SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número2Algumas propostas para a revisão do regime jurídico da Eficiência Energética dos EdifíciosAlguns problemas sobre a tutela dos direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia: os casos Viking e Laval índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa set. 2020

 

Parlamentarismo e Brexit, Parte I


Parliamentarism and Brexit, Part 1



Miguel Nogueira de Brito

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Alameda da Universidade, Lisboa
649-014, Portugal
miguelbrito@fd.ulisboa.pt


RESUMO

Neste artigo, o primeiro de dois sobre o Brexit e o parlamentarismo britânico, apresenta-se uma síntese dos momentos essenciais do percurso da relação sempre problemática entre o Reino Unido e a União Europeia, que certamente se iniciou muito antes do referendo de 23 de junho de 2016 e se prolongará muito para além de 31 de janeiro de 2020, data da saída formal do Reino Unido da União Europeia. O Brexit é aqui encarado como um caso de sonambulismo político, num duplo sentido: por um lado, a saída do Reino Unido da União Europeia é um resultado não desejado pelo político que o promoveu, o então Primeiro-ministro David Cameron, e pela generalidade das elites políticas e económicas britânicas; por outro lado, o carácter inesperado do resultado do referendo de 2016 mostra bem o distanciamento entre essas elites e a realidade política e económica do país.

Palavras-chave: Brexit; parlamentarismo; União Europeia; constitucionalismo.

Sumário: 1. Um caso de sonambulismo político?; 2. A adesão do Reino Unido à CEE na perspetiva da sua saída da UE; 3. O papel do referendo na participação britânica na Europa; 4. Brexit: breve cronologia arrazoada; 4.1. O discurso de Lancaster House; 4.2. Cakeism”; 4.3. A posição da União; 4.4. O artigo 50.º do Tratado de Lisboa; 4.5. As linhas de orientação negocial da União de abril de 2017; 4.6. O acordo de Theresa May; 4.7. Boris Johnson entra em cena; 5. Depois do Brexit.


ABSTRACT

This article, the first of two on Brexit and British parliamentarism, presents a synthesis of the essential moments of the always problematic relationship between the United Kingdom and the European Union, which certainly began long before the referendum of 23 June 2016 and will extend well beyond January 31, 2020, the date of the UK’s formal departure from the European Union. Brexit is seen here as a case of political somnambulism, in a double sense: on the one hand, the withdrawal of the United Kingdom from the European Union was a result unwanted by the politician who promoted it, the Prime Minister at the time David Cameron, and by most British political and economic elites; on the other hand, the unexpected nature of the result of the 2016 referendum clearly shows the distance between these elites and the country’s political and economic reality.


Keywords: Brexit; parliamentarism; European Union; constitutionalism.

Summary: 1. A case of political sleepwalking? 2. The United Kingdom’s accession to the EEC with a view to its leaving of the EU; 3. The role of the referendum in British participation in Europe; 4. Brexit: brief reasoned chronology; 4.1. The speech of Lancaster House; 4.2. “Cakeism”; 4.3. The Union’s position; 4.4. Article 50 of the Lisbon Treaty; 4.5. The European Union’s business guidelines for April 2017; 4.6. The agreement of Theresa May agreement; 4.7. Boris Johnson enters the scene; 5. After Brexit.

 


1. Um caso de sonambulismo político?

Numa obra sobre os eventos que conduziram à Grande Guerra de 1914, o historiador Christopher Clark afirma que “os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, vigilantes, mas incapazes de ver, assombrados por sonhos, e, no entanto, cegos para a realidade do horror que estavam prestes a trazer ao mundo”1. Segundo também afirma, os estudos mais interessantes sobre o tema mostram como “longe de ser inevitável, esta guerra era de facto improvável, pelo menos até realmente acontecer”2. É esta também uma apreciação que, guardadas as devidas proporções, bem pode fazer-se do Brexit: longe de ser inevitável, parecia improvável até acontecer e aconteceu como um ato de sonambulismo, sem que os seus artífices pareçam ter tido uma consciência clara das suas consequências.

Como referem dois distintos autores, “a maioria dos membros do Parlamento apoiou o voto no «Remain» («Uma Grã-Bretanha mais forte na Europa») – assim como os líderes dos principais partidos (David Cameron, Nick Clegg, Jeremy Corbyn e Nicola Sturgeon), especialistas ilustres tão diversos quanto o Governador do Banco da Inglaterra, o Secretário-Geral do Congresso Sindical, o chefe do FMI, o Grupo Russell das melhores universidades, o dirigente da NATO, economistas, cientistas, académicos e empresários, e uma panóplia de líderes mundiais como Barack Obama, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy, Justin Trudeau e Shinzo Abe”3.

Ao mesmo tempo, o ceticismo britânico em relação à Europa não é recente; pelo contrário trata-se de algo que, como vamos ver, esteve sempre presente desde o início do projeto europeu. Desde Winston Churchill a David Cameron a Europa foi vista como boa para os continentais, não tanto para a Grã-Bretanha, que apenas por razões pragmáticas se envolveu na construção da integração europeia.

O que aconteceu então? Como foi possível que um resultado tão alinhado com a tradicional descrença britânica na Europa não tenha sido desejado pelas elites políticas? E o que poderá substituir a Europa na definição do lugar da Grã-Bretanha no mundo de hoje?

No presente artigo não se pretende tanto dar uma resposta a estas questões quanto expor, ainda que sucintamente, os eventos que as permitem colocar, isto é, os antecedentes do referendo de 23 de julho de 2016 e os principais momentos do subsequente processo de retirada do Reino Unido da União Europeia. Num segundo artigo procurarei avaliar a relevância do Brexit para o sistema parlamentar britânico.

 

2. A adesão do Reino Unido à CEE na perspetiva da sua saída da UE

Antes de se discutir a saída do Reino Unido da UE, convém, na verdade, referir as condições da sua entrada. Antes do Brexit, o Brentry4. E, com efeito, tais condições são, em certa medida, simétricas.

A posição do Reino Unido, em matéria de relações internacionais a seguir à Segunda Guerra Mundial, consistia em promover o livre comércio e privilegiar as relações com países da Commonwealth, mantendo-se atento à evolução política e económica na Europa. Esta ambivalência é talvez mais expressivamente formulada por Winston Churchill. Por um lado, é famosa a sua afirmação, em 1942, de que “não se tornou o Primeiro-ministro do Rei para presidir à liquidação do Império Britânico”5. Por outro lado, defendeu insistentemente a união da Europa, chegando mesmo a referir-se, no seu discurso de 19 de setembro de 1946 na Universidade de Zurique, à necessidade de construir “uma espécie de Estados Unidos da Europa”, embora, em sua opinião, o Reino Unido não devesse ser um desses Estados.

Em tal discurso, Churchill afirmou o seguinte:

“O primeiro passo para a recriação da Família Europeia deve ser uma parceria entre a França e a Alemanha. A estrutura dos Estados Unidos da Europa tornará a força material de cada Estado menos importante. E o primeiro passo prático seria formar um Conselho da Europa. A França e a Alemanha devem assumir a liderança juntas. A Grã-Bretanha, a Comunidade Britânica de Nações, a poderosa América e, acredito, a Rússia soviética devem ser amigas e patrocinadoras da nova Europa. Por isso vos digo: deixem a Europa surgir!”6

Segundo alguns historiadores, Churchill queria, no que toca à Europa, uma coisa e o seu contrário (have it both ways)7. A Europa deveria superar e integrar as nações europeias, mas essa integração não seria aplicável à Grã-Bretanha, que ainda se via como potência mundial e sede de um império (a independência da Índia seria declarada no ano seguinte ao discurso de Zurique). Este é, em certa medida, o drama da Europa: “No início dos Estados Unidos da Europa existe um mal-entendido: a ideia veio da Grã-Bretanha. No entanto, esta não pretendia fazer parte, mas antes confrontar uma Europa unida no mesmo plano: In Europe, but not of Europe, como Churchill formulou em outras ocasiões”8.

Os ingleses que votaram maioritariamente o Brexit parecem querer algo essencialmente idêntico. Em 14 de agosto de 1961, um envelhecido Winston Churchill escreveu que, se tivesse que escolher entre o papel histórico da Grã-Bretanha como líder da Comunidade Britânica e a sua integração na Europa, ele escolheria sempre o Império e a Comunidade sobre a Europa9. Mas onde estava, já nessa altura, o Império? E onde está hoje? Não estaremos aqui perante o que já foi designado como uma “melancolia pós-colonial”10? As variações de Churchill sobre o lugar da Grã-Bretanha entre a Commonwealth e a Europa mostram bem as hesitações da autocompreensão de um Estado europeu entre ser a cabeça de um império colonial ou um simples membro, em condições de (relativa) igualdade, de um projeto supranacional.

Em 25 de março de 1957, foi assinado o Tratado de Roma, estabelecendo a Comunidade Económica Europeia, entre a França, a Alemanha, a Itália, a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo. As ambições económicas do tratado eram consideráveis: a CEE deveria ser, mais do que uma zona de livre comércio, ou mesmo uma união aduaneira, um verdadeiro mercado comum. Qual a diferença entre estas realidades?

Numa zona de livre comércio, os estados membros concordam em não impor tarifas sobre mercadorias originárias de outros estados membros. No entanto, são livres para adotar qualquer política comercial que desejarem em relação a países terceiros. Por outras palavras, o fato de o Canadá, o México e os Estados Unidos serem todos membros da Zona de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) não impede o Canadá de assinar acordos de livre comércio com outros países, ou mesmo com a União Europeia, como aconteceu em 201611. Isto coloca um problema óbvio em relação aos bens que a UE importa do Canadá, mas que provenham de um país com o qual a União não tenha qualquer acordo. Para lidar com este problema, os acordos comerciais especificam “regras de origem” que definem se as mercadorias são (neste exemplo) canadianas, ou não, e, portanto, estão isentas, ou não, de tarifas ao abrigo do acordo de livre comércio em questão. Obviamente, tudo isso exige inspeções alfandegárias nas fronteiras, que custam tempo e dinheiro.

Numa união aduaneira não apenas se proíbem as tarifas entre os estados membros, mas também se exige que imponham uma tarifa externa comum em relação ao resto do mundo, o que envolve a adoção de uma política comercial unificada12.

Finalmente, num mercado comum dá-se um passo mais, ao promover a aproximação das políticas económicas de todos os países membros. O que seja um mercado comum resulta do artigo 2.º do Tratado de Roma, na sua versão originária:

“A Comunidade tem por missão, através da criação de um mercado comum e da aproximação progressiva das políticas económicas dos Estados-Membros, promover o desenvolvimento harmonioso das atividades económicas em toda a Comunidade, uma expansão contínua e equilibrada, uma estabilidade acrescida, um aumento relativamente acelerado dos padrões de vida e relações mais estreitas entre os Estados que reúne.”13

Como parece claro, a instituição de um mercado comum envolvia a tomada de decisões coletivas e ainda que no início, por influência do General de Gaulle, a unanimidade constituísse a regra-geral de decisão nas Comunidades (assim, o Compromisso de Luxemburgo, de 29 de janeiro de 1966, preconizava que os Estados-Membros pudessem vetar políticas quando estivessem em jogo “assuntos de grande importância”, para um mais Estados-Membros14), a tendência para ver a CEE como uma realidade mais supranacional do que meramente intergovernamental foi-se impondo gradualmente15.

A instituição de um mercado comum envolvia, em qualquer caso, uma discriminação dos seis países fundadores em relação aos demais países europeus, na medida em que alargava o espaço comercial entre aqueles e excluía os restantes.

Em face disto, a tentativa de reação através da criação da EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), em 1960 (de que Portugal foi membro), não se mostrou suficiente para compensar o Reino Unido dos evidentes benefícios da participação num mercado comum16. Para tal contribuíram essencialmente três razões: antes de mais, o Reino Unido tinha mais relações comerciais com os países da CEE do que com os da EFTA; depois, as suas relações comerciais com os países da Commonwealth diminuíram de importância à medida que estes se foram tornando independentes e perseguiram as suas próprias políticas de desenvolvimento; finalmente, a CEE conheceu logo de início uma fase de grande desenvolvimento económico, o que não podia deixar de aumentar a importância dos seus mercados para a Grã-Bretanha17. Foi neste contexto que, depois de vários avanços e recuos (em 1961 foi formulado um primeiro pedido de adesão pelo Primeiro-ministro Harold Macmillan, vetado pelo General de Gaulle em 1963, que viria a promover um novo veto do segundo pedido de adesão da Grã-Bretanha em 196718), Harold Wilson decidiu avançar com novo pedido de adesão em 1970, baseado mais em falta de alternativas do que num entusiasmo com o projeto europeu19.

A decisão do Reino Unido de aderir à CEE parece, pois, revelar um caminho em que a defesa sem reservas do comércio livre no plano internacional é gradual e hesitantemente substituída pela aceitação da integração económica no projeto do mercado comum europeu. Inversamente, a decisão de saída indicia o caminho contrário: em vários dos seus discursos Theresa May sustentou que a saída da União significava o retomar de um compromisso mais forte com o ideal do comércio livre20. A questão consiste em saber se este é hoje caminho possível, ou sequer plausível.

A este propósito, vale a pena reproduzir aqui as palavras de um comentador:

“A campanha para o Brexit, com seu slogan «retomar o controlo» [take back control], foi baseada numa visão amorfa de um retorno aos tempos em que a Grã-Bretanha dominava as ondas [Britannia rules the waves]. Também houve grandes promessas de acordos de livre comércio com potências económicas no Extremo Oriente.

Se o britânico médio tivesse ao menos uma compreensão superficial da história colonial, teria entendido o quão irrealista isso é. Com os seus mitos de criação construídos sobre a humilhação às mãos da pérfida Albion, é muito improvável que a China ou a Índia algum dia consintam num acordo comercial com o Reino Unido senão nos termos mais punitivos.”21

Mesmo que não se queira adotar esta visão retaliativa da política comercial das grandes economias asiáticas, a verdade é que “o apego de longa data da Grã-Bretanha ao próprio comércio livre é um legado histórico dos seus dias de hegemonia económica e política, em vez de resultar de uma avaliação objetiva de qual deveria ser a política comercial ideal de uma economia de dimensão média com um deficit comercial considerável e um setor manufatureiro fraco”22.

 

3. O papel do referendo na participação britânica na Europa

Tal como o Brexit resultou de um referendo, realizado em 23 de junho de 2016, também o Brentry foi confirmado por um referendo, ocorrido em 5 de junho de 1975.

A tomada de uma decisão sobre a participação do Reino Unido na construção política e económica da Europa através de um referendo é certamente matéria para reflexão, mas, antes de aí chegar, cabe começar por mencionar o que aproxima e o que separa os dois referendos que estiveram na base daquela participação, primeiro, e no seu abandono, depois.

Vejamos, antes de mais, o que aproxima os dois referendos. Com o compromisso, anunciado em 2013, de promover um referendo sobre a permanência do Reino Unido na Europa, David Cameron procurou certamente seguir o exemplo de Harold Wilson de, através do recurso ao voto popular, gerir uma disputa partidária interna entre eurocéticos e partidos do projeto Europeu23. No caso de Cameron, a este motivo para realizar um referendo juntava-se ainda a vontade de conter a crescente influência política do populista Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), procurando usar contra este um instrumento de democracia direta cujo resultado o mesmo não poderia deixar de aceitar, retirando-lhe assim grande parte do seu apelo para o eleitorado conservador24. Como é público e notório, embora a votação no UKIP tenha diminuído significativamente, David Cameron falhou no seu propósito de manter o Reino Unido na União Europeia e arrisca-se a entrar para a história como um dos políticos britânicos mais malsucedidos e incapazes. Harold Wilson, pelo contrário, foi bem-sucedido. No referendo de 1975, o primeiro realizado a nível nacional no Reino Unido, o eleitorado pronunciou-se favoravelmente sobre a permanência do país na Comunidade Europeia, com 67,2% dos votos e uma participação de 65%25. No referendo de 2016, 51,9% do eleitorado pronunciou-se pela retirada do Reino da Unido com uma participação de 72,2%26.

O que separa os dois referendos é igualmente instrutivo. Em primeiro lugar, Harold Wilson estava bem ciente da excecionalidade do recurso ao referendo e não deixou de o afirmar expressamente perante o Parlamento num discurso de janeiro de 1975 em que afirmou o seguinte: “está certo que devamos (…) usar a palavra «único». É uma situação muito especial que não penso venha a ser tomada por alguém como um precedente”27.

Pois bem, esse alguém foi certamente David Cameron, responsável não apenas pelo referendo de 2016, mas também pelo referendo nacional de 2011, sobre a alteração do sistema eleitoral, e pelo referendo realizado na Escócia em 2014 sobre a sua independência28. Estes dois últimos tiveram um voto negativo por parte do eleitorado que rejeitou, no primeiro caso, a alteração do sistema eleitoral, no sentido de substituir o sistema “first past the post” pelo sistema do voto alternativo para a eleição dos membros da Câmara dos Comuns29 e, no segundo caso, a atribuição de independência à Escócia. À terceira, foi de vez: o voto afirmativo do eleitorado no referendo de 2016 mostrou a distância entre o sentir da maioria do eleitorado e a posição de certas elites políticas, entre as quais se incluía o próprio Cameron, sobre a vantagem de permanecer na UE. A adoção de uma política de soluções simples em tempos complexos acabou por custar a David Cameron a sua carreira política30.

A segunda diferença prende-se com a preparação do referendo de 1975, em que se estudaram as consequências políticas dos resultados possíveis do referendo, bem como as alternativas possíveis em termos de regime a que o mesmo deveria ter sido sujeito, em termos que parecem não ter sido levados em conta em 2016. Essa preparação encontra a sua manifestação no relatório elaborado sob a direção de Edward Short, o membro do Governo trabalhista encarregado de avaliar as implicações práticas da realização de um referendo sobre a permanência do Reino Unido como membro da (então) Comunidade Europeia31. Como parece evidente, as implicações práticas de um referendo são consideravelmente mais complexas quando o seu resultado implica uma mudança radical do status quo ex ante, como sucedeu em 2016.

A questão do regime do referendo não parece, pois, ter sido suficientemente acautelada em 2016. Teria sido possível, neste âmbito, entre outros aspetos, fixar um quórum de participação, isto é, uma percentagem mínima de número de votos expressos para que o referendo fosse vinculativo, ou até mesmo uma maioria qualificada para que um determinado sentido de voto se pudesse impor. Exemplo de quórum é o disposto no artigo 115.º. n.º 11, da Constituição portuguesa, de acordo com o qual o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento; a segunda exigência consistiria em exigir, para além de um quórum de participação, uma maioria de 60%, por exemplo, para que um qualquer resultado se pudesse considerar vencedor. O European Union Referendum Act de 2015 não previu nenhum destes possíveis requisitos do referendo, não tendo igualmente determinado o alcance do voto de saída quanto a determinados aspetos que teria sido possível antecipar, designadamente na perspetiva dos cidadãos da União Europeia residentes no Reino Unido, ou quem seria o órgão competente para levar a cabo a decisão de saída32. Na ausência destes requisitos, o que sucedeu foi que, considerando as percentagens acima referidas de participação dos eleitores e dos votos por estes expressos no sentido do Brexit, cerca de 37,3% dos eleitores causaram a saída da Grã-Bretanha da UE por uma margem de apenas quatro pontos percentuais33.

A terceira grande diferença prende-se com a celebração, entre os dois referendos, do Acordo de Sexta-feira Santa de 1998, celebrado entre o Reino Unido, a República da Irlanda e várias organizações da Irlanda do Norte. Neste acordo, como é sabido, o Reino Unido reconheceu a autodeterminação da população da Irlanda do Norte. Embora o texto do acordo não contenha nenhuma referência nesse sentido, parece claro que a qualidade de Estado-Membro da União Europeia de ambos os países constituiu um pressuposto fundamental da respetiva celebração34.

 

4. Brexit: breve cronologia arrazoada

No dia seguinte ao do referendo, David Cameron demitiu-se do cargo de Primeiro-ministro, tendo-lhe sucedido, em 13 de julho de 2016, Theresa May. Nesse mesmo dia, logo que entrou no n.º 10 de Downing Street, Theresa May tratou o resultado do referendo como definitivo. Segundo então afirmou “Brexit quer dizer Brexit. A campanha foi travada, a votação foi realizada, a participação foi alta e o público deu o seu veredicto. Não deve haver tentativas de permanecer dentro da UE, nenhuma tentativa de reingressar pela porta das traseiras, e nenhum segundo referendo. O país votou pela saída da União Europeia e é dever do Governo e do Parlamento garantir que façamos exatamente isso”35. Apesar da pequena margem da vitória do “Leave” no referendo, foi Theresa May a grande responsável por transformar um referendo consultivo numa decisão vinculativa do eleitorado36. O Brexit estava decidido, o que faltava saber era que tipo de Brexit o novo governo pretenderia pôr em prática.

O resultado do referendo não fornece, em si mesmo, grande orientação sobre o assunto, uma vez que os eleitores responderam apenas à seguinte questão: “O Reino Unido deve permanecer membro da União Europeia ou deixar a União Europeia?”. Não havia nada no boletim de voto sobre a união aduaneira ou o mercado único, e diferentes eleitores do “Leave” tinham provavelmente opiniões muito diferentes sobre o modo como pôr em prática o voto popular.

 

4.1. O discurso de Lancaster House

Uma importante indicação sobre o tipo de relação que Theresa May, sucessora de David Cameron, pretendia com a Europa foi dada no seu discurso de 17 de janeiro de 2017 na Lancaster House. Nesse discurso, começou por enunciar a posição clássica dos ingleses em relações internacionais, lembrando os vínculos históricos do Reino Unido com a Commonwealth, e afirmou que: “Muitos na Grã-Bretanha sempre sentiram que o lugar do Reino Unido na União Europeia foi feito à custa dos nossos laços globais, e de um compromisso mais ousado com o livre comércio no mundo em geral”37.

Nesse mesmo discurso, May enunciou alguns limites da negociação que se deveria seguir. O Reino Unido “acabaria com a jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu na Grã-Bretanha”, uma vez que ”não teremos realmente deixado a União Europeia enquanto não controlarmos as nossas próprias leis”. O Reino Unido não seria um membro do mercado único, uma vez que não podia aceitar as quatro liberdades (de bens, serviços, capital e, sobretudo, pessoas), não podia aceitar regulamentos que fossem decididos em outros lugares, nem não podia aceitar a jurisdição do Tribunal de Justiça da União. Para além disso, o Reino Unido não faria mais amplas contribuições financeiras para Bruxelas todos os anos. E como o Reino Unido queria fazer acordos de livre comércio em todo o mundo, não continuaria vinculado à Política Comercial Comum e à Tarifa Externa Comum da união aduaneira da UE.

Todo o discurso de May visa transmitir uma posição de força:

“A Grã-Bretanha quer continuar a manter relações de amizade e boa vizinhança com a Europa. Sei, no entanto, que existem algumas vozes que pedem um acordo punitivo que castigue a Grã-Bretanha e desencoraje outros países de seguir o mesmo caminho.

Isso seria um ato de automutilação calamitosa para os países da Europa. E não seria um ato de um amigo. A Grã-Bretanha não aceitaria – na verdade não poderíamos – tal abordagem. E embora eu esteja confiante de que esse cenário nunca se colocará – embora eu tenha certeza de que um acordo positivo pode ser alcançado – estou igualmente certa de que um não acordo é melhor do que um mau acordo para a Grã-Bretanha.”38

É, no entanto, duvidoso, como vamos ver, que a expressão “no deal is better than a bad deal for Britain” não deva ser substituída pelo seu contrário “Any deal is better than no deal”, enquanto expressão mais adequada a retratar a solução alcançada por May39.

 

4.2. “Cakeism”

A posição de abertura do governo britânico foi a de que queria restringir a imigração da UE, recuperar o controle sobre as suas próprias leis, deixar a jurisdição do Tribunal de Justiça e, portanto, deixar o mercado único da UE; apesar disso, também queria preservar o acesso privilegiado da city de Londres aos mercados financeiros europeus; queria fazer acordos de livre comércio em todo o mundo e, portanto, não queria ingressar numa nova união aduaneira pós-Brexit UE-Reino Unido; ao mesmo tempo, o Reino Unido também queria manter um comércio sem atritos com a UE – ou, pelo menos, um comércio o mais sem atrito possível40.

Por outras palavras, o Reino Unido queria manter partes de adesão à UE que valorizava e livrar-se do resto: queria, ao mesmo tempo, ter o bolo e comê-lo (to have the cake and eat it too). Boris Johnson chegou a dizer isso mesmo41.

 

4.3. A posição da União

A reação dos líderes europeus não se fez esperar. Para além de darem sem efeito as concessões feitas a David Cameron em fevereiro de 201642, enunciaram os seguintes pontos: (i) o Brexit teria que ocorrer de acordo com as regras da União; (ii) o Brexit deveria acontecer rapidamente; (iii) cabia ao Reino Unido decidir o que queria que fosse a natureza de seu futuro relacionamento com a EU; (iv) qualquer relação futura entre a UE e o Reino Unido teria que ser do interesse da UE e teria que equilibrar direitos e obrigações.

Assim, no ponto 4 da declaração dos Chefes de Estado ou de Governo de 29 de junho de 2016 afirma-se o seguinte:

“No futuro, esperamos ter o Reino Unido como um parceiro próximo da UE e esperamos que o Reino Unido exponha suas intenções a esse respeito. Qualquer acordo, que será concluído com o Reino Unido como país terceiro, terá que se basear num equilíbrio de direitos e obrigações. O acesso ao mercado único requer a aceitação de todas as quatro liberdades.”43

Por outras palavras, o “cakeism” não seria tolerado. O “cakeism” significaria ter, em relação à União, os direitos da Noruega e as obrigações do Canadá. Expliquemos um pouco melhor. Uma solução unicamente do tipo da que foi alcançada com Noruega, na qual o Reino Unido permaneceria dentro do Acordo Económico Europeu seria inaceitável para os britânicos, pois envolveria, junto com um comércio sem controlos de fronteira, também a livre circulação de pessoas, contribuições financeiras para a UE e a aceitação dos regulamentos da UE. Mas a adoção apenas de um acordo de livre comércio com a UE, como o Acordo Económico e Comercial Global UE-Canadá, assinado por Justin Trudeau em 2016, seria igualmente inaceitável, pois não garantiria uma posição privilegiada para a city de Londres nos mercados europeus e envolveria controles de fronteira44.

 

4.4. O artigo 50.º do Tratado de Lisboa

As regras a seguir na sequência do referendo constam do artigo 50.º do Tratado de Lisboa45. O sentido destas regras parece relativamente claro: primeiro notificação da intenção de sair ao Conselho Europeu, depois negociação e, em caso de insucesso destas últimas durante o prazo de dois anos a contar da notificação, saída sem acordo ou prorrogação do prazo por decisão unânime do Conselho Europeu com o acordo do Estado-Membro secessionista.

Mas há um outro aspeto do regime do artigo 50.º da maior relevância: o acordo de saída do Estado secessionista estabelece as respetivas condições apenas “tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União”. Ora, é este aspeto que parece claramente contrário aos interesses do Estado que pretende sair, ao separar a questão da saída e a questão das futuras relações com a União.

O mais importante a este respeito, como nota Paul Craig, é a ordem temporal das negociações. Trata-se de saber se as discussões relativas à retirada e às futuras relações comerciais devem prosseguir em paralelo, ou se deve haver um faseamento, de modo que a discussão sobre o último aspeto só comece quando houver progresso suficiente quanto ao primeiro. O Reino Unido favoreceu fortemente, como é natural, a discussão paralela, enquanto a UE defendeu a ordenação em fases. A diferença é facilmente explicável, uma vez que “afeta o equilíbrio de poder no âmbito das negociações: o paralelismo permitiria ao Reino Unido procurar compromissos entre os termos da retirada e os das relações comerciais futuras; a abordagem por fases significa que a UE pode recusar-se a discutir as relações comerciais até que tenha obtido um acordo de retirada aceitável”46. Como vamos ver, é duvidoso que esta exigência de separação por fases tenha sido integralmente respeitada.

Independentemente das questões que o artigo 50.º possa colocar quanto ao respetivo alcance no plano do direito internacional e europeu, o principal problema que desencadeou foi o da sua interpretação no plano do direito interno do Reino Unido. No fundo, a questão prendia-se com o seguinte: qual o órgão competente, de acordo com o direito constitucional do Reino Unido para proceder à notificação de retirada? Poderia o Governo fazê-lo por si mesmo, no âmbito da sua prerrogativa real, ou apenas na sequência de autorização de um ato do Parlamento de Westminster? Como se se sabe a questão deu origem a uma decisão judicial muito controversa do Supremo Tribunal do Reino Unido de 24 de janeiro de 2017, adiante mais aprofundadamente discutido (o designado caso Miller I), que concluiu pela necessidade de uma autorização parlamentar em razão do possível impacto da retirada sobre os direitos atribuídos aos cidadãos britânicos em conexão com a participação do Reino Unido na União Europeia. Apesar da controvérsia gerada pela decisão, acabou por ser obtida quando o Secretário de Estado para Saída da UE, formalmente apresentou no Parlamento, em 26 de janeiro de 2017, um projeto de lei que, em 16 de março, foi promulgado sem emendas como Lei da União Europeia (Notificação de Retirada) de 201747.

Considerando a rapidez com que se cumpriu a exigência de autorização parlamentar constante da decisão no caso Miller I, bem como o facto de ser muito claro que o Supremo Tribunal do Reino Unido não se pronunciou sobre a questão substantiva dos méritos da retirada da União Europeia, pode bem perguntar-se: por que razão o Governo não evitou a litigância, aprovando logo na sequência do referendo uma lei que notificasse o Conselho Europeu da decisão de retirada? E por que razão o Parlamento não exerceu a sua soberania, aprovando motu proprio essa mesma lei? Não é clara a resposta a estas perguntas48, mas a verdade é que ao permitir-se que fossem os tribunais a dar voz ao Parlamento contribuiu-se para transformar o debate numa disputa sobre os limites da prerrogativa do executivo.

 

4.5. As linhas de orientação negocial da União de abril de 2017

Em abril de 2017 a União divulgou as suas linhas de orientação para a negociação com o Reino Unido49, as quais postulavam uma abordagem faseada, para além de excluírem quaisquer negociações individuais entre o Reino Unido e os Estados-Membros e de acordo com o princípio de que nada estará acordado até tudo estar acordado.

Numa primeira fase, seriam negociadas as designadas questões de divórcio:

(i) Garantir que os cidadãos da UE que vivem no Reino Unido e os cidadãos do Reino Unido que vivem na UE mantenham o status e os direitos que lhes eram reconhecidos antes do Brexit.

(ii) Chegar a um acordo sobre o dinheiro devido pelo Reino Unido à UE.

(iii) A questão da Irlanda, a propósito da qual se afirmou o seguinte nas linhas de orientação: “A União apoiou consistentemente o objetivo de paz e reconciliação consagrado no Acordo da Sexta-feira Santa em todas as suas partes, e continuar a apoiar e proteger as realizações, benefícios e compromissos do Processo de Paz permanecerá de suma importância. Tendo em conta as circunstâncias únicas da ilha da Irlanda, serão necessárias soluções criativas e flexíveis, incluindo o objetivo de evitar uma fronteira rígida, respeitando ao mesmo tempo a integridade da ordem jurídica da União”.

É importante salientar a solidariedade manifestada pela Europa para com um pequeno país como a Irlanda, destacando em particular dois aspetos: por um lado, uma vez que a avaliação do Conselho Europeu sobre os progressos feitos nas questões do divórcio teria de ser feito por unanimidade, isso envolvia que nenhum acordo sobre a questão da fronteira irlandesa poderia ser alcançado sem o acordo da Europa; por outro lado, o Conselho Europeu também concordou que, caso a Irlanda do Norte decidisse integrar-se numa Irlanda unida, automaticamente se tornaria membro da União Europeia, assim como a Alemanha Oriental se tornou automaticamente membro da CE quando a Alemanha foi reunificada em 199050.

Apenas numa segunda fase, depois de o Conselho Europeu ter decidido existir um “progresso suficiente” na resolução dos problemas de divórcio na primeira fase, poderiam ter lugar “Discussões preliminares e preparatórias” sobre a natureza do futuro relacionamento UE-Reino Unido. Por outras palavras, não seria permitido ao Reino Unido usar as questões de divórcio como alavanca em quaisquer negociações sobre uma futura relação comercial.

 

4.6. O acordo de Theresa May

Depois de diversas rondas de negociação, o Governo de Theresa May aprovou o acordo de retirada e a declaração política respetiva em 14 de novembro de 2018, tendo estes documentos sido formalmente aprovados por uma reunião especial do Conselho Europeu de 25 de novembro.

O Reino Unido como um todo permaneceria (entraria?) numa união aduaneira com a UE, sendo que apenas a Irlanda do Norte permaneceria no mercado único de mercadorias, envolvendo um alinhamento regulatório com a UE. Deste modo conseguia-se evitar controlos aduaneiros no território do Reino Unido, bem como uma fronteira rígida entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. Trata-se daquilo que ficou conhecido como o “Irish backstop”. Assim, o Reino Unido deixaria de estar sujeito à livre circulação de pessoas, como desde sempre exigido por Theresa May; ao mesmo tempo, o Reino Unido não beneficiaria de um mercado único apenas quanto às mercadorias, com exclusão de capitais, serviços e pessoas, uma exigência desde sempre da UE. Finalmente, não existiria uma fronteira rígida entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, uma insistência dos irlandeses. Deste modo as virtudes do acordo consistiam sobretudo no número de limites traçados pelos diversos intervenientes que eram respeitados51.

O problema deste acordo consistia em, ao contrário do que foi inicialmente previsto, o compromisso com uma futura aduaneira entre o Reino Unido e a União deixar de constar de uma declaração política e passar a estar abrangido no próprio Acordo de Retirada. Por outras palavras, as orientações traçadas pela União Europeia com base no artigo 50.º do Tratado de Lisboa pareciam ter sido deixadas de lado. Assim, como refere Kevin O’Rourke, “a União sempre insistiu que qualquer relação comercial futura, mesmo um mero acordo de livre comércio, só poderia ser negociada após o Brexit e precisaria de garantias de igualdade de condições. Agora, mesmo que essas negociações fracassassem, o Reino Unido teria garantido um acordo de união aduaneira com a UE”52.

Por seu turno, quanto aos direitos dos cidadãos, em dezembro de 2017, como parte do acordo no final das negociações da primeira fase, o Reino Unido e a UE concordaram que os cidadãos da UE no Reino Unido na data da retirada da Grã-Bretanha teriam o direito de permanecer no Reino Unido, reconhecendo às decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia um papel relevante durante oito anos na resolução de quaisquer disputas. Isto não significaria uma possibilidade de recurso para o TJUE, mas apenas que o acordo em causa seria integrado no direito do Reino Unido e que os respetivos tribunais deveriam atender à jurisprudência daquele tribunal nas suas decisões. Os cidadãos do Reino Unido residentes na EU, por seu turno, também teriam os seus direitos garantidos.

Os dois lados concordaram que a questão de saber se os futuros cônjuges se poderão unir aos seus parceiros deveria ser determinada pela legislação nacional, o que implicaria que o Reino Unido poderia impor requisitos financeiros para o efeito, como originalmente pretendia. Isto significava naturalmente uma derrota para a UE, embora a Comissão aparentemente acreditasse que a questão seria abordada na segunda fase das negociações e estaria inevitavelmente ligada ao nível de ambição da futura parceria entre a UE e o Reino Unido53. Também aqui as orientações de negociação da EU parecem ter cedido.

Finalmente, quanto a questões monetárias, o Reino Unido concordou em honrar a sua parte do financiamento de todas as obrigações assumidas enquanto era membro da União, em relação ao orçamento da UE (em particular o Quadro Financeiro Plurianual 2014-2020), o Banco Europeu de Investimento, o Banco Central Europeu, o mecanismo para refugiados na Turquia, os fundos fiduciários da UE, as agências do Conselho e também o Fundo Europeu de Desenvolvimento54. No final, as questões monetárias acabaram por se revelar as de mais fácil resolução.

No dia seguinte ao da aprovação do acordo vários membros do Governo de May anunciaram a sua demissão e parecia cada vez mais claro que o mesmo não seria aprovado pelo Parlamento. Em 17 de dezembro Theresa May anunciou que o acordo seria submetido a apreciação parlamentar a partir de 14 de janeiro de 2019.

Entretanto, em 20 de março de 2019, na sequência de o Parlamento ter rejeitado por diversas vezes a sua proposta de acordo de retirada, Theresa May solicitou ao Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, uma extensão do período de 2 anos previsto no artigo 50.º do Tratado de Lisboa por um período até 30 de junho de 2019.

Em 22 de março a extensão foi concedida pelos membros do Conselho Europeu por um período a decorrer até 22 de maio de 2019.

A verdade é que o acordo de May foi rejeitado pelos Comuns não só em 15 de janeiro, em 14 de fevereiro e em 12 de março, mas também em 29 de março de 201955. Neste contexto, apesar das sucessivas prorrogações até 31 de janeiro de 2020, May acabou por apresentar a sua demissão a 24 de maio de 201956.

A fim de compreender a posição política de May é preciso ter presente que assumiu a liderança do Partido Conservador e o cargo de Primeira-ministra na sequência da demissão de David Cameron logo a seguir ao referendo. Assim, a sua maioria no Parlamento era a que havia resultado da eleição de 7 de maio de 2015, em que os conservadores conquistaram 330 assentos e 36,9% dos votos, ficando com uma pequena maioria de doze assentos, no que foi a sua primeira vitória definitiva em vinte e três anos57. Todavia, e para surpresa de muitos, Theresa May decidiu convocar eleições para fortalecer a sua posição na negociação do Brexit, desde logo no seu próprio partido. Simplesmente, as suas intenções saíram frustradas. A eleição geral de 2017 resultou num “hung parliament”, sem que qualquer partido tenha conquistado uma maioria absoluta58. Este resultado ditou o futuro político de May.

 

4.7. Boris Johnson entra em cena

Com a saída de Theresa May ficou o caminho livre para Boris Johnson, que iniciou oficialmente funções em 24 de julho de 2019. No dia seguinte, no seu primeiro discurso enquanto Primeiro-ministro Boris Johnson comprometeu-se a assegurar que o Reino Unido estaria fora da União Europeia até 31 de outubro “no ifs or buts”59.

Depois de, em 3 de setembro, vários membros do Governo se demitirem, Boris Johnson sofreu, em 24 de setembro, um revés quando o Supremo Tribunal decidiu, através do designado caso Miller II60, ser ilícito o seu pedido à Rainha de prorrogar o Parlamento por cerca de cinco semanas, naquilo que foi visto como uma manobra para minimizar a possibilidade de os deputados bloquearem um Brexit sem acordo, considerando que em 31 de outubro de 2019 o Reino Unido deixaria a União sem acordo se antes não fossem concluídas as negociações para o efeito61. De acordo com esta manobra, o Parlamento, que havia entrado em recesso em 10 de setembro, deveria reassumir funções apenas no dia 14 de outubro.

Entretanto, o Parlamento foi dissolvido em 29 de outubro, em face da impossibilidade de se fazer aprovar um acordo de retirada, sendo marcadas eleições para 12 de dezembro, nas quais o Partido Conservador obteve a sua mais expressiva maioria desde 198762.

Em 17 de outubro foi alcançado um novo acordo de retirada entre o Governo liderado por Johnson e a Comissão Europeia, que veio a ser assinado em 24 de janeiro de 2020 e ratificado pelo Parlamento do Reino Unido em 29 de janeiro e pela União no dia seguinte. Em 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido estava fora da União Europeia63.

Coloca-se, desde logo, a questão de saber em que medida o acordo obtido por Johnson difere do acordo alcançado por Theresa May. Como se viu, o “backstop” (que podemos talvez melhor traduzir como “recuo”, ou “salvaguarda”) exigiria manter a Irlanda do Norte em alguns aspetos do mercado único, até que um acordo alternativo fosse acordado entre a UE e o Reino Unido. A proposta também previa, como vimos acima, que o Reino Unido como um todo formasse uma união aduaneira com a UE até que fosse apresentada uma solução para evitar a necessidade de controles alfandegários no Reino Unido (entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha). O elemento de “recuo” consistia em o acordo continuar a ser aplicado indefinidamente, a menos que o Reino Unido e a UE concordassem num acordo diferente, por exemplo, num acordo de livre comércio entre o Reino Unido e a UE no final do período de transição.

Como facilmente se compreende, governo irlandês e os nacionalistas da Irlanda do Norte (a favor de uma Irlanda unida) apoiaram a solução do “backstop”, enquanto os unionistas (a favor do Reino Unido) se opuseram. No início de 2019, o Parlamento de Westminster havia já votado três vezes contra a ratificação do Acordo de Retirada e, portanto, também contra o “recuo”.

Em outubro de 2019, o novo governo liderado por Johnson renegociou o acordo, substituindo o recuo. No novo acordo, o Reino Unido como um todo, incluindo a Irlanda do Norte, fica de fora de uma união aduaneira com a UE. A Irlanda do Norte será incluída em qualquer futuro acordo comercial do Reino Unido, mas forma de facto uma união aduaneira com a UE, criando uma fronteira aduaneira no Mar da Irlanda com a Grã-Bretanha. Existe também um mecanismo de saída unilateral pelo qual a Assembleia da Irlanda do Norte (Stormont assembly) pode optar por deixar a união aduaneira com a UE por meio de uma votação por maioria simples.

Enquanto o acordo de Theresa May preconizava uma união aduaneira entre o Reino Unido como um todo e a UE, com a Irlanda do Norte como uma espécie de tertium genus (parte do mercado único, mas apenas quanto a mercadorias). Johnson obteve uma união aduaneira de facto entre a UE e a Irlanda do Norte, estando esta, todavia, integrada de iure no território aduaneiro do Reino Unido.

Em resumo, isto significa que a Irlanda do Norte permanecerá alinhada com a união aduaneira da UE, mas estará no território aduaneiro do Reino Unido, o que significa que, se houver acordos comerciais futuros, a Irlanda do Norte beneficiará de tais acordos.

Na prática, este esquema tem como consequências que, se as mercadorias forem enviadas da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte, nenhuma tarifa será aplicada; se as mercadorias forem enviadas da Grã-Bretanha através da Irlanda do Norte para a Irlanda, as tarifas serão aplicadas, mas serão cobradas nos portos e aeroportos – efetivamente colocando uma fronteira aduaneira ao longo do Mar da Irlanda; para as mercadorias enviadas da Irlanda para a Irlanda do Norte, não haverá tarifas, e para mercadorias que viajem da Irlanda pela Irlanda do Norte para a Grã-Bretanha, haverá tarifas cobradas na fronteira aduaneira do Mar da Irlanda64. Tudo isto parece extremamente complexo e, sobretudo, parece gerar uma grande incerteza quanto ao futuro.

 

5. Depois do Brexit

A exposição anterior mostra bem, espera-se, a enorme complexidade de um processo desencadeado por uma decisão simples. Mostra também a pertinência atual da afirmação de uma afirmação de 1962 do político norte-americano Dan Acheson: “a Grã-Bretanha perdeu um império, mas ainda não encontrou um novo papel a desempenhar”65. O desempenho de um papel ativo, com as suas idiossincrasias próprias, na liderança da Europa parece ter sido rejeitado em nome não se sabe bem ainda do quê.

Aquilo que aqui importa realçar é, todavia, um outro aspeto. Trata-se do modo como o Brexit não foi mobilizado no contexto de uma reforma do sistema político inglês, mas antes foi, de facto, utilizado como instrumento de reafirmação do Partido Conservador e de uma visão tradicional do sistema parlamentar. São esses aspetos que cabe desenvolver em próximo artigo.