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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa set. 2020

 

Alguns problemas sobre a tutela dos direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia: os casos Viking e Laval


Some problems for the protection of fundamental rights in the jurisprudence of the Court of Justice of the European Union: the Viking and Laval cases


Pedro Oliveira1

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Pátio da Universidade
3004-528 Coimbra - Portugal
pedro_amri@hotmail.com



RESUMO

Na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia em matéria laboral destacam-se as decisões proferidas nos casos Viking e Laval. Mais de uma década depois, as ondas-de-choque geradas por estes arestos continuam a fazer-se sentir, condicionando o presente e o futuro do direito do trabalho da União. Este estudo busca reflectir criticamente sobre essa linha jurisprudencial, a qual, entre outras coisas, constitui um barómetro privilegiado de uma das maiores tensões constitucionais da União Europeia, no choque entre liberdades económicas decorrentes do Tratado e os direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e nas Constituições nacionais.

Palavras-chave: Viking; Laval; liberdades económicas; direitos fundamentais; direito do trabalho da União Europeia.

Sumário: 1. Introdução; 2. Recordando os casos Viking e Laval; 3. Os problemas; 4. Análise crítica; 4.1. Viking; 4.2. Laval; 5. Em busca da reconciliação entre liberdades económicas e direitos fundamentais; 6. Um caminho ainda in fieri.


ABSTRACT

Viking and Laval are well-known judgments from the Court of Justice of the European Union on the labour field. More than a decade later, they seem to continue restraining the present and the future of EU labour law. This study seeks to reflect critically on that jurisprudence, which certainly constitutes a privileged barometer of one of the biggest constitutional tension in the European Union, namely the collision between economic freedoms stated by the Treaties and the rights laid down by the EU Charter of Fundamental Rights and by the national constitutional laws.

Keywords: Viking Laval; economic freedoms; fundamental rights; EU labour law.

Summary: 1. Introduction. 2. Recalling the Viking and Laval cases. 3. The problems. 4. Critical analysis. 4.1. Viking. 4.2. Laval. 5. In search of reconciliation between economic freedoms and fundamental rights. 6. A path still in fieri.

 

 

 

1. Introdução

Na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia em matéria laboral destacam-se, sem dúvida, as decisões proferidas nos casos Viking2 e Laval3. Mais de uma década depois, as ondas-de-choque geradas por estes arestos continuam a fazer-se sentir, condicionando o presente e o futuro do direito do trabalho da União.4 Além das consequências imediatas para os trabalhadores do espaço europeu, a doutrina decorrente de Viking e Laval colocou claramente em relevo quer as aporias e dificuldades na articulação entre o sistema jurídico da União e as ordens constitucionais domésticas, quer, ainda, zonas de clivagem com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cuja jurisdição, com diversos contornos, é certo, se realiza, como é sabido, num âmbito tendencialmente sobreponível5.

Sem surpresa, os arestos Viking e Laval motivaram uma amplíssima reflexão na literatura académica, que alguns compararam a um efeito sísmico6. Entre os problemas fulcrais, realça-se a consequência das escolhas (isto é, daquilo que se tencionou priorizar) quanto à ponderação entre o económico e o social, rectius, entre as liberdades económicas do mercado interno e os direitos fundamentais dos trabalhadores7, bem como, no plano dogmático-constitucional, a dimensão da aplicabilidade directa e horizontal destas mesmas liberdades no conspecto europeu. Para o sobressalto concorre, em suma, o facto de a doutrina fixada em Viking-Laval colocar em cheque a imagem (e a substância) do modelo social da União, não por força de intervenção legiferante, mas por via de uma hermenêutica heterodoxa adoptada pelo TJ, que parece emergir como o seu “ápice constitucional” (constitutional apex)8.

Julgamos oportuno, pois, considerar criticamente essa linha jurisprudencial. Ela constitui um barómetro privilegiado de uma das maiores tensões constitucionais da União Europeia, no choque entre liberdades económicas decorrentes do Tratado e os direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia9 e nas Constituições domésticas. Aliás, esta reflexão torna-se ainda mais urgente quando se atentem nas refracções dos casos Viking e Laval em soluções normativas da União, das quais se destaca a Directiva 2018/957 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços, cujo prazo de transposição para os direitos nacionais termina em Julho deste ano.

 

2. Recordando os casos Viking e Laval

Antes de passarmos às questões em causa nos arestos Viking e Laval, recorde-se o essencial do circunstancialismo fáctico.

O caso Viking envolveu o Sindicato dos Marítimos Finlandeses e a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes (ITF) contra a Viking Line ABP, uma empresa finlandesa operadora de serviços de ferry entre Helsínquia na Finlândia (Estado-Membro da UE desde 1995) e Talin na Estónia (Estado-Membro da UE desde 2004).

Em 2003, a Viking decidiu alterar o pavilhão do seu navio (Rosella) da Finlândia para a Estónia, país a partir do qual passaria a prestar serviços, permitindo-lhe assim celebrar um acordo colectivo com um sindicato estónio e, desse modo, aligeirar as condições de trabalho da tripulação da referida embarcação que, embora fosse constituída maioritariamente por trabalhadores finlandeses, viu-se assim, ex abrupto, sujeita às regras laborais estónias, consagradoras de salários mais baixos e condições de emprego menos favoráveis.

A Viking encetou negociações com o sindicato finlandês com vista ao re-flagging doRosella. O sindicato opôs-se a tal medida e decretou uma greve que teria lugar a partir de 2 de Dezembro de 2003 – o direito de greve é um direito fundamental na ordem jurídica interna e vem consignado no artigo 13.º da Constituição finlandesa. Além disso, o sindicato, na qualidade de afiliado da ITF10, apelou à solidariedade desta no sentido de reportar os factos descritos aos demais afiliados e pedir-lhes que se abstivessem de celebrar eventuais acordos colectivos com a Viking. A ITF, considerando que era o sindicato finlandês quem tinha legitimidade para a celebração do acordo, atendeu à solicitação e enviou, a 6 de Novembro de 2003, uma carta informativa a todos os seus membros. Por seu turno, a Viking, com receio de ser defrontada com a greve, acatou as exigências do sindicato finlandês, deixando o re-flagging em suspenso.

Entretanto, em 18 de Agosto de 2004, pouco tempo depois de a Estónia se ter tornado um Estado-Membro da União Europeia, a Viking requereu à Commercial Court of England and Wales uma injunção para impedir que a ITF e o sindicato finlandês lançassem mão de acções colectivas ad futurum que visassem travar a alteração do pavilhão do Rosella para a Estónia. Em 16 de Junho de 2005, a judicatura inglesa reconheceu a pretensão da Viking por considerar que as acções colectivas eram contrárias ao Direito da União Europeia. O sindicato finlandês e a ITF recorreram da decisão para a Court of Appeal, a qual, a 3 de Novembro de 2005, em sede de reenvio prejudicial, resolveu submeter o caso ao julgamento do Tribunal de Justiça.

No caso Laval, a Baltic Bygg AB, filial sueca da Laval un Partneri Ltd (Laval) – empresa letã do sector da construção, foi adjudicada por concurso público em Junho de 2004 para a remodelação de um estabelecimento escolar em Vaxhol, na Suécia.

Por conseguinte, o sindicato sueco dos trabalhadores da construção (Svenska Byggnadsarbetareförbundet Bygngnads) – entabulou negociações com a Laval com vista à celebração de um acordo de adesão que estendesse a aplicação da convenção colectiva do respectivo sector de actividade aos trabalhadores destacados, de forma a poder negociar com a Laval, caso a caso, as remunerações salariais destes. A Laval não somente recusou os termos expostos, como também encetou uma nova contratualização com um sindicato letão dos trabalhadores da construção.

Em resposta, o Byggnads, apoiado pelo sindicato sueco dos electricistas, desencadeou acções colectivas nos finais de 2004, incluindo um boicote pacífico nas instalações da Baltic Bygg – o direito de greve é um direito fundamental à luz da Constituição Sueca.

Por causa disso, a Laval intentou uma acção judicial num tribunal do trabalho sueco, na qual invocava a violação do seu direito de livre circulação, consagrado no Tratado, e reclamava, além da declaração de ilegalidade de tais acções colectivas, uma injunção que as interrompesse, bem como uma indemnização a ser paga pelos sindicatos em virtude dos prejuízos financeiros que tivera – a empresa entrara entretanto num processo de liquidação por insolvência. O órgão jurisdicional ad quem sueco suspendeu a instância e reenviou ao TJUE as questões atinentes ao caso sub judice.

 

3. Os problemas

Tal como no caso Laval, as garantias jurídicas da entidade patronal alegadamente infringidas em Viking referiam-se às liberdades económicas do Direito da União Europeia, nomeadamente a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços, estatuídas, respectivamente, nos artigos 49.º e 56.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE)11. Em oposição, tanto o sindicato sueco em Laval, como o sindicato finlandês no caso Viking, invocaram, em defesa das acções colectivas postas em prática, o direito à greve, constitucionalmente reconhecidos nestes países.12

O cerne da questão estava, pois, em saber se o exercício de um direito fundamental de um Estado-Membro poderia colocar em causa as liberdades económicas prioritárias na União, bem como se estas liberdades gozariam de eficácia horizontal directa, no sentido de permitir um particular valer-se delas contra outro particular. A dúvida era reversível: estariam os direitos fundamentais das constituições dos Estados-Membros sujeitos à constrição por força das liberdades do mercado interno?

Este confronto afigurava-se particularmente relevante, na medida em que convocava do Tribunal de Justiça uma posição decisiva para o futuro do direito laboral da União Europeia. No essencial, a decisão a proferir poderia acolher-se a um de dois métodos: opting-out ou opting-in13. Seguindo esta linha de raciocínio, o papel do Tribunal na formação daquele ramo jurídico teria correspondido ao opting-out se: (i) seguisse a sua própria jurisprudência precedente (aresto Albany) e excluísse as acções colectivas do escopo das disposições do Tratado relativas às liberdades económicas14; (ii) invocasse o princípio da subsidiariedade, deixando a cargo dos Estados-Membros a apreciação da colisão entre as ordens jurídicas nacionais e comunitária respeitantes ao direito de acção colectiva dos sindicatos e às liberdades económicas dos empregadores15; ou (iii) recusasse a aplicação das disposições concernentes às liberdades económicas contra os sindicatos (rejeição da eficácia direta horizontal)16. Em vez disso, e como se verá adiante, a doutrina seguida pelo tribunal nos casos Viking e Laval configurou o opting-in.

 

4. Análise crítica

4.1 Viking

Importa, antes de mais, chamar a atenção para um nódulo problemático a propósito do qual o Tribunal de Justiça não se manifestou, mas que ainda assim não se nos afigura despiciendo aflorar. Trata-se daquilo que se designa na doutrina por forum shopping17. É sabido que a transnacionalização das acções colectivas potencia o envolvimento das judicaturas de diferentes Estados-Membros. Daqui podem resultar algumas dúvidas (que, diga-se de passagem, se fazem também sentir noutros domínios de actuação)18. Assim: (i) qual o tribunal nacional jurisdicionalmente competente para julgar a licitude de uma acção colectiva dessa natureza; e (ii) qual a lei doméstica subsumível a esses casos?

Estas interpelações, pensadas sobretudo no horizonte do direito internacional privado, demandam especial cautela quando transpostas para o contexto juslaboral europeu, uma vez que as respostas delas emanadas acentuam os riscos de flexibilização e insegurança jurídica neste campo. Ora, sabemos que tribunais diferentes adoptam perspectivas diferentes acerca da legalidade das acções colectivas transfronteiriças. E não foi por acaso, aliás, que a Viking, tendo em vista que a sede da ITF estava localizada em Londres, instaurou a acção judicial na British High Court. Tratou-se na verdade de uma escolha estratégica: a estreiteza da leitura do intérprete-julgador inglês19 certamente não coincidiria com a da judicatura finlandesa, caso a conformidade das acções colectivas tivessem sido levadas à apreciação desta, desde logo porque o direito à greve na Finlândia, diversamente da ordem jurídica inglesa, traduz, conforme se referiu, um direito fundamental consagrado na Constituição daquele país.

Acrescente-se, por outro lado, que a nível europeu o direito à greve vem enunciado no artigo 28.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia20. Isto não significa, porém, que tal desiderato tenha constituído uma via de resolução do problema. A Carta não havia sido ainda equiparada ao patamar do direito primário da União (o que efectivamente aconteceria em Dezembro de 2009). Não obstante, o TJUE, embora de forma “defensiva”21, invocou-a no caso sub judice, acabando aqui por replicar outras dificuldades que até hoje parecem limitar o alcance das garantias nela consagradas: distinção entre direitos e princípios22. Nos dizeres do tribunal, “embora o direito de desencadear uma acção colectiva, incluindo o direito de greve, deva, assim, ser reconhecido enquanto direito fundamental que constitui parte integrante dos princípios gerais do direito comunitário cuja observância é assegurada pelo Tribunal de Justiça, é também verdade que o seu exercício pode ser sujeito a determinadas restrições”23.

O reconhecimento do direito de acção colectiva, incluindo à greve, enquanto princípio geral do direito do trabalho da União Europeia, não clarificaria, contudo, se a colisão entre este direito e as liberdades económicas é conciliável, e nem de que modo este conflito tem de ser legalmente construído.

O TJUE, ao arrepio do que defendera anteriormente24, afirmou que as acções colectivas descritas no litígio não escapavam do âmbito de aplicação do artigo 49.º do TFUE (antigo artigo 43.º do Tratado da Comunidade Europeia). A este propósito, o Tribunal, ancorado na casuística em torno da compatibilização das liberdades económicas (livre circulação de mercadorias e livre prestação de serviços), com os direitos fundamentais (liberdades de expressão e de reunião), concluiu no sentido de o exercício destes poder restringir aquelas liberdades25. Não se pode escamotear, todavia, a estranheza desta interpretação analógica, dado que os contornos dos casos em apreço eram consideravelmente divergentes do caso Viking, e a promoção das acções colectivas neles inscritas não tiveram como protagonistas nem trabalhadores nem as suas estruturas representativas.

Bem vistas as coisas, o TJUE estava não só a ignorar as finalidades do ramo juslaboral, como também deixou evidente que perspectiva as acções colectivas primeiramente em termos do impacto que elas podem ter na prossecução das liberdades económicas do mercado interno, in casu, da liberdade de estabelecimento26. Mas a “supremacia” dessas liberdades, aparentemente mais fundamentais do que os preceitos constitucionais domésticos, não passaria despercebido ao olhar mais atento da doutrina, que a avaliou enquanto factor ameaçador do “acquis communautaire social”27.

Outro ruído sistémico trazido à decisão do tribunal pelos representantes do governo de alguns países (revelador da fragilidade do princípio da subsidiariedade) prendeu-se com a exclusão da competência da União para regular o direito à greve. A este propósito, o TJUE declarou, de forma bastante impressiva, que “embora seja verdade que, nos domínios não abrangidos pela competência da Comunidade, os Estados-Membros continuam, em princípio, a ter liberdade para fixar as condições de existência dos direitos em causa e as modalidades de exercício desses direitos, não é menos certo que, no exercício das suas competências, os Estados-Membros devem respeitar o direito comunitário”28.

Note-se, de todo o modo, que o julgamento do caso Viking não contou somente com aspectos negativos. Com efeito, o tribunal declarou que a actuação da União deve ter em conta não apenas a optimização do mercado interno, mas igualmente a prossecução da social policy: “os direitos que resultam das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais devem ser ajustados aos objectivos prosseguidos pela política social, entre os quais figura, designadamente, como resulta do artigo 136.°, primeiro parágrafo, CE, a melhoria das condições de vida e de trabalho, de modo a permitir a sua igualização no progresso, uma protecção social adequada e o diálogo social” 29.

A verdade, porém, é que conciliar estes direitos e liberdades constitui uma tarefa particularmente delicada, reclamando por isso um olhar mais circunstanciado por parte do intérprete. Efectivamente, o Advogado-Geral Miguel Poiares Maduro sublinhou nas suas conclusões a complexidade desta matéria, deixando assente que, embora a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços sejam conciliáveis com o exercício dos direitos fundamentais ou com a política social da comunidade, uma resposta ao problema suscitado no caso Viking não era simples30.

Apesar de ter admitido que as acções colectivas promovidas pelos sindicatos eram motivadas pelos elevados riscos de compressão das garantias laborais, que resultaria da mudança do pavilhão do navio para a Estónia, a opinião do Advogado-Geral (subscrita posteriormente pelo TJUE) parece ter conferido uma força exponencial às liberdades do mercado interno, em detrimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores31. É o que se infere, por exemplo, da leitura da seguinte formulação: “inevitavelmente, a realização do progresso económico através do comércio intracomunitário implica, para os trabalhadores em toda a Comunidade, o risco de terem de se sujeitar a mudanças de circunstâncias de trabalho, ou mesmo de perderem os seus empregos”32.

No que diz respeito à eficácia directa horizontal do artigo 43.º do Tratado, relativo à liberdade de estabelecimento, entendeu-se que o mesmo pode ser invocado pelos particulares (no caso a empresa Viking) contra um terceiro (no caso os sindicatos)33 quando estes particulares sejam confrontados com “um obstáculo que não podem razoavelmente evitar”34. Esta leitura do TJUE acabou por ampliar o perímetro do direito primário da União, na medida em que, como vimos, se afasta da regra segundo a qual o disposto no Tratado teria por norma efeito vertical, só excepcionalmente podendo gerar efeito directo horizontal. Numa viragem, o areópago do Luxemburgo enfatizou que a jurisprudência por ele firmada “não contém indício algum que permita sustentar validamente que se limita às associações ou aos organismos que exercem funções regulamentares ou que dispõem de poderes quase-legislativos” 35.

Pese embora o facto deste aspecto poder ter representado uma revolução coperniciana na jurisprudência da União36, ele não esconde a já conhecida preocupação do TJUE em salvaguardar, a qualquer custo, a chamada integração “negativa” do mercado, através da remoção das barreiras à livre circulação, entendidas como aquelas atuações que possam ter um “efeito neutralizador” postas em prática pelos sujeitos de direito privado.

Mas se assim é, surge de imediato a seguinte pergunta: que tipo de acções colectivas – legítimas a nível nacional – estão aptas a vulnerar as liberdades de circulação? Ora, esta dúvida faz todo o sentido se pensarmos no segmento específico das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores, mais concretamente quanto a (maior ou menor) efectividade dos meios que adoptam para alcançar os fins para os quais são instituídas. E é imperioso que para atingir essas finalidades, o exercício de uma acção colectiva como a greve implique, enquanto mecanismo de pressão, algum prejuízo económico para os empregadores.

Do aludido pelo Tribunal não emana uma resposta inequívoca à interrogação referenciada. De todo o modo, os juízes observaram que a conduta praticada pela federação internacional dos trabalhadores do transporte com o intuito de dissuadir o não registo da matrícula de um navio num Estado-Membro diferente daquele da nacionalidade do seu proprietário efectivo,“deve considerar-se, no mínimo, susceptível de restringir o exercício pela Viking do seu direito de livre estabelecimento” 37.

Essa visão estreita seguida pelo areópago do Luxemburgo implica (ou potencia) pelo menos duas consequências nefastas, designadamente o dumping social e o enfraquecimento das acções colectivas, visto que ao minimizá-las, está igualmente a pôr em causa a sua efectividade38. Na realidade, ao contrário da dissociação interpretativa feita pelo TJUE, o direito fundamental de negociação colectiva, sem o direito à greve, reduzir-se-ia numa mera “pedinchagem” ou, simplesmente, numa “esmola” colectiva39.

Recorde-se, aliás, que à imagem de outros sistemas jurídicos europeus, incluindo o finlandês, o direito à greve vem consignado na Constituição da República Portuguesa, concretamente no artigo 57.º. Na lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a caracterização constitucional do direito à greve como um dos “direitos, liberdades e garantias” significa, entre outras coisas: (a) um direito subjectivo negativo, não podendo os trabalhadores ser proibidos ou impedidos de fazer greve, nem podendo ser compelidos a pôr termo a uma greve em curso (salvo se ilícita); (b) eficácia externa imediata, em rela­ção a entidades privadas (nº 1 do artigo 18.º), não constituindo o exercício do direito de greve qualquer violação do contrato de trabalho, nem podendo as mesmas entidades neutralizar ou aniquilar praticamente esse direito; (c) eficácia imediata, no sentido de directa aplicabilidade, não podendo o exercício deste direito depender da existência de qualquer lei concretizadora. Como meio de «acção directa» dos trabalhadores constitucio­nalmente reconhecido, a greve traduz-se num incumprimento lícito da obrigação de prestação de trabalho, com os prejuízos inerentes para as entidades empregadoras (interrupção da produção, risco de incumpri­mento de encomendas)”40.

A resposta ao caso Viking – assente na antinomia entre uma liberdade económica do mercado interno e o direito fundamental de acção colectiva – foi a de que caberia ao intérprete-julgador nacional aferir da adequação da acção colectiva em causa41, em consonância com o princípio da proporcionalidade.42

Mas o tribunal não ficou por aqui. De modo bastante contundente, ele “adiantou”, ao órgão jurisdicional de reenvio, que “o artigo 43.° CE [actual artigo 49.º do TFUE] deve ser interpretado no sentido de que acções colectivas como as que estão em causa no processo principal, que visam induzir uma empresa cuja sede está situada num Estado-Membro determinado a celebrar uma convenção colectiva de trabalho com um sindicato estabelecido nesse Estado e a aplicar as cláusulas previstas nessa convenção aos trabalhadores de uma filial da referida empresa estabelecida noutro Estado-Membro, constituem restrições na acepção do referido artigo”. E termina por dizer que “estas restrições podem, em princípio, ser justificadas pela protecção de uma razão imperiosa de interesse geral, como a protecção dos trabalhadores, na condição de se provar que são aptas a garantir a realização do objectivo legítimo prosseguido e não ultrapassam o necessário para o alcançar” 43.

O Tribunal não se pronunciou acerca das acções colectivas que eventualmente pudessem estar enquadradas nos critérios (algo vago) acima mencionados. Questiona-se, afinal, o que podem configurar razões imperiosas de interesse geral? Os Estados-Membros não têm legitimidade para determinar a configuração das mesmas em favor da tutela dos direitos fundamentais dos trabalhadores? O direito à greve deve funcionar como ultima ratio?

Não deixa de ser curioso que, no caso sub judice, e como aliás foi frisado na doutrina, a última palavra acerca da justificação das acções colectivas, com base no princípio da proporcionalidade44, seria, inaugural45 e “ironicamente”46, de um intérprete-julgador inglês.

Como resulta das observações contidas no caso Viking, o TJUE deixou à judicatura nacional uma margem de discricionariedade consideravelmente limitada47 e esta linha jurisprudencial seria reiterada (com maior robustez) em Laval.

 

4.2. Laval

No caso Laval, a análise da questão suscitada no tribunal do trabalho sueco assumiu contornos mais complexos. De um modo bastante “intrigante”48, o TJUE apreciou a conformidade das acções colectivas não só à luz do direito primário (livre prestação de serviços), mas também na esteira da Directiva 96/71/CE, de 16 de Dezembro de 1996, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços49.

Em primeiro lugar, é importante recordar que, como se extrai do direito da União, as Directivas não têm eficácia horizontal directa50, porquanto não seria legítimo que a entidade patronal (Laval) viesse perante a judicatura nacional invocar um instrumento normativo desta natureza contra os sindicatos.

A despeito disso, o TJUE subscreveu a tese do Advogado-Geral P. Menghozzi, para quem era pertinente interpretar a Directiva 96/71 em conjugação com o artigo 49.º do Tratado da Comunidade Europeia51. No entendimento deste, uma medida incompatível com a Directiva 96/71 será, a fortiori, contrária ao artigo 49.º, o que não significa, porém, que uma medida consonante com esta mesma Directiva também o seja com o artigo 49.º52.

Nesta linha, o TJUE estabeleceu uma relação “enigmática” entre estes dois normativos53, admitindo, tal como sucedeu no caso Viking, o efeito directo horizontal das liberdades do mercado, in casu, da livre prestação de serviços54.

No contexto da Directiva 96/71, por vezes abreviada na literatura pela sigla PWD, ressalta pela sua nuclear importância o n.º 1 do artigo 3.º, o qual tem como escopo principal, pelo menos à partida55, garantir que ao trabalhador destacado para outro Estado-Membro seja conferido um standard mínimo de protecção relativamente às condições de trabalho e emprego, buscando assim evitar que este trabalhador goze de um tratamento desfavorável em comparação aos nacionais daquele mesmo estado56. A maioria das suas regras mínimas enumeradas no referido dispositivo foi incorporada pela legislação sueca, com excepção da alínea c), que enuncia as remunerações salariais mínimas. Conforme é prática corrente no sistema jurídico da Suécia, a disciplina salarial reger-se-ia por convenções colectivas de trabalho. Importava assim para o tribunal, apreciar a congruência do acto transpositor sueco com a Directiva 96/7157.

Curiosamente, o TJUE, após salientar que a Directiva não visa harmonizar as legislaturas domésticas, observou que os Estados-Membros “continuam livres de escolher, a nível nacional, um sistema que não figure expressamente entre os previstos na referida directiva [96/71], desde que não coloque obstáculos à prestação de serviços entre os Estados-Membros 58.

Como se referiu, o modelo sueco constituía precisamente um desses sistemas, já que os salários eram colectivamente convencionados pelos parceiros sociais. Daí que faria todo o sentido que aos trabalhadores letões em destacamento fossem aplicadas àquelas regras de composição salarial. Não obstante, o TJUE alinhavou que a alínea c), do n.º 1 do artigo 3.º da Directiva 96/71 só se referia às remunerações salariais mínimas, concluindo: “esta disposição não pode ser invocada para justificar uma obrigação imposta a esses prestadores de serviços, de respeitarem remunerações salariais como as que as organizações sindicais demandadas no processo principal pretendem impor no âmbito do sistema sueco, as quais não constituem salários mínimos e não são, de resto, fixadas segundo as modalidades previstas, a este respeito, no artigo 3.°”59. Em outras palavras, o TJUE transferiu aos sindicatos a responsabilidade pela “inadequação” do regime legal finlandês.

A isto se seguiria uma das formulações mais impressivas do órgão jurisdicional europeu60, que em linha com as conclusões do Advogado-Geral61, afirmou que as modificações normativas, constantes da ordem jurídica sueca, autorizadas pela Directiva62, poderiam representar um entrave à livre prestação de serviços63.

Em outras palavras, é como se a Directiva 96/71 passasse a oferecer-se como uma “grelha rígida”, dotada de um standard máximo64, e já não mínimo como prevê o número 7 do seu artigo 3.º65, ao qual, aliás, foi atribuído um cariz “minimalista”66.

À imagem do caso Viking, o Tribunal reiterou que os direitos de acção colectiva, como a greve, constituem direitos fundamentais (“parte integrante dos princípios gerais do direito comunitário”) que gozam de protecção constitucional em várias Constituições domésticas67, mas que não estão imunes a sofrerem restrições68, e isto apesar da competência para regular tais direitos estar expressamente subtraída do domínio da União (n.º 5 do artigo 153.º do TFUE – antigo artigo 137.º do Tratado da Comunidade Europeia).

Além disso, o Tribunal considerou defensável que, à luz da Directiva 96/71, um sindicato pudesse lançar mão de uma acção colectiva com o propósito de exigir da empresa receptora dos trabalhadores destacados a adesão a um acordo colectivo pré-existente, cujo conteúdo eventualmente estabelecesse um ordenado mínimo específico69. Note-se, contudo, que o TJUE entendeu que as acções colectivas poderiam restringir a livre prestação de serviços enunciada no artigo 49º do Tratado da Comunidade Europeia (actual artigo 56º TFUE).

De novo, o Tribunal incumbiu o intérprete-julgador nacional da aplicação (para ele inédita) do princípio da proporcionalidade70, deixando-lhe uma margem limitadíssima de apreciação. Com efeito, o TJUE, assim como sucedeu no caso Viking, dedicou várias passagens da decisão à (des)proporcionalidade, (des)necessidade e (des)adequação das acções colectivas promovidas pelos sindicatos.

Enquanto no caso Viking, o TJUE demonstrou algum “comedimento judicial”, em Laval71 ele parece ter deixado uma mensagem muito clara aos trabalhadores europeus de que tensiona priorizar a defesa e fomento da integração económica europeia, e isto a expensas “da protecção social, dos sistemas nacionais, dos actores sociais e, finalmente, dos trabalhadores”.72

 

5. Em busca da reconciliação entre liberdades económicas e direitos fundamentais

A repercussão dos arestos Viking e Laval, bem como dos seus sucessores73, foi bastante variável no conspecto europeu74, sendo que os exemplos mais expressivos da sua interferência, em termos legislativos e jurisprudenciais, parecem ter sido aqueles Estados-Membros de onde eles emergiram75. Por outro lado, a irradiação desses casos (e do criticismo exacerbado contra eles) verificou-se ainda ao nível legiferante da União76, procurando-se uma solução consensual capaz de acalmar as ondas de choque ainda tão presentes. Referimo-nos à proposta de regulamento do Conselho, relativo ao exercício do direito de acção colectiva no contexto da liberdade de estabelecimento e da liberdade de prestação de serviços77.

Vale a pena, a este propósito, transcrever o conteúdo do artigo 2º da proposta, epigrafado “Princípios Gerais”, in fine: “O exercício da liberdade de estabelecimento e da liberdade de prestação de serviços consagradas no Tratado deve respeitar o direito fundamental de ação coletiva, incluindo o direito ou liberdade de greve e inversamente, o direito fundamental de ação coletiva, incluindo o direito ou a liberdade de greve, de respeitar o exercício destas liberdades económicas”78.

A proposta consignava ainda, no seu artigo 4.º, um mecanismo de alerta que não agradou, sobretudo, aos sindicatos. Vejamos em que termos a norma foi insculpida: “1. Sempre que se verifiquem actos ou circunstâncias graves que afectem o exercício efectivo da liberdade de estabelecimento ou da liberdade de prestação de serviços, suscetíveis de causar sérias perturbações ao bom funcionamento do mercado interno e/ou perdas importantes para o seu sistema de relações laborais, ou ainda provocar agitação social no seu território ou no território de outros Estados-Membros, o Estado-Membro em questão deve imediatamente informar e notificar a Comissão, o Estado-Membro de estabelecimento ou de origem do prestador de serviços e/ou outros Estados-Membros envolvidos”.

Esta proposta reacenderia o debate entre académicos, juristas, parceiros sociais e actores políticos acerca da fractura irresolvida entre o exercício de um direito fundamental preconizado na Constituição dos Estados-Membros (direito de acção colectiva, incluindo o direito de greve) e as liberdades económicas do Tratado da União (liberdade de estabelecimento e livre prestação de serviços). Os sindicatos censuraram-na pela sua falta de clareza em priorizar os direitos sociais. Os empregadores suspeitavam que dela resultaria uma liberalização das acções colectivas. E muitos Estados-Membros receavam da sua excessiva interferência nas ordens jurídicas internas. O desfecho aqui, previsivelmente, não poderia ter sido outro senão a sua plena rejeição parlamentar79, o que, note-se, pôs em xeque a própria capacidade regulatória da União80.

Posteriormente, uma outra medida – não imune de críticas81 – prendeu-se com a criação de um instrumento normativo que visava o melhoramento e o reforço da transposição, implementação e execução da Directiva relativa ao destacamento transfronteiriço de trabalhadores. Trata-se da Directiva de execução 2014/67/UE82, de 15 de Maio de 2014, do Parlamento Europeu e do Conselho83.

Entretanto, a 28 de Junho de 2018, era publicada no Jornal Oficial da União Europeia a Directiva 2018/957, do Parlamento Europeu e do Conselho, que veio finalmente alterar a Directiva 96/71, tendo em vista o reforço da protecção das garantias dos trabalhadores destacados84.

Essas formulações normativas, desenhadas a partir de e tendo em vista casos concretos com contornos muito precisos, como os dos casos Viking e Laval, vão sendo ajustadas e afinadas à medida que novas situações confrontam a aplicação dos normativos da União e um estudo aturado dessa evolução, que não cabe fazer aqui, por certo traria conclusões interessantes85.

 

6. Um caminho ainda in fieri

Os arestos Viking e Laval tocaram em expedientes complexos, que não se circunscrevem à oposição entre o económico e o social. Na verdade, vimos que estes litígios esbarram noutros nódulos problemáticos, designadamente a dimensão técnico-metodológica das interpretações do areópago do Luxemburgo sobre o direito derivado da União, em particular da Directiva originária sobre o destacamento de trabalhadores; bem como acerca das liberdades económicas do Tratado, in casu, a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços.

Por outro lado, esses arestos acentuaram a fragilidade de questões constitucionais mais profundas, concretamente o equilíbrio das competências entre os Estados-Membros e a União. Sem que se defenda uma relação simbiótica entre estas duas ordens, parece-nos que a actuação do Tribunal de Justiça terá ido mais longe do que seria expectável. Ao arrepio do estipulado no n.º 5 do artigo 53º do TFUE,86 o órgão jurisdicional europeu restringiu o direito fundamental à greve, o qual consta tanto do cânone laboral de várias constituições europeias, incluindo a portuguesa (artigo 57.º), como também da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 28.º)87.

Além disso, o alcance emancipatório das legislaturas laborais domésticas foi igualmente posto em causa, na medida em que esta jurisprudência sujeita-as a um juízo de prognose fundado num teste de proporcionalidade cujas coordenadas deixam às judicaturas nacionais uma margem de apreciação excessivamente reduzida. Vale por dizer, quanto maior for o carácter de protecção destas normas no âmbito nacional, maior poderá ser a sua incidência compressora das liberdades económicas do mercado.

Passada pouco mais de uma década dos casos Viking e Laval, a rigidez desta jurisprudência tem-se esbatido noutros arestos88; e julgamos que essas ondas de choque continuarão presentes num futuro próximo, isto é, após o término do prazo para a transposição da referida Directiva 2018/957.