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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa set. 2020

 

A política pública de resíduos em Portugal e a sua face jurídica

Public waste policy in Portugal and its legal dimension




Ricardo Branco1

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade - Cidade Universitária
1649-014 Lisboa - Portugal
ricardo.branco@mail.telepac.pt


RESUMO

O presente artigo versa sobre a política pública de resíduos em Portugal. Consabidamente, os objetivos de uma política pública de resíduos reconduzem-se à minimização dos efeitos dos resíduos na saúde humana e no ambiente, a que se associa a preservação dos recursos naturais, objetivos que têm sido inseridos, mais modernamente, no super-conceito de economia circular.

Palavras-chave: política pública; resíduos; prevenção de resíduos; gestão de resíduos; economia circular.

Sumário: 1. A política pública de resíduos em Portugal: como se incrementa, de que se ocupa e para quê; 1.1. Os resíduos como objeto de política pública; 1.2. Como se incrementa a política pública de resíduos: o Direito dos Resíduos enquanto meio incremental prioritário, entre outros, da política pública de resíduos; 1.3. Para que serve a política pública de resíduos?: a) Noção de economia circular; b) Em especial: economia circular como fim da política pública de resíduos; 2. Prevenção de resíduos: a guarda avançada da política pública de resíduos e da economia circular; 3. Gestão de resíduos; 3.1. A atividade de gestão de resíduos; a) O que é? b) Quem desempenha, fiscaliza, acompanha e regula a gestão de resíduos; 3.2. O regime jurídico da gestão de resíduos como problema de políticas públicas; a) O coração do problema: a diferenciação entre regime geral e regimes especiais como problema de política pública; b) O regime geral da gestão de resíduos; c) Os particularismos subjetivos da gestão dos resíduos urbanos como limite constitucional à política pública de resíduos; d) Regimes especiais em função do sector de atividade e problemas fundamentais da política pública de resíduos que levantam; e) Regimes especiais em função do vulto económico da fileira e da complexidade da gestão; f) A normação na especialidade dos resíduos perigosos como problema político-jurídico: o estranho caso dos CIRVER; 4) O enquadramento da fiscalidade no sector dos resíduos como problema da política pública de resíduos; 5) Conclusão.

 

ABSTRACT

This article deals with public waste policy in Portugal. Accordingly, the objectives of a public waste policy are to be redefined to minimize the effects of waste on human health and on the environment, which is associated with the preservation of natural resources. Objectives that have been inserted, more modernly, into the super-concept of circular economy.

Keywords: public policy; waste; waste prevention; waste management; circular economy.

Summary: 1. Public waste policy in Portugal: how to increases, focus and propose; 1.1. Waste as a subject of public policy; 1.2. How to increase public waste policy: waste law as a priority incremental means, among others, of public waste policy; 1.3. What is the public waste policy for? a) Notion of circular economy; b) In particular: circular economy as the end of public waste policy; 2. Waste prevention: the advanced protection of public waste policy and the circular economy; 3. Waste management; 3.1. Waste management activity; a) What is it? b) Who carries out, supervises, monitors and regulates waste management; 3.2. The legal regime for waste management as a public policy problem; a) The heart of the problem: the differentiation between general and special regimes as a public policy problem; b) The general waste management scheme; c) The subjective particularisms of urban waste management as a constitutional limit to public waste policy; d) Special schemes depending on the sector of activity and fundamental problems of the public policy of waste that they raise; e) Special schemes depending on the economic size of the waste stream and the complexity of management; f) The creation of standards in the specialty of hazardous waste as a political-legal problem: the strange case of CIRVER; 4) The framework for taxation in the waste sector as a problem of public waste policy; 5) Conclusion.

 

 

1. A política pública de resíduos em Portugal: como se incrementa, de que se ocupa e para quê


Se, para o Direito, política pública é o conjunto de ações, devidamente estudadas e articuladas, que os órgãos de condução política de uma comunidade entendem tomar na prossecução de fins de interesse geral recortados a partir de campos materiais da vida comum2; e na medida em que a regulação legal, e até jurisprudencial, é o modo por excelência de atingir objetivos relativos a interesses sociais e de controlar a esfera social, que é o que uma política pública intenta enquanto complexo de ações tendentes a esse controlo3 – mostrando-se a aparente separação entre o Direito e as políticas públicas tão-só tributária da circunstância de, até ao século XX, as que de entre as últimas encontraram no Direito o respetivo instrumento terem sido, de uma perspetiva sucessiva e monolítica, apenas as da garantia das posições jurídicas dos governantes ou dos governados baseadas numa ordem natural até ao século XVIII, ou as do interesse geral da segurança jurídica individual no século XIX4 –; no capítulo dos resíduos, a articulação de meios tendentes ao controlo dos interesses sociais correspondente pode ser identificada pela primeira vez, em Portugal, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 488/85, de 25 de novembro, o qual, como se lê no ponto 1 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, este último aprovando o regime geral da gestão de resíduos ainda hoje em vigor com sucessivas alterações, “foi (…) [aquele] por meio do [qual] o Regime Jurídico de Gestão de Resíduos foi pela primeira vez aprovado em Portugal”.

De então para cá, podem dividir-se os fins da política pública de resíduos, de uma perspetiva diacrónica, em:

(A) Fins de primeira geração, remontantes à regulação inicial da matéria dos resíduos pela então Comunidade Económica Europeia, como os da “menor produção de resíduos», da «sua reciclagem», da «eliminação dos não reciclados em condições de máximo aproveitamento do seu potencial energético», da «adequada proteção do ambiente», do «conhecimento real dos quantitativos de resíduos produzidos, sua caracterização destino final e seus responsáveis”, de “lançar as bases de um sistema de registo obrigatório de resíduos e definir competências e responsabilidade no domínio da gestão” (Decreto-Lei n.º 488/85), da harmonização normativa enquanto instrumento de eliminar disparidades regulatórias geradoras de desigualdades anticoncorrenciais no mercado comum, entre outros;

(B) Fins de segunda geração, cumulativos aos primeiros, identificados no ponto 1 do preâmbulo do ora vigente Regime Geral da Gestão de Resíduos (doravante RGGR), e originários da Diretiva n.º 2006/12/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, codificadora da dispersa regulamentação comunitária sobre resíduos, como os relativos “…ao princípio da prevenção, à prevalência da valorização dos resíduos sobre a sua eliminação e, no âmbito daquela, ao estabelecimento de uma preferência tendencial pela reutilização sobre a reciclagem, e de uma preferência tendencial da reciclagem sobre a recuperação energética”, entre outros;

(C) Fins de consolidação dos fins de segunda geração, epitomizados na proclamação preambular do Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho, nos termos da qual “O Governo considera prioritário reforçar a prevenção da produção de resíduos e fomentar a sua reutilização e reciclagem com vista a prolongar o seu uso na economia antes de os devolver em condições adequadas ao meio natural (…), considera importante promover o pleno aproveitamento do novo mercado organizado de resíduos como forma de consolidar a valorização dos resíduos, com vantagens para os agentes económicos, bem como estimular o aproveitamento de resíduos específicos com elevado potencial de valorização”, em transposição da Diretiva n.º 2008/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro, relativa aos resíduos” (doravante DQR);

(D) Fins de última geração da política de resíduos, quais sejam os sintetizados nos considerandos 1 a 3 da mais recente Diretiva da União Europeia relativa aos resíduos – Diretiva/UE/2018/851.

 

Assim, da preocupação inicial de eliminação dos resíduos e de concorrência no seu mercado quando os mesmos aí ocorressem, os fins da política pública de resíduos foram convergindo, posteriormente, em direção à valorização e prevenção, transformadoras dos resíduos em matérias-primas.

 

1.1 Os resíduos como objeto de política pública

Para efeitos quer da política pública de resíduos, quer da incrementadora legislação, resíduos são “quaisquer substâncias ou objectos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer “[n.º 1 do artigo 3.º da DQR e alínea ee) do artigo 3.º do RGGR, sendo que, em função das várias espécies de matérias deste tipo, se vão delimitando, como veremos, objetos e focos mais ou menos específicos da política pública de resíduos.

Para uma noção prática sobre o objeto da política pública sob tratamento, importante é destrinçar os resíduos, consoante a fileira, i.e., o tipo de material constituinte, em papel e cartão, vidro, metais, plásticos, biorresíduos, matéria orgânica, madeira ou têxteis (alínea n) do artigo 3.º do RGGR), bem como, consoante a direta função dos objetos de que provêm, em embalagens, resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, resíduos de pilhas e de acumuladores, resíduos volumosos incluindo colchões e mobiliário, lamas de depuração, veículos em fim de vida, resíduos de construção e demolição ou os resíduos gerados em processos de produção industrial.

Dentro desse contexto, outras distinções nos ocuparão no tratamento das questões na especialidade sobre a política pública de resíduos, como aquelas entre: (1) resíduos urbanos (definidos, por último, no n.º 2-B do artigo 3.º da DQR, na sua versão de 2018), industriais (definidos na alínea ii) do artigo 3.º do RGGR), hospitalares (com a definição resultante da alínea hh) do artigo 3.º do RGGR), de construção e de demolição (definidos na alínea gg) do artigo 3.º do RGGR) e agrícolas (idem, a alínea ff); (2) consoante a especificidade da respetiva regulação, resíduos componentes ou não componentes de fluxo específico, consoante sejam ou não regulados dentro de uma categoria cuja proveniência seja transversal às várias origens ou setores de atividade e sujeitos ou não a uma gestão específica (alínea o) do artigo 3.º do RGGR); (3) resíduos perigosos e não perigosos, consoante “…apresentem [ou não] uma ou mais das características de perigosidade enumeradas constantes do Regulamento (UE) n.º 1357/2014, da Comissão, de 18 de dezembro de 2014” (n.ºs 2 e 2-A do artigo 3.º da DQR e alínea l) do artigo 3.º do RGGR).

A Lista Europeia de Resíduos (LER) publicada pela decisão 2014/955/UE, da Comissão, de 18 de dezembro, que altera a decisão 2000/532/CE, da Comissão, de 3 de maio, referida no artigo 7.º da DQR – é uma lista harmonizada de resíduos que tem em consideração a origem e composição dos resíduos, identificando todos os tipos de resíduos conhecidos, nessa dúplice vertente, com a precedência de um código numérico – Código LER. Esta decisão é obrigatória e diretamente aplicável pelos Estados membros. Assim, a partir de 1 de junho de 2015 passou a aplicar-se diretamente a decisão referida, no que diz respeito à classificação LER, e consequentemente, foi revogado o anexo I da portaria n.º 209/2004, de 3 de março.

O resultado de uma política pública de resíduos cada vez mais orientada para a transmutação do resíduo em matéria-prima, ou pelo menos em algo valorizável do ponto de vista do seu aproveitamento económico, tem levado, outrossim, a uma definição de resíduos, nomeadamente no contexto da União Europeia ligado à delimitação de mercados relevantes, enquanto o desperdício com valor comercial, sendo que, historicamente, “O campo de aplicação da regulamentação sobre os «resíduos» foi objeto de múltiplos contenciosos apresentados ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que [, inclusivamente, nos anos 90,] julgou que as terras poluídas por essas substâncias deviam ser equiparadas a resíduos”5. Fruto desta evolução da política pública europeia e nacional, pode dizer-se, utilizando o paralelo conceptual de Philip Kunig6, que o conceito de «resíduo» deixou de compreender «o lixo» para passar a abranger uma das fases «do ciclo da gestão de materiais».

 

1.2 Como se incrementa a política pública de resíduos: o Direito dos Resíduos enquanto meio incremental prioritário, entre outros, da política pública de resíduos

Intentou-se já demonstrar, na divisão introdutória do presente trabalho, o quanto o complexo de meios utilizados para fazer valer fins no âmbito da política pública de resíduos, desde os anos 1980, em Portugal, e fruto da influência comunitária, foi beber à consolidação de um Direito dos Resíduos.

Os textos explicativos dos diplomas componentes desse Direito revelam a importância da regulação jurídica como principal meio ao serviço da política pública: em verdade, estão em causa, como vimos, constantes objetivos de regulação comportamental, unificação e harmonização, fiscalização ou sanção e até incentivo dentro de regras uniformes, uniformidade essa que só o Direito propicia enquanto modo regulador da vida em sociedade.

 

1.3 Para que serve a política pública de resíduos?

a) Noção de economia circular

Através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, de 11 de dezembro, pela qual se aprovou o Plano de Ação Para a Economia Circular em Portugal (doravante PAEC), o Governo, na condução da política pública de resíduos, vem afirmar, preambularmente à aprovação desse plano, que “A economia circular, preconizada no Programa do XXI Governo Constitucional, é um conceito estratégico que assenta na prevenção, redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais e energia”, bem como que, “Substituindo o conceito de «fim-de-vida» da economia linear por novos fluxos circulares de reutilização, restauração e renovação, num processo integrado, a economia circular é vista como um elemento-chave para promover a dissociação entre o crescimento económico e o aumento no consumo de recursos, relação tradicionalmente vista como inexorável”.

Mesmo em Portugal, apesar de só ter sido objeto de um plano que lhe fosse exclusivamente dedicado em 2017, o conceito de economia circular penetrou ainda antes da planificação europeia em torno dos objetivos nele congregados, ainda que fruto da inspiração colhida nos referidos trabalhos preparatórios acabados de citar. Assim, o Plano Nacional de Gestão de Resíduos para 2014/2020 e o PERSU 2020, de 2014, já acolhem expressamente e versam estrategicamente o conceito de economia circular.

Trata-se, aliás, de um conceito que, muito embora com as suas extensão e compreensão descritas sob outros termos em tempos precedentes, surge pela primeira vez definido, com referente expresso no termo “economia circular”, por Pearcee Turner, em 19907.

Como é evidente, a relação entre a economia circular e a política pública em matéria de resíduos é não menos do que coexistencial. Contudo, nos vários instrumentos de políticas públicas, ela é tratada na especialidade, tal como se verá já de seguida.

 

b) Em especial: economia circular como fim da política pública de resíduos

Segundo os passos mais fundamentais da Introdução ao Plano de Ação da UE para a Economia Circular, de 2015: (I) na “…economia circular (…) o valor dos produtos, materiais e recursos se mantém na economia o máximo de tempo possível e a produção de resíduos se reduz ao mínimo”; (II) “O intuito é assegurar o quadro normativo adequado para o desenvolvimento da economia circular no mercado único e dar sinais claros aos operadores económicos e à sociedade em geral sobre a via a seguir, com objetivos de longo prazo para os resíduos”; (III) “As propostas legislativas relativas aos resíduos, adotadas juntamente com este plano de ação, incluem objetivos de longo prazo para reduzir a deposição em aterros e aumentar a preparação para a reutilização e a reciclagem dos principais fluxos de resíduos, como os resíduos urbanos e os resíduos de embalagens [, sendo que: (1)] Os objetivos deverão levar os Estados-Membros a convergirem progressivamente em relação aos melhores níveis de práticas e incentivar o investimento na gestão dos resíduos [; tal como (2) se] Propõem (…) outras medidas para tornar a execução clara e simples, promover incentivos económicos e melhorar os regimes de responsabilidade alargada do produtor”.

Com uma centralidade histórica no Direito e na política de resíduos, embora aqui chamada a propósito do superconceito de economia circular que a «omnicompreendeu»,e sendo um princípio que, na sua formulação literal quer do artigo 4.º da DQR, quer do artigo 7.º do RGGR, se dirige quer à política, quer à legislação, em matéria de resíduos, a hierarquia dos resíduos concretiza-se no comando segundo o qual “A política e a legislação em matéria de resíduos devem respeitar a (…) ordem de prioridades no que se refere às opções de prevenção e gestão de resíduos (…) [que privilegia, em primeiro lugar, a] (…) Prevenção e [a] redução [, depois delas a] (…) Preparação para a reutilização [, apenas na impossibilidade desta preparação a] (…) Reciclagem [, inferiormente a à reciclagem admite] (…) Outros tipos de valorização [, para só mediante a inviabilidade de quaisquer outros meios a facultar a admissão do recurso à] (…) Eliminação”.

Segundo uma proposição interpretativa que tem feito escola em Portugal, a hierarquia dos resíduos “ordena a escolha, em cada caso concreto, do meio de gestão de resíduos que mais afaste, os materiais, da entropia”, prevendo “soluções alternativas sucessivas correspondentes a níveis de uma pirâmide de soluções de gestão anabólica de resíduos, com clara prevalência para as opções situadas no topo da pirâmide”8.

A formulação deste princípio de política pública de resíduos, em cuja cabeça assentou na perfeição o chapéu da economia circular, é ainda complementada por uma cláusula de salvaguarda, enunciada tanto no n.º 2 do artigo 4.º da DQR, como nos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º do RGGR, a prescrever que, “No caso de fluxos específicos de resíduos, a ordem de prioridades estabelecida (…) pode não ser observada desde que as opções adotadas se justifiquem pela aplicação do conceito de ciclo de vida aos impactes globais da produção e gestão dos resíduos em causa [,] (…) tidos em consideração princípios gerais de proteção do ambiente, da precaução e da sustentabilidade, a exequibilidade técnica e a viabilidade económica, bem como a proteção dos recursos e os impactes globais no ambiente, na saúde humana e sociais…”; formulação que legitima a doutrina a qualificar, mais uma vez em jeito de proposição interpretativa, a hierarquia como “preferência tendencial e não absoluta (…) [:] a resposta depende dos custos ecológicos do processo”9.

As consequências da relação entre hierarquia e economia circular, tiradas no próprio Plano de Ação da UE, serão analisadas nos pontos deste trabalho dedicados ao tratamento de aspetos da política pública de resíduos na especialidade, mas a ideia fundamental fica: no quadro atual desta política pública, a hierarquia na gestão de resíduos é o braço jurídico-principiológico da economia circular enquanto fim de política pública.

Este enlace entre economia circular e política pública de resíduos é, mutatismutandis, replicado no PAEC, em 2017.

Já quanto à introdução da noção de economia circular na política pública de resíduos do ponto de vista dos instrumentos específicos dessa política pública, ela ocorre, com sistematicidade, ao nível do Direito Europeu, no texto da Diretiva (UE) 2018/851 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio, nos termos de cujos considerandos é em função da economia circular que a gestão de resíduos deverá ser transformada em gestão dos círculos dos materiais (considerando 1), as metas da DQR relativas à preparação para a reutilização e à reciclagem de resíduos deverão ser aumentadas” (considerando 3), concretizado, ao nível dos resíduos urbanos, nos considerandos 43 e 44), se há-de avaliar o contributo dos sistemas de gestão de resíduos independentemente da repartição de responsabilidades pela gestão de resíduos entre intervenientes públicos e privados (considerando 7), e se há-de calibrar inclusivamente a noção de resíduo e o modelo de negócio à mesma associado (considerando 61).


2. Prevenção de resíduos: a guarda avançada da política pública de resíduos e da economia circular

Nos termos da definição europeia e nacional vigente, entende-se por prevenção de resíduos “…a adoção de medidas antes de uma substância, material ou produto assumir a natureza de resíduo, destinadas a reduzir:

i) A quantidade de resíduos produzidos, designadamente através da reutilização de produtos ou do prolongamento do tempo de vida dos produtos;

ii) Os impactes adversos no ambiente e na saúde humana resultantes dos resíduos produzidos; ou

iii) O teor de substâncias nocivas presentes nos materiais e nos produtos” (cfr. a alínea x) do artigo 3.º do RGGR, em direta transposição do n.º 12 do artigo 3.º da DQR).

“A prevenção de resíduos, do ponto de vista das políticas públicas, é levada a cabo fundamentalmente através de programas à mesma destinados, suscetíveis de integração nos planos de gestão de resíduos há pouco mencionados, estabelecendo metas e medidas em matéria de prevenção que têm por fim dissociar o crescimento económico dos impactos ambientais relacionados com a geração de resíduos” (artigo 29.º da DQR).

O fim da prevenção de resíduos consiste, por conseguinte, e em linguagem prática, em evitar o fabrico de produtos de que as pessoas tenham de se desfazer, por mais duráveis ou recuperáveis. É que, tal como se pode ler no Subcapítulo 5.2.1. do PNGR, “A prevenção de resíduos implica a sua redução na fonte e, consequentemente, a eliminação ou redução da necessidade de reciclar, incinerar ou depositar em aterro”.

Em Portugal, assumida que foi, com base no artigo 17.º do RGGR, a opção de integração dos programas de prevenção nos planos de gestão de resíduos, temos que, quer o subcapítulo 5.2. do PNGR, quer o subcapítulo 7.1. do PERSU, constituem exemplos de medidas como as descritas no anexo IV da DQR, a que se associa, como desiderato, a obtenção de metas concretas em determinado período de tempo.

Finalmente, vemos que é a prevenção de resíduos, enquanto modo de evitar a produção de resíduos e/ou a perigosidade dos mesmos, que está em causa no planeamento da economia circular, quando o mesmo, quer ao nível europeu, quer ao nível nacional (cfr. o Capítulo 3 do PAEC, omnicompreensiva das referências seguintes) se vocaciona para regular, de molde a que “a produção de resíduos se reduz[a] ao mínimo” a conceção dos produtos (subcapítulo 1.1. do Plano de Ação da UE para a Economia Circular), e os processos de produção (idem, 1.2.), o consumo (idem, 2), a gestão de resíduos (idem, 3) e o impulso a um mercado de matérias-primas obtidas através de resíduos e não de recursos naturais primários (idem, 4).

Dentro das políticas públicas de prevenção de resíduos, especial atenção é dedicada aos resíduos alimentares, formulada, enquanto desígnio de política pública, nos considerandos 31 e 32 da Diretiva 2018/851.

Os objetivos de política pública de resíduos acabados de descrever são formulados, sob a forma de diretrizes aos Estados-membros, no artigo 9.º da DQR, tal como resulta da sua reformulação aprovada pela Diretiva n.º 2018/851, e já foram objeto de adoção em Portugal.

 

3. Gestão de resíduos

3.1. A atividade de gestão de resíduos

a) O que é?

Segundo a definição mais acabada de gestão de resíduos, constante do n.º 9 do artigo 3.º da DQR, tal como alterado em 2018, compreendem-se nesta atividade “a recolha, o transporte, a valorização (incluindo a triagem), e a eliminação de resíduos, incluindo a supervisão destas operações, a manutenção dos locais de eliminação após encerramento e as medidas tomadas na qualidade de comerciante ou corretor”.

Assim, ao nível da recolha de resíduos, que é normativamente definida como “a coleta de resíduos, incluindo a triagem e o armazenamento preliminares dos resíduos, para fins de transporte para uma instalação de tratamento de resíduos” (cfr. n.º 10.º do artigo 3.º da DQR e alínea cc) do artigo 3.º do RGGR), as grandes diretrizes em matéria de política pública de resíduos são, na atualidade, as formuladas nos considerandos da Diretiva 2018/851.

Os pontos subsequentes de uma análise de política pública de resíduos com maior relevância pertencem, naturalmente, ao domínio do tratamento dos resíduos, o qual abrange, nos termos da definição constante do n.º 14.º do artigo 3.º da DQR e da alínea oo) do artigo3.º do RGGR, “qualquer operação de valorização ou de eliminação, incluindo a preparação prévia à valorização ou eliminação”.

Aqui, o primeiro desiderato a ter em conta é, agora no estrito domínio da gestão, embora com evidente link para o da prevenção, o já tratado princípio da hierarquia dos resíduos, que encontra formulação concretizadora, desde logo, na diretriz de política pública segundo a qual “Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que os resíduos são objeto de preparação para a reutilização, de reciclagem ou de outras operações de valorização, nos termos dos artigos 4.º e 13.º” (cfr. o n.º 1 do artigo 10.º da DQR, na sua versão de 2018); do mesmo passo que, correlatamente, “… asseguram que os resíduos são sujeitos a operações de eliminação segura que cumpram o disposto no artigo 13.º relativo à proteção da saúde humana e do ambiente, quando não tiver sido efetuada a valorização a que se refere o artigo 10.º, n.º 1” (cfr. o n.º 1 do artigo 12.º da DQR, igualmente na sua versão de 2018), tidos em conta os conceitos normativos de «valorização» (n.º 15 do artigo 3.º da DQR e alínea qq) do artigo 3.º do RGGR) – “compreendendo quer a valorização material, que inclui a preparação para a reutilização, a reciclagem e o enchimento, [além de] (…) outras formas de valorização (…) como o reprocessamento de resíduos em matérias-primas secundárias para fins de engenharia em construção de estradas ou outras infraestruturas” (cfr. o n.º 15-A do artigo 3.º da DQR, na sua versão introduzida pela Diretiva 2018/851, bem como o considerando 12 desta última Diretiva), quer “a valorização energética [e] (…) o reprocessamento em materiais que serão utilizados como combustíveis ou outros meios de produção de energia” (idem) - e de «eliminação» (cfr. a alínea 19 do artigo 3.º da DQR e o respetivo anexo I, bem como a alínea m) do artigo 3.º do RGGR).

Estas declarações de princípio são complementadas com proibições estritas de operações de gestão de resíduos e com o estabelecimento de metas ao nível do acréscimo ou decréscimo de certas outras operações.

A lógica da hierarquia, reforçada pela da economia circular, explica que as proibições e as metas de decréscimo se apliquem, por definição, às operações de eliminação. Assim, do Anexo I da DQR, com as suas remissões, resulta, no essencial, que só a deposição em aterro e a incineração em terra são operações de gestão de resíduos toleradas – que não largamente permitidas – pelo ordenamento jurídico: dizemos toleradas porque mesmo estes dois tipos de operações de eliminação acabam por se encontrar limitados, quer por proibições, quer por objetivos de política pública diretamente destinados ao decréscimo do respetivo volume, quer ainda por objetivos de política pública vocacionados para o incremento de operações de valorização que significam correlatamente esse decréscimo de volume.

É em vista de semelhantes fins da política pública de resíduos delineados nos instrumentos da União Europeia que, em Portugal, nomeadamente no PERSU 2020+10, se encontram delineadas medidas congeneremente pertencentes a essa política pública, tais como, por exemplo:

(I) Ao nível regional

(i) Na Região Norte, “a instalação Unidade de valorização orgânica para 100000 t/ano, o incremento de «Programas de compostagem caseira e comunitária» e a instalação de uma Unidade de valorização energética para 200000 t/ano, preferencialmente na LIPOR” (cfr. n.º 338 do subcapítulo 6.3.1.);

(ii) Na Região Centro, em investimentos “Em 2 Unidades de Compostagem nos SGRU do interior (100000 t/ano); (…) Em Programas de compostagem caseira e comunitária nas áreas rurais; (…) Na Secagem e produção de CDR (50000 t/ano); (…) [e] Numa Unidade de afinação de composto” (n.º 348 do subcapítulo 6.3.2.);

(iii) Na Região de Lisboa e Vale do Tejo, investimentos “Em 2 Unidades de valorização orgânica para um total de 50000 t/ano; [e] (…) Em 2 Unidades de Secagem CDR para 100000t/ano” (n.º 356 do subcapítulo 6.3.3);

(iv) No Alentejo, “Projetos de compostagem caseira e comunitária nos núcleos rurais (…) [e investimento em] Unidade para secagem de CDR ou articulação de soluções com unidades industriais que promovam a utilização dos CDR atualmente produzidos (cimenteiras, centrais de produção de energia elétrica)” (n.º 366 do subcapítulo 6.3.4); e

(v) No Algarve, investimentos em “Unidade de valorização orgânica de resíduos com capacidade para 20000 t/ano; (…) Projetos de compostagem caseira e comunitária nos núcleos (a norte da A22); [e] (…) Unidade para secagem de CDR ou articulação de soluções com unidades de CDR (cimenteira, centrais de produção de energia elétrica)”;

(vi) “Projeto piloto para avaliar a possibilidade de adaptação da Central Termoelétrica da EDP (em Sines) para tratamento (por gaseificação ou processo análogo) dos refugos das regiões do Alentejo e Algarve” (n.º 394 do Capítulo 7);

(II) O mapeamento de biorresíduos, a “readaptação das unidades de TMB para passarem a tratar resíduos provenientes da recolha seletiva de biorresíduos numa perspetiva sustentável que permita conjugar e otimizar o investimento”, e “a promoção de novos mercados e de novos processos de tratamento para os biorresíduos potenciando produtos de maior valor acrescentado” (Subcapítulo 7.1.2.);

(III) A avaliação da “…possibilidade de utilização de CDR com origem em RU ou da própria "Fração Resto" noutros setores industriais, nomeadamente em unidades de cogeração, ponderando- se a possibilidade de adaptação tecnológica de unidades industriais com potencial de utilização destas frações” (n.º 420 do subcapítulo 7.1.3.);

(IV) “Para que exista um aumento da capacidade de valorização energética por coprocessamento [,] (…) especificações técnicas para os CSR e para os CDR de modo a habilitar a sua utilização em substituição dos combustíveis fósseis tradicionais” (idem, n.º 421);

(V) “Medidas de incentivo à utilização do CDR nacional prosseguindo os princípios da proximidade e autossuficiência nacional” (idem, 423);

(VI) “Assegurar um processo remuneratório da produção de eletricidade a partir de RU” (cfr. subcapítulo 7.1.4.);

(VII) Aprovar “legislação específica [que torne] (…) possível que cadernos de encargos e respetivos concursos públicos contenham (…) obrigatoriedade de utilização de matérias-primas secundárias” e “potenciar a incorporação de agregados de escórias de incineração, quando tecnicamente adequado em utilizações específicas designadamente na construção civil e obras públicas”, a par do “…desenvolvimento de programas de financiamento à «certificação de materiais» em quantidades relevantes” (subcapítulo 7.1.5);

(VIII) Promover, no contexto do PO SEUR, “projetos de otimização de infraestruturas e equipamentos valorizando a sua partilha entre SGRU e entre SGRU e municípios”.

São estas as diretrizes da política pública de resíduos em tema da respetiva gestão mais alinhadas com o influxo da economia circular enquanto fim omnicompreensivo dessa mesma política.

Tudo isto sem esquecer que, à conceção matricial do RGGR, ainda hoje em vigor em Portugal como estrutura de produção de efeitos jurídicos no setor dos resíduos, presidiu a diretriz de política pública, epitomizada no considerando 1 da DQR e prescritiva do estabelecimento do “…enquadramento legal para o tratamento dos resíduos [, pelo qual se definem] (…) i) conceitos-chave, como os de resíduo, valorização e eliminação, e estabelece os requisitos essenciais para a gestão de resíduos, nomeadamente a obrigação de um estabelecimento ou uma empresa que efectue operações de gestão de resíduos estar licenciado ou registado e a obrigação de os Estados-Membros elaborarem planos de gestão de resíduos; ii) princípios fundamentais, como a obrigação de tratamento dos resíduos de uma forma que não tenha impactos negativos no ambiente e na saúde humana, a hierarquia dos resíduos e, de acordo com o princípio do «poluidor-pagador», a exigência de que os custos da eliminação dos resíduos sejam suportados pelo seu detentor actual, pelos anteriores detentores dos resíduos ou pelos produtores do produto que deu origem aos resíduos”.

Uma malha tão apertada em termos de metas e proibições não tem ainda assim evitado por exemplo que, segundo dados da APA, relativos a 2018, a deposição em aterro se situe em 33,4% do total de resíduos urbanos geridos, tendo aumentado desde 2016, data em que o referido valor se situava em 29%, além do que “Em relação aos destinos diretos de RU, é também possível verificar que a deposição direta em aterro aumentou de 32% em 2017 para 33,4% em 2018”11.

Outros aspetos de política pública de resíduos no tocante à respetiva gestão merecerão, de seguida, pela sua relevância e autonomia, tratamento na especialidade.

 

b) Quem desempenha, fiscaliza, acompanha e regula a gestão de resíduos

O essencial das diretrizes de política pública dos resíduos neste domínio particular encontra-se, ainda hoje, repartido entre os artigos 15.º, 23.º, 34.º e 35.º da DQR, nos termos de cujas disposições fundamentais os Estados-membros:

(1) “…tomam as medidas necessárias para assegurar que o produtor inicial dos resíduos ou outros detentores procedam eles próprios ao tratamento dos resíduos ou confiem esse tratamento a um comerciante ou a um estabelecimento ou empresa que execute operações de tratamento de resíduos, ou a um serviço de recolha de resíduos público ou privado, nos termos dos artigos 4.º e 13.º” (cfr. n.º 1 do artigo 15.º);

(2) “…podem estabelecer, nos termos do artigo 8.º, que a responsabilidade pela gestão de resíduos caiba no todo ou em parte ao produtor do produto que deu origem aos resíduos e que os distribuidores desse produto possam partilhar essa responsabilidade” (idem, n.º 3);

(3) “tomam as medidas necessárias para assegurar que, no respectivo território, os estabelecimentos ou empresas que procedem, a título profissional, à recolha ou transporte de resíduos entreguem os resíduos recolhidos e transportados em instalações de tratamento adequadas que cumpram o disposto no artigo 13.º” (idem, n.º 4);

(4) “…exigem que todos os estabelecimentos ou empresas que tencionem proceder ao tratamento de resíduos obtenham uma licença da autoridade competente” (n.º 1 do artigo 23.º); e

(5) atribuem a essa autoridade competente competências de fiscalização e registo (cfr. artigos 34.º e 35.º).

Surpreendem-se esclarecedoras e atualizadas explicações destas opções de política pública em certos considerandos da Diretiva 2018/851, nomeadamente naqueles onde se lê que “…a decisão relativa à repartição de responsabilidades depende frequentemente de condições geográficas e estruturais” (cfr. considerando n.º 7), “As regras estabelecidas na presente diretiva permitem (…) qualquer (…) tipo de repartição de responsabilidades entre intervenientes públicos e privados (idem)”, “Deverá ser introduzida uma definição de regime de responsabilidade alargada do produtor para clarificar que se trata de um conjunto de medidas tomadas pelos Estados-Membros que exigem dos produtores de produtos que assumam a responsabilidade financeira ou a responsabilidade financeira e organizacional pela gestão da fase «resíduos» do ciclo de vida de um produto, incluindo as operações de recolha seletiva, triagem e tratamento” (cfr. considerando 14); “As autoridades públicas desempenham um papel importante na organização da recolha e do tratamento dos resíduos urbanos e na comunicação com os cidadãos sobre a matéria [, pelo que] (…) As disposições relativas à responsabilidade financeira dos produtores de produtos introduzidas como parte integrante dos requisitos gerais mínimos aplicáveis aos regimes de responsabilidade alargada do produtor deverão ser aplicáveis sem prejuízo da competência das autoridades públicas no que respeita à recolha e tratamento dos resíduos urbanos” (cfr. considerando 23); Deve ser assegurada a continuidade dos serviços ao longo do ano pelos titulares da responsabilidade alargada do produtor e estes não podem fracionar a respetiva atividade em função da rentabilidade de alguns dos seus subcomponentes geográficos ou materiais (cfr. considerando 25), e “Os produtores de produtos deverão suportar os custos necessários para cumprir as metas de gestão de resíduos e outras metas e objetivos, inclusive em matéria de prevenção de resíduos, definidos para o regime de responsabilidade alargada do produtor pertinente [, sendo que,] (…) Em condições estritas, esses custos poderão ser partilhados com os produtores iniciais dos resíduos ou os distribuidores, caso se justifique pela necessidade de assegurar a gestão adequada dos resíduos e a viabilidade económica do regime de responsabilidade alargada do produtor” (considerando 26).

O legislador português deu, no essencial, corpo às diretrizes políticas da DQR, tendo optado por aprovar previsões segundo as quais:

(1) “A responsabilidade pela gestão dos resíduos, incluindo os respectivos custos, cabe ao produtor inicial dos resíduos, sem prejuízo de poder ser imputada, na totalidade ou em parte, ao produtor do produto que deu origem aos resíduos e partilhada pelos distribuidores desse produto se tal decorrer de legislação específica aplicável” (cfr. artigo 5., n.º 1);

(2) “Exceptuam-se do disposto no número anterior os resíduos urbanos cuja produção diária não exceda 1100 l por produtor, caso em que a respectiva gestão é assegurada pelos municípios” (idem, n.º 2);

(3) “Em caso de impossibilidade de determinação do produtor do resíduo, a responsabilidade pela respetiva gestão recai sobre o seu detentor” (idem, n.º 3);

(4) “Quando os resíduos tenham proveniência externa, a sua gestão cabe ao responsável pela sua introdução em território nacional, salvo nos casos expressamente definidos na legislação referente à transferência de resíduos” (idem, n.º4);

(5) “O produtor inicial dos resíduos ou o detentor devem, em conformidade com os princípios da hierarquia de gestão de resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, assegurar o tratamento dos resíduos, podendo para o efeito recorrer (…) A um comerciante ou a uma entidade que execute operações de recolha de resíduos [,] (…) A uma entidade licenciada que execute operações de tratamento de resíduos [, ou] (…) A uma entidade licenciada responsável por sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos”, sendo que “A responsabilidade pela gestão dos resíduos, conforme definido nos n.ºs 1 e 3 do presente artigo, extingue-se pela transferência para uma das entidades referidas nas alíneas b) e c) do número anterior” (idem, n.ºs 5 e 6);

(6) “As pessoas singulares ou coletivas que procedem, a título profissional, à recolha ou transporte de resíduos devem entregar os resíduos recolhidos e transportados em operadores licenciados para o tratamento de resíduos” (idem, n.º 7), nos termos dos artigos 23.º e seguintes do RGGR;

(7) “Compete ao organismo com atribuições na área dos resíduos tutelado pelo ministério responsável pela área do ambiente, enquanto Autoridade Nacional dos Resíduos, doravante designada ANR, assegurar e acompanhar a implementação de uma estratégia nacional para os resíduos, mediante o exercício de competências próprias de licenciamento, da emissão de normas técnicas aplicáveis às operações de gestão de resíduos, do desempenho de tarefas de acompanhamento das actividades de gestão de resíduos, de uniformização dos procedimentos de licenciamento e dos assuntos internacionais e comunitários no domínio dos resíduos” (artigo 11.º);

(8) O licenciamento dos operadores de gestão de resíduos insere-se, em termos de competências, no regime jurídico do Licenciamento Único Ambiental (LUA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 75/2015, de 11 de junho;

(9) À Entidade Reguladora dos Serviços de Água e dos Resíduos cabe, por seu turno, auditar e fiscalizar tarifas de gestão de resíduos cobradas por entes públicos, seus delegados ou concessionários, fiscalizar a legalidade em matéria de contratos públicos no setor, controlar a qualidade do serviço prestado às populações, assegurar os direitos dos utilizadores no tocante a tarifas e qualidade do serviço (cfr. os n.ºs 3 a 5 do artigo 5.º da Lei n.º 10/2014, de 6 de março) e aprovar regulamentos tarifários e de relações comerciais entre utilizadores e serviços públicos no domínio dos resíduos (idem, artigo 11.º); e

(9) A Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos (doravante CAGER), nos termos do artigo 50.º do RGGR, tem, além de competências consultivas e de acompanhamento, uma competência, por assim dizer, arbitral de conflitos entre intervenientes privados no mercado da gestão de resíduos, em termos a explicitar infra (cfr. o n.º 1 do artigo 50.º do RGGR).

Intervêm pois na gestão de resíduos, e em suma: (i) os responsáveis pela sua gestão enquanto seus produtores ou detentores; (2) os responsáveis pela sua gestão por serem produtores dos produtos de que os mesmos resultam, quando legislação especial o determine; (iii) os Municípios, enquanto responsáveis excecionais pela gestão de resíduos, no âmbito específico dos resíduos urbanos; (iv) os operadores de gestão de resíduos, que prestam serviços técnicos e materiais de gestão de resíduos como seu objeto social a quantos são responsáveis por essa gestão; (v) as entidades licenciadoras/fiscalizadoras da gestão material de resíduos; (vi) o regulador da prestação do serviço público de gestão de resíduos, na vertente da recolha, frente aos respetivos utilizadores privados; e (vii) o regulador entre agentes privados no mercado da gestão de resíduos, máxime em matéria de assunção de responsabilidades dos produtores dos produtos que os tenham originado.

Naturalmente, toda esta mole de pessoas e entidades a agirem num mesmo âmbito origina intrincados problemas de políticas públicas e seus limites jurídicos, que cumprirá referenciar, ainda que brevemente.

Contudo, certos desses problemas merecerão tratamento na especialidade, nomeadamente os que se referem: (A) à gestão dos resíduos urbanos pelos municípios, máxime ao nível da recolha, gestão essa que é tratada, pelo n.º 2 do artigo 5.º do RGGR, literalmente como uma exceção à responsabilidade do produtor ou do detentor dos resíduos12; e (2) à também tratada como especialidade, desta feita pela parte final do n.º 1 do mesmo artigo, mas também face ao regime geral da responsabilidade do produtor do resíduo, responsabilidade alargada do produtor do produto de a partir do qual o resíduo teve origem, a qual é associada, em tal norma remissiva, à gestão dos fluxos específicos de resíduos, a cujo propósito é delimitada também a competência arbitral da CAGER, tal qual se encontra formulada na alínea f) do n.º 1 do artigo 50.º do RGGR13.

Com estrito âmbito geral quanto aos atores da gestão de resíduos, foram recentemente, de modo curioso, levantadas algumas objeções de política pública e correlatas pistas de reforma no PERSU 2020+ a propósito do modelo de governance pública dessa mesma gestão – licenciamento, fiscalização, de harmonia com as quais:

- “Do ponto de vista operacional, verifica-se que os esforços de harmonização de licenças e critérios de interpretação do regime geral de gestão de resíduos necessitam de uma maior e melhor articulação. O facto de as CCDR estarem dependentes de diferentes áreas governativas não favorece a agilidade de articulação e decisão com a área do Ambiente” (n.º 349 do subcapítulo 7.1.7).

- “Importa, face ao exposto, reavaliar as competências de licenciamento no sentido da sua harmonização e simplificação assim como as competências de fiscalização e de apoio ao planeamento em matéria de resíduos” (idem, n.º 457).

 

3.2 O regime jurídico da gestão de resíduos como problema de políticas públicas

a) O coração do problema: a diferenciação entre regime geral e regimes especiais como problema de política pública

Sabemos já que, quer no que respeita à recolha de resíduos urbanos, quer no que respeita à responsabilidade alargada do produtor, as diretivas europeias sobre políticas públicas de resíduos deixaram ao legislador nacional espaço para o mesmo introduzir, sem a tal o obrigarem, especialidades face a um padrão geral que seria o fornecido pelos artigos 15.º e 23.º da DQR. Ora o legislador do regime geral entendeu, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 5.º do RGGR abrir remissivamente o regime geral da gestão de resíduos a semelhantes especialidades, pelas razões a explicitar infra de seguida14.

Também do artigo 43.º do RGGR decorre outra abertura a regimes especiais, designadamente ao nível da disciplina do licenciamento das operações de gestão de resíduos, ao dispor-se naquele preceito que “A instalação e a exploração de CIRVER e as operações de valorização agrícola de lamas de depuração, de gestão de resíduos hospitalares, de gestão de resíduos gerados em navios, de incineração e co-incineração de resíduos e de deposição de resíduos em aterro encontram-se sujeitas a licenciamento nos termos da legislação e regulamentação respectivamente aplicáveis, aplicando-se o disposto no presente capítulo em tudo o que não estiver nela previsto”.

Idêntica remissão, aliás, é inserida no RGGR sobre a imersão de resíduos em águas, no artigo 73.º.

Central, a este propósito, como veremos de seguida, é a norma remissiva do n.º 1 do artigo 44.º, de harmonia com cujo dispositivo “A gestão de fluxos específicos de resíduos está sujeita a licença ou autorização nos termos da legislação especial, aplicando-se as disposições do presente decreto-lei a tudo o que não estiver nela previsto”.

Dentro do próprio RGGR há normas aplicáveis apenas a categorias particulares de resíduos, tal como se verifica relativamente aos resíduos perigosos15.

O que há a registar é que as razões da especialização de regimes são, sempre, como se verá, razões de política pública.

 

b) O regime geral da gestão de resíduos

Sabemos já que o Regime Geral da Gestão de Resíduos, em Portugal, baseado nos artigos 15.º e 23.º do RGGR, se exprime, em traços largos, na responsabilidade do produtor inicial dos resíduos ou, não se podendo identificar este, do detentor dos resíduos, pela sua gestão, incluindo os respetivos custos (parte inicial do n.º 1 e n.º 3 do artigo 5.º), responsabilidade esta a cuja luz aqueles devem, em conformidade com os princípios da hierarquia de gestão de resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, assegurar o tratamento dos resíduos, podendo para o efeito recorrer (…) A um comerciante ou a uma entidade que execute operações de recolha de resíduos [, ou ainda] (…) A uma entidade licenciada que execute operações de tratamento de resíduos, e que se extingue pela transferência para uma entidade licenciada para o tratamento de resíduos (idem, n.ºs 5 e 6), note-se bem, obrigatoriamente licenciada (n.º 7 do artigo 5.º, artigos 23.º e seguintes).

As razões de política pública que têm conduzido, agora o Direito dos Resíduos, a desvios pontuais a este esquema, são as que ocuparão as rubricas seguintes.

 

c) Os particularismos subjetivos da gestão dos resíduos urbanos como limite constitucional à política pública de resíduos

Depois de uma longa metamorfose, o conceito de resíduo urbano é hoje fixado pela DQR, na sua versão de 2018, máxime no n.º 2-B. do seu artigo 3.º, como abrangendo “Resíduos de recolha indiferenciada e resíduos de recolha seletiva das habitações, incluindo papel e cartão, vidro, metais, plásticos, biorresíduos, madeira, têxteis, embalagens, resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, resíduos de pilhas e de acumuladores, bem como resíduos volumosos, incluindo colchões e mobiliário [; além de] (…) Resíduos de recolha indiferenciada e resíduos de recolha seletiva de outras origens, caso sejam semelhantes aos resíduos das habitações em termos de natureza e composição; [mas sempre excluindo] (…) os resíduos da produção, da agricultura, da silvicultura, das pescas, de fossas séticas ou redes de saneamento e tratamento, incluindo as lamas de depuração, os veículos em fim de vida nem os resíduos de construção e demolição”.

É no próprio parágrafo final da alínea b) deste número 2-B que se pode ler que “A presente definição aplica-se sem prejuízo da repartição de responsabilidades pela gestão de resíduos entre intervenientes públicos e privados”.

Ora, os problemas que se colocam ao nível da política pública de gestão de resíduos urbanos em Portugal reconduzem-se, no seu núcleo fundamental, à existência ou não de uma reserva municipal da recolha de resíduos urbanos, pois que, consoante se pode ler no ponto 17 da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 707/2017, de 8 de novembro, proferido no n.º 749/2015, em fiscalização sucessiva abstrata, “a atribuição aos municípios de competências em matéria de abastecimento e de saneamento é efetuada, ao abrigo do disposto no artigo 235.º, n.º 2, da Constituição, em função dos «interesses próprios das populações respetivas», isto é, de interesse meramente local”.

Pode então afirmar-se que a opção de política pública de resíduos consistente em cometer a recolha de resíduos urbanos aos Municípios, em contrariedade ao princípio geral da responsabilidade do produtor ou do detentor do resíduo pela sua gestão, é um desiderato da autonomia local que, por sua vez, protege o interesse próprio de cada membro da população de algum modo conexa com o espaço de jurisdição, in casu, do Município.

Mas sendo assim, coloca-se a questão de saber, em Portugal, se alguma parte da responsabilidade pela gestão de resíduos urbanos pode ser cometida a outros entes públicos, ou até a privados. No citado Acórdão n.º 707/2017, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de que “, «…quando está em causa o interesse geral, de âmbito nacional, o Estado pode intervir nos setores em questão, desde que (…) não restrinja excessivamente as competências municipais”, podendo intervir quer ao abrigo do “artigo 9.º, alínea d), da Constituição, segundo o qual é uma tarefa fundamental do Estado «[p]romover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais»” – em concretização de direitos tais como, da perspetiva do Acórdão, os direitos à saúde e ao ambiente –; quer “…de acordo com o disposto na alínea e) do n.º 2 [do artigo 66.º, em cujos termos] (…), «[p]ara assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos», «[p]romover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana[,] (…) Não pode[ndo] passar despercebida, nesta norma, a previsão explícita de uma colaboração entre o Estado e as autarquias locais”.

Está, pois, sancionada por esta via a solução, consagrada desde 1993 e agora epitomizada no artigo 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 92/2013”, de sistemas de gestão de resíduos urbanos em que o Estado desempenha, com os municípios, esta função, por reporte a um determinado território, quando esteja em causa o interesse nacional, sem necessidade de autorização dos Municípios aderentes.

Na mesma linha argumentativa, o Tribunal Constitucional, em semelhante aresto, sanciona a competência do Estado-legislador para agregar ou cindir os sobreditos sistemas multimunicipais em que desempenha a gestão de resíduos urbanos em mão comum com os Municípios – poder de que aliás, entre 2004 e 2016, tem feito uso e abuso, em sucessivas vagas de fracionamento, agregação e posterior refracionamento16, ao pronunciar-se no sentido de que constitui uma opção de política geral do país, pertencente ao Governo, a tomada de tais decisões em função da sustentabilidade económica dos próprios sistemas ou da correção de assimetrias regionais17.

Em causa na política pública de resíduos urbanos foi também colocada a privatização da Empresa Geral do Fomento, em 2014, que era – e continua a ser – a concessionária, por assim dizer, da posição do Estado nos sistemas multimunicipais de gestão de resíduos urbanos, tendo nomeadamente os Municípios membros de alguns sistemas multimunicipais impugnado o decreto-lei de privatização com fundamento na violação da autonomia local, interpretada nos termos atrás observados. Contudo, nomeadamente por Acórdão de 23 de novembro de 2016, a 1.º Secção do Supremo Tribunal Administrativo teve a oportunidade de sancionar, igualmente, a conformidade desta privatização em face, nomeadamente, de, por força da Lei nº35/2013, veio a sofrer no domínio do sector dos resíduos uma significativa alteração, porquanto, após mudança do critério relevante para qualificação dos sistemas multimunicipais [passou a ter, como critério único, os que servindo pelo menos dois municípios “exijam a intervenção do Estado em função de razões de interesse nacional” sem qualquer referência ou apelo ao saber se existe ou não um investimento predominante do Estado [ver nº 2 do artigo 1º)], eliminou-se do leque de atividades que só poderiam ser concessionadas a entidades dotadas de capitais maioritariamente públicos a relativa à gestão e exploração da recolha e tratamento de resíduos sólidos [ver nº 3 do artigo 1º], não estando portanto a ser privatizado o exercício da gestão que compete aos municípios; nem tão-pouco, da perspetiva do STA, por se privatizar o capital de uma empresa em que estes também detêm participações18.

A gestão de resíduos urbanos como elemento da autonomia local poderá ainda ser trazida à colação no contexto da criação legal de fluxos específicos de resíduos e correspondentes redes, por exemplo, de recolha seletiva não municipal, como veremos infra a propósito dos fluxos específicos19.

Finalmente, pode questionar-se o porquê de, no n.º 2 do artigo 5.º do RGGR, se ter limitado a responsabilidade dos Municípios à recolha de resíduos urbanos cuja produção diária não exceda 1100 litros por produtor. Na verdade, este elemento quantitativo, historicamente, no Decreto-Lei n.º 239/97, fazia parte do próprio conceito de resíduo urbano, no sentido de dimensionar o conceito a uma função de domesticidade da produção dos resíduos, a qual mereceria a proteção pública municipal em termos de desresponsabilizar o cidadão da respetiva recolha.

Nomeadamente com a DQR, os resíduos urbanos deixaram de poder ser definidos quantitativamente, mas esta limitação da gestão municipal aos resíduos dos produtores que produzam menos de 1100 l de resíduos diários tem a mesma razão de ser: até tal escala, o produtor de resíduos não tem envergadura para se responsabilizar pelo envio dos resíduos para tratamento e, por isso, conta com a recolha municipal; sendo que, acima de tal nível, é aquilo a que se tem convencionado chamar um «grande produtor», e assim se responsabiliza pelos resíduos que produz, na lógica do poluidor-pagador20.

Mesmo no exercício da autonomia municipal, sem outras interferências, reverbera a atribuição legal de uma importante liberdade de escolha política municipal – ou intermunicipal, quando os Municípios se associem entre si –: a de escolherem se prosseguem a gestão de resíduos urbanos em administração direta por serviços municipalizados, por delegação a empresa pública municipal ou por meio de concessão a privados, segundo a liberdade de escolha que lhes é reconhecida pelo n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 7.º, ambos do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto, na sua redação atualmente em vigor, de acordo com cujas disposições, respetivamente: “Sem prejuízo do regime específico dos serviços de titularidade estatal, objecto de legislação própria, a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios e pode ser por eles prosseguida isoladamente ou através de associações de municípios ou de áreas metropolitanas, mediante sistemas intermunicipais, nos termos do presente decreto-lei”; e “A entidade gestora dos serviços municipais é definida pela entidade titular, de acordo com um dos (…) modelos de gestão [escolhidos entre a] (…) Prestação direta do serviço[, a] (…) Delegação do serviço em empresa constituída em parceria com o Estado[, a] (…) Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local [ ou a] (…) Concessão do serviço”.

O que não convém perder de vista é que, independentemente dos problemas competenciais em sede de gestão de resíduos urbanos, como se lê no considerando 6 da Diretiva 2018/851: “Os resíduos urbanos representam, aproximadamente, entre 7 e 10 % do total de resíduos produzidos na União. Esse fluxo de resíduos é, no entanto, dos mais complexos de gerir e o modo como é gerido dá geralmente uma boa indicação da qualidade do sistema global de gestão de resíduos de um país [, que] Os desafios colocados pela gestão dos resíduos urbanos advêm da sua composição extremamente complexa e indiferenciada, da proximidade direta dos resíduos produzidos aos cidadãos, da visibilidade pública muito elevada desta questão e do seu impacto no ambiente e na saúde humana [e,] Consequentemente, a gestão dos resíduos urbanos requer um sistema altamente complexo, incluindo um sistema de recolha eficiente, um sistema de triagem eficaz e uma correta rastreabilidade dos fluxos de resíduos, o envolvimento ativo dos cidadãos e das empresas, infraestruturas ajustadas à composição específica dos resíduos e um elaborado sistema de financiamento [, de molde a que] Os países que desenvolveram sistemas eficientes de gestão dos resíduos urbanos apresentam, de um modo geral, melhor desempenho ao nível da gestão global dos resíduos, incluindo o cumprimento das metas de reciclagem”.

 

d) Regimes especiais em função do sector de atividade e problemas fundamentais da política pública de resíduos que levantam

Costuma incluir-se sob esta rubrica os resíduos cujas operações de tratamento, nos termos do artigo 43.º do RGGR, estão sujeitas a regimes de licenciamento especiais. Integram-se nestes casos, seguramente, os resíduos industriais – da produção industrial e da produção de energia, nos termos do artigo 3.º do RGGR –, grande parte deles atraídos, como veremos infra, na alínea f), à categoria de resíduos perigosos e, por isso, quase todos tratados em centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos, que o citado artigo 43.º sujeita a um regime de licenciamento especial.

Mas também os resíduos agrícolas e os resíduos hospitalares (tal como definidos no RGGR) ou as lamas de depuração são resíduos sectoriais, abrangidos por especialidade no licenciamento das respetivas operações de tratamento, nos termos do artigo 43.º do RGGR.

Por isso, são estes resíduos, na sua especialidade normativa, tratados de par com operações de gestão elas próprias sensíveis, como a valorização agrícola de lamas de depuração – que são resíduos industriais –, a deposição em aterro e a incineração/coincineração, também sujeitas a regime de licenciamento especial, nos termos do artigo 43.º do RGGR – e também, por sinal, objeto de Diretivas europeias especiais face à DQR.

O grande problema de política pública de resíduos neste contexto tem sido o do destino a dar às lamas de depuração, entre: (1) o Decreto-Lei n.º 276/2009, de 2 de outubro, e a Diretiva n.º 86/278/CEE, do Conselho, de 12 de junho, nos quais se prevê, mas não se impõe, a valorização agrícola de lamas de depuração; (2) a hierarquia dos resíduos lida de uma forma mais imediata e do ponto de vista do seu enunciado geral, a qual daria a valorização agrícola como preferível a qualquer operação, por exemplo, de eliminação, rectius de deposição em aterro; bem como (3) a necessidade de, em face da perigosidade e nocividade de certos tipos de lamas de depuração para a saúde e para o ambiente poder tornar mais aconselhável – por exemplo – a respetiva deposição em aterro do que uma valorização agrícola com risco de contaminação de alimentos, se aplicar a cláusula de salvaguarda do princípio da hierarquia inserta na parte final do n.º 2 do artigo 4.º da DQR, de acordo com a qual “Os Estados-Membros tomam em conta os princípios gerais de proteção do ambiente da precaução e da sustentabilidade, a exequibilidade técnica e a viabilidade económica e a proteção dos recursos, bem como os impactos globais em termos ambientais, de saúde humana e sociais, nos termos dos artigos 1.º e 13.º”; (4) estando esta problemática largamente debatida ao nível da prática decisória dos organismos da União Europeia21.

Chama-se ainda especial atenção para a diretriz de política pública que o legislador europeu enunciou, sobre resíduos industriais, no considerando 52 da Diretiva 2018/851, como elemento interpretativo atualista do ordenamento europeu de acordo com o qual: “Os resíduos industriais, certas partes dos resíduos comerciais e os resíduos da extração são extremamente diversificados em termos de composição e de volume, variando muito em função da estrutura económica do Estado-Membro, da estrutura do setor industrial ou comercial que produz os resíduos e da densidade industrial ou comercial de uma determinada zona geográfica. Assim, no caso da maior parte dos resíduos industriais e da extração, considerou-se que a solução adequada consiste numa abordagem orientada para o setor, utilizando os documentos de referência sobre as melhores técnicas disponíveis e instrumentos similares para tratar questões específicas relacionadas com a gestão de um determinado tipo de resíduos. Contudo, os resíduos de embalagens comerciais e industriais deverão continuar a ser abrangidos pelos requisitos das Diretivas 94/62/CE e 2008/98/CE, incluindo as suas respetivas alterações. A fim de explorar mais a possibilidade de aumentar a preparação para a reutilização e reciclagem dos resíduos comerciais, dos resíduos industriais não perigosos e de outros fluxos importantes de resíduos, a Comissão deverá ponderar a definição de metas para esses fluxos de resíduos”.

 

e) Regimes especiais em função do vulto económico da fileira e da complexidade da gestão

Nos termos da alínea o) do artigo 3.º do RGGR, “Fluxo específico de resíduos” é “a categoria de resíduos cuja proveniência é transversal às várias origens ou sectores de atividade, sujeitos a uma gestão específica”.

Já não é a operação de tratamento que se reveste de especialidade, mas toda a gestão, do início ao fim considerada. Por isso se dispõe, no artigo 44.º do RGGR, que “A gestão de fluxos específicos de resíduos está sujeita a licença ou autorização nos termos da legislação especial, aplicando-se as disposições do presente decreto-lei a tudo o que não estiver nela previsto”.

Em vários dos casos legalmente qualificáveis – e, por sinal, qualificados – como “fluxos específicos”, essa especificidade decorre da opção do legislador europeu, tal como sucede no respeitante ao regime europeu:

(1) Das embalagens e resíduos de embalagens, já citado, ficando patente em dois dos considerandos da Diretiva Embalagens, como razões da especialidade, a respetiva “…função social e económica fundamental”;

(2) Dos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REE), assumido que é, na Diretiva 2012/19/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, aos mesmos relativa, como razão da especialidade normativa face ao quadro geral dos resíduos, que “A presente diretiva complementa a legislação geral da União relativa à gestão de resíduos, nomeadamente a Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos” (cfr. considerando 4);

(3) Dos veículos em fim de vida, sendo patente que a Diretiva 2000/53/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de setembro de 2000, relativa aos veículos em fim de vida, estabelece normas sobre todas as fases da gestão deste tipo específico de resíduo;

(4) Dos resíduos de pilhas e acumuladores, patente tal especialidade nos termos finais do considerando 5 da Diretiva 2006/66/CE, segundo os quais “As regras específicas necessárias para esse efeito complementam a legislação comunitária vigente em matéria de resíduos, em especial a Diretiva 2006/12/CE” ou;

(5) Dos óleos usados, sujeitos a regras de gestão específica, máxime de recolha seletiva, nos termos do já citado artigo 21.º da DQR.

Noutros casos, foi o próprio legislador nacional a criar, moto proprio, um fluxo específico de resíduos, tal como sucedeu com os pneus e com o regime jurídico incremental da sua valorização (originariamente o Decreto-Lei n.º 111/2011, de 6 de abril), com os resíduos de construção e de demolição (cfr. o Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março) ou com as garrafas de bebidas em plástico (Lei n.º 69/2018, de 26 de dezembro).

Com exceção dos resíduos de construção e de demolição, eles próprios a formarem um fluxo específico composto de outros fluxos específicos – tal como acaba de se ler – os fluxos específicos vindos de citar, fruto de uma legislação nacional que replicou a experiência europeia na matéria, enquadram-se no regime de responsabilidade alargada dos produtores dos produtos de onde emergem os resíduos correspondentes, ao abrigo da habilitação do artigo 8.º da DQR e da parte final do n.º 1 do artigo 5.º do RGGR, enquanto exceção ao princípio geral da responsabilidade do produtor do próprio resíduo, ou seja, daquele que do mesmo se quer desfazer.

Trata-se, basicamente, dos fluxos específicos regulados no Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro (doravante Unilex, convocando a terminologia pelo qual é conhecido na gíria ambiental), através de cuja aprovação, nas próprias palavras do preâmbulo, se operou a “…revogação dos diplomas relativos à gestão de fluxos específicos de resíduos de embalagens, de óleos usados, de pneus usados, de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, de resíduos de pilhas e acumuladores e de veículos em fim de vida e demais legislação regulamentar, concentrando num diploma único o regime jurídico dos fluxos específicos de resíduos assentes no princípio da responsabilidade alargada do produtor”.

Mas mais, recorrendo ainda à síntese preambular do Unilex, os sistemas de gestão destes fluxos específicos assentes na responsabilidade alargada do produtor funcionam como “…sistemas integrados de gestão, assentes no princípio da responsabilidade alargada do produtor, e que, através das respetivas entidades gestoras, assumem as responsabilidades dos operadores económicos que colocam produtos no mercado nacional”.

Nos termos da regulação transversal a todos estes fluxos específicos, constante do Unilex:

(I) “os produtores dos produtos, os embaladores e os fornecedores de embalagens de serviço ficam obrigados a submeter a gestão dos respetivos resíduos a um sistema individual ou a um sistema integrado, sujeito a autorização ou licença, respetivamente, nos termos do presente decreto-lei, ou ainda através da celebração de acordos voluntários entre o produtor do produto e a Agência Portuguesa do Ambiente, I. P. (APA, I. P.), que devem ser abertos a todos os parceiros que pretendam dar-lhe cumprimento” (n.º 1 do artigo 7.º);

(II) Quanto ao sistema individual:

(i) Este “…é o sistema através do qual o produtor do produto, o embalador, o importador de produtos embalados que utilizam embalagens não reutilizáveis, bem como o fornecedor de embalagens de serviço não reutilizáveis, assume individualmente a responsabilidade pela gestão do resíduo no qual o produto ou embalagem, conforme aplicável, se transforma” (n.º 1 do artigo 9.º), sendo que “Os produtores dos produtos, os embaladores e importadores de produtos embalados que utilizam embalagens não reutilizáveis, bem como os fornecedores de embalagens de serviço não reutilizáveis, que optem pela gestão dos resíduos a título individual devem assumir a sua responsabilidade através da prestação de uma caução a favor da APA, I. P., que pode ser prestada mediante garantia bancária ou seguro, no montante a fixar na autorização referida no n.º 5, em função da quantidade e da perigosidade dos produtos colocados no mercado, a fim de evitar que os custos da gestão dos resíduos recaiam sobre a sociedade ou sobre os restantes produtores” (idem n.º 2), assim como “A responsabilidade do produtor do produto, embalador, ou fornecedor de embalagens de serviço, conforme aplicável, pelo destino adequado dos resíduos só cessa mediante declaração de assunção de responsabilidade nos termos previstos no n.º 6 do artigo 5.º do RGGR” (idem, n.º 4);

(ii) “Está sujeito a autorização atribuída por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia e do ambiente, por período não superior a cinco anos, podendo ser prorrogada por um ano, e estabelece as condições de gestão do fluxo…” (n.º 5 do artigo 9.º), só sendo “A autorização (…) concedida desde que o produtor do produto, o embalador, o importador de produtos embalados ou o fornecedor de embalagens de serviço, conforme aplicável, demonstre ter capacidade técnica e financeira para implementar uma rede de recolha dos resíduos e o seu encaminhamento para tratamento, com vista ao cumprimento das metas fixadas no presente decreto-lei e na respetiva autorização” (idem, n.º 7);

(II) Quanto ao sistema integrado:

(i) Constituído mediante licença a atribuir por Despacho dos membros do Governo responsáveis pelo Ambiente e pela Economia, que podem atribuir uma ou mais licenças para sistemas integrados relativamente a cada fluxo específico (artigo 16.º), “…é o sistema através do qual o produtor do produto, o embalador ou o fornecedor de embalagens de serviço, transfere a responsabilidade pela gestão do resíduo no qual o produto, ou a embalagem, consoante aplicável, se transforma, para uma entidade gestora licenciada para o efeito, que assume coletivamente essa responsabilidade” (n.º 1 do artigo 10.º);

(ii) O produtor do produto e o embalador, bem como o fornecedor de embalagens de serviço, no caso do fluxo das embalagens e resíduos de embalagens, transfere a sua responsabilidade mediante o pagamento dos valores de prestação financeira para a entidade gestora [normalmente designada por “ecovalor”] a que se refere o artigo 14.º” (n.º 2 do artigo 10.º), mediante contrato escrito (idem, n.º 3);

(iii) “A entidade gestora é uma pessoa coletiva de direito privado, de natureza associativa ou societária” (n.º 1 do artigo 11.º), “…constituída obrigatoriamente pelos produtores do produto, ou embaladores e importadores de produtos embalados no caso do fluxo específico das embalagens, cuja representatividade não deve ser inferior a 70/prct., ou por entidades por eles constituídas nas quais a sua representatividade não seja inferior à referida, e não pode integrar entidades com atividade suscetível de gerar conflitos de interesses com as [suas] funções” (idem, n.º 2), que assume a responsabilidade pela gestão da fase do ciclo de vida dos produtos quando estes atingem o seu fim de vida e se tornam resíduos, garantindo [, de duas, uma, ou] (…) A gestão financeira dos resíduos ou (…) A gestão financeira e operacional dos resíduos, ficando neste caso com a sua posse” (idem, n.º 8);

(iv) É à entidade gestora que cumpre celebrar contratos com os operadores de gestão de resíduos, rectius de tratamento (n.ºs 10 a 12 do artigo 11.º), pois é sua obrigação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º, “…Organizar a rede de receção, recolha seletiva, transporte e tratamento de resíduos, celebrando os contratos necessários com os distribuidores, com os comerciantes, com os municípios ou com os sistemas municipais, intermunicipais e multimunicipais de gestão de resíduos, quando aplicável [ou seja, e como se sabe, no caso de resíduos urbanos cuja recolha seja da competência dos municípios], com os operadores de gestão de resíduos, e com outras entidades, designadamente o setor HORECA, os quais devem fixar as receitas e os encargos decorrentes dessa atividade”;

(v) Quando se trate de resíduos urbanos de recolha municipal, incumbe à entidade gestora “…Prestar as contrapartidas financeiras aos Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU) destinadas a suportar os acréscimos dos custos com a recolha seletiva e triagem dos fluxos específicos de resíduos urbanos e os custos da triagem dos fluxos específicos de resíduos urbanos nas estações de tratamento mecânico e de tratamento mecânico e biológico, bem como da valorização orgânica e do tratamento das escórias metálicas resultantes da incineração dos resíduos urbanos e demais frações consideradas reciclagem, devendo para tal estabelecer um contrato” (alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º; e

(vi) “Sempre que em determinado fluxo específico de resíduos atue mais do que uma entidade gestora, há lugar à aplicação de mecanismos de alocação e compensação a definir pelo presidente da Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos (CAGER), com vista a compensar a entidade gestora que assume a responsabilidade pela gestão de resíduos” (n.º 1 do artigo 18.º).

No que toca especificamente aos sistemas integrados de gestão de fluxos específicos de resíduos, o primeiro grande problema em sede de política pública que se pode levantar no contexto do respetivo regime é o dos critérios que norteiam a decisão dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia e do ambiente a licenciá-los ou não os licenciará para cada fluxo específico, e a licenciar apenas um ou mais do que um para cada qual desses fluxos.

Tal margem de livre decisão de política pública, embora exercida por meio de ato administrativo discricionário, na medida em que habilita a atuação num mercado relevante – o da gestão de um fluxo específico de resíduos – de organizações de produtores, e na medida em que permite que várias organizações de produtores ou – em alternativa – apenas uma em exclusivo procedam a essa função de mercado, coloca, naturalmente, delicados problemas de concorrência, do ponto de vista dos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; o que foi diagnosticado, com base em casuística vária, no Relatório da Direção-Geral da Concorrência da União Europeia de 2005 sobre a concorrência no sector dos resíduos, de acordo com cuja doutrina o mercado da gestão de resíduos por delegação no âmbito da responsabilidade alargada do produtor é considerado um mercado autónomo22 e se tem alertado para que “Os sistemas compreensivos ou coletivos, que agremiam produtores, devem ser estritamente escrutinados ao abrigo dos artigos 81.º e 82.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia [atuais artigos 101.º e 102.º do TFUE]”23.

É doutrina deste Relatório24 a de que “Em quanto diga respeito, nomeadamente, ao n.º 3 do artigo 81.º do TCE, os efeitos benéficos para o consumidor e a respetiva indispensabilidade têm de ressumar claramente como resultado do ato institutivo de sistemas compreensivos ou integrados”, embora ali se saliente, do mesmo passo25, que “Em quase todos os Estados-Membros, as empresas vinculadas pela responsabilidade alargada do produtor cooperam em ordem a e estabelecer sistemas de gestão integrada de resíduos de embalagens”, bem como que “A maioria desses sistemas são entidades sem fins lucrativos que associam tais empresas”, sem contudo deixar de se salientar, na mesma página, que “Este tipo de cooperação levanta muito específicos problemas de concorrência”, quando, “De acordo com o §182 das Guidelines da Comissão sobre a aplicação do artigo 81.º do TCE [hoje, artigo 101.º do TFUE] a acordos horizontais [26], os acordos seja a que nível for da gestão de resíduos projetam-se e produzem efeitos tanto ao nível dos mercados dos próprios produtos embalados, quanto ao nível dos serviços de gestão de embalagens, provocando, neste último, eventuais distorções na procura”27.

Especificamente sobre a decisão de política pública de licenciar um ou mais sistemas integrados por fluxo específico de resíduos, deve valer, como orientação geral e doutrina válida à luz do ordenamento europeu, o vertido nas páginas 47 e 48 do Relatório da OCDE, de 2016, intitulado “Extended Producer Responsibility: Updated Guidance for Efficient Waste Management”28, onde se pode ler que: “Muitos sistemas de responsabilidade alargada do produtor foram inicialmente estabelecidos com uma única entidade gestora de SIGRE monopolista. Com o passar do tempo, muitos deles foram revogados na sequência do escrutínio da sua conduta contrária às regras da concorrência; ou, noutros casos, em resposta às críticas das autoridades de concorrência dirigidas à regulação que estabelecia monopólios. Como resultado, a maioria dos sistemas de responsabilidade alargada do produtor envolve hoje mais do que um sistema integrado. Os argumentos clássicos contra os monopólios radicam em que os mesmos podem fixar preços mais altos e despreocuparem-se da rentabilidade nos custos. Esses efeitos aumentam o custo dos produtos. Há evidências empíricas de que esse foi o caso de alguns dos sistemas integrados monopolistas. O custo das embalagens na Alemanha caiu significativamente com a introdução da concorrência entre sistemas integrados e entre serviços prestados aos mesmos. A autoridade da concorrência norueguesa identificou vários casos em que os monopólios de gestão de resíduos incorrem em excesso de custos, em virtude de os poderem fazer repercutir nos consumidores, num quadro tendencial de ineficiência.”.

É preciso referir que, mesmo numa situação de concorrência entre sistemas integrados posterior a um período em que o fluxo em referência tenha sido apenas gerido por um sistema integrado, por atribuição de licença única, o tempo de monopólio deixa as suas sequelas pós-eficazes no período de abertura à concorrência, sequelas essas naturalmente favoráveis ao antigo incumbente e depois concorrente. Este foi o caso em Portugal, nomeadamente, da gestão das embalagens e resíduos de embalagens, no qual pelo menos dois sistemas integrados tentaram, por anos, subentrar, mas sem êxito, até 2017, por se ter mantido a decisão política de manter apenas a concessão de uma licença, in casu à Sociedade Ponto Verde.

Não custa a explicar que quem concorra tendo a seu favor, junto dos outros concorrentes, a força de um passado monopolista, é naturalmente beneficiário de uma situação desvirtuadora da concorrência, cuja correção constitui um importante desafio para os Estados. Disto fez eco, justamente, a Comissão Europeia, quando, na sua Decisão proferida contra a Áustria no Caso ARA, em 20.09.2016, no Processo AT. 39759 – ARA Foreclosure, asseverou que: (I) num contexto em que: (i) por anos, na Áustria, o fluxo específico de embalagens tinha sido gerido apenas por um sistema integrado, o qual contava com infraestruturas muitas delas subvencionadas pelo Estado; (ii) depois de todo esse tempo, a mesma gestão integrada foi aberta à concorrência; e (iii) para os novos concorrentes, construir infraestruturas seria muitíssimo avultado num contexto de concorrência, para além de poder trazer danos para o ambiente a duplicação das mesmas infraestruturas; (II) o antigo incumbente e ora concorrente seria forçado a partilhar as infraestruturas, anteriormente suas, com os novos concorrentes, na medida do possível, sob pena de abusar de posição dominante, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União citada na própria decisão29.

O retalho de pequenos sistemas integrados de gestão de fluxos específicos dentro de fluxos específicos mais latos, bem representada na decisão política tomada pela Lei n.º 69/2018, de 26 de dezembro, de criar um sistema de gestão das garrafas plásticas de bebidas como sistema especial face à generalidade das embalagens – a configurar, no futuro, como sistema de depósito pelos consumidores nas grandes superfícies –, traz também problemas ante a chamada de atenção da Direção Geral da Concorrência da Eu para que “(…) as preocupações quanto ao Direito da Concorrência surgirão mais reduzidas dentro de sistemas integrados de gestão com índole transversal”30, pois, onde as obrigações técnicas sejam mais diversificadas entre produtos, não se verifica um risco tão grande de concertação de práticas que distorça a Concorrência nos mercados dos produtos.

Regista-se igual e necessariamente, uma tensão entre sistemas de recolha seletiva de resíduos urbanos a gerir por sistemas individuais ou integrados e a recolha municipal, sendo que tais redes, em princípio, sempre terão a sua instalação contratualizada com os municípios, sob pena de invasão das competências destes últimos31.

Fora, aliás, do âmbito da responsabilidade alargada do produtor, um caso de estudo da tensão entre a criação unilateral de uma rede de recolha seletiva não gerida pelos municípios e as atribuições municipais nessa matéria, temo-lo na decisão política de criação de uma rede de recolha seletiva de biorresíduos no âmbito dos sistemas multimunicipais de gestão de resíduos, ensaiada pelo Despacho n.º 7290-B/2019, de 16 de agosto, publicado em 2.ª série do Diário da República, em anexo, do Secretário de Estado do Ambiente de então.

Abreviando os termos do caso, que podem ser apreendidos, com toda a completude, no Parecer n.º 27/2019 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República32: (1) no citado Despacho, intentava-se encarregar a concessionária dos sistemas multimunicipais de gestão de resíduos da organização e gestão de uma rede de recolha seletiva de biorresíduos, com o argumento de que, desde a revisão de 2018 da DQR, os biorresíduos tinham passado a integrar a categoria de resíduos urbanos de recolha seletiva obrigatória e de que tal caberia no objeto da concessão da gestão; (2) contudo, no quadro do Decreto-Lei n.º 96/2014, de 26 de junho, do qual constam as bases da dita concessão e as regras da relação entre Municípios e sistemas multimunicipais, apurou-se que a concessão discriminava os fluxos específicos de resíduos a integrar em redes de recolha seletiva a gerir pela concessionária, que nessa discriminação não estavam os biorresíduos, que por aí os mesmos cairiam no âmbito da recolha indiferenciada e que, no âmbito desta última, era aos Municípios que cabia a ação, os quais, inclusivamente e segundo previsão das bases da citada concessão, a podiam, aliás, concessionar a privados; (3) razões pelas quais a Procuradoria-Geral da República percebeu, no Despacho em causa, não só um intento de celebrar uma nova concessão, com novo objeto, fora dos limites do poder unilateral de modificação, como numa ingerência na autonomia contratual dos Municípios, os quais se encontravam até vinculados a contratos de concessão da recolha indiferenciada, a privados, que compreendiam no seu objeto os referidos biorresíduos; (4) razão pela qual o Despacho acabou por ser revogado.

Em todo o caso quer a responsabilidade alargada do produtor, quer a própria criação de fluxos específicos de resíduos são, por natureza, decisões de política pública de resíduos.

 

f) A normação na especialidade dos resíduos perigosos como problema político-jurídico: o estranho caso dos CIRVER

Se a disciplina substantiva do tratamento dos resíduos perigosos constitui, acima de tudo, um problema técnico-normativo e não propriamente de política pública, resolvido pelo artigo 17.º da DQR e pelo artigo 20-A do RGGR, já o mesmo não se pode dizer da atividade de gestão de resíduos perigosos e do seu enquadramento, estes últimos a constituírem um problema nodal de políticas públicas.

Não se perca, todavia, de vista o disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 3/2004, de 3 de janeiro, em cujos termos “Constitui objectivo primordial da política de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos garantir um alto nível de protecção da saúde pública e do ambiente, nomeadamente (…) Concretizando o princípio da auto-suficiência[,] (…) Privilegiando a valorização dos resíduos perigosos[, e](…) Minimizando a quantidade de resíduos perigosos a depositar em aterro”.

 

Alegadamente em nome de tais objetivos, desde 2004, a gestão dos resíduos perigosos, em Portugal, está entregue em exclusivo aos centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER), enquanto unidades integradas que, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 3/2004, incluem necessariamente as seguintes unidades: unidade de classificação, incluindo laboratório, triagem e transferência, unidade de estabilização, unidade de tratamento de resíduos orgânicos, unidade de valorização de embalagens contaminadas, unidade de descontaminação de solos, unidade de tratamento físico-químico e aterro.

Os CIRVER estão sujeitos a licença (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 3/2004), atribuído não por iniciativa particular, mas por iniciativa pública mediante procedimento concursal (n.º 2 do artigo 6.º).

E enquanto estiverem licenciados CIRVER, não pode haver gestão de resíduos sólidos, relativamente a todas e cada uma das fases que o CIRVER contempla, por outros operadores de gestão de resíduos, já que categoricamente se dispõe, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 78.º do Decreto-Lei n.º 3/2004, que “Constituem direitos do gestor de um CIRVER (…) Exigir que a actividade seja exercida pelo número de gestores de um CIRVER definidos no respectivo concurso enquanto vigorarem as licenças emitidas ao abrigo do mesmo”.

Cabe então perguntarmo-nos, do ponto de vista da política pública de resíduos, o que leva, tidos inclusivamente em conta os princípios da autossuficiência e da proximidade, senão da concorrência, a manter uma solução normativa que não permita a um operador de resíduos, por sua iniciativa, requerer licença para uma das atividades contempladas num CIRVER, se houver para tanto condições no lugar onde se pretenda instalar, já que está ultrapassada a rarefação de operadores qualificados de gestão de resíduos a que o legislador de 2004 se referia no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 3/2004, única circunstância a justificar a aprovação – que não a manutenção atual – de um regime de tratamento de regimes perigosos baseado na atribuição de exclusivos anticoncorrenciais e rentistas por iniciativa do Estado.

 

4. O enquadramento da fiscalidade no sector dos resíduos como problema da política pública de resíduos

O enquadramento da fiscalidade no sector dos resíduos constituiu uma preocupação expressa de política pública do legislador do RGGR. A esse respeito, pode ler-se no preâmbulo do diploma que, “…no sentido da redução da produção de resíduos e do seu tratamento mais eficiente [,] (…) Com a taxa de gestão de resíduos (…) uma taxa de natureza periódica incidente, com montante diferenciado, sobre resíduos depositados em aterro ou geridos por entidades gestoras de sistemas de fluxos específicos de resíduos, de CIRVER ou de instalações de incineração ou co-incineração, pretende-se trazer para o ordenamento nacional um instrumento tributário (…) mobilizando os tributos públicos na promoção de uma gestão eficiente dos resíduos (…) [com] interiorização por produtores e consumidores dos custos ambientais que lhes estão associados”.

Relacionando os sujeitos passivos acabados de referir com os sujeitos ativos da Administração Pública designados no RGGR em função das operações (cfr. n.ºs 1 e 8 do artigo 58.º), o mesmo, no seu n.º 1, define quatro finalidades para a TGR: (A) uma delas fiscal, que é a de “compensar os custos administrativos de acompanhamento das respetivas atividades”; (B) e três extrafiscais, que são as de “incentivar a redução da produção de resíduos”, “estimular o cumprimento dos objetivos nacionais em matéria de gestão de resíduos” e “melhorar o desempenho do sector”.

Em vista de tais fins, o valor-base da TGR para 2020 é de 11€/ton de resíduos pelos sujeitos passivos (art. 58.º/2 do RGGR) mas a taxa que incide sobre aquele valor é variável em função da operação da gestão em causa, aumentando consoante a mesma se distancie da valorização material

Deste modo, através de uma tributação diferenciada por atividade de gestão, mais agravada à medida que se aproxima das medidas do fundo da hierarquia das prioridades de gestão definida nos artigos 4.º da DQR e 7.º do RGGR, verifica-se um claro desincentivo deste tipo de operações, pelo que a TGR parece cumprir os seus propósitos extrafiscais, reconduzíveis, no quadro da evolução da política pública de resíduos em geral, e no atual contexto, a privilegiar um modelo de economia circular.

Não há dúvida de que a TGR serve hoje o objetivo mais geral de organização de uma verdadeira economia circular33, evitando, entre outros efeitos, que “os materiais provenientes da esfera natural (as matérias-primas extraídas) que passaram pela esfera humana (esfera de produção e consumo) cheguem novamente à esfera natural sob a forma de resíduos”34.

A importância da TGR enquanto instrumento da política pública de resíduos fica bem patente nas referências que lhe são feitas no subcapítulo 4.9. do PERSU 2020+, nomeadamente: (1) na referência retrospetiva com um diagnóstico segundo o qual “O facto de o valor da TGR ser relativamente baixo (em 2016 a TGR de deposição em aterro foi de 6,6 €/t e em 2020 será de 11 €/t) o incentivo para o operador de gestão de resíduos encaminhá-los para soluções de tratamento e valorização mais ajustados ambientalmente não é conseguido» (n.º 204); e (2) a declaração de política pública com fé na qual A TGR será revista em 2019, tendo por base valores que tornem efetivos os incentivos a mudanças comportamentais e de gestão, conformes com a hierarquia de gestão de resíduos. O seu valor assumirá um alinhamento com a redução de resíduos enviados para aterro, sendo que, no caso da valorização energética, estará indexada ao desempenho dos sistemas relativamente às metas de reciclagem de embalagens e de preparação para reutilização e reciclagem” (n.º 207).

 

5 Conclusão

Uma política pública como a de resíduos, à qual subjazem, enquanto interesses a prosseguir, a proteção do ambiente, a sustentabilidade dos recursos naturais e, num espectro de tutela aparentemente desconexo com estes dois primeiros desideratos, a concorrência dentro de um mercado que é também um mercado relevante, torna-se, em face da tensão entre os dois primeiros e o último fim, que aqui conseguimos aperceber, num complexo cujos resultados ficam tão difíceis de obter quanto a quadratura do círculo.

Qualquer meio que os decisores políticos encetem para fazer face aos fins de uma política pública de resíduos pode ser um meio sustentável do ponto de vista dos recursos naturais mas economicamente pouco viável, caro, desvirtuador da concorrência, ou até – como se viu para o caso da valorização agrícola das lamas de depuração – arriscado para a saúde humana.

A tudo isto acresce que, dada a transversalidade do fenómeno dos resíduos na sociedade, a política pública de resíduos precisa de ter ao seu serviço vários tipos de ações e de atores: para além dos seus naturais destinatários, entre agentes económicos e cidadãos, órgãos legislativos, órgãos de planeamento da criação de soluções, órgãos administrativos de satisfação direta de necessidades materiais públicas e até órgãos administrativos com uma enorme margem de livre decisão no licenciamento de organizações e operações, margem essa quase sobreponível aos valores da concorrência e da segurança jurídica, em nome de uma pretensa eficácia flexível no incremento da componente ambiental cujas perspetivas não param de evoluir, segundo as melhores técnicas disponíveis. Nas ações, não chegam as normas, são precisas diretrizes políticas constantemente atualizáveis, e até atos administrativos discricionários em larga escala, que abram ou fechem espectros de atuação em função de um equilíbrio de interesses sempre mutável e periclitante; o que põe claramente em causa a segurança jurídica de cidadãos e de agentes económicos.

A política pública de resíduos tem, inclusivamente, exigido novas formas de organização, como o são as entidades gestoras de sistemas integrados de gestão, espécies de – passe a expressão e fique a ideia – «grémios» da era moderna, mas num contexto de concorrência, ao qual o seu perfil conglobador de interesses nem sempre se adequa. A política pública de resíduos em Portugal é, indubitavelmente, filha da integração europeia, constituindo um bom exemplo de como os detratores deste processo de integração, em certos pontos, não têm razão. Mas entrou pela porta de Portugal dentro com cidadãos e instituições só muito gradualmente preparados para ela, que por vezes parecem condenados ao destino da criança lançada no mundo do trabalho infantil.

Dos problemas do que escolher para a subsistência dos cidadãos em sociedade num contexto de esgotamento dos recursos e de quais os melhores meios – se os jurídicos ou não jurídicos – de fazer valer essas escolhas, a problemas constitucionais de delimitação de competências em nome da representatividade democrática de populações fixadas em territórios, de tudo há registos e casos de estudo no desenvolvimento da política pública de resíduos em Portugal. Em todo o caso, a convergência teleológica desta política pública a que se tem vindo a assistir nos últimos anos, face ao objetivo de transformação mesmo das matérias de que nos queremos desfazer em matérias-primas ou em produtos reutilizados, e já não em matéria morta, talvez introduza neste panorama alguma uniformidade: uniformidade, ainda assim, cara, porque a requerer grande equipamento técnico e esforço de todos os atores, a começar pelos cidadãos e a acabar nos agentes económicos, passando, naturalmente, pelos decisores públicos.