o direito privado, sem pôr em causa a separação entre ambas as disciplinas. Como refere o autor, «uma forte afinidade entre o trabalho de Kant e o de Savigny sobre o direito corrobora a proposição de que a Doutrina do Direito [isto é, a primeira parte de A Metafísica dos Costumes, obra publicada por Kant em 1797] tinha a qualidade proteica que lhe permitia ir além do pequeno quadro de fiéis kantianos, de cujas fileiras Savigny certamente não fazia parte, e que Kant, através de Savigny e seus discípulos mais próximos, causou impacto no pensamento jurídico do século dezanove» (p. 69).

Na justificação desta proposta inovadora, Gonçalo de Almeida Ribeiro desenvolve uma argumentação que abrange três frentes:

(i) em primeiro lugar, retira de Rawls a sugestão de que uma teoria política liberal tem de se sustentar sobre si própria, sem se alimentar de uma conceção metafísica ou religiosa mais abrangente, para afirmar que essa característica é, afinal, já antecipada por Kant;

(ii) em segundo lugar, sustenta que todas as correntes políticas nas democracias modernas «descendem do mesmo corpo de ideias políticas – liberalismo» (p. 17), mas ao mesmo tempo resgata o liberalismo político de uma leitura genealógica das ideias políticas para o considerar como um protótipo que alcança a sua «forma final» no pensamento de Kant;

(iii) em terceiro e último lugar, inspira-se na filosofia da história de Hegel para atribuir ao liberalismo político de Kant um lugar próprio na marcha do espírito absoluto, ao mesmo tempo que recusa a visão do liberalismo como fim da história.

A interpretação da teoria de Kant como uma forma de liberalismo político vai contra o veredicto do próprio Rawls2, bem como a opinião de muitos autores especialistas no pensamento político de Kant, que frequentemente argumentam que os princípios de direito de Kant derivam do princípio ético do Imperativo Categórico.

A defesa da tese contrária, defendida por Gonçalo de Almeida Ribeiro em termos inovadores, depende principalmente de dois argumentos. Primeiro, o argumento de que os princípios de direito de Kant são pensados especificamente para o problema essencialmente político de permitir relações recíprocas de liberdade externa, e não são derivados de ou baseados na sua teoria ética mais ampla. Em segundo lugar, o argumento de que a alegação de Kant de que as leis são justificadas apenas se todos os cidadãos puderem consentir nelas pode ser vista como uma ideia de razão pública semelhante à de Rawls.

Essas alegações apoiam a conclusão de que a visão de Kant é tanto liberal quanto política e de certa forma ainda mais liberal e política do que a de Rawls. Na verdade, enquanto Kant se propõe justificar as instituições do Estado liberal, Rawls considera-as como pontos de partida em certa medida assentes para a justificação política3. Nesta perspetiva, poderia até dizer-se, no limite, que Rawls, em comparação com Kant, deixa a questão da autoridade sem resposta4.

O aspeto fundamental consiste aqui em tomar como ponto de partida que o direito não se refere para Kant ao subconjunto de deveres morais que é suscetível de aplicação coerciva (p. 84). O direito confere a cada pessoa um domínio protegido de escolha, mas desinteressa-se da qualidade moral que leva as pessoas a adotar essas escolhas. Nas palavras de Gonçalo de Almeida Ribeiro, o direito segundo Kant «indica a compatibilidade das escolhas individuais, não a adequação moral dessas escolhas» (p. 90).

A relação entre o pensamento de Kant e o de Rawls é sem dúvida matéria para ampla discussão, mas o que importa aqui salientar é como leitura da teoria do direito de Kant como uma forma de liberalismo político – na realidade, como vamos ver, o protótipo do liberalismo político – parece apta a revelar uma dificuldade no pensamento de Rawls no sentido em que a autossutentabilidade dos princípios do liberalismo político não é, ela própria, autossutentável.

Por outras palavras, a questão verdadeiramente importante não é tanto que Kant antecipe (p. 72), ou realize, o ideal da conceção política da justiça como um conjunto de princípios autossustentáveis («freestanding» é o termo utilizado por Rawls5, aliás dificilmente traduzível) independentes do resto das nossas crenças ou convicções eminentemente contestáveis6, mas que seja capaz de o fazer precisamente num contexto em que essas crenças e convicções surgem claramente identificadas. E a questão que se coloca é a de saber se não será apenas num contexto semelhante que se torna possível também formular um liberalismo político. Ou seja, se o caminho a seguir não será necessariamente o que parte de uma conceção abrangente (segundo a definição de Rawls em Political Liberalism) para elaborar uma teoria política liberal autónoma, em vez de procurar diretamente elaborar esta última.

Seja como for, a separação estrita entre a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude em A Metafísica dos Costumes surge como o modelo da relação entre teoria política liberal e ciência do direito privado no século dezanove.

No desenrolar do vasto panorama histórico do declínio do direito privado, o conceito de liberalismo político é apresentado pelo autor, logo no primeiro capítulo, em termos não históricos, como um conceito que se eleva sobre toda a evolução histórica tratada e a domina. Por outras palavras, temos um livro de história filosófica que começa no fim (no sentido de telos), que é também o princípio. Uma reflexão filosófica que se destina a ilustrar a realização histórica de um conceito – o de liberalismo político ao longo de quase dois séculos.

Gonçalo de Almeida Ribeiro mobiliza dois recursos metodológicos para atingir este objetivo. Por um lado, a distinção entre uma abordagem genealógica e uma abordagem do liberalismo como protótipo de «todas as correntes de opinião política nas democracias modernas» (p. 17); por outro lado, a visão hegeliana da filosofia da história.

Hegel dá-nos o significado histórico da filosofia do direito de Kant, entendida como protótipo do liberalismo político7, enquanto nos protege das investidas descredibilizantes da abordagem genealógica dos conceitos. A influência hegeliana está presente na análise de Gonçalo de Almeida Ribeiro na medida em que o liberalismo político surge como «a “ideia” imanente na cultura política contemporânea» (p. 287).

Mas por outro lado, a metafísica e a epistemologia de Hegel não estão certamente presentes na evolução do direito privado que nos é apresentada por Gonçalo de Almeida Ribeiro, e muito menos o seu equivalente “ideológico”, chamemos-lhe assim, presente na história ortodoxa sobre o liberalismo (p. 290), encarada como uma teleologia progressiva do capitalismo triunfante.

Contra estas influências nefastas, a adoção de uma abordagem genealógica da formação dos conceitos, com raízes no pensamento de Nietzsche e Michel Foucault, faz, todavia, correr o risco oposto de deitar fora a criança com a água do banho. Nietzsche e Foucault, com efeito, viam na genealogia dos conceitos uma forma de desconstruir a verdade, argumentando que aquilo que aceitamos como verdade é, na maior parte das vezes, descoberto por acaso, com base na atuação do poder em articulação com o conhecimento, ou pela consideração do interesse. Para uma abordagem genealógica, todas as verdades são questionáveis e a uniformidade e regularidade da história são recusadas, sendo igualmente recusada a ideia de que a história progride de forma linear.

Repare-se que a necessidade de levar a sério a abordagem genealógica dos conceitos, para além de evitar a visão triunfalista de algum liberalismo reinante, é também uma forma de Gonçalo de Almeida Ribeiro lidar com o pensamento de um dos seus mestres em Harvard, Duncan Kennedy, um dos fundadores dos critical legal studies.

A pergunta, pois, é esta: como articular todos estes aspetos num todo coerente? É claro que a resposta levaria mais tempo do que é possível dedicar-lhe nesta breve recensão, mas há uma frase em The Decline of Private Law que revela bem o sentido dessa síntese: como aí se diz, a ideia do liberalismo é tomada «mais como um prius do que um terminus da sua história» (p. 291).

O liberalismo não é o fim da história, como concluiu apressadamente Fukuyama (p. 291, nota 27), mas precisamente o começo da história, um começo que justifica – e talvez só ele o possa justificar – o exercício do poder constituinte.

Cabe, por último, referir o conceito de liberalismo político desenvolvido por Gonçalo de Almeida Ribeiro. Pode parecer estranho que um conceito tão extensamente debatido – desde logo por Rawls – surja condensado logo no primeiro capítulo do livro, ainda que em páginas densas. A razão para isto seja assim é fácil de explicar e explica-a o próprio autor.

Enquanto o liberalismo clássico incluía uma teoria da justiça, apresentada como objeto de acordo racional (e podemos aqui pensar em teorias tão distintas como a teoria da propriedade desenvolvida por Kant e a teoria da justiça como equidade de Rawls, para mencionar apenas o princípio e o fim), o liberalismo contemporâneo confronta-se com o facto do pluralismo razoável na política (p. 291). Esta evolução, em certa medida apresentada em epítome na obra de Rawls, mostra como o liberalismo contemporâneo se retirou das questões de substância, ou questões de primeira ordem – as questões sobre quem tem direito a quê na vida social – para se concentrar nas questões procedimentais de segunda ordem – as questões sobre quem decide com autoridade as questões da primeira ordem (p. 291). A fase atual do direito privado, de migração para o direito constitucional, encontra, pois, o seu par adequado na teoria política.

Não admira, assim, que os direitos dos membros de uma comunidade política liberal sejam os direitos de igual consideração e de igual respeito na tomada de decisões vinculativas – em suma, o respeito da autonomia pessoal como valor central de qualquer comunidade política – e que a relação entre democracia e jurisdição seja um dos temas centrais do liberalismo político.

 

3. Uma narrativa weberiana do declínio do direito privado

Nas páginas que antecedem procurei expor o sentido da argumentação desenvolvida no livro de Gonçalo de Almeida Ribeiro, mas impõe-se também responder à interpelação que o mesmo nos lança. Tentarei fazê-lo em duas direções, sem pretensões, todavia, de esgotar as múltiplas possibilidades de leitura do livro.

Começo, antes de mais, com a ideia de uma «afinidade eletiva» entre liberalismo político e direito privado. Como nota o autor, o que está em causa é uma adaptação weberiana de um conceito de química anteriormente aplicado por J. W. Goethe a relacionamentos românticos. Vale a pena explorar a ideia, de que Weber se serve para estabelecer conexões entre diferentes partes e elementos dos seus argumentos. A expressão, como é sabido, corresponde ao título de um romance de J. W. Goethe, publicado em 18098, que retrata a história de um casal, Eduard e Charlotte, e as mudanças que ocorrem quando duas novas pessoas são recebidas em sua casa. O primeiro a chegar é o melhor amigo de Eduard, o capitão, e pouco depois Ottilie, sobrinha de Charlotte. Eduard logo se apaixona por Ottilie, e Charlotte desenvolve uma atração intensa pelo capitão. Goethe prenuncia esses eventos com uma conversa prolongada entre Charlotte, Eduard e o capitão sobre «afinidades eletivas» (Wahlverwandtschaften)9. As substâncias com uma afinidade eletiva têm uma atração muito forte uma pela outra e na sua interação «modificam-se mutuamente e formam (…) por completo uma nova». Através da referida conversa entre as personagens do seu romance, Goethe «desenvolve uma “química” das relações sociais que se aplica tanto às relações íntimas quanto às interações entre grupos, incluindo diferentes “vocações” (Berufbestimmingen), classes e grupos de status (Stände)»10.

Como é sabido, Max Weber investigou, no famoso livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de 1905, em que medida existiria uma «afinidade eletiva» (Wahlverwandtschaft) entre certas crenças religiosas da Reforma protestante e o capitalismo. Se fosse possível estabelecer uma «conexão significativa» (sinnhaften Zusammenhang) entre os dois aspetos a mesma poderia esclarecer a influência dos movimentos religiosos, em resultado dessa afinidade eletiva, no desenvolvimento da cultura material11. O filósofo francês Merleau-Ponty comentou nos seguintes termos a «afinidade eletiva» estabelecida por Weber: «assim como, antes do advento do empreendimento da burguesia, os elementos que ele reúne não pertenciam ao mesmo mundo, deve-se dizer que cada um foi atraído pelos outros para se desenvolver de uma forma que é comum a todos, mas que nenhum deles incorpora isoladamente. O ascetismo mundano, cujos princípios foram estabelecidos pelo calvinismo, é acabado pelo capitalismo, nos dois sentidos da palavra: é realizado porque, como atividade no mundo, o capitalismo o ultrapassa; é destruído como ascetismo porque o capitalismo se esforça por eliminar os seus motivos transcendentes»12. A análise de Merleau-Ponty torna claro que noção de «afinidade eletiva», ao mesmo tempo que permite entender a história como algo diferente de uma mera concorrência fortuita de circunstâncias, constitui também uma base para recusar encará-la como uma necessidade iminente. A análise de Weber situa-se, deste modo, nos antípodas de uma filosofia hegeliana da história13. Por outro lado, o sentido triunfante desta última é substituído por uma visão trágica do devir histórico, com a erosão crescente dos elementos espirituais e do sentido da transcendência.

Neste contexto, torna-se mais fácil responder à questão relativa a saber em que medida uma visão weberiana do devir histórico se torna relevante para o destino do legalismo liberal. A resposta parece reconduzir-se ao progressivo afastamento, bem salientado por Gonçalo de Almeida Ribeiro, como acima procurei salientar, em relação às questões de substância por parte da teoria política liberal que corresponde a cada fase da evolução do direito privado moderno, como acima referido.

 

4. A dimensão emancipatória do liberalismo político de Kant

Já anteriormente foi mencionada a interpretação inovadora, embora minoritária, ainda que não destituída de precedentes, que Gonçalo de Almeida Ribeiro dá ao pensamento político de Kant, ao considerá-lo como um antecessor do liberalismo político desenvolvido por John Rawls (conta a própria visão deste último) e, na verdade, um expositor mais perfeito e consumado da ideia correspondente14.

O que está em causa, como já referido, é a apresentação da Doutrina do Direito kantiana com independência de uma qualquer teoria moral, incluindo a própria teoria moral desenvolvida por Kant. Ora é este aspeto que, a meu ver, potencia o efeito emancipatório do liberalismo político de Kant e permite compreender em que sentido o mesmo pode ser entendido «mais como um prius do que um terminus» da história do liberalismo, segundo a expressão já citada de Gonçalo de Almeida Ribeiro.

Este novo ponto de partida torna possível, com efeito, superar o aparente escândalo da negação kantiana do direito à revolução, bem como a crítica de inspiração marxista que vê na sua teoria da política e do direito uma justificação ideológica das relações de propriedade da burguesia nascente nas condições de um Estado autoritário. Em vez dessas visões essencialmente negativas, o que está em causa é a consciencialização de que a relação entre teoria e prática é radicalmente diferente na esfera dos direitos garantidos pelo Estado e nos domínios da moralidade e da doutrina tradicional dos direitos naturais. Considerando que os dois últimos domínios reivindicam imediatamente a validade das atividades humanas assim que a teoria é estabelecida como consistente, Kant, pelo contrário, torna-se consciente do abismo entre a justificação teórica e a realização prática no direito e na política. O dever moral que nos obriga a agir instantaneamente de uma certa maneira para que o princípio seja realizado não tem o mesmo modo de efetivação na política prática15. Ao mesmo tempo, abre-se um espaço para desenvolver, neste último âmbito, uma teoria da reforma que visa a utilização do poder do Estado e do direito, não para efetivar os interesses estabelecidos dos proprietários, mas para «levar a cabo o processo tendencialmente infinito de transformar o ordenamento segundo princípios de liberdade»16.

 

5. Reflexão final

Em conclusão, cabe salientar que encontramos certamente no Declínio do Direito Privado todas as marcas de um grande livro: capacidade de interpelação, o poder de síntese das grandes correntes de pensamento relevantes para o tema da obra, a apresentação de uma visão original sobre esse tema e um estilo de escrita apelativo e envolvente. Embora se apresenta como uma história da filosofia do direito privado moderno, e não deixe de o ser também, aliás de forma exemplar, o livro de Gonçalo de almeida Ribeiro constitui a tentativa mais conseguida que conheço de uma filosofia da história daquele tronco central do direito. A sua tradução para português, ainda que não constitua condição da difusão das ideias aí defendidas, é certamente uma exigência da apropriação das mesmas pela nossa ciência jurídica.