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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa set. 2020

 

Políticas de mobilidade e transportes: entre a sustentabilidade e uma transição justa


Mobility and transport policies: between sustainability and a just transition




Tiago de Melo Cartaxo1

NOVA School of Law
Universidade Nova de Lisboa
Campus de Campolide
1099-032 Lisboa - Portugal
tiagocartaxo@novalaw.unl.pt




RESUMO

A mobilidade e os transportes têm ganho crescente relevância nos processos de implementação dos objetivos de sustentabilidade, nas perspetivas internacional, regional, nacional e mesmo local. Não apenas no que concerne aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pelas Nações Unidas, mas também no âmbito do cumprimento de compromissos assumidos no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas e numa lógica de promoção da resiliência das comunidades e territórios, a mudança de paradigma para soluções de mobilidade e transporte com emissões reduzidas (ou mesmo neutras) de gases com efeito de estufa torna-se, cada vez mais, uma realidade concreta. No entanto, as desigualdades existentes no território e nas sociedades não permitem ainda o acesso de todos às mais recentes inovações das chamadas mobilidades sustentável ou suave, pelo que se impõe uma rápida adaptação das políticas públicas e do direito, de molde a garantir a chamada “transição justa”, de uma mobilidade convencional para novas abordagens mais limpas, mais baratas e mais saudáveis, conforme definido pelo Pacto Ecológico Europeu. O presente artigo pretende fazer um breve enquadramento dos instrumentos e mecanismos existentes, bem como apresentar um caminho para os desafios e as oportunidades do futuro para uma mobilidade sustentável e justa.

Palavras-chave: Mobilidade; transportes; sustentabilidade; ambiente; direitos.

Sumário: 1. Enquadramento; 2. Breve panorâmica internacional; 3. Enquadramento da realidade europeia; 4. Desenvolvimentos na realidade nacional; 5. A transição justa; 6. Conclusões e perspetivas futuras.


ABSTRACT

Mobility and transport have gained increasing relevance in the implementation processes of sustainability objectives, from international, regional, national and even local perspectives. Not only with regard to the Sustainable Development Goals (SDGs) set forth by the United Nations, but also within the scope of commitments under the United Nations Framework Convention on Climate Change and in a way of promoting the resilience of communities and territories, the paradigm shift towards mobility and transport solutions for reduced (or even neutral) emissions of greenhouse gases is gradually becoming a concrete reality. However, the inequalities that exist in territories and societies do not yet grant everyone access to the most recent innovations for what is considered sustainable or soft mobility, so it is necessary to quickly adapt public policies and the law, in order to guarantee what is considered as the “just transition,” from conventional mobility to new cleaner, cheaper and healthier approaches, as defined by the European Green Deal. This article aims to provide a brief overview of the existing instruments and mechanisms, as well as to present a path to the challenges and opportunities of the future for sustainable and fair mobility.

Keywords: Mobility; transports; sustainability; environment; rights.

Summary: 1. Background; Brief international overview; 3. Overview of the European reality; 4. Developments in the national reality; 5. The fair transition; 6. Conclusions and future perspectives.

 


1. Enquadramento

Num mundo que procura, mormente pelas exigências das alterações climáticas, adaptar-se rapidamente a um novo estilo de desenvolvimento, as temáticas relacionadas com a mobilidade sustentável assumem, cada vez mais, um papel central na gestão dos territórios.

A mobilidade entende-se como o conjunto das viagens ou movimentos gerados diariamente pelos habitantes de um determinado território e os respetivos modelos, condições e características associados a tais movimentos populacionais, incluindo os modos de transporte selecionados, a duração das viagens, ou o tempo gasto com os meios de transporte.

As cidades e as respetivas áreas metropolitanas, onde já nos nossos dias habita a maioria da população mundial, enfrentam o desafio de garantir que os movimentos pendulares sejam rápidos, limpos e confortáveis. Em apreço está o futuro do transporte rodoviário2, do ferroviário, à superfície ou subterrâneo, e as soluções da “mobilidade suave”, que se concretizam em modos de locomoção a tração humana, como a mobilidade a pé ou o uso de bicicleta.

Perante as diferentes opções que os responsáveis públicos, os investidores e os próprios cidadãos têm pela frente, a decisão pela implementação dos diferentes tipos de mobilidade tem impactos significativos nos comportamentos diários da sociedade e na utilização do território. Em consequência, as decisões políticas nesta matéria (e mesmo as opções jurídicas) afetam, diretamente, a qualidade de vida dos habitantes e o os valores naturais presentes nos territórios.

Os avanços tecnológicos têm vindo a facilitar a vida dos utilizadores de meios de transporte, tanto público como privado. Com as novas plataformas eletrónicas e aplicações móveis, é hoje possível obter um automóvel, uma bicicleta ou uma trotineta, à distância de um simples clique. Além disso, quase todas estas novas soluções disponibilizam, de forma crescente e tendencialmente exclusiva, opções sustentáveis ou de emissões reduzidas (pelo menos aparentemente, pela aposta na tração elétrica).

Do mesmo modo, as próprias autoridades públicas, como as áreas metropolitanas e os municípios, têm procurado reduzir os preços para a utilização do transporte público, de molde a fomentar um maior uso por parte dos cidadãos. E grande parte dos meios de transporte público começam também a abandonar os combustíveis fósseis.

Ainda assim, nem todas as soluções de mobilidade sustentável chegam a todos, de forma igual. Nem todos têm capacidade financeira para utilizar as novas plataformas ou aplicações de mobilidade, tal como nem todas as comunidades presentes no território têm acesso fácil a soluções de transporte mais económicas. Exige-se, portanto, que a transição para estas novas formas de mobilidade sustentável ou hipocarbónica cheguem a todos, de maneira mais equitativa. O presente artigo pretende, por isso, apresentar um breve enquadramento dos instrumentos e mecanismos existentes, nas panorâmicasinternacional, europeia e nacional, bem como apresentar um caminho para os desafios e as oportunidades do futuro para uma mobilidade sustentável e justa.

 

2. Breve panorâmica internacional

Numa perspetiva internacional, importa mencionar a influência dos esforços das Nações Unidas para que os diversos estados alterem as respetivas estratégias, políticas e o próprio direito interno, num caminho para a sustentabilidade e, cada vez mais, para uma sociedade hipocarbónica, que garanta a resiliência das comunidades e dos territórios onde as mesmas habitam. Tanto os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) como os compromissos assumidos, em vários momentos, no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, de que é exemplo o Acordo de Paris, demonstram essa mudança de paradigma, que inclui, necessariamente, soluções de mobilidade e transporte com emissões reduzidas (ou mesmo neutras) de gases com efeito de estufa (GEE).

Territórios que se pretendem sustentáveis, tendo em vista não apenas procurar garantir ou melhorar um modo de vida saudável aos seus habitantes mas também a qualidade e a resiliência dos recursos e valores naturais, conforme tem sido preocupação cada vez maior dos responsáveis políticos e legislativos3, exigem formas de mobilidade caracterizadas por mecanismos e veículos considerados “limpos” (e portanto não poluentes ou com níveis reduzidos de emissões), que funcionem em rede, permitindo a intermodalidade, e por modelos que garantam a durabilidade dos respetivos componentes e infraestruturas, contribuindo também para uma economia circular4.

A propósito daquilo que é o desenvolvimento sustentável, importa recordar a definição do relatório da Comissão Brundtland – World Commission on Environment and Development (WCED), de 1987, intitulado Our Common Future, e que estabeleceu que “desenvolvimento sustentável é aquele que permite satisfazer as necessidades das gerações atuais sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem as suas”5.

Em todo o caso, nos dias de hoje, surgem já críticas à narrativa do desenvolvimento sustentável. Entendem alguns autores, como Benson e Craig, que se a intenção inicial seria a de preservar o planeta e os seus recursos para as gerações futuras, a mesma acabou por não lograr suficientemente, uma vez que a resiliência socio-ecológica se encontra cada vez mais em perigo, em especial devido às alterações climáticas6.

Na tendência de promoção da sustentabilidade e da integração da mesma nos conceitos urbanos, cumprirá enfatizar que, no âmbito do Programa UN-Habitat, foi disponibilizado o relatório intitulado Nova Agenda Urbana (do inglês New Urban Agenda), aprovado em Nova Iorque, a 20 de setembro de 2016, como preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Sustentável (Habitat III), que se realizou entre os dias 17 e 20 de outubro de 2016, na cidade do Quito, Equador, e que culminou com a adoção do referido documento, com a denominação Nova Agenda Urbana – Declaração do Quito sobre Cidades Sustentáveis e Aglomerados Urbanos para Todos7.

O documento delineou um caminho de implementação, através de “compromissos transformadores para o desenvolvimento sustentável urbano” (no que concerne ao “desenvolvimento urbano sustentável para a inclusão social e a eliminação da pobreza”, “prosperidade urbana sustentável e inclusiva e oportunidades para todos”, bem como “desenvolvimento urbano ambientalmente sustentável e resiliente”)8 9, princípios para uma “implementação efetiva” (mais concretamente, em matéria de “estabelecimento de regimes que suportem a criação de estruturas de governação urbana”, “planeamento e gestão do desenvolvimento do espaço urbano” e “meios de implementação”)10, bem como regras de “acompanhamento e revisão” da referida agenda11.

Estes objetivos baseiam-se nos compromissos dos estados em “não deixar ninguém para trás”, “garantir economias urbanas sustentáveis e inclusivas” e “garantir a sustentabilidade ambiental”12, a par de “valorizar a forma como planeamos, financiamos, desenvolvemos, governamos e gerimos as cidades e os aglomerados humanos”, “reconhecer o papel liderante dos governos (…) na definição e implementação de políticas e legislação inclusiva e efetiva para o desenvolvimento da sustentabilidade urbana” e “adotar abordagens de desenvolvimento urbano e territorial sustentáveis, centradas nas pessoas, respeitadoras e integradoras das diferentes idades e géneros, através da implementação de políticas, estratégias, desenvolvimento de capacidades e ações a todos os níveis e adaptados à mudança (…)”13.

As referidas opções foram tomadas, na esteira dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)14, na Cimeira das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, entre 25 e 27 de setembro de 2015, enquanto parte integrante de uma agenda de ação para 2030 (Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development), adotada por meio da Resolução 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 25 de setembro de 2015, concretizando-se os referidos objetivos nos seguintes compromissos:

“1. Erradicar a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares;

2. Erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável;

3. Garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para todos, em todas as idades;

4. Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos;

5. Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas;

6. Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos;

7. Garantir o acesso a fontes de energia fiáveis, sustentáveis e modernas para todos;

8. Promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos;

9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação;

10. Reduzir as desigualdades no interior dos países e entre países;

11. Tornar as cidades e comunidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis;

12. Garantir padrões de consumo e de produção sustentáveis;

13. Adotar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos;

14. Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável;

15. Proteger, restaurar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, travar e reverter a degradação dos solos e travar a perda de biodiversidade;

16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis;

17. Reforçar os meios de implementação e revitalizar a Parceria Global para o Desenvolvimento Sustentável.”

A concretização do “Objetivo 11 – Cidades e comunidades sustentáveis” assume-se como uma aspiração dos estados, que reconheceram encontrarem-se em condições de “tornar as cidades e os aglomerados urbanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, através das seguintes medidas:

“11.1 Até 2030, garantir o acesso de todos a uma habitação adequada, segura e acessível e serviços básicos e melhorar os bairros degradados;

11.2 Em 2030, dar acesso a sistemas de transporte seguros, económicos, acessíveis e sustentáveis ??para todos, melhorando a segurança rodoviária, nomeadamente através da expansão dos transportes públicos, com especial atenção às necessidades das pessoas vulneráveis, das mulheres, das crianças, das pessoas com deficiência e das pessoas idosas;

11.3 Até 2030, reforçar a urbanização inclusiva e sustentável e a capacidade para um planeamento e gestão participativos, integrados e sustentáveis ??dos aglomerados humanos em todos os países;

11.4 Reforçar os esforços para proteger e salvaguardar o património cultural e natural no mundo;

11.5 Em 2030, reduzir significativamente o número de mortes e o número de pessoas afetadas e diminuir substancialmente as perdas económicas diretas relativas ao produto interno bruto global causadas por desastres, incluindo catástrofes relacionadas com a água, com foco na proteção dos pobres e das pessoas em situação vulnerável;

11.6 Até 2030, reduzir o impacte ambiental negativo per capita das cidades, nomeadamente através da prestação de especial atenção à qualidade do ar, gestão de resíduos municipais e outras matérias;

11.7 Em 2030, proporcionar acesso universal a espaços verdes e públicos seguros, inclusivos e acessíveis, em particular para mulheres e crianças, idosos e pessoas com deficiência;

11.a Apoiar as relações económicas, sociais e ambientais positivas entre as zonas urbanas, periurbanas e rurais, reforçando o planeamento do desenvolvimento nacional e regional;

11.b Em 2020, aumentar substancialmente o número de cidades e aglomerados humanos que adotem e implementem políticas e planos integrados para a inclusão, a eficiência dos recursos, a mitigação e a adaptação às alterações climáticas, a resiliência às catástrofes e desenvolver e implementar, de acordo com o Quadro de Sendai para a Redução do Risco de Desastre 2015-2030, a gestão holística de riscos de desastres a todos os níveis;

11.c Apoiar os países menos desenvolvidos, nomeadamente através de assistência financeira e técnica, na construção de edifícios sustentáveis ??e resilientes, utilizando materiais locais.”

Também em sede de agendas das Nações Unidas e o papel das cidades e das comunidades locais, cumpre sublinhar a adoção do “Acordo de Paris”. Este instrumento internacional resultou da 21.ª Conferência de Partes (COP 21), no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas de 1992 (UNFCCC), e estabeleceu a necessidade de assegurar que o aumento da temperatura média global se mantenha em 2°C abaixo dos níveis pré-industriais, bem como de envidar esforços para limitar o aumento da temperatura até 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, reconhecendo que tal reduzirá significativamente os riscos e impactos das alterações climáticas15.

No âmbito deste acordo, as cidades, a sociedade civil, o setor privado, as instituições financeiras e outras autoridades “subnacionais”, comunidades locais e populações indígenas, enquanto non-party stakeholders16, atendendo a que representam um papel de extrema relevância na dinamização das atividades humanas e na própria gestão do território, de uma forma mais sustentável. Neste sentido, as autoridades responsáveis pela gestão da mobilidade e dos transportes não podem deixar de atender às aspirações do Acordo de Paris na implementação das respetivas políticas públicas de mobilidade, em especial no que concerne aos serviços públicos de transportes, mas também na regulação dos demais setores da mobilidade.

A Segunda Conferência Global encontra-se agendada para os dias 5 a 7 de maio de 2020, em Pequim.

 

3. Enquadramento da realidade europeia

Na realidade da União Europeia (UE), a maioria dos cidadãos habita em áreas urbanas. Mais de 60% da população vive em cidades com mais de 10.000 habitantes e passam grande parte do dia-a-dia dentro daqueles espaços urbanos, compartilhando infraestruturas comuns de transportes e acessibilidades. Cumpre, portanto, enfatizar que as viagens incluídas no conceito de mobilidade urbana correspondem a 40% das emissões de CO2 dos transportes rodoviários e cerca de 70% de outros poluentes provenientes de veículos de transporte.

Como resultado desta realidade, as cidades europeias enfrentam crescentes problemas causados pelos transportes e pelo tráfego rodoviário. As dificuldades em melhorar a qualidade da mobilidade e, ao mesmo tempo, reduzir o congestionamento do tráfego, os acidentes rodoviários e a poluição são enormes desafios, comuns a todo o território europeu, em especial nas grandes cidades. O congestionamento do tráfego na UE verifica-se, sobretudo, dentro das regiões urbanas, custando os respetivos meios de resolução anualmente cerca de 100 mil milhões de euros, o que corresponde a 1% do PIB de toda a UE18.

Neste sentido, as autoridades públicas responsáveis pela governação dos territórios encontram-se na melhor posição para procurar encontrar as respostas certas, ou pelo menos as mais adequadas, para estes desafios, atendendo às circunstâncias específicas de cada realidade socio-ecológica individualmente identificada, bem como às subsequentes inter-relações com as demais comunidades e territórios.

Foi exatamente por este motivo que a Comissão Europeia lançou, em 2013, o “Pacote da Mobilidade Urbana” (Urban Mobility Package), um conjunto de medidas para melhorar a mobilidade nas cidades, que procurou promover (i) a partilha de experiências, apresentando a melhores práticas e fomentando a cooperação; (ii) o estabelecimento de apoio financeiro direcionado; (iii) o enfoque da investigação e da inovação no fornecimento de soluções para os desafios da mobilidade urbana; e (iv) o envolvimento dos Estados-Membros e do reforço da cooperação internacional nesta matéria.

Este pacote de medidas apresentou como elemento central a Comunicação “Avançar em conjunto para uma mobilidade urbana competitiva e eficiente na utilização de recursos” – COM(2013) 913 final, de 17 de dezembro de 2013, sendo complementado por um anexo que estabelece o conceito de ‘Planos de Mobilidade Urbana Sustentável’, bem como quatro documentos de trabalho dedicados às temáticas da logística urbana, regulamentos de acesso urbano, implantação de soluções de sistemas de transporte inteligente em áreas urbanas e segurança rodoviária urbana19. Mais uma vez, verifica-se a fundamental interligação entre os valores da eficiência e da sustentabilidade que deverá, naturalmente, orientar a concreta implementação e operacionalização, de novos modelos na área da mobilidade.

O “Pacote da Mobilidade Urbana” havia já sido precedido pela adoção por parte da Comissão Europeia, em 25 de setembro de 2007, do Livro Verde – “Por uma nova cultura de mobilidade urbana.” Através deste instrumento, a Comissão procurara estabelecer uma nova agenda europeia para a mobilidade urbana, respeitando as responsabilidades das autoridades locais, regionais e nacionais neste domínio e pretendendo, simultaneamente, facilitar a procura de novas e diferentes soluções, por exemplo através da partilha das melhores práticas desenvolvidas em algumas cidades20.

O Livro Verde apresentou exemplos de eficiência e sustentabilidade no âmbito da melhoria da qualidade do transporte coletivo, como o aumento da utilização de tecnologias limpas e energeticamente eficientes, a promoção da prática de caminhada e do ciclismo (a chamada mobilidade suave) e a proteção dos direitos dos passageiros de transportes públicos.

Ainda em 2009, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram a Diretiva 2009/33/CE, de 23 de Abril de 2009, relativa à promoção de veículos de transporte rodoviário não poluentes e energeticamente eficientes, com o objeto e a finalidade de exigir “que os poderes públicos, as entidades adjudicantes e alguns operadores [tivessem] em conta os impactos energético e ambiental durante o tempo de vida, incluindo o consumo de energia e as emissões de CO2 e de determinados poluentes, ao comprarem veículos de transporte rodoviário, a fim de promover e estimular o mercado de veículos não poluentes e energeticamente eficientes e de melhorar a contribuição do sector dos transportes para as políticas da Comunidade nos domínios do ambiente, do clima e da energia (artigo 1.º). Esta diretiva procurou aplicar-se aos contratos de compra e venda de veículos de transporte rodoviário, tanto por parte de poderes públicos ou entidades adjudicantes21 (alínea a) do artigo 2.º) como de operadores que executam obrigações de serviço público no âmbito de contratos de serviço público (alínea b) do artigo 2.º).

A mencionada diretiva foi recentemente revista pela Diretiva (UE) 2019/1161 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, que procurou focar o respetivo regime numa promoção de uma mobilidade hipocarbónica e numa análise do ciclo de vida dos veículos contratados, relegando a datada expressão “eficiência energética” para segundo plano. Tal opção verifica-se, desde logo, na própria alteração ao título da diretiva (cfr. artigo 1.º da Diretiva (UE) 2019/1161), apenas se limitando agora à “à promoção de veículos de transporte rodoviário não poluentes a favor da mobilidade com nível baixo de emissões”. A nova redação dada ao artigo 5.º do texto de 2009 revela ainda um importante estabelecimento de objetivos em matéria de contratação pública, expressos como percentagens mínimas de veículos não poluentes no número total de veículos de transporte rodoviário contratados, entre dois períodos de referência, sendo o primeiro entre 2 de agosto de 2021 e 31 de dezembro de 2025 e o segundo entre 1 de janeiro de 2026 e 31 de dezembro de 2030.

Também no ano de 2009, outro instrumento com especial relevância no âmbito das políticas europeias foi o Plano de Ação sobre Mobilidade Urbana, adotado pela Comunicação da Comissão COM (2009) 490 final, de 30 de setembro de 2009, e que estabeleceu vinte medidas no sentido de incentivar e apoiar as autoridades locais, regionais e nacionais a alcançar os seus objetivos de mobilidade urbana sustentável. Com o referido Plano de Ação, a Comissão Europeia apresentou pela primeira vez um pacote de apoio, de caráter abrangente no domínio da mobilidade urbana.

As ações foram lançadas ao longo dos três anos seguintes à adoção do Plano, tendo a Comissão Europeia procedido, posteriormente, a uma análise da execução do Plano de Ação que teve em conta para o desenvolvimento do já referido Pacote de Mobilidade Urbana de 2013.

No âmbito das políticas e iniciativas dedicadas à mobilidade e que têm vindo a ser implementadas por administrações locais, regionais, nacionais ou mesmo pelas instituições europeias, a preocupação essencial incide na necessidade de uma transição para uma gestão sustentável, eficiente e que promova os transportes limpos, a mobilidade suave (formas de locomoção não motorizadas) e a intermodalidade, baseada na utilização de vários tipos de transporte, de molde a promover um mais reduzido volume de emissão de GEE22.

Procura-se que, nos dias de hoje, as áreas urbanas sejam territórios e comunidades cujas atividades provoquem um impacto neutro no meio ambiente e, consequentemente, no clima23. Neste sentido, importa identificar algumas iniciativas e programas a ter em consideração. Por um lado, a CIVITAS, lançada pela Comissão Europeia em 2002, que visa apoiar as cidades em toda a Europa a implementar e testar estratégias inovadoras e integradas que abordem os objetivos energéticos, de transportes e ambientais. A iniciativa testou e implementou mais de 800 medidas e soluções de transporte urbano como parte de projetos de demonstração em mais de 80 cidades Living Lab em toda a UE. O Fórum anual CIVITAS reúne profissionais e políticos das cidades que integram esta iniciativa24.

Relativamente à investigação em mobilidade urbana, designadamente nas soluções sustentáveis, tem vindo também a ser financiada, nos últimos anos, uma diversidade de atividades de investigação, investigação aplicada e demonstração. Grande parte da informação sobre estes projetos, bem como as melhores práticas, notícias e material de formação, pode ser encontrada no portal europeu denominado ELTIS sobre transporte urbano e mobilidade, enquanto projeto financiado pela Direção-Geral para a Mobilidade e Transportes da Comissão Europeia25. O 7.º Programa-Quadro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico, substituído pelo Programa Horizonte 2020 e, a partir de 2021, pelo Horizonte Europa, desempenhou, até 2013, um papel relevante no apoio à investigação no domínio dos combustíveis alternativos (biocombustíveis e pilhas de hidrogénio), incluindo a aplicação aos transportes e a investigação sobre a mobilidade urbana (como a próxima geração de veículos, os novos conceitos de mobilidade, os modos de transporte não poluentes, a gestão da procura e as ferramentas para apoiar o desenvolvimento e a implementação de políticas).

Por outro lado, a “Parceria Europeia para a Inovação de Cidades e Comunidades Inteligentes” assumiu como objetivo principal garantir um apoio efetivo às cidades e às comunidades, às empresas e à sociedade civil, para a implementação de soluções mais inteligentes para as cidades a uma escala de maior dimensão. Na referida parceria unem-se as áreas da energia, dos transportes e das tecnologias da informação e comunicação (TIC), de molde a procurar melhorar serviços, reduzindo simultaneamente o consumo de energia e os impactos poluentes26.

O programa “Energia Inteligente para a Europa”, através da iniciativa STEER – Energy in Transport, representa também um exemplo de uma iniciativa para o financiamento de atividades que promovam uma utilização mais sustentável da energia nos transportes, através da eficiência energética, da utilização de fontes de combustível novas e renováveis, do incentivo a veículos alternativos e do reforço do conhecimento das agências de gestão locais no domínio dos transportes27.

Também em matéria de campanhas lançadas pela Comissão Europeia, destaque deverá ser dado à iniciativa Do the Right Mix, que visou promover uma realidade em que, usando diferentes modos de transporte para cada viagem (através da intermodalidade), conforme apropriado, os cidadãos poderiam melhorar sua saúde, as suas condições financeiras e o próprio meio ambiente, e que consistiu numa iniciativa de três anos que procurou apoiar os “mobilizadores urbanos” a desenvolver a sua atividade de forma sustentável nos 28 Estados-Membros da UE, mas também na Noruega, Islândia e Liechtenstein28.

Ainda assim, a campanha que tem sido mais disseminada na UE nesta matéria tem sido a iniciativa anual que decorre anualmente na semana entre 16 e 22 de setembro – “Semana Europeia da Mobilidade” – e que procura incentivar as autoridades locais europeias a introduzir medidas de transporte sustentáveis, convidando os residentes e visitantes a recorrer a alternativas ao uso do automóvel, com especial preferência à utilização de vias pedonais, ciclovias e transportes públicos. O tema da iniciativa para o ano de 2020 será “Mobilidade de Emissões-Zero para Todos”29.

Mais recentemente, a Comissão Europeia apresentou – e o Parlamento Europeu manifestou o seu apoio, mediante resolução de 15 de janeiro de 202030 – o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), que consiste num pacote de medidas que procura permitir às empresas e aos cidadãos europeus beneficiar de uma transição ecológica sustentável. As medidas são acompanhadas por um roteiro inicial de políticas fundamentais, que incluem a redução das emissões de GEE e o investimento na investigação e na inovação de ponta, de molde a preservar o ambiente natural da Europa. Um importante domínio de intervenção do Pacto é, exatamente, a mobilidade sustentável. Considerando que as emissões provenientes dos transportes representam um quarto das emissões de GEE na UE e continuam a aumentar, o Pacto Ecológico visa reduzi-las 90% até 2050. As soluções apresentadas são, portanto, baseadas na mobilidade automatizada e sistemas inteligentes de gestão do tráfego rodoviário para transportes mais eficientes e mais limpos; no desenvolvimento de aplicações inteligentes e de soluções de mobilidade como serviço; no aumento da oferta de combustíveis alternativos sustentáveis no setor dos transportes; num quadro normativo mais restritivo da poluição automóvel; na redução da poluição nos portos da UE; ou na melhoria a qualidade do ar nas imediações dos aeroportos. Mais acresce que o Pacto Ecológico prevê um mecanismo financeiro para a “transição justa”, direcionado a apoiar as regiões e setores que são mais afetados pela transição para a economia verde, “não deixando ninguém para trás”31.

Ainda no que respeita à matéria de transportes no continente europeu, mas na perspetiva mais alargada da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (conhecida como UNECE), um interessante estudo recente demonstra que ocorrências climáticas extremas e alterações a mais longo-prazo (como a subida do nível do mar), tal como efeitos cumulativos, podem resultar em danos às infraestruturas de transporte, interrupções operacionais e pressões na capacidade e eficiência das redes europeias32.

Os resultados apresentados demonstram que o próprio setor da mobilidade e transportes está também ele ameaçado pela realidade das alterações climáticas. Deste modo, a necessidade de uma rápida mudança de paradigma tem também de passar pela gestão e utilização da mobilidade e transportes, no sentido de estratégias e soluções mais sustentáveis e, essencialmente, hipocarbónicas.

Ainda no âmbito da UNECE, os ministros dos transportes dos estados reuniram-se em Genebra, entre 25 e 28 de fevereiro, para aprovar uma Declaração para a implementação de soluções sustentáveis ??de transporte terrestre, no sentido de enfrentar os desafios climáticos e ambientais. A mencionada Declaração tem como principal intenção servir de call to action para a Segunda Conferência Global sobre Transportes Sustentáveis, agendada para Pequim, entre 5 e 7 de maio de 2020, de molde a que sejam assumidos compromissos que cumpram os objetivos que foram estabelecidos no Acordo de Paris33.

 

4. Desenvolvimentos na realidade nacional

Procurando seguir as experiências internacionais e europeias no caminho para cidades e territórios mais sustentáveis (e até mesmo mais inteligentes), a Estratégia “Cidades Sustentáveis 2020”, aprovada em Portugal pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/2015, de 16 de julho, pretendeu persuadir os responsáveis locais, regionais e nacionais a implementar medidas para cidades mais prósperas, mais resilientes34, mais saudáveis, mais justas, mais conectadas e mais cognitivas. De acordo com o recomendado pela estratégia, a atuação dos diferentes atores da cidade deve basear-se nos princípios orientadores da Estruturação urbana do território (n.º 1); territorialização das políticas (n.º 2); coordenação horizontal (n.º 3); coordenação vertical (n.º 4); envolvimento ativo (n.º 5); conhecimento do território (n.º 6); e capacitação coletiva (n.º 7).

Estabeleceu- se, através da referida Resolução do Conselho de Ministros, que a Estratégia “Cidades Sustentáveis 2020” seria implementada com o auxílio de instrumentos de operacionalização, designadamente através das denominadas “fontes de financiamento para o desenvolvimento urbano sustentável”, previstas no parágrafo 7.1.1 do referido documento e que implicam o recurso ao ciclo de financiamento europeu 2014-2020 (que agora termina), complementado com outras soluções de investimento geridas a nível europeu. Podemos enunciar, como exemplos, os programas Horizonte 2020, INTERREG (Europa, MED, SUDOE, POCTEP), Espaço Atlântico, COSME, LIFE e URBACT III, entre outros, e o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, mas também a “abordagens territoriais integradas” (7.1.2), de que é exemplo o enfoque particular que “(…) é dado às ações integradas de desenvolvimento sustentável (AIDUS), que se destinam a prosseguir estratégias de desenvolvimento sustentável no âmbito do quadro de financiamento europeu “Portugal 2020”, tendo em consideração a relevância dos sistemas urbanos na dinamização do crescimento e do emprego, da competitividade e da inovação, e também da sustentabilidade e promoção da qualidade de vida”, a par da elaboração e implementação de Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano (PEDU) e também Planos de Mobilidade Urbana Sustentável, definidos ao nível de NUTIII, planos de ação para a regeneração urbana para áreas específicas selecionadas e planos de ação integrados para as comunidades desfavorecidas objeto de intervenção35. A mobilidade sustentável assume, também aqui, um papel relevante na mudança de paradigma para territórios mais sustentáveis e resilientes.

Em complemento a esta estratégia, cumpre também realçar o trabalho desenvolvido, num âmbito nacional, em matéria de desenvolvimento urbano sustentável, que culminou na elaboração e publicação de um Relatório Nacional – Portugal Habitat III36, de agosto de 2016, como preparação da posição portuguesa para a anteriormente mencionada Conferência do Quito e que terá contribuído para as conclusões finais daquela iniciativa, que adotou a Nova Agenda Urbana – Declaração do Quito sobre Cidades Sustentáveis e Aglomerados Urbanos para Todos37.

Uma importante mudança de paradigma em matéria de mobilidade e transportes em Portugal consistiu na aprovação do Decreto-Lei n.º 86-D/2016, de 31 de dezembro, e do Decreto n.º 82/2016, de 28 de novembro, mediante os quais se deu o primeiro passo na efetiva implementação de novos modelos de gestão descentralizada do serviço público de transporte por autocarro no concelho de Lisboa e na Área Metropolitana do Porto (AMP).

Nos termos do Decreto-Lei n.º 86-D/2016, o Município de Lisboa passou a ser, simultaneamente, a autoridade de transportes titular do serviço público de transporte coletivo de passageiros por autocarro prestado pela Carris, o concedente no contrato de concessão existente, e o detentor da totalidade das ações representativas do capital social daquela empresa pública38. Por outro lado, nos termos do estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 82/2016, é a AMP, na qualidade de entidade intermunicipal39, que passa a ser, em partilha com o Estado, titular de competências alusivas ao serviço público de transporte de passageiros, detentora da posição de contraente público no “contrato de serviço público” que vier a ser modificado e, finalmente, a gestora operacional da STCP40.

Procurou o legislador juntar à descentralização de competências, axial nos modelos de new public management41 de origem anglo-saxónica, juntar a motivação em implementar um racional de promoção da eficiência e sustentabilidade neste concreto serviço público de transporte. Esta motivação apreende-se, desde logo, da leitura dos preâmbulos de ambos os diplomas, uma vez que é sublinhado que o novo modelo de gestão do serviço a ser prestado pela Carris visa “a elevação dos atuais patamares de eficiência e sustentabilidade no desenvolvimento do serviço público de transporte de passageiros, e pretende reforçar a promoção de políticas de sustentabilidade ambiental e de redução da emissão de poluentes, designadamente através da renovação da frota de autocarros da Carris com veículos movidos a gás natural, energia elétrica ou outras formas de energia passíveis de gerar ganhos ambientais”42. Por outro lado, no diploma da STCP, prevê-se que “o exercício pela AMP de poderes de autoridade de transportes e de gestão operacional do serviço público em causa visa maximizar a segurança, eficiência, qualidade e menor custo dos transportes públicos para os utentes dos municípios servidos pela STCP, S. A.”, e por conseguinte, com impactos positivos no plano da sustentabilidade.

Acresce que, também em sede preambular, o Decreto-Lei n.º 86-D/2016, enfatiza a necessidade de reforçar a promoção de políticas de sustentabilidade ambiental e de redução da emissão de poluentes, “designadamente através da renovação da frota de autocarros da Carris com veículos movidos a gás natural, energia elétrica ou outras formas de energia passíveis de gerar ganhos ambientais”43.

Um subsequente marco substancial na promoção de um acesso mais equitativo ao transporte público em Portugal foi a introdução de preços mais reduzidos no passe “Navegante” para os transportes nas áreas metropolitanas portuguesas. Exemplo deste momento relevante foi, na área metropolitana de Lisboa, o Regulamento n.º 278-A/2019, de 27 de março, entretanto alterado pelo Regulamento n.º 717/2019, de 13 de setembro, que estabeleceu a definição valores reduzidos para cartões de viagem municipais e metropolitanos (artigo 8.º). A mencionada iniciativa permitiu que mais utilizadores tivessem acesso aos transportes públicos, podendo contribuir para uma redução do tráfego rodoviário nos grandes centros urbanos e também para a consequente melhoria da mobilidade sustentável44.

Em todo o caso, será ainda necessário que estas medidas cheguem a toda a população e não apenas às residentes nas áreas metropolitanas ou nas áreas urbanas, uma vez que também fora dessas áreas a igualdade no acesso à mobilidade deve ser garantida.

 

5. A transição justa

Os avanços na mobilidade sustentável e nas inovações que permitem, cada vez mais, a sua implementação e a consequente redução de GEE são inegáveis. No entanto, as desigualdades existentes no território e no seio das sociedades não permitem ainda o acesso de todos às mais recentes inovações que permitam a transição para um paradigma de uma total mobilidade sustentável (incluindo a suave).

Impõe-se, portanto, uma rápida adaptação por parte das políticas públicas e do direito, para garantir a chamada “transição justa” também para a área da mobilidade – de uma mobilidade convencional para as novas abordagens amigas do ambiente, acessíveis a todos45.

Os territórios, e em especial as autoridades responsáveis pela gestão dos mesmos, devem, naturalmente, procurar implementar sistemas de transporte urbano mais sustentáveis, com o objetivo de reduzir acidentes, congestionamentos, poluição do ar e do ruído, a emissão de GEE e melhorar as interações sociais, a qualidade de vida, os serviços e as infraestruturas. Os sistemas de mobilidade e transporte contemporâneos são, portanto, muitas vezes caracterizados como injustos. Tendem a favorecer o transporte motorizado, deixando para trás outras formas de transporte mais sustentáveis e, com elas, grande parte das populações, que não têm capacidade financeira para aceder a essas soluções sustentáveis ou hipocarbónicas46.

As comunidades modernas encontram-se expostas aos riscos e aos poluentes do tráfego rodoviário (mas também do aéreo), a distribuição do espaço não é igual e o tempo de transporte é habitualmente longo e desconfortável. A injustiça no transporte urbano influencia as mudanças no planeamento urbano dos dias de hoje, no desenvolvimento das infraestruturas de transporte e na gestão do trânsito. Simultaneamente, as políticas de transporte aos níveis local, regional, estadual e nacional têm impactos diretos nos padrões de uso e desenvolvimento do espaço. E os esforços para desafiar as políticas de discriminação, segregação e transporte desigual abrangem uma ampla série de impactos sociais.

Por estes motivos, as políticas para o acesso à mobilidade e aos transportes sustentáveis devem combater as desigualdades desde a fase do planeamento à da gestão. Um sistema de transportes justo deve: (i) garantir oportunidades de envolvimento público significativo no processo de planeamento dos transportes, particularmente para as comunidades que sentem mais diretamente o impacto de projetos ou opções de financiamento; (ii) manter um alto padrão de responsabilidade pública e transparência financeira; (iii) distribuir igualmente os benefícios e encargos dos serviços de transporte em todos os níveis de rendimentos e comunidades, de forma justa; (iv) fornecer serviços de alta qualidade – enfatizando o acesso a oportunidades económicas e mobilidade básica – a todas as comunidades, mas com especial preocupação com aquelas que mais dependentes dos serviços de transporte; e (v) priorizar igualmente os esforços para revitalizar comunidades com maiores dificuldades económicas e minoritárias, expandindo as infraestrutura de transporte para garantir maior igualdade no acesso.47

A transição justa no acesso à mobilidade sustentável deverá aliar estas componentes à prestação de serviços de mobilidade e transporte baseados em soluções não poluentes e hipocarbónicas. A igualdade no acesso aos transportes deve, por isso, ser também articulada com a justiça ambiental (e, nos dias de hoje, também a justiça climática). Tal como acontece com os aterros e as indústrias poluidoras, que são mais propensas a localizar-se perto de comunidades de baixos rendimentos e/ou minoritárias, o mesmo ocorre com o acesso a transportes e à mobilidade.48 E mais ainda a transportes e mobilidade amigos do ambiente.

 

6. Conclusões e perspetivas futuras

O setor dos transportes é um dos principais responsáveis pelo aumento das emissões de GEE e de ruído49. Deste modo, o presente artigo teve como principal intenção mapear algumas das mais relevantes opções políticas, estratégicas e jurídicas na área da mobilidade e transportes, em especial na parte em que esta se relaciona com a sustentabilidade (e o caminho para uma sociedade de baixo-carbono), mas também na forma como será possível garantir um acesso à mobilidade sustentável a todas as populações.

Dos avanços nas agendas internacionais, mormente no seio das Nações Unidas, ao desenvolvimento de políticas e estratégias no âmbito da União Europeia, o caminho para a mobilidade sustentável está a tornar-se cada vez mais concreto, quase sempre impulsionado pela inovação e as novas tecnologias que, tantas vezes, permitem a utilização de plataformas e aplicações eletrónicas e para dispositivos móveis.

Também na realidade nacional, diversos instrumentos e mecanismos para a mobilidade sustentável têm vindo a ser adotados, embora, na maioria dos casos, tal aconteça por influência das realidades internacional e europeia. Ainda assim, opções como a adoção de estratégias para cidades mais sustentáveis ou a implementação de medidas que procurem fazer chegar os meios de transporte público à maioria dos cidadãos (especialmente aos que vivem nos arredores das cidades) – o que se prevê que venha a reduzir substancialmente a utilização do automóvel – demonstram que Portugal se encontra a traçar um caminho para uma mudança de paradigma. Em todo o caso, este é um caminho que exige mais coragem e envolvimento de todos, em especial dos utilizadores dos próprios transportes.

Porque a temática da mobilidade e dos transportes é assaz ampla, ficaram por tratar as matérias relacionadas com os transportes aéreo e marítimo, bem como outras concernentes especificamente à regulamentação do setor automóvel (de ligeiros ou pesados), que bastante relevância assumem também nesta mudança estratégica que as sociedades dos dias de hoje estão a viver, em especial devido ao sempre presente tema das alterações climáticas.

Conclui-se, portanto e face a todo o expendido, que esta mudança de paradigma, também na mobilidade e nos transportes, tem de ser uma transição para uma sociedade de baixo-carbono (mais ainda, de carbono zero), que se quer efetiva e, acima de tudo, justa e que não deixe ninguém para trás.