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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa Sept. 2020

 

A prevenção de desastres

Disasters prevention


Rute Saraiva1 I , Jorge Saraiva2 II

I Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade - Cidade Universitária
1649-014 Lisboa - Portugal
rutesaraiva@fd.ul.pt

II Laboratório Nacional de Engenharia Civil
Avenida do Brasil, 101,
1700-066 Lisboa - Portugal
dinamica@netcabo.pt



RESUMO

No âmbito da construção de um novo Direito dos Desastres baseado na prevenção, num cenário de percepção de mais e mais caras catástrofes, procura-se, numa primeira parte, tentar perceber quais os limites na avaliação prévia, precoce e preventiva dos desastres, para depois, numa segunda, analisar o modo como a prevenção vem edificando-se juridicamente, do plano internacional ao nacional.

Palavras-Chave: Desastres, Risco, Prevenção, Direito, Limites.

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Limites na avaliação prévia de desastres; 2.1. O que é um desastre; 2.2. Previsão de desastres: mais e mais caros?; 2.3. Proliferação da dogmática e das políticas em torno dos desastres; 2.4. Limites na previsão, compreensão e prevenção de desastres; 3. De um Direito desastroso a um Direito dos desastres; 3.1. Direito internacional; 3.2. Direito regional e europeu, em especial; 3.3. Direito nacional; 4. Conclusões


ABSTRACT

As part of the construction of a new Disaster Law based on prevention, in a scenario of perception of more and more expensive catastrophes, an attempt is made, in the first part, to understand the limits on the prior, early and preventive assessment of disasters, and, in the second part, to analyze the way in which prevention has been legally building, from the international to the national level.

Keywords: Disasters, Risk, Prevention, Law, Limits.

Summary: 1. Initial considerations; 2. Limits on prior disaster assessment; 2.1. What is a disaster; 2.2. Disaster forecast: more and more expensive?; 2.3. Proliferation of dogmatics and policies around disasters; 2.4. Limits on disaster prediction, understanding and prevention; 3. From a disastrous Law to a Law of disasters; 3.1. International law; 3.2. Regional and European law, in particular; 3.3. National law; 4. Conclusions.


1. Considerações iniciais

Desastres naturais, acidentes industriais e tecnológicos, pandemias, choques económico-financeiros ou ataques terroristas são alguns exemplos de eventos desastrosos que afectam, todos os anos, milhares de pessoas, o seu património e o ambiente, deixando um rasto de danos desafiante para a sociedade contemporânea. Devido ao seu impacto provável e magnitude, vem-se assistindo, nos últimos anos a uma preocupação crescente na sua prevenção mais do que na sua resposta, incluindo no plano jurídico, pese embora esta nova estratégia se depare com escolhos na imprevisibilidade concreta destes eventos e nas distorções em torno da sua percepção e consequente gestão. O reforço da resiliência3 encontra-se, deste modo, na ordem do dia, obrigando a uma abordagem holística e integrada atenta às vulnerabilidades e à sustentabilidade e que atravessa temáticas e objectos jurídicos de interesse de ramos como os direitos humanos, o ambiente e o desenvolvimento sustentável, que vêm alimentando o esforço de desenvolvimento de um novo Direito dos Desastres.

Nas próximas páginas, pretende-se, de forma singela, contribuir para a compreensão desta iniciativa, em especial através daquele que se antecipa ser uma das suas traves mestras – o princípio da prevenção –, começando, em primeiro lugar, por tentar perceber quais os limites na avaliação prévia, precoce e preventiva dos desastres, para depois, numa segunda parte, analisar como a prevenção vem edificando-se juridicamente, do plano internacional ao nacional. Esta avaliação multinível decorre da própria natureza catastrófica do desastre que, não só pode acontecer em qualquer ponto do globo e afectar cidadãos de qualquer Estado ou património cultural ou ambiental da Humanidade, como porque o acontecimento pode ter causas e repercussões transnacionais mas também locais e a intervenção preventiva e de resposta exigir colaboração internacional.

 

2. Limites na avaliação prévia de desastres

2.1. O que é um desastre

Para o correcto estabelecimento e desenho de políticas públicas com escolha de estrutura e instrumentos adequados e para o enquadramento e tratamento jurídico apropriado dos desastres, mormente numa lógica de prevenção e de redução dos riscos e vulnerabilidades com fixação de obrigações vinculativas, importa começar por um recorte jurídico4, pelo menos harmonizado e sistemático, do que se entende por desastre, ainda que podendo deixar alguma margem de abertura que permita a sua evolução e adaptação aos avanços científicos e tecnológicos quanto à compreensão das suas causas, desenvolvimento e efeitos e quanto à sua abordagem técnica e jurídico-política.

Num primeiro momento, interessa estabelecer uma conexão directa entre desastre e risco, independentemente da sua natureza, estando, portanto, em causa a relação (multiplicativa) entre um determinado nível de probabilidades objectivas (e matematicamente calculáveis) de ocorrência de um evento e a amplitude, maior ou menor, dos seus impactos, em termos de danos em particular, sejam eles humanos, ambientais, ecológicos, geológicos e/ou sócio-económicos e culturais, considerando igualmente a sua abrangência e repercussão geográfica e intra e intergeracional. Assim, o risco será tanto maior quanto as probabilidades e/ou os danos, sendo os cenários de elevado risco (perigosos) classificados de desastres, catástrofes ou eventos extremos, pese embora estas duas últimas designações não sejam, por via de regra, adoptadas nos instrumentos jurídicos5, mesmo se apareçam, por exemplo em alguns acordos bilaterais.

Todavia, esta primeira incursão escamoteia a pluralidade de entendimentos sobre a definição de evento extremos, inclusivamente através das diferentes ciências e disciplinas, podendo no final gerar um diálogo de surdos, impedindo uma visão e abordagem holística e uma gestão eficaz e eficiente dos desastres.

Com efeito, de uma análise de cerca de duas centenas e meia de artigos e comunicações referentes ao tema6, por forma a identificar as definições de evento extremo utilizadas, resulta surpreendentemente, em primeiro lugar, que em 12% desses trabalhos não existe qualquer definição; dos outros, 27% têm uma definição (demasiado) genérica e 73% apresentam definições específicas (i.e. referem-se a fenómenos específicos); por outro lado, as definições repartem-se em cerca de 50% entre as “explícitas” e as “implícitas”, ou seja, que têm que ser extraídas de informação incluída nos textos. Um segundo resultado também inesperado decorre da avaliação de algumas das características dos desastres mais analisados, a saber, intensidade, frequência, duração e magnitude: só 15% dos artigos referem a intensidade; 12% a frequência, 26% a duração; e a magnitude em cerca de 50%. Um terceiro aspecto, que merece atenção, decorre de contabilizar dentre esses artigos os que incluem os impactos. Só um quarto dos trabalhos integra “impacto” na definição de “evento extremo”, mas dois terços incluem análises sobre o impacto. Não deixa de ser interessante complementar a informação com a forma como as diferentes disciplinas abrangem na definição o impacto: metade dos artigos recolhidos das ciências sociais fazem-no, enquanto na Engenharia e Ciências da Terra esse número é de 25%, sendo na Climatologia e Ecologia apenas de 10%. Já a proveniência dos artigos e comunicações que discutem o impacto é praticamente uniforme, tipicamente entre os 50% (Climatologia) e os 70% (Engenharia e Ciências da Terra). Também a linguagem utilizada pelos investigadores provenientes das diferentes áreas é diferente. Estendendo a análise aos dez vocábulos mais utilizados, as palavras “evento”, “perigo” e “modelo” surgem em quatro das seis áreas científicas consideradas, por sua vez “risco”, “vulnerabilidade” ou “alterações” apenas em duas e “resiliência” só numa.

No ramo das Ciências da Terra, um “perigo” é um evento natural que tem potencial para gerar um impacto negativo importante no Homem. Para a Engenharia, a visão é mais voltada para o projecto, pois o conceito de eventos extremos aparece associado a períodos de retorno (probabilidade) na definição das suas normas de acção e segurança. Em Ecologia, correspondem a perturbações que podem promover ou inibir a estrutura e as funções dos sistemas em áreas mais ou menos vastas. Quanto às Ciências Sociais, o uso dos termos “perigo” e “desastre” está de modo sistemático associado ao exame das relações complexas entre o Homem e o Ambiente e à forma como essas relações interagem para mitigar ou potenciar um “perigo” associado a eventos extremos; nesta perspectiva o termo “desastre” é utilizado para qualificar as consequências e impactos de um “perigo” após o seu evento.

A principal conclusão desta revisão literária é que para ir mais longe há que entender as linguagens e perspectivas próprias de cada um dos ramos do conhecimento envolvidos, sendo que a questão da prevenção parece ser predominante na Engenharia.

A figura seguinte sumaria os aspectos referidos e mostra de que forma um processo muito típico de Engenharia, a realimentação (feedback), deve ser utilizado quando se pensa em toda a cadeia (evento, impacto e resposta).

 

Figura 1

 

Em termos de Direito Internacional, incluindo soft law e instrumentos convencionais multi ou bilaterais8, a definição de desastre é relativamente homogénea9 10. Por exemplo, a Comissão de Direito Internacional (CDI), no projecto dos artigos 1 a 5 no documento sobre Protecção de Pessoas em caso de Desastre11, recorta-o como “evento ou sucessão de eventos calamitosos resultantes numa perda alargada de vidas humanas, elevados sofrimento e angústia humanos ou danos materiais e ambientais em larga escala, provocando assim a séria perturbação do funcionamento da sociedade”.

Em termos similares, a Convenção de Tampere, de 1998, sobre a Provisão de Recursos de Telecomunicações para a Mitigação de Desastres e Operações de Socorro, no n.º 6 do seu artigo 1.º, dispõe que um desastre consiste “[n]uma perturbação séria do funcionamento social, constituindo, de forma significativa e alargada, uma ameaça à vida humana, saúde, propriedade ou ambiente, seja por causa acidental, natural, de actividade humana, e seja por desenvolvimento súbito ou devido a processos de longo-prazo e complexos”.

Já o artigo 3.º do projecto da CDI, numa definição um pouco diferente e mais estreita12, estatui que é um desastre “uma calamidade ou uma série de eventos que produzam perdas massivas de vidas humanas, grave sofrimento humano e aflição aguda ou danos materiais e ambientais elevados, perturbando seriamente o funcionamento social”.

Em suma, identificam-se, em regra, três elementos principais na definição13:

  1. um evento ou conjunto de eventos de causa humana e/ou natural;
  2. riscos e danos elevados e/ou alargados;
  3. danos humanos, materiais e/ou ambientais (avultados).

De fora, parecem ficar as situações de conflitos armados14.

Daqui resultam algumas ilações importantes em termos de aplicação do Direito (internacional, em especial) relevante.

Por um lado, a separação estrita entre desastre natural e antropogénico assemelha-se, numa sociedade de risco e praticamente artificial pela intervenção humana continuada nos eco e geossistemas e clima, uma missão impossível15. Mesmo que a causa seja puramente natural, por exemplo uma inundação causada por chuvas torrenciais, a acção humana pode contribuir para a dimensão de desastre, seja pela via das alterações climáticas, seja pelo desmatamento, ordenamento do território, abertura de barragens, resposta desadequada, entre outros factores. Da mesma forma, a radiação ou poluição por hidrocarbonetos ou chuvas ácidas podem ser difundidas por elementos naturais como ventos ou correntes. Assim, a panóplia de situações calamitosas alarga-se, podendo abarcar de terramotos, vulcões, furacões ou pragas de gafanhotos ou desaparecimento das abelhas a catástrofes industriais, energéticas ou até de saúde pública com transmissão de patogénicos ou mesmo informáticas ou financeiras16, face à sua estreita conexão social e à economia real. Ademais, o próprio Direito, reconhecendo esta artificialidade quanto à distinção das origens dos desastres, tem evoluído no sentido de se focar mais nos seus impactos17.

Tal não impede, porém, que da vasta lista de instrumentos legais aplicáveis, alguns tenham efectivamente um âmbito de aplicação mais estrito, focando-se em determinadas causas (ex. derrames petrolíferos, doenças). Todavia, há que assumir, mesmo no plano jurídico, que a concepção de desastre é uma construção social, resultante de uma combinação de riscos e vulnerabilidades, e, portanto, que a distinção entre natural e artificial é, além de impossível, inconveniente18. Ainda assim, a definição mais estreita da CDI, parece deixar de fora eventos políticos e sociais por se focar em perturbações extremas19. Referir talqualmente que a definição deverá excluir a ideia de “força maior” ou “acto de Deus”, na linha de uma antiga ideia de surpresa e imprevisibilidade, tanto mais que hoje, mesmo que não se adivinhe o momento e impactos exactos, seja possível, como se retomará mais à frente, alguma margem de previsão20. Aliás, fora o evento calamitoso totalmente surpreendente, e a prevenção seria praticamente inútil e ineficiente.

Quanto à definição, na hipótese de actuação humana, não se exige um elemento volitivo activo ou omissivo intencional ou doloso. Para a sua classificação como desastre não importa se resultou de acto ou omissão deliberado, negligente ou se, pela sua natureza, foge ao controlo humano. No fundo, e cada vez mais, o Direito dos Desastres centra-se nos danos potenciais ou efectivos, mormente para efeitos preventivos, cuja importância assume hoje a centralidade no enquadramento jurídico. Posto de forma simples, só há desastre se houver (possibilidade de) danos (disruptivos/significativos). Mais, e mais relevante: é em função desse risco que se irão promover estratégias e medidas preventivas e de redução. A sua causa específica interessa, pois, na medida do risco criado/existente para, em primeira linha, se equacionar uma intervenção precaucionária.

Destas linhas emerge igualmente que o requisito dos danos não exige uma lesão efectiva bastando uma ameaça ou iminência de danos. Veja-se, por exemplo, a alínea c) do artigo 1.º da Convenção-Quadro de Assistência à Defesa Civil ou a Convenção de Tampere acima citada21.

Do recorte conceptual de catástrofe, e ainda quanto aos danos, não importa se apenas afectam o ambiente, poupando vidas, integridade física e emocional, saúde ou propriedade humanas22. A (potencial) lesão ao macro-bem jurídico ambiente e aos micro-bens que o constituem é, por si só, suficiente para a categorização como desastre, e portanto acionar a aplicação dos instrumentos jurídicos, embora tal dependa, como no caso humano, da gravidade e extensão dos danos. Ou seja, no Direito (internacional) dos Desastres, faz-se uma equivalência jurídica de valor entre bens jurídicos antrópicos e ambientais. No entanto, a referência explícita e alternativa (em vez de cumulativa) a lesões ao ambiente, deixa no ar a questão de saber se estarão em causa danos ambientais ou (também) danos ecológicos em sentido estrito23 e, se nestes, estarão em causa elementos bióticos (mesmo se ligados por questões ecossistémicas a elementos abióticos) ou igualmente, de forma independente, elementos abióticos, em especial geológicos e geomorfológicos24. Por exemplo, será considerado um desastre um terramoto que destrua por completo a estrutura rochosa do Grand Canyon ou um incêndio que queime milhares de hectares de floresta virgem no Bornéu ou os “pinheiros dinossauros” australianos? Isto é, reconhece-se, para efeito do Direito dos Desastres, os bens ambientais como tendo valor intrínseco, mesmo quando não estão em causa seres vivos e a sua ligação a uma base biótica numa lógica ecossistémica?

Ora, de forma sintética, por não ser este o objecto destas páginas, e na linha da Carta Mundial da Natureza de 1982, entende-se por dano ecológico, na esteira do n.º 2 do artigo 2.º da Directiva n.º 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril, uma alteração adversa significativa e mensurável do estado de um bem natural ou da qualidade dos seus serviços. Isto é, está em causa uma lesão ao próprio ambiente e não o risco relativo ao Homem e às coisas através do ambiente.25 Uma vez que a definição legal coloca, em alternativa, e sem qualquer relação funcional ou causal à questão humana e patrimonial, os danos ao ambiente, estes podem e devem ser interpretados em sentido estrito de dano ecológico.

Acresce que, deste modo, se vai ao encontro de uma visão menos antropocêntrica do Direito ambiental que tem vindo a se fortalecer jurídica e dogmaticamente nos últimos anos, seja em instrumentos legais internacionais e regionais de hard e soft law, seja em algumas constituições sul-americanas e leis nacionais, seja ainda pela via de uma perspectiva intergeracional que perpassa hoje este ramo do Direito.

Quanto às componentes abióticas, geológicas em particular26, julga-se que devem ser incluídas no dano ecológico, quanto mais não seja porque os elementos de geodiversidade são basilares para o planeta e ecossistemas e para a vida, humana incluída. Veja-se que a Directiva n.º 2004/35/CE, mesmo que sem referência expressa ao elemento geológico e geomorfológico, abrange os danos aos solos. Assiste-se aliás a uma atenção crescente dos ambientalistas, políticos e legisladores em torno do património geológico. A definição de desastre deve, portanto, incluir mais esta dimensão.

Por fim, sublinhe-se que conceptualmente o desastre implica riscos e danos significativos, efectivos e/ou potenciais (caso contrário não se justificaria uma preocupação com a prevenção e redução27). Todavia, tratando-se de um conceito indeterminado, tanto mais que certos bens ambientais não têm valor de mercado e se levantam questões éticas quanto ao valor estatístico da vida e da integridade física, não se assemelha fácil estabelecer a fronteira que separa um evento desastroso de um não desastroso. Elementos quantitativos (ex. elevado custo – incluindo de restauração natural, extensão geográfica e temporal, número de atingidos) e qualitativos (ex. severidade/gravidade, irreversibilidade, duração28, diversidade do dano, consideração das vulnerabilidades e capacidades/meios existentes29) terão que ser chamados à colação, tendo em conta as situações concretas do caso, assim como uma análise em termos absolutos e relativos e uma tradução monetária dos danos em causa. Assim, por exemplo, pelas suas características únicas, a perda por incêndio dos cerca de duzentos pinheiros dinossauros das Montanhas Azuis poderá ser considerado um desastre, ao contrário da queima de duzentos eucaliptos australianos.

 

2.2. Previsão de desastres: mais e mais caros?

Com a saliência actual das alterações climáticas e na ressaca de desastres como Fukushima, Brumadinho, os incêndios em Portugal e na Austrália ou o pânico agora gerado em torno do coronavírus, gera-se a crença de que os desastres se estão a tornar mais frequentes e mais gravosos. Mas será isso verdade? Os dados recolhidos pela Universidade de Leuven indicam que, entre 2000 e 2016, as catástrofes afectaram mais de 3,6 mil milhões de pessoas e com danos de mais de 2 biliões de dólares. Apesar de uma tendência de aumento da incidência e dos custos, verifica-se, nos últimos anos, um ligeiro decréscimo do número de calamidades30.

Na verdade, observa-se, por tipos de desastres, algumas variações. A frequência de derrames petrolíferos e marés negras tem diminuído, ao contrário de eventos climáticos31. Em rigor, aliás, a análise da frequência (e do seu aumento como percepcionado socialmente) não é fácil de discernir porque os registos e bases de desastres existentes têm vindo a alterar os seus parâmetros, além da complexa categorização entre tipos de desastres, mormente naturais e humanos, o que dificulta comparações e contabilizações32.

O 5.º relatório de avaliação do IPCC33 defende que o aumento da frequência de desastres naturais contribui para os impactos adversos das alterações climáticas e que, paradoxalmente, numa sociedade cada vez mais evoluída, a vulnerabilidade humana e dos sistemas naturais cresça, sendo esta um produto da intersecção entre processos sociais, que promovem desigualdades e agravam a situação de certos grupos, conjugado com aceleradores de risco de desastre como instituições fracas, mau planeamento territorial e urbanístico, variações demográficas, falta de educação para (a prevenção d)o risco, entre outros.

Daqui resulta, para além de uma questão de frequência e intensidade, um outro factor talvez mais facilmente observável e quantificável, a saber, um consenso crescente em torno da constatação do aumento das perdas. Ou seja, no global, haja ou não mais desastres, estes são cada vez mais caros, seja em termos humanos, patrimoniais, culturais ou ambientais, quanto mais não seja pela variação demográfica e intensificação da actividade económica, maior ocupação do território e consequente aumento do valor marginal dos bens ambientais. Tal pode impactar na sensibilidade social quanto ao risco, i.e., na delimitação das perdas que a sociedade está disposta a assumir (já que o risco nunca será zero e os custos de o aproximar desse valor podem ser incomportáveis face aos benefícios).

A figura seguinte representa a forma mais simples de um diagrama F-N, ilustrando a probabilidade (frequency, F) de ser excedido anualmente um dado evento que conduza a um determinado número de mortos (fatalidades, N). Pode igualmente ser representada no eixo dos xx outra variável para definir as consequências. A curva superior traduz o limite acima do qual as consequências não são toleráveis pela sociedade e como tal medidas de prevenção e mitigação têm de ser tomadas; a curva inferior, por seu turno, representa o limite abaixo do qual a sociedade não levanta qualquer exigência de mitigação; a região entre as duas curvas é designada em regra pelo acrónimo inglês (ALARP, As Low As Reasonably Possible).

 

Figura 2

 

 

2.3. Proliferação da dogmática e das políticas em torno dos desastres

A saliência dos desastres numa sociedade de risco cada vez mais globalizada e interconectada alimenta uma curiosidade crescente quanto ao estudo desta matéria e à sua gestão e enquadramento técnico, político e jurídico, uma vez que boa parte das soluções e estratégias propostas pelos peritos obrigará à sua transposição político-legislativa.

Assiste-se, destarte, a um movimento de maior atenção e densificação da temática dos desastres, com o aparecimento, nos últimos anos, não só de instrumentos político-jurídicos mais ou menos vinculativos e multinível (local, nacional, regional e internacional), como de centros de investigação35 e publicações especializadas, algumas das quais aqui referenciadas ao longo do texto. Constata-se, porém, que, à semelhança do debate entre Rousseau e Voltaire sobre o terramoto de Lisboa de 1755, permanecem hoje grandes discussões em torno desta matéria, a começar pela terminologia e definição de desastre.

A proliferação de escolas de pensamento, mesmo se aumentando a reflexão contribui, todavia, para algum desassossego e abordagens e compreensões diferentes dos desastres e da sua gestão, mormente sobre o que se entende por prevenção e o que tal implica, gerando inevitavelmente ineficiências e descoordenação que cerceiam o potencial preventivo desejado. Por outro lado, atendendo ao carácter transversal da questão dos desastres das hard sciences até às ciências sociais e humanas, a panóplia de centros de investigação, especialistas, académicos e suas publicações e acções de divulgação e conhecimento cobrem perspectivas e entendimentos muito díspares, mesmo quando se tenta a sua integração, potenciando, por vezes, um diálogo de surdos, incompreensões (inclusive terminológicas e metodológicas) e ineficiências que causam ruído para os tomadores da decisão final de construção e implementação de políticas preventivas.

A própria forma como o mercado da investigação, consulta e da academia se encontra constituído dificulta esforços verdadeiramente transdisciplinares e integradores. Por exemplo, em especial em países anglo-saxónicos por questões de concorrência para a obtenção da tenure, o número de publicações em certo tipo de periódicos de referência é fundamental. Ora, cada área tem o seu conjunto de periódicos de referência preferencial e como a prática instituída é de apenas aceitação de novos artigos, isto dificulta o acordo entre pesquisadores e estudiosos de várias disciplinas e mina, à nascença, esforços colectivos e coordenados. Tanto assim é que as iniciativas editoriais temáticas no plano dos desastres, designadamente revistas, se especializam dentro da própria esfera das catástrofes, multiplicando-se, isto já para não falar na questão da língua da publicação36. Em suma, constata-se a proliferação e diversificação da investigação e, consequentemente, da dogmática dos desastres. No campo do Direito, nomeadamente, surgem não só diferentes linhas consoante as fases mais estudadas (ex. prevenção ou resposta) mas também das causas (ex. catástrofes naturais, alterações climáticas, desastres industriais, desastres nucleares) e da ligação a outros ramos do Direito (ex. Humanitário, dos Direitos Humanos, do Ambiente).

Não só a academia está mais atenta aos desastres, como as políticas e estratégias locais, nacionais, regionais e internacionais (a que se referirá com mais atenção no ponto 2) se vêm multiplicando, acompanhadas por um enquadramento jurídico hard e soft cada vez mais prolífero, sofisticado e denso.

Nestes termos, parece fazer cada vez mais sentido o paradoxo identificado por White37 sobre haver mais estudos, mais prevenção mas mais desastres, suscitando assim a natureza de oxímero do princípio do desenvolvimento sustentável que, ironicamente, serve de base ao projecto de Integrated Research on Disaster Risk liderado pelo International Science Council e pelo Gabinete das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDDR)38.

 

2.4. Limites na previsão, compreensão e prevenção de desastres

Retomando um aspecto acima antecipado a propósito da origem dos desastres, a antiga distinção entre natural e antrópico permitia retirar ilações quanto à previsibilidade e “prevenibilidade” dos riscos, sendo os primeiros imprevisíveis e “impreveníveis” ao contrário dos segundos39. Ora, como se notou supra, a interacção complexa entre elementos naturais e humanos impede esta fácil dicotomia. Acresce que os avanços científicos e tecnológicos têm desmistificado os “actos de Deus” e permitido perceber e antecipar riscos naturais, promovendo a sua maior previsibilidade e até prevenção. Basta pensar nos ciclos de chuva e seca.

Tanto é, aliás, mais verdade se se considerar que mais do que se focar na origem do (risco de) desastre, há que adoptar uma abordagem funcional e teleológica da previsibilidade, e consequentemente de prevenção dos riscos, que se centra nos efeitos e portanto nos seus alvos humanos, patrimoniais, culturais ou ambientais, considerando as suas especiais vulnerabilidades de modo a reforçar a sua resiliência40. Com efeito, mais do que a exposição ao risco, as vulnerabilidades e diferenças de capacitação técnica e socio-económica dos afectados explicam melhor os resultados catastróficos41.

Ainda assim, mesmo na sociedade mais tecnológica, a antecipação dos desastres e a motivação para a pré-acção está longe de uma redução do risco a zero ou de previsão certeira, tanto que os relatórios sobre políticas de prevenção de desastres giram mais em torno dos seus limites do que das suas contribuições, inexistindo inclusivamente uma base de dados de desastres evitados42. Posto de outra forma, para além do risco, há que equacionar uma margem de incerteza e até de ignorância. O conhecimento que existe é importante e necessário mas por si só não chega para prevenir desastres e lesões. Ora face a um acumular de danos humanos, materiais e ambientais, o desânimo pode instalar-se e virar-se contra a própria política e estratégia de prevenção por ser considerada ineficiente e inútil, tanto mais que nunca como hoje houve tanto produzido e implementado em termos de prevenção de desastres43. Por outras palavras, como gerir expectativas sociais e públicas e lidar com a impossibilidade de eliminação dos desastres e contentar-se apenas com a sua redução e do risco, tanto mais que este cenário é propício a crenças e atitudes enviesadas, emoções exacerbadas e desvios cognitivos?

Se o conhecimento (técnico-científico) não basta no plano da prevenção, tal significa que muito dependerá das escolhas jurídico-políticas feitas (mesmo que elas também não sejam a varinha de condão que reduza o risco de desastre e os danos a zero). Isto é, num ambiente de escassez e de múltiplas solicitações recorrentes, há que ponderar a hierarquia das prioridades e a alocação dos recursos percebendo, porém, quem tem legitimidade mas também capacidade (e qual a capacidade) para decidir44. Mais, há que compreender a interacção entre o Homem e o ambiente em que vive para uma melhor prevenção, até porque o desastre é uma construção social que perdura para lá da fase de recuperação e restauração, equacionando bem as vulnerabilidades, de maneira a assegurar maior resiliência45.

Nesta senda, e porque os desastres se repetem, importa igualmente perceber porque não se aprende com as experiências passadas, seja enquanto comunidade, seja enquanto decisor político. Os insights da Economia Comportamental, da Teoria da Escolha Pública e da Economia Política podem auxiliar. Sem se querer aprofundar um tema que já se abordou noutra sede46, basta recordar que os seres humanos, seja enquanto cidadãos, seja enquanto decisores políticos ou técnicos, têm uma racionalidade e vontade limitadas, volúveis a vieses e emoções que, entre outros aspectos, sub ou sobrevalorizam probabilidades e conduzem a decisões erradas e ineficientes, necessitando, por exemplo, de feedback continuados e orientadores quanto aos seus comportamentos. No caso da Administração, nos seus diferentes patamares, cabe igualmente não esquecer fenómenos de captura de interesses (ex. grupos de interesse na prevenção como empresas de engenharia responsáveis pela construção de diques ou barragens), o mercado do voto ou a não participação pública dos grupos mais vulneráveis47 (e por maioria de razão, por impossibilidade natural, do ambiente). Ademais, somam-se diferenças culturais e multinível, que dificultam a cooperação, até por evidenciarem interesses, capacidades e responsabilidades diversos.

Acresce que a multiplicação de legislação, mormente preventiva, implica também a multiplicação de instituições em vários degraus com competências nesta matéria, incluindo transversais de cooperação, podendo criar, deste modo, e paradoxalmente, problemas de coordenação que estorvam, no final, uma prevenção efectiva48. A descoordenação pode talqualmente resultar do aumento (paliativo e de contenção da opinião pública/eleitores) da legislação na ressaca de desastres com a revisão da existente e com novas disposições, no intuito de aumentar no imediato a prevenção, e que se atropelam, contradizem, criam novas dúvidas e entropia49.

Por fim, por muito que a ciência tenha evoluído, se não é fácil calcular os danos de um desastre, mais difícil será contabilizar o valor dos custos prevenidos e mais ainda comparar custos prevenidos por diferentes estratégias de prevenção (até pela evolução temporal de certas variáveis como demográficas ou actividade económica). De resto, o foco nas perdas reforça uma dimensão pessimista ligada às estratégias e políticas preventivas e pode distorcer, por via do viés cognitivo da aversão a perdas, a aceitação destas por parecerem ineficientes ou inúteis. Focar de preferência e relembrar perdas evitadas pode ajudar a motivar os stakeholders e alinhá-los com a prevenção50.

 

3. De um Direito desastroso a um Direito dos desastres

3.1. Direito internacional

O Direito Internacional dos Desastres abrange, mesmo se de forma simplista51, várias fases: a prevenção, a redução e a mitigação de riscos, a preparação, a assistência humanitária (e ambiental52) imediata de socorro, a recuperação precoce e a restauração. O número de convenções e outros instrumentos de hard law e de soft law que directa ou indirectamente tratam destas questões estende-se a muitas dezenas53, apresentando uma natureza algo fragmentada e pouco sistematizada, com contradições e conflitos positivos e negativos entre os documentos legais, nem sempre facilmente aplicáveis e coordenáveis. A maioria centra-se em torno de desastres de causa e com riscos humanos, delimitando-se em sectores específicos como o transporte e poluição por hidrocarbonetos, acidentes industriais ou nucleares, até por ser mais fácil abordar a questão da responsabilidade. Mais, toca em ramos diversos do Direito Internacional, com maior ou menor autonomia científica, como dos Direitos Humanos54, Humanitário, do Ambiente, da Água, das Alterações Climáticas ou do Património Cultural.

Esta amalgama algo desconexa de fontes55, sem qualquer tratado global e abrangente sobre desastres56, dificulta uma autonomização científica de um Direito Internacional dos Desastres, que se encontra, portanto, na sua infância, levando até que alguns autores o classifiquem como uma overarching umbrella que cobre áreas diferentes do Direito na perspectiva da gestão do desastre57, ou como um pot pourri de instrumentos vinculativos variados58. Tudo isto gera algumas confusões na compreensão, interpretação e aplicação do Direito, já que, em especial, princípios basilares como a prevenção assumem delimitações diferenciadas consoante o ramo, pelo que enxertar ou exportá-los acriticamente para o enquadramento dos desastres pode revelar-se desadequado59. Tal não significa, porém, que não se possam retirar lições do recorte dado em áreas em que a dogmática é mais desenvolvida, designadamente quanto à prevenção, no plano do Direito ambiental e dos Direitos Humanos. Todavia, deve haver um cuidado de adequação às especificidades da temática dos desastres.

Da sua análise resulta, sobretudo a partir da década de 90 do século passado, e tendo o Quadro de Acção de Hyogo (2005-2015) como símbolo da viragem de paradigma e de ultrapassagem de uma fase embrionária, uma alteração de um Direito mais centrado na resposta e socorro para um Direito de prevenção de desastres e de redução do risco, com uma tónica mais integradora60. Isto não significa que antes de Hyogo a prevenção não se encontrava presente no Direito dos Desastres61.

Com efeito, já a Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) 2717(XXV), de 15 de Dezembro de 1970, sobre a Assistência em casos de Desastres Naturais, convida o Secretário-Geral da ONU a submeter recomendações sobre o planeamento pré-desastre nos planos nacional e internacional. Esta dimensão de planeamento pré-desastre, assim como de estudo, prevenção, controlo e previsão de desastres também se encontra como uma das atribuições do Gabinete das Nações Unidas para o Socorro de Desastres, instituído em 1971, da mesma forma que a dimensão preventiva também inspira o baptismo da década de 90 como a “década internacional para a redução dos desastres naturais” com a Resolução AGNU 42/169, de 11 Dezembro de 1987, que consagra, no seu preâmbulo, “a responsabilidade do sistema das Nações Unidas na promoção da cooperação internacional no estudo dos desastres naturais de origem geofísica e no desenvolvimento de técnicas para mitigar os riscos que daí resultam, assim como na coordenação do socorro, preparação e previsão de desastres, incluindo previsão e alerta precoce”.

A Resolução da AGNU 46/182, de 19 de Dezembro de 1991, ainda que referente à coordenação da assistência humanitária, prevê, por sua vez, expressamente uma atenção especial à prevenção e à preparação por parte dos Governos e da comunidade internacional. Ora, nesta Resolução, como justamente assinala Aronsson-Storrier62 que aqui segue, a prevenção surge associada à avaliação, previsão e mitigação de desastres, da mesma maneira que a preparação se confunde com os alertas precoces, ao contrário de soluções mais recentes, como por parte da Comissão de Direito Internacional que, em 2007, no Memorando do seu Secretariado sobre a Protecção de Pessoas em caso de Desastres, reconduz a mitigação e a preparação a uma parte do socorro e alerta precoce. Já a Estratégia de Yokohama para um Mundo mais Seguro (1994-2004), possivelmente inspirada pela Conferência do Rio dois anos antes, acentua mais do que os documentos anteriores, em que as referências são passageiras, o foco na prevenção, advogando mesmo que a prevenção de desastre, mitigação e preparação são melhores para alcançar os objectivos da Década do que uma estratégia baseada na resposta, pese embora sem o estabelecimento de compromissos formais para os Estados. O seu Princípio 9 e parágrafos 9 d) e e) sublinham a relação entre a capacitação financeira, social e técnica, a protecção ambiental, o desenvolvimento sustentável e a prevenção, redução e mitigação de desastres (cujos conceitos se confundem, tal como sucede na Convenção de Tampere de 1998). Contudo, o cerne do documento centra-se na mitigação63, sendo a previsão encarada como um suplemento adicional64.

Por sua vez, a Resolução AGNU 54/219, de 3 de Fevereiro de 2000, que estabelece a Estratégia Internacional para a Redução de Desastres, em combinação com a instituição do Gabinete das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastre (UNDRR, ex-UNISDR65), a 22 de Dezembro de 1999, apesar da sua natureza de soft law, exemplificam bem a tendência crescente para uma viragem da resposta para a prevenção, também patente na Convenção-Quadro de Assistência à Defesa Civil, de 2000, pese embora a prevenção surja no âmbito da assistência nos termos da sua alínea d) do seu artigo 1.º.

O Quadro de Acção de Hyogo, adoptado por 168 países na sequência da II Conferência Mundial sobre a Prevenção de Catástrofes, em Janeiro de 2005, no Japão, almeja fundar e implementar um instrumento de gestão adequado e estratégico internacional para a efectiva e eficiente redução do risco de desastre que se baseia na preparação, prevenção e mitigação, incentivando uma cultura de segurança centrada no aumento e reforço da resiliência e na sensibilização e consciencialização do risco por parte dos agentes públicos e das comunidades66. Destarte, são defendidas cinco acções prioritárias, a saber: 1 – Tornar a redução do risco de desastre uma prioridade; 2 – Conhecer os riscos e agir; 3 – Construir e sensibilizar para uma cultura de segurança e resiliência; 4 – Reduzir o risco; 5 – Preparação e prontidão. Ou seja, pretendem-se assegurar três fins estratégicos: 1 – A integração da redução do risco de desastre nas políticas e planeamento de um desenvolvimento sustentável; 2 – Desenvolvimento e reforço das instituições, capacidades e instrumentos para diminuir vulnerabilidades; 3 – Integração sistemática da abordagem de redução do risco na implementação da preparação, resposta e recuperação de emergências. Em suma, o Quadro de Acção de Hyogo prossegue como meta-objectivo a promoção da resiliência dos Estados e comunidades aos desastres e coloca, designadamente nos seus parágrafos 12 a), 13 i) e 18, a tónica numa cultura de prevenção e de abordagem holística da redução do risco de desastres.

Da mesma altura, a Convenção regional da ASEAN relativa à Gestão de Desastre e Resposta de Emergência inclui, nomeadamente no n.º 4 do artigo 3.º, uma prioridade à acção de prevenção e mitigação e a medidas precaucionárias para prevenir, monitorizar e mitigar os desastres.

Dois outros marcos fundamentais interessam na consolidação do princípio da prevenção de desastres no Direito Internacional: os trabalhos codificados da CDI sobre a protecção de pessoas em caso de desastre, iniciados em 2007, e o Quadro de Sendai 2015-2030.

Quanto ao primeiro, logo no parágrafo 27 do Memorando inicial do CDI, dispõe-se que “As actividades de prevenção, mitigação e preparação estão em diferentes pontos do contínuo de acções realizadas antes do início de um desastre (e cada vez mais como parte dos esforços de recuperação após um desastre). Enquanto a prevenção se concentra em evitar o impacto adverso de um perigo, as acções de mitigação dizem respeito a medidas estruturais ou não estruturais específicas para limitar um impacto adverso. Preparação refere-se às medidas implementadas com antecedência para garantir uma resposta eficaz, incluindo a emissão de alerta precoce oportuno e eficaz e a evacuação temporária de pessoas e bens”.

Ademais, o n.º 1 do artigo 9.º da Proposta consagra que “cada Estado deve reduzir o risco de desastres tomando as medidas apropriadas, incluindo legislação e regulação, para prevenir, mitigar e preparar para desastres.” Parece pois, ainda que numa lógica de ciclo de desastre e não tanto funcional, aceitar a prevenção (mesmo se não estatuída como princípio e se integrada numa mais vasta redução de risco de desastre). Não deixa de ser curiosa a referência a medidas apropriadas que reconduz para o princípio ambiental da devida diligência67, revelando a inspiração do Direito ambiental, pelo que naturalmente a sua extensão para o princípio da prevenção não se assemelha inadequada, permitindo portanto uma importação dogmática (mesmo se crítica e adaptada).

Já o Quadro de Sendai claramente estatui na Prioridade 1, no seu parágrafo 26/1, a promoção de uma cultura de prevenção, resiliência e cidadania responsável. A ideia volta a ser retomada nos parágrafos 36 a) e d) e 46 c). A prevenção assume-se pois como um princípio orientador por excelência68, como decorre do parágrafo 19 a), incluindo a responsabilidade primária dos Estados de prevenir e reduzir o risco de desastres, naturais ou humanos e até sanitários, através do envolvimento institucional, social e internacional, exigindo portanto uma governança multinível sistemática e adequada do risco. A referência à prevenção, que surge aqui cerca de vinte e uma vezes, passa, nomeadamente nos parágrafos 6 e 17, por evitar novos riscos; deve ser, nos termos do parágrafo 7, mais abrangente, multissectorial e multi-risco centrada na protecção das pessoas; promover a resiliência, de acordo com o parágrafo 17, graças a precaver e reduzir a exposição a riscos e vulnerabilidade a desastres e aumentar a preparação para resposta e recuperação, mormente através de investimento público e privado (parágrafo 29). Mais, assume-se, no parágrafo 19 k), que na fase de recuperação, reabilitação e reconstrução pós-desastre, é essencial impedir a criação e reduzir o risco de desastre, “construindo de novo melhor” e aumentando a educação e consciencialização públicas sobre esta matéria. Aliás, como recorda o parágrafo 23, compreender o risco é fundamental para a sua avaliação pré-desastres, mas também para a para prevenção e mitigação e para o desenvolvimento e implementação de preparação apropriada e resposta eficaz a desastres.

Fica assim claro não só, por um lado, a centralidade e o carácter fundacional da prevenção na nova compreensão dos desastres e da sua gestão, perpassando pelas quatro prioridades definidas69 juntamente com a mitigação e preparação, na linha do que resulta dos artigos 2.º e 9.º do Projecto de 2016 da CDI de codificação da Protecção de Pessoas no caso de Desastre70, como, por outro lado, que se trata da primeira fase de um processo que abarca talqualmente a redução do risco, mitigação, preparação, resposta, recuperação e reabilitação, sendo que estas últimas devem, como se acabou de mencionar, ser estruturadas de forma a evitar e diminuir novos riscos de desastre, fechando pois o círculo.

Em suma, defende-se não só uma cultura de prevenção mas igualmente uma abordagem holística que relaciona estreitamente a prevenção com “a resiliência económica, social, sanitária e cultural de pessoas, comunidades, países e seus activos, bem como do meio ambiente”71. Noutras palavras, vive-se agora, muito por via da soft law72, uma “segunda geração” de Direito Internacional dos Desastres, focada na prevenção em sentido lato, que inclui a redução de risco de desastre, mitigação e a preparação73. Aliás, a literatura jurídica mais recente fala de um Direito (Internacional) de Redução do Risco de Desastre (DDR Law)74 75.

Prefere-se aqui, ao contrário, e apesar da terminologia encontrada nos mais recentes desenvolvimentos doutrinários e da UNISDR que se vai citando ao longo do texto, inverter a ordem e colocar a redução de risco dentro do princípio da prevenção (que para nós inclui a precaução76), juntamente com a mitigação e preparação, que no fundo, constituem actividades práticas daquele, enquanto verdadeiro princípio normativo77. Em primeiro lugar, porque a compreensão da redução de risco de desastre parece demasiado estreita no n.º 2 do artigo 9.º do projecto da CDI quando reconduz as suas medidas a avaliação de risco, colecção e difusão de informação e instalação e operação de sistemas de alertas precoces. Em segundo lugar, pela dimensão dogmática do princípio da prevenção desenvolvida em outras áreas (em especial no Direito ambiental78) e exportável em grande medida para o Direito dos Desastres, numa proveitosa fertilização cruzada entre áreas que se sobrepõem.

Isto é tanto mais verdade quanto se observa que o crescimento do Direito (Internacional) dos Desastres (e da sua dogmática) tem passado por, nos últimos anos, uma abordagem integrada multissectorial e multi-risco79 (considerando, entre outros, as alterações climáticas, o património cultural, o ambiente, o desenvolvimento económico ou direitos humanos). Por exemplo, a Conferência das Nações Unidas de 2012 sobre o Desenvolvimento Sustentável aborda a resiliência aos desastres num contexto de desenvolvimento sustentável que considere, nomeadamente, a erradicação da pobreza80. O Quadro de Sendai ilustra bem esta via holística com referências frequentes ao clima, ambiente, urbanismo e ordenamento do território, desenvolvimento económico, pobreza, saúde, cultura, direitos humanos, entre outros, logo nos parágrafos 4 a 6 e 19 c). Também os trabalhos da CDI, como aqui se foi sublinhando, reconhecem a inspiração, extensão e analogia de outras áreas do Direito, mormente do Ambiente e dos Direitos Humanos81, o que permite a extrapolação dos seus standards de protecção, sobretudo ligados a vulnerabilidades e sensibilidades, para o Direito dos Desastres82.

Face ao aprofundamento mais rápido de alguns sectores, até por questões políticas e de saliência, como os direitos humanos e o ambiente e alterações climáticas, poderá, contudo, assistir-se a uma evolução algo assimétrica do Direito dos Desastres a reboque daqueles83. Tal poderá provocar, apesar da tentativa holística, alguns desequilíbrios e desadequações mas, por outro, não só acelerar o seu progresso e consolidação, sobretudo em termos de compromissos vinculativos e obrigações, mas talqualmente imbuir o Direito dos Desastres de um pendor jus-dogmático mais aproximado, muito provavelmente, dos Direitos dos Direitos Humanos, do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável.

 

3.2. Direito regional e europeu, em especial

O Direito regional dos desastres, à semelhança da soft law, tem conhecido um desenvolvimento significativo, em especial na Europa, Américas e Caraíbas e Ásia84, com vários instrumentos vinculativos e institucionais de coordenação e cooperação, alguns bilaterais, que abrem as portas a uma “regionalização” do Direito dos Desastres, que, com vantagens de colaboração mais fina, pode ser insuficiente num desastre global85.

No caso da União Europeia, o n.º 1 do artigo 196.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia coloca por duas vezes expressamente a tónica na prevenção ao “incentiva[r] a cooperação entre os Estados-Membros a fim de reforçar a eficácia dos sistemas de prevenção das catástrofes naturais ou de origem humana e de protecção contra as mesmas”, tendo a acção da União por objectivo, entre outros, logo na alínea a) “apoiar e completar a acção dos Estados-Membros ao nível nacional, regional e local em matéria de prevenção de riscos, de preparação dos intervenientes na protecção civil nos Estados-Membros e de intervenção em caso de catástrofe (…) na União”. Ou seja, constitucionaliza86 um princípio de prevenção no âmbito da protecção civil e dos desastres que, aliás, já decorre de uma tradição do Direito derivado europeu, bastando para tal recordar a Directiva 82/501/CEE, de 24 de Junho de 198287, relativa à prevenção de acidentes industriais graves, cujo fim era, antes de mais, a prevenção de riscos tecnológicos (Seveso I), ou as suas alterações e substituição de 1996 de 2012 (Seveso II e Seveso III)88, quanto ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, ou, igualmente, a Directiva 2007/60, de 23 de Outubro de 2007, relativa à avaliação e gestão de riscos de inundação, estabelecendo-se quanto à prevenção um standard de recurso “ao estado da arte da «riscologia», isto é, de recurso às melhores técnicas disponíveis89 90.

A tónica preventiva é, aliás, bem salientada na Comunicação da Comissão “Abordagem comunitária sobre a prevenção de catástrofes naturais ou provocadas pelo homem”91 de 2009, que, por um lado, define a abordagem europeia para uma melhor antecipação e gestão das catástrofes, propondo, para o efeito, um conjunto de medidas a aplicar a nível da UE. Por outro, prepara o terreno para um relevo acrescido da aposta na prevenção na legislação revista em matéria de protecção civil da UE, a saber a Decisão n.º 1313/2013/UE relativa ao Mecanismo de Protecção Civil Europeu92, que lança as bases para a aplicação de uma política transversal e integrada de gestão do risco de desastres, desde a prevenção e preparação à resposta, com um conjunto ambicioso de iniciativas a executar pela Comissão (ex. avaliação e capacidade de gestão dos riscos e avaliações voluntárias pelos pares).

A Comunicação define três blocos como principais medidas no âmbito de uma política eminentemente preventiva:

  1. o desenvolvimento dos conhecimentos existentes, incluindo a recolha de informações comparáveis sobre as causas de desastres, melhores práticas de gestão de riscos e levantamento das zonas de risco da UE;
  2. o alargamento da cooperação aos intervenientes na gestão de catástrofes por via de uma rede de especialistas com o intuito de promover e melhorar a coordenação das medidas da europeias, nacionais e locais e o melhoramento da informação aos cidadãos (número de emergência – 112);
  3. a utilização de instrumentos legislativos e financeiros existentes para acções preventivas, designadamente quanto à proteção civil, desenvolvimento rural, proteção do ambiente, da investigação e tecnologias da informação e comunicação.

Por sua vez, a Decisão 2019/420/UE pretende aprofundar ainda mais as medidas preventivas associadas ao Mecanismo de Protecção Civil Europeu e preocupa-se com as limitações verificadas no terreno, mormente nos incêndios rurais e inundações (que tenderão a ser agravados com as alterações climáticas), e que revelam a necessidade de fortalecimento da coordenação entre as múltiplas entidades envolvidas na gestão de desastres (em especial, regionais e locais, por serem as primeiras a responder) de modo a evitar ineficiências e assegurar maior interoperacionalidade, assim como de uma mais eficaz e rápida partilha e comparabilidade de informação e de uma maior capacitação institucional, técnica e financeira. A elaboração das cartas de riscos surge como um instrumento crucial de reforço das medidas de prevenção e da capacidade de resposta, tal como as medidas destinadas a diminuir a vulnerabilidade da população, económica, ambiental e cultural, já para não falar num fomento da cooperação supranacional.

Deverá também garantir-se a coerência com outra legislação aplicável da União quanto a prevenção e gestão do risco de desastres, compreendendo medidas transfronteiriças, nomeadamente ameaças sanitárias graves, conforme a Decisão n.º 1082/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho. Ademais, os programas de cooperação territorial ao abrigo da política de coesão prevêem medidas específicas para considerar na resiliência aos desastres e na prevenção e gestão dos riscos e recordam a importância de se procurar assegurar uma abordagem integrativa e holística. No final, todas as medidas devem coerentemente ajudar no cumprimento dos compromissos internacionais, como o Acordo de Paris, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Quadro de Sendai.

A política de gestão europeia do risco de desastre tem, portanto, como núcleo central a prevenção de desastre e a redução do risco e auxiliar os Estados-membros a aumentar a sua resiliência. As acções de prevenção visam reduzir os impactos e fortalecer as sociedades para futuros desastres, mormente robustecendo a resiliência das infra-estruturas, ecossistemas e das comunidades da UE. Neste sentido, a política preventiva tem uma dimensão funcional que excede a perspectiva tradicional de ciclo de desastre, ligando-se tanto a actividades de redução de risco como de preparação, resposta e recuperação.

A Comissão Europeia, com base em avaliações de risco nacionais, analisou os principais riscos de desastres na Europa, dando azo à publicação do Overview of Natural and Man-made Disaster Risks the European Union may face93, com indicação dos mais relevantes e apontando novas ameaças, designadamente migratórias, sanitárias e ecológicas.

A UE partilha os seus conhecimentos com as autoridades nacionais e financia missões consultivas em áreas propensas a desastres, incluindo extra-comunitárias, que apresentam recomendações de gestão do risco. Ademais, o Centro de Conhecimento em Gestão dos Riscos de Desastres94 fornece aos Estados-Membros e à comunidade de protecção civil um repositório online de resultados de pesquisas relacionadas com desastres, assim como de todos os projectos financiados pela UE para a gestão do risco de desastres, e acesso a uma variedade de redes e parcerias. Acresce um sistema de suporte técnico aos Estados-Membros para a realização de avaliações de riscos e da capacidade de gestão de riscos, ao qual se junta um programa independente de revisão por pares, voluntário, em que especialistas de países europeus examinam a instalação e operação de outro numa área relacionada à gestão de riscos.

Por outro lado, o poder económico da UE e a promessa de acesso ao seu mercado permite-lhe também usar a extraterritorialidade para a prevenção de desastres, com a imposição unilateral dos standards europeus a outras jurisdições95. Tal é patente no caso do Regulamento REACH 1907/2006/CE relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas e que assume, no n.º 3 do seu artigo 1.º, sustentar-se no princípio da precaução, de modo a garantir assegurar um elevado nível de protecção da saúde humana e do ambiente através de um sistema de no data, no market.

Por fim, o reforço da cooperação internacional, em especial através do Quadro de Sendai, representa uma outra trave mestra da política europeia de prevenção de desastres. Assim, em 2016, a Comissão Europeia lançou um plano de acção para a implementação daquela Estratégia, por um período de cinco anos, promovendo a redução do risco de desastres e a sua integração transversal nas políticas da UE.

Ainda no espaço europeu, mas agora no âmbito do Conselho da Europa, cabe chamar a atenção para o Acordo Europeu e Mediterrânico para os Riscos Graves, instituído pela Resolução 87/2, que funciona como plataforma de cooperação aberta para garantir maior prevenção, protecção contra riscos e preparação na eventualidade de desastre grave. De assinalar o foco da sua actuação em torno da sensibilização social para o risco de catástrofe, uma preocupação mais vincada com a governança do risco e os grupos mais vulneráveis, assim como uma atenção especial à temática climática e de protecção do património cultural. Também a Resolução 1087/1996, na ressaca de Chernobyl, insta a uma actuação preventiva no âmbito nuclear.

Já no âmbito do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, três processos sobressaem em matéria de desastre, incluindo deveres de medidas preventivas. O primeiro caso, Öneryildiz vs Turquia96, identifica um conjunto de obrigações que os Estados que permitem actividades perigosas devem assumir para prevenir e reduzir riscos, concluindo que a falha das autoridades turcas em tomar medidas precaucionárias constitui uma violação do direito à vida e à propriedade na queixa em apreço. Em Burdov vs Rússia97, que pese ser centrado na efectivação do pagamento de compensação a lesado que trabalhou nas operações de emergência de Chernobyl, e em que o Tribunal defende a obrigação dos Estados se precaverem em termos orçamentais e de seguros para a indemnização a vítimas, acentua-se, no geral, a convicção de que, no Direito Internacional (dos Direitos Humanos), há um consenso em torno de um dever de implementação de medidas de reforço da resiliência que devia ser considerado ao nível do Direito nacional, até para evitar e, portanto, prevenir um deslize após a recuperação98. Finalmente, em Budayeva e Outros vs Rússia99, a Corte alerta para falhas em matéria de preparação, sensibilização da população e de alertas precoces que resultam na morte de cidadãos por deslizamentos de lama devido a ruptura do dique e sistema de contenção, estendendo assim o conceito de prevenção e medidas preventivas para lá da terminologia típica da UNDRR. Todavia, o Tribunal não vai ao ponto de centrar a sua argumentação na não reparação do dique e de fixar obrigações legais decorrentes da prevenção100.

 

3.3. Direito nacional

Apesar de estas páginas se terem centrado essencialmente em Direito Internacional, como se antecipou acima, faz igualmente sentido dar uma olhadela ao Direito nacional português101. São três as principais razões. Por um lado, o Direito Internacional existente em matéria de desastres vai criar obrigações para os Estados que se traduzirão, designadamente, em legislação interna. Por outro lado, o Direito nacional é fundamental para efeitos de prevenção ou de socorro, agilizando os esforços102. Por fim, face ao subdesenvolvimento do Direito Internacional em contraponto de um enquadramento jurídico nacional mais consolidado em alguns países103, aliás, há já bastante tempo, interessa olhar para as soluções internas para antever princípios, regras e uma lógica de sistematização104. Aqui, procurar-se-á, por razões temáticas, em centrar-se em torno da prevenção.

Em primeiro lugar, pela recepção interna do Direito Internacional e, em particular do Direito Europeu, dificilmente a tónica não se centraria na prevenção (até por uma questão de hierarquia das normas), como, por exemplo, os diplomas que transpõem as Directivas Seveso105 ou Inundações106 a salientar a componente preventiva, envolvendo a primeira a Agência Portuguesa do Ambiente no plano dos instrumentos de prevenção e ligação à UE, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil e as câmaras municipais para o planeamento de emergência externo e, quanto a estas últimas, também o ordenamento do território, e por fim a IGAMAOT para efeitos de inspecção.

Em segundo lugar, a lógica transversal da temática dos desastres, com a sua ligação intrínseca a áreas como o ambiente ou o ordenamento do território, implica uma importação dos princípios destes que, no caso português, incluem à cabeça a prevenção. A este propósito, e apenas a título exemplificativo, o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT), aprovado pela Lei n.º 58/2007, de 4 de Setembro, agora substituído pela Lei n.º 99/2019, de 5 de Setembro107, sublinha a dimensão preventiva logo na alínea a), n.º 2 do seu artigo 5.º enquanto objectivo estratégico.

No âmbito específico da protecção civil, a Lei de Bases, a Lei n.º 27/2006, de 03 de Julho108, coloca a tónica na prevenção, por exemplo, no n.º 1 artigo 1.º e na alínea a), do n.º 1 artigo 4.º assumida inclusivamente como princípio na alínea b) do artigo 5.º, juntamente na alínea c) com a precaução, envolvendo uma governança policêntrica e multinível do risco que, todavia, como revelado pelos incêndios catastróficos de 2017, demonstra alguma descoordenação, que vem obrigando a ajustes109.

Dentro desta abordagem preventiva e precaucionária, a Avaliação Nacional de Risco desempenha um papel fundamental, visto que permite a identificação e caracterização dos perigos, a sua hierarquização e, para cada um deles, propõe sistemas práticos que promovam a mitigação dos riscos, bem como apresenta outras abordagens estruturais enquadradas na Estratégia Nacional para Adaptação às Alterações Climáticas. Ademais, a sua divulgação permite garantir o acesso à informação sobre os riscos por parte dos cidadãos, sensibilizando-os em matéria de autoproteção e, consequentemente, incentivando uma melhor aplicação do princípio da prevenção.

Atente-se talqualmente à Plataforma Nacional para a Redução do Risco de Catástrofes (PNRRC)110, instituída em 2010 para dar cumprimento ao Quadro de Hyogo e de Sendai, inserindo-se na Estratégia Internacional para a Redução de Catástrofes com o intuito de promover o aumento da resiliência das comunidades face à ocorrência de catástrofes.

Por fim, pela sua inerente lógica de prevenção, realce-se o trabalho desenvolvido em Portugal em Segurança Estrutural pelo LNEC que promove, em 1961, o primeiro Regulamento incorporando os conceitos de eventos extremos e os tipos de acções que os sustêm de modo a gerir o risco e prevenir impactos, a saber o Regulamento de Solicitações em Edifícios e Pontes, Decreto-Lei n.º 44041, de 18 de Novembro de 1961, que veio a ser reformulado para a forma que ainda hoje se mantém em vigor, o Regulamento de Segurança e Acções para Estruturas de Edifícios e Pontes (RSAEEP), Decreto-Lei n.º 235/83, de 31 de Maio, e cujos princípios constituem a base de elaboração dos chamados Eurocódigos, desenvolvidos no seio da UE e vigentes em cada vez mais Estados111 112.

O RSAEEP inclui, de forma muito clara, as acções devidas a fenómenos naturais nas acções variáveis e define no seu articulado os critérios da sua caracterizada por um valor determinado designado por valor característico. Este pode ser determinístico, como é o caso do peso próprio, ou definido de forma semelhante, como é o caso das sobrecargas (uma acção variável) em que o valor característico é definido como um valor máximo admissível. Veja-se o caso das cargas nos pavimentos de um edifício: se se tratar de um edifício corrente impõe-se um valor máximo em função da utilização. Valores diferentes surgem para o caso de habitação, garagens, armazéns, entre outros, o que significa que a carga pode ser variável, desde que o valor máximo não ultrapasse o estabelecido pelo tipo de utilização. Quanto às acções naturais encontram-se estabelecidas por um valor probabilístico, sendo os valores característicos delimitados a partir dos quantilhos de 5 e 95% conforme sejam favoráveis ou desfavoráveis.

De notar que ao definir o quantilho dos 5% para as acções variáveis, o RSAEEP está a recortar períodos de retorno de mil anos, já que regulamentarmente a vida útil convencional é de cinquenta anos para edifícios e estruturas. Todavia, o RSAEEP define, para além dos valores característicos, os chamados valores reduzidos das acções variáveis, estabelecendo uma escala de valores que auxiliam à decisão: por exemplo, se uma estrutura é particularmente sensível à acção sísmica faz sentido optar por considerar o seu valor característico no dimensionamento, mas parece (e é) muito pouco provável que um sismo (de grande intensidade) ocorra em simultâneo com a acção de vento mais intensa. Assim, o RSAEEP define as combinações de acções que numa análise de custo-benefício se justificam.

 

4. Conclusões

O princípio da prevenção, que abrange a mitigação do risco e a preparação enquanto seus corolários práticos, i.e., de acção113, constitui a base fundamental de um novo paradigma de um Direito dos Desastres em construção. Contudo, ao contrário da mitigação e preparação que se foram consolidando no contexto específico dos desastres, o princípio da prevenção desenvolve-se essencialmente com maior fulgor nos Direitos do Ambiente e dos Direitos Humanos, áreas que se sobrepõem, em parte, consoante a causa e efeitos, com a temática das catástrofes. Destarte, o esforço aqui brevemente desenvolvido pretendeu não só perceber se é possível, na prática, prevenir, mesmo numa sociedade tecnológica e de conhecimento, todo o risco e calamidade, se não mais frequentes, pelo menos mais caros – o que não é –, como, por outro lado, compreender qual o entendimento e natureza da prevenção no plano jurídico – a saber, princípio jurídico –, mormente de maneira a impor obrigações aos vários stakeholders.

A definição destas obrigações, incluindo no âmbito dos direitos humanos114 e do ambiente e designadamente resultantes da fusão deste Direito mole com instrumentos vinculativos de gestão de desastres sobretudo no plano regional, será, no entanto, mote para novos trabalhos que permitam pois consubstanciar de modo mais concreto o conteúdo do princípio basilar da prevenção no seio de um Direito dos Desastres em rápida construção, principalmente apontando as acções (e eventuais omissões) a tomar pelos diferentes interessados, sob pena de responsabilidade por incumprimento115. Adiante-se, porém, na decorrência do exposto, que há que acautelar algumas diferenças subtis de objecto no plano da prevenção: no Direito dos Desastres será prevenir desastres; no Direito dos Direitos Humanos será prevenir violações dos direitos humanos; e no Direito do Ambiente será prevenir danos ambientais e ecológicos. Ora, nestes dois últimos, tal significará muito certamente uma obrigação positiva de agir de forma a evitar (i.e. prevenir) danos causados por desastres iminentes116.

Destas páginas, todavia, retirou-se a prova da existência de um princípio jurídico da prevenção no Direito dos Desastres, construído nas costas da soft law e do Direito do Ambiente e dos Direitos Humanos, que vem moldando, talvez por isso, o próprio crescimento daquele, substituindo uma lógica reactiva por uma lógica pro-activa e um entendimento faseado linear por um entendimento funcional circular e integrado com um objectivo transversal de garantia da resiliência social, patrimonial, ambiental e cultural, através da identificação, antecipação, mitigação, correcção e sensibilização para as vulnerabilidades específicas existentes, numa perspectiva multi-risco.

Mais, a soft law revela o seu poder modelador de um Direito dos Desastres fundado na prevenção, insinuando-se e depois consolidando-se em hard law regional e nacional, furtando-se assim a prováveis hesitações de consentimento dos Estados e de vinculações expressas no âmbito internacional. A sua aceitação silenciosa acaba por se difundir, incluindo por um fenómeno mimético. Ou seja, no fim, este Direito mole acaba por se assumir deveras duro, uma verdadeira hoft law117 118.

Para terminar, sublinhe-se, uma vez mais, que a actuação preventiva de desastres, para verdadeiramente funcionar, implica um trabalho colectivo, policêntrico e multinível, que combine vários actores e instrumentos regulatórios (de comando-e-controlo, de mercado, comportamentais). Para tal é necessário ultrapassar a tradicional tragédia da descoordenação na acção colectiva (sobretudo considerando a interferência das soberanias), pelo que os decisores políticos terão de encontrar mecanismos de alinhamento de interesses. Para os académicos fica também uma oportunidade de investigação. Talvez nos ensinamentos da Economia Institucional de Ostrom, da Teoria dos Jogos ou da nova Behavioural Law and Economics119 se encontrem pistas e respostas. O desafio fica lançado.