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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.6 no.3 Lisboa dez. 2019

 

 

DIREITO PÚBLICO

A origem histórica da Má Doutrina da Constituição Portuguesa sobre regimes de Direitos Fundamentais1

The historical origin of the Wrong Doctrine Enshrined in the Portuguese Constitution regarding the Fundamental Rights Regime

 

Jorge Reis Novais I 1 .

I Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, Lisboa, 1649-014, Portugal. E-mail:jnovais@fd.ul.pt

 

RESUMO

Segundo a doutrina dominante, a Constituição portuguesa teria instituído diferentes regimes jurídicos consoante as diferentes categorias de direitos fundamentais constitucionais: regime dos direitos, liberdades e garantias, regime dos direitos económicos sociais e culturais e regime dos direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Isto significaria que, previamente à resolução de qualquer problema jurídico de direitos fundamentais, teria de ser previamente estabelecida tanto a categoria do direito em causa, quanto o regime que lhe seria especialmente aplicado. Neste artigo procura-se determinar a origem histórica –até agora não plenamente indagada nem explicada– deste perturbante sistema, de resto, singular e único no panorama das Constituições de Estado de Direito.

Palavras-Chave: Assembleia Constituinte; direitos liberdades e garantias; direitos sociais; regime de direitos fundamentais.

 

ABSTRACT

Pursuant to what the prevailing Portuguese legal scholarship sustains, the Portuguese Constitution would have enshrined different legal regimes according to the different categories of constitutional fundamental rights: the regime of civil liberties (“direitos liberdades e garantias”), the regime of social, economic and cultural rights (“direitos económicos, sociais e culturais”) and the regime of fundamental rights analogous to civil liberties. This would mean that prior to solving any legal problem dealing with fundamental rights, both the category of fundamental right at stake, as well as the applicable legal regime, would have to be ascertained. This paper aims at determining the historical origin, which has up to now been left unquestioned and unclear, of this rather disturbing constitutional system: a unique system in the landscape of Constitutions promoting the rule of law.Palavras-chave: Assembleia Constituinte; direitos liberdades e garantias; direitos sociais; regime de direitos fundamentais.

Keywords: Constitutional Assembly; civil liberties; social rights; fundamental rights regime

Sumário: 1. Apresentação; 2. O mistério do puzzle com sete peças; 2.1. A origem da designação “direitos, liberdades e garantias”; 2.2. A origem de um regime específico para os direitos, liberdades e garantias; 2.3. A origem do artigo 17.º: a tentativa de última hora de maquilhagem do desastre; 2.4. A revisão constitucional de 1982 e o artigo 17.º.

Summary: 1. Presentation; 2. The mystery of the puzzle with seven parts; 2.1. The origin of the expression “direitos, liberdades e garantias”; 2.2. The origin of a specific regime applicable to “direitos, liberdades e garantias”; 2.3. The origin of article 17: the “last hour attempt” to cosmetically make up the disaster; 2.4. The constitutional amendment of 1982 and article 17.

 

1. Apresentação

Há na Constituição portuguesa originalidades perturbantes no domínio dos direitos fundamentais. Entre várias, salientamos aqui a que, aparentemente, consistiria na existência de diferentes regimes constitucionais aplicáveis aos direitos fundamentais, o que determinaria, mais concretamente, a existência de um sistema constitucional próprio dos direitos de liberdade e um outro dos direitos sociais. Ou seja, no domínio dos direitos fundamentais a Constituição de 1976 teria adoptado precocemente uma versão original do lema chinês que viu a luz também naquela mesma época: uma Constituição, dois sistemas.

Em termos de sistematização, a Constituição distingue formalmente, dentro do elenco de direitos fundamentais, entre direitos, liberdades e garantias, de um lado, e direitos económicos, sociais e culturais, do outro, o que, em si, apesar da designação estranhíssima atribuída aos direitos de liberdade, não é problemático nem é sequer, quanto ao essencial, uma originalidade do constitucionalismo português. Essa classificação, embora com designações mais compatíveis, é oriunda do Direito Internacional dos Direitos Humanos e encontra reflexos noutras Constituições para além da portuguesa.

Todavia, a singularidade no constitucionalismo português surge quando, aparentemente, dessa sistematização formal dos direitos fundamentais no texto constitucional se pretende fazer decorrer a existência de um regime especial próprio e privilegiado dos direitos de liberdade relativamente ao regime, todavia desconhecido, aplicável aos restantes direitos fundamentais. Nesse sentido, haveria na Constituição portuguesa direitos fundamentais mesmo direitos fundamentais, direitos fundamentais assim-assim e, por último, direitos fundamentais quase direitos fundamentais, os direitos sociais.

De facto, igualmente original, e também muito estranha, é essa terceira categoria intermédia dentro dos direitos fundamentais constitucionais: os direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. Esses outros direitos coabitariam, em termos de sistematização, com os direitos económicos, sociais e culturais ou estariam dispersos por outras partes da Constituição, mas, por uma qualquer razão enigmática e nunca perfeitamente decifrada, embora se mantenham fora do lugar de privilégio, aplicar-se-lhes-ia o regime próprio desse lugar, porventura, eventualmente, só parte do regime.

Então, utilizando uma terminologia corrigida, haveria um regime próprio dos direitos de liberdade, um regime equiparado (parcialmente) aplicável aos direitos de natureza análoga aos direitos de liberdade e, finalmente, última surpresa: ainda que os direitos sociais tenham sido acolhidos como direitos fundamentais, e não havendo quaisquer dúvidas a respeito dessa qualificação, nada se diz ou sabe sobre qual seria, afinal, o conteúdo do regime constitucional (diferente) que lhes seria aplicado, embora, supostamente, devesse haver um.

Perante tais peculiaridades, que não se encontram em qualquer outra Constituição de Estado de Direito2, seria caso, em primeiro lugar, para perguntar: quem está afinal certo, Portugal, que fez destas diferenciações de regimes, nada simples, o alfa e omega da dogmática de direitos fundamentais, ou o resto do Mundo, que aparentemente as desconhece e não sente a sua falta?

Para a generalidade dos constitucionalistas portugueses, pelo menos para os alinhados segundo a doutrina tradicional dominante, que assenta nos pressupostos teóricos que acabámos de enunciar, quem está certo é Portugal. Da nossa parte, lamentando o antipatriotismo, divergimos: por estranho que pareça, quem marcha com passo trocado no desfile é a doutrina tradicional portuguesa, não é o resto do Mundo.

Em segundo lugar, há um mistério cujo esclarecimento, apesar de não ter sido objecto de atenção da doutrina, poderia ajudar na clarificação daquela divergência: de onde e porquê surgiu toda esta singularidade da Constituição portuguesa?

De facto, não encontramos nada de semelhante em Direito comparado, o que, só por si, já motivaria perplexidade. Mas, para além disso, também não descortinamos nada na história constitucional portuguesa que pudesse ter inspirado esta solução. Nada há nas cinco Constituições anteriores que possa ter estimulado a inovação. De onde surgiu a inspiração para um sistema tão extraordinário?

É certo que estas inovações foram produzidas na feitura da Constituição de 1976, mas, percorrendo todos os projectos de Constituição apresentados pelos diferentes partidos, também nada há nesses projectos que, mesmo muito remotamente, sugira algo semelhante ao resultado a que se chegou. Todos os partidos com representação na Assembleia Constituinte, PS, PPD, PCP, CDS, MDP, UDP, apresentaram projectos de Constituição3, mas em nenhum deles constava algo que pudesse sugerir ou se aproximasse minimamente do sistema que veio a ser aprovado. Absolutamente nada.

Dir-se-ia, por exclusão, que a origem estaria em alguma proposta doutrinária. Algum académico mais inventivo teria sonhado e teria depois nascido a obra. Seria um sonho notável, diga-se, mas também não reside aí a explicação. Nenhum Autor, nem mesmo os que, a seguir, perfilharam como dogma inatacável esta construção, alguma vez tinha proposto ou sugerido algo de parecido; não há a mínima sombra de existência ou de formulação de alguma proposta sequer aproximada antes de ela ter visto efectivamente a luz. A Constituição foi elaborada ao longo de muitos meses, mas não há qualquer escrito, qualquer sugestão ou indício, artigo de revista, jornal, nada. Um regime para direitos de liberdade, um outro para direitos sociais e uma terceira categoria de direitos de natureza análoga? Zero, em absoluto.

 

2. O mistério do puzzle com sete peças

Como surgiu então, no fim, toda esta construção verdadeiramente inédita, estranha, desconhecida e nunca posteriormente seguida em Direito comparado? É o puzzle que nos propomos resolver.

 

2.1. A origem da designação “direitos, liberdades e garantias”

a) Comecemos por uma primeira referência à expressão “direitos, liberdades e garantias” que, no sistema da Constituição portuguesa, define uma categoria de direitos fundamentais contraposta aos direitos sociais, mas que, com esse alcance, é desde logo uma primeira novidade da Constituição de 1976 no panorama dos Estados de Direito. Com efeito, a designação não existe sequer em Direito constitucional comparado, não existe no Direito Internacional de Direitos Humanos e surge, correspondendo só parcialmente ao actual carácter, apenas no projecto de Constituição do Partido Socialista em 1975.

Na história constitucional portuguesa, desde a Constituição de 1838 – e, diga-se, até 1959 –, a enumeração constitucional dos direitos fundamentais fazia-se sobre a designação abrangente de “direitos e garantias” dos portugueses. Todos os direitos fundamentais constitucionais se abrigavam sob essa designação. Essa expressão, "direitos e garantias", passou depois para a Constituição de 1911 e foi igualmente recebida e continuada na Constituição de 1933.

Só numa revisão constitucional da Constituição de 1933, em 1959, porventura por razões de má consciência no contexto do pós-II Guerra e da candidatura presidencial do General Humberto Delgado do ano anterior, o regime autocrático sentiu a falta das liberdades e, para não deixar dúvidas sobre o apego que lhes dedicava, alterou a designação tradicional de "direitos e garantias" para “direitos, liberdades e garantias”. O regime autocrático não constitucionalizava só "direitos e garantias", mas também se preocupava com as liberdades e, daí, "direitos, liberdades e garantias". Eis aí a primeira peça do puzzle.

Foi assim que nasceu a fórmula que hoje utilizamos, mas, note-se, nasceu com um sentido qualitativamente distinto do actual: ela não respeitava, na altura, a uma categoria específica de direitos, mas significava e englobava todo o conjunto dos direitos fundamentais constitucionais, qualquer que fosse a sua natureza, fossem eles direitos clássicos ou direitos sociais. “Direitos, liberdades e garantias”, pura e simplesmente, significava “direitos fundamentais”. Essa é a segunda peça do puzzle.

Foi por essa via que a nova fórmula, entretanto estabilizada e sublinhada na revisão constitucional de 1971, chegou, já no período que se seguiu à queda do regime autocrático, aos projectos de Constituição que diferentes partidos parlamentares viriam a apresentar em 1975, no quadro da elaboração da Constituição de 1976.

Porém, enquanto que nos projectos dos outros partidos (especialmente no caso do Partido Popular Democrático e do Partido Comunista) a designação “direitos, liberdades e garantias” manteve o sentido que provinha da história constitucional portuguesa, ou seja, correspondendo ao que contemporaneamente se designa por “direitos fundamentais”, no projecto do Partido Socialista surge com um carácter potencialmente diverso, na medida em que surge como categoria de direitos fundamentais sistematizadamente distinta de outra categoria, a dos direitos económico-sociais, o que de alguma forma se compreendia porque os direitos sociais não eram expressamente qualificados como direitos fundamentais nesse projecto. Por isso se pode dizer que, na lógica interna do projecto do Partido Socialista, a expressão continuava a significar “direitos fundamentais”, todos os direitos fundamentais reconhecidos como tal.

Em todo o caso, mantendo embora o sentido original da fórmula, porque, no seu projecto, verdadeiramente qualificados como fundamentais eram apenas os "direitos, liberdades e garantias", o projecto do Partido Socialista abria potencialmente um novo significado à expressão: enquanto categoria específica de direitos, distinta da dos direitos económico-sociais.

No fundo, o Partido Socialista adoptava tendencialmente a sistematização oriunda do Direito Internacional dos Direitos Humanos concretizada na elaboração, em 1966, de dois Pactos sob a égide das Nações Unidas, o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. No entanto, e aí a novidade, o Partido Socialista designava o primeiro tipo de direitos, e só eles, por direitos, liberdades e garantias e, por isso, ao arrepio do sentido dessa designação na história constitucional portuguesa, distinguia-os sistematicamente, no seu projecto de Constituição, dos direitos sociais, a que não reconhecia formalmente a natureza de direitos fundamentais.

Era já, não apenas a terceira peça do puzzle, mas verdadeiramente, sabemo-lo hoje, o início de um desastre em formação, tanto mais que a Constituição veio a adoptar, na sistematização, a classificação proposta pelo PS: um título para os direitos, liberdades e garantias e um outro para os direitos económicos, sociais e culturais. Todavia, o legislador constituinte acolhia a distinção, mas com uma diferença capital relativamente ao projecto do Partido Socialista, a de ter indiscutivelmente recebido todos os direitos, sejam os clássicos de liberdade sejam os direitos sociais, na qualidade de direitos fundamentais4.

Diversamente, como dissemos, tanto o projecto de Constituição do PPD quanto o do PCP apresentam, na parte dos direitos fundamentais, uma estruturação aproximada entre si e inspirada na história constitucional portuguesa: toda a parte designada por direitos, liberdades e garantias integra todos os direitos fundamentais constitucionais, tanto os direitos de liberdade quanto os direitos sociais. De resto, nos dois projectos, esta parte dos direitos, liberdades e garantias encontrava-se subdividida numa primeira secção respeitante aos princípios gerais, uma segunda sobre direitos pessoais, uma terceira sobre direitos sociais e uma última sobre direitos civis e políticos. Não havia aí qualquer dúvida, portanto, quanto à inclusão, nos direitos, liberdades e garantias, dos tradicionais direitos de liberdade, dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais; todos eram considerados e designados por direitos, liberdades e garantias.

Insistimos nesta questão porque ela vai ter uma importância decisiva e inesperada em toda a futura construção adoptada pelo legislador constituinte de 1976.

É que, como dissemos, a Constituição não acolheu a classificação constante dos projectos destes partidos, PPD e PCP. Adoptou, sim, a classificação do projecto do PS, pelo que passou a haver um título, que viria a ser o título II da Parte I da Constituição, sobre direitos, liberdades e garantias (significando já uma categoria específica de direitos fundamentais) e um título III sobre direitos económicos, sociais e culturais.

Portanto, pela primeira vez na história constitucional portuguesa, sob uma comum referência a direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias surgiam contrapostos a direitos económicos, sociais e culturais em termos de sistematização. Foi a quarta peça do puzzle.

 

b) Para além disso, há uma outra nota a salientar na sistematização proposta pela Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte e que viria a ser adoptada na Constituição: estes dois títulos da Parte I, deveriam ser antecedidos de um título I sobre princípios gerais, tal como já se fazia, de resto, nos projectos do PPD e do PCP.

No fundo, acabava por se juntar, na sistematização da Parte I sobre direitos fundamentais, a contribuição decisiva dos principais partidos que votaram favoravelmente a Constituição: a Constituição deveria ter um título I (princípios gerais), consoante inspiração colhida dos projectos de sistematização do PPD e do PCP – em termos substanciais recolhendo sobretudo o contributo do PPD –, e dois títulos com o próprio elenco dos direitos, como se fazia no projecto do PS, o título II sobre direitos, liberdades e garantias e o título III sobre direitos económicos, sociais e culturais. Voltaremos a este ponto que é capital.

 

c) De qualquer forma, para além da recepção dos direitos, liberdades e garantias como categoria específica de direitos fundamentais, faltava ainda o segmento principal da consumação do desastre, a descoberta de regimes diferentes para diferentes categorias de direitos fundamentais. Aprovada a sistematização naqueles termos, essa outra seria já tarefa, no plano dos trabalhos da Constituinte, da Comissão dos Direitos e Deveres Fundamentais, a 2ª Comissão, a quem incumbia, agora, o preenchimento substancial do título I (Princípios gerais) e do título II (Direitos, liberdades e garantias)5. O título III (Direitos económicos, sociais e culturais) ficaria a cargo da 3ª Comissão6.

 

2.2. A origem de um regime específico para os direitos, liberdades e garantias

a) Como é normal nas Constituições de Estado de Direito, os diferentes projectos de Constituição preocupavam-se com a consagração dos direitos fundamentais e havia aí diferenças substanciais entre eles –no projecto do CDS, por exemplo, os direitos sociais encontravam-se dispersos na organização económica e social sem natureza de jusfundamentalidade e no do PS, como vimos, apesar da sua sistematização autónoma como direitos económico-sociais, também não ficava expressa a sua natureza jusfundamental.

Para além disso, tanto no projecto do PPD como no do PCP, antes da enumeração dos títulos respeitantes aos diferentes tipos de direitos fundamentais (direitos pessoais, direitos sociais, direitos políticos) havia uma primeira secção sobre princípios gerais que correspondia, no fundo, a uma proposta de explicitação daquilo a que chamamos hoje um regime dos direitos fundamentais.

Porém, e aqui entramos no ponto decisivo do nosso tema, como a referência geral a direitos fundamentais era feita, nesses dois projectos, sob a designação direitos, liberdades e garantias –como ela sempre tinha sido, aliás, utilizada na história constitucional portuguesa–, cada regra que ali integrava o regime dos direitos fundamentais era sempre designada como sendo atributo dos direitos, liberdades e garantias.

Logo, de acordo com a terminologia e os conceitos utilizados, há no projecto do PPD e no do PCP três notas comuns e determinantes que vão ser decisivas para o que se vai passar a seguir. Primeira, regime dos direitos, liberdades e garantias significava, ali, regime dos direitos fundamentais; reciprocamente, segunda nota, todos os direitos fundamentais constantes desses projectos (direitos pessoais, direitos sociais e direitos civis e políticos) beneficiavam de um regime comum; terceira nota, esse regime comum era ali naturalmente designado como sendo o regime dos direitos, liberdades e garantias.

Numa declaração de voto dos deputados que representavam o PPD na Comissão de Sistematização, a que voltaremos, Jorge Miranda deixa-o claríssimo:

"Na nossa proposta de sistematização indicam-se quatro títulos: ’Princípios gerais’, ’Direitos e deveres pessoais’, ’Direitos e deveres sociais’, ’Direitos e deveres políticos’. A explicação é simples. Após a explicitação das regras comuns a todas as categorias de direitos, são tratados sucessivamente aqueles que são inerentes à pessoa…, os direitos sociais…e os direitos políticos…". (sublinhado nosso).

Note-se que aquelas regras comuns constantes do projecto do PPD, aplicáveis, portanto, a todas as categorias de direitos, o que incluía, naturalmente, os direitos sociais, eram aquelas que vieram efectivamente a ser aprovadas e a figurar nos artigos 18.º e 19.º da Constituição. Adivinha-se então aí, e não é preciso ser astrólogo, a entrada da quinta peça do puzzle.

Ou seja, o problema grave com que nos confrontamos só surgiu quando no decorrer da elaboração da Constituição de 1976 se decidiu integrar substancialmente o contributo do PPD (expresso no tal regime dos direitos, liberdades e garantias) na sistematização inspirada no contributo do PS (onde, como vimos, se fazia a distinção entre direitos, liberdades e garantias, de um lado, e direitos económico-sociais, do outro).

Portanto, tendo-se acolhido a sistematização proveniente do PS onde direitos, liberdades e garantias significava uma categoria de direitos (título II com direitos, liberdades e garantias e título III com direitos económicos, sociais e culturais), fez-se anteceder esse texto de um título I proveniente essencialmente do projecto do PPD, isto é, o título onde, nas suas diferentes normas, se utilizava a expressão "direitos, liberdades e garantias" com um sentido substancialmente diverso, isto é, significando todos os direitos fundamentais.

Como se percebe, foi esta vicissitude que determinou o resultado que conhecemos e que constitui o desastre reflectido na nossa Constituição desde então: o regime dos direitos, liberdades e garantias (que, na altura, no projecto do PPD, era concebido, como não podia deixar de ser, como abrangendo todos os direitos fundamentais) transformou-se, potencialmente, no regime só dos direitos, liberdades e garantias de que falava o projecto do PS, ou seja, o regime dos direitos de liberdade, excluindo aparentemente os direitos sociais que ficariam simultaneamente privados de qualquer regime. Era a quinta peça do puzzle.

 

b) Pode parecer confuso, mas um exemplo, real, esclarece todas as dúvidas.

No projecto de Constituição do PPD dizia-se (n.º 1 do artigo 9.º): “As disposições constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são preceitos jurídicos directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e os particulares”. No fundo, com pequenas alterações, corresponde quase integralmente ao actual n.º 1 do artigo 18.º da Constituição ("Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas").

Porém, quando este enunciado foi recebido na Constituição, quase palavra por palavra, o texto continua o mesmo, mas o seu sentido normativo, aparentemente, muda radicalmente. É que, no projecto do PPD, como frisámos, “direitos, liberdades e garantias” significava todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (incluindo, portanto, como ali se dizia, direitos pessoais, direitos sociais e direitos políticos). Não havia qualquer diferença de regimes entre direitos fundamentais. Como acontecia em todos os Estados de Direito com Constituição formal, todos os direitos fundamentais tinham o mesmo regime e um único regime.

Portanto, o que se pretendia significar naquele enunciado era que todos os direitos fundamentais – sem excepção – eram directamente aplicáveis e vinculavam entidades públicas e privadas8.

Já no texto da Constituição de 1976, como essa mesma expressão “direitos, liberdades e garantias” passara entretanto a significar outra coisa (só uma categoria específica de direitos fundamentais, os direitos de liberdade, distinta da categoria dos direitos sociais), aquele enunciado recebido do projecto do PPD passou a ser potencialmente interpretado de forma radicalmente distinta, isto é, como referindo-se, não a todos os direitos fundamentais, como era na origem, mas apenas a uma categoria de direitos fundamentais, os direitos de liberdade.

Logo, quando, finalmente, a doutrina tradicional passou efectivamente a interpretar a norma como significando que os princípios constantes deste preceito do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição se aplicavam aos direitos, liberdades e garantias e só a eles, ou seja, excluindo os direitos fundamentais sociais – e com todos os outros enunciados que se referiam a direitos, liberdades e garantias passou-se exactamente o mesmo –, estava produzido o desastre dogmático a que nos vimos referindo, mas o puzzle ainda não está integralmente solucionado. Esta era a sua sexta peça, há uma ainda em falta.

Mas, aí está, já, a explicação da criação desse absurdo da singularidade da Constituição portuguesa que permanece até hoje por força da interpretação deficiente que a doutrina tradicional faz daqueles enunciados: os direitos, liberdades e garantias, agora considerados como uma categoria distinta dentro dos direitos fundamentais, teriam um regime e os direitos sociais, considerados embora como direitos fundamentais, teriam um outro, todavia desconhecido, ou não teriam sequer regime…

Foi, portanto, do projecto do PPD que se colheu o dito regime dos direitos, liberdades e garantias. E, assim, fica claro porque não existe regime dos direitos sociais: é que, nesse projecto do PPD, os direitos sociais integravam os direitos, liberdades e garantias. O regime era o mesmo para todos, como não pode deixar de ser e como é no resto do mundo. Como no texto da Constituição, direitos, liberdades e garantias já não incluíam os direitos sociais, então estes direitos, apesar de fundamentais, não só perderam a equivalência aos outros direitos fundamentais, como perderam também qualquer regime constitucional, o que é um absurdo. E, podemos concluir, passou a ser assim com base num equívoco, num erro, numa consequência do processo complexo de aprovação da Constituição, mas, sobretudo e decisivamente, com base na interpretação errónea feita pela doutrina tradicional.

Note-se como elementos circunstanciais permitem explicar deficiências que, objectivamente, já seriam compreensíveis no contexto político de aprovação de uma Constituição no curso de um processo revolucionário. De facto, a Constituição foi elaborada num contexto social e político já de si extremamente conturbado, mas, além disso, toda esta parte da Constituição foi aprovada na especialidade no período mais atribulado da época – o chamado Verão quente de 1975 –, a sistematização da Constituição foi elaborada por uma Comissão e o texto em causa, por outras, com composições diferentes entre si; finalmente, a sistematização e o texto foram elaborados e aprovados em fases diferentes, sem uma visão de conjunto e sem uma reavaliação reflexiva dos resultados parciais.

A culpa do resultado é da Constituição e do legislador constituinte? Não, a nosso ver é da doutrina tradicional que passou a interpretar erroneamente as disposições constitucionais desvalorizando ou desconhecendo totalmente o seu processo de nascimento, a sua lógica e, sobretudo, ignorando a natureza constitucional dos direitos que foram acolhidos como direitos fundamentais.

 

2.3. A origem do artigo 17.º: a tentativa de última hora de maquilhagem do desastre

a) É no seguimento deste processo de aprovação que, muito depois, praticamente já em Abril de 1976, a Comissão de Redacção da Assembleia Constituinte encarregada da redacção final, se vem a aperceber do oxímoro dogmático que ia entrar em vigor quando ele já estava prestes a ver a luz: pela primeira vez uma Constituição de Estado de Direito aprestava-se a ser aprovada com dois sistemas no domínio dos direitos fundamentais, ou seja, com um regime que é próprio dos direitos fundamentais, mas expressamente alocado apenas aos ditos direitos, liberdades e garantias; por sua vez, os restantes direitos fundamentais, apesar de serem reconhecidos como tal, nem beneficiariam do regime dos direitos fundamentais nem tinham qualquer regime atribuído.

Sobretudo, essa distinção absurda de regimes fazia-se com base em razões formais de sistematização e classificação, sem qualquer justificação material, muitas vezes dependendo apenas de escolhas arbitrárias de inserção sistemática ou de decisões simplesmente inadvertidas.

Não fazia qualquer sentido, como é hoje óbvio, nem seria possível descortinar a razão por que direitos fundamentais constitucionais com idêntica natureza, seja no plano global, seja na dimensão concreta e específica com que surjam num determinado caso jurídico, deveriam ser tratados de forma substancialmente distinta só pelo facto de estarem formalmente incluídos num ou noutro título da Constituição. Porém, já não era possível proceder a uma reformulação global, pelo que a solução que a Comissão de Redacção encontrou foi tentar controlar os danos através da proposta de um artigo novo, feito ad hoc, que nunca anteriormente fora proposto ou sequer pensado e muito menos discutido.

Então, sob proposta da Comissão de Redacção9, já aquando da aprovação final da Constituição, em Abril de 1976, a Assembleia Constituinte viria a aprovar, sem qualquer discussão, o famigerado artigo 17.º que, obviamente, era um artigo novo, não constava do projecto de qualquer partido, nunca tinha sido sugerido por qualquer Autor – quem se atreveria, imagine-se, a sustentar originariamente uma construção semelhante –, mas que, no fundo, constituía uma tentativa de ultimíssima hora para esconder o mau aspecto do absurdo evidente.

Não fazendo qualquer sentido distinguir regimes entre direitos fundamentais, pelo menos, dizia agora o artigo 17.º, numa derradeira tentativa de salvar alguma racionalidade, o dito regime próprio dos direitos, liberdades e garantias não se aplicaria apenas aos enunciados no título II (os designados por direitos, liberdades e garantias). A que outros direitos se deveria, então, também aplicar? E a fórmula escolhida foi também uma invenção de momento: aplicar-se-ia, também, aos direitos fundamentais dos trabalhadores, às demais liberdades e ainda a direitos de natureza análoga, previstos na Constituição e na lei.

E assim se completou o cenário do desastre dogmático: a sétima peça, o puzzle solucionado.

 

b) No fundo, a dois equívocos somou-se uma tentativa de solução que se revelou rapidamente uma impossibilidade lógica.

Primeiro equívoco: a expressão direitos, liberdades e garantias foi recebida na Constituição com dois sentidos originários diversos. Ela significava, na tradição constitucional portuguesa, direitos fundamentais. Foi com esse sentido que foi utilizado no projecto do PPD quando aí se falava em regime dos direitos, liberdades e garantias, bem como nos projectos do PCP e do CDS. Porém, no projecto do PS, direitos, liberdades e garantias significava algo diverso, ou seja, significava uma categoria de direitos separada de uma outra, a dos direitos económico-sociais. Na Constituição de 1976 foi acolhida com o sentido que lhe dava o PS, mas fazendo-lhe aplicar um regime, recebido directamente do projecto do PPD e que só fazia sentido na acepção que o projecto do PPD dava a direitos, liberdades e garantias, isto é, significando todos os direitos fundamentais.

Segundo equívoco: quando o projecto do PPD criou um regime dos direitos, liberdades e garantias tal significava um regime aplicado a todos os direitos fundamentais, direitos de liberdade e direitos sociais. Ora, a Constituição acolheu um tal regime, mas quando a referência "direitos, liberdades e garantias" passou a significar só uma categoria especial de direitos fundamentais, então esse regime ficou expressamente alocado apenas a essa categoria de direitos fundamentais, isto é, aos direitos fundamentais na acepção que o projecto do PS dava a direitos, liberdades e garantias, o que privou toda a construção de qualquer racionalidade. Assim se criou algo de singular e único numa Constituição de Estado de Direito: direitos fundamentais de primeira, com um regime próprio e qualificado, e direitos fundamentais de segunda categoria, sem regime explícito e, logo, com um regime potencialmente diferente e desqualificado.

Uma impossibilidade: a tentativa de resolver o imbróglio assim criado através da invenção dos direitos de natureza análoga, isto é, ainda uma nova categoria, mas de regime incerto, tal como incerta era também a delimitação dos direitos a que se aplicava um ou outro regime e, mais ainda, o regime que seria aplicado à categoria residual (papel reservado ao artigo 17º).

Da impossibilidade não podia, por definição, sair qualquer solução e do oxímoro que o artigo 17º queria maquilhar saiu o monstro dogmático que temos hoje: um sistema com direitos fundamentais de primeira, de segunda e de terceira.

 

2.4. A revisão constitucional de 1982 e o artigo 17.º

A revisão constitucional de 1982 tentou, mais uma vez, reduzir os danos, procurando, perante as dificuldades intransponíveis que imediatamente se revelaram, simplificar a busca e delimitação dos direitos a que deveria ser aplicado o regime tido como privilegiado dos direitos, liberdades e garantias. Para tanto, limitou a aplicação do dito regime próprio dos direitos, liberdades e garantias aos enunciados no título II e aos direitos de natureza análoga. Porém, toda esta construção era definitivamente irracional e irrecuperável.

Desde logo, para operar esta simplificação, o legislador da revisão de 1982 procedeu previamente à transferência para o título II –o que, no contexto hermenêutico já entretanto estabelecido, era considerado uma verdadeira promoção– dos direitos fundamentais dos trabalhadores (mas não de todos) e das demais liberdades (mas não de todas11).

Porém, quando procede a este tipo de transferência/promoção, o legislador constituinte cria novos e irresolúveis problemas: por um lado, aumentando exponencialmente a diversidade dos direitos fundamentais que agora constam do título II, torna muito mais difícil ou verdadeiramente impossível determinar quais são os direitos de natureza análoga aos enunciados no título II; por outro, deixa absurdamente inexplicada a razão por que, tendo procedido à promoção de alguns direitos, continua a aplicar o regime dos direitos promovidos – pelo menos na interpretação mais comum – a outros que, na mesma altura, expressamente recusou promover, como o direito de propriedade ou a liberdade de iniciativa económica privada.

Assim, quando a doutrina dominante da época aceita acriticamente a construção do legislador constituinte fundada em dois equívocos e numa impossibilidade – e que, por isso, pode constituir uma construção doutrinária (má), mas nunca um sistema normativo – e a interpreta à letra nos termos descritos, não fez mais que perpetuar e acentuar os defeitos de uma construção intrinsecamente anómala e sem sustentação, sobretudo quando passou a estudá-la e a procurar aplicá-la como se fosse algo de natural quando enferma simplesmente, como procuraremos demonstrar, de uma total falta de sentido normativo coerente e aplicável.

No fundo, aquilo que a doutrina tradicional fez foi dar o puzzle (o desastre), isto é, a tripartição de direitos e de regimes, como normalidade e, sem questionar esse absurdo, investir no estudo e na decifração da maquilhagem do desastre – o significado do conceito de direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. A Comissão de Redacção da Assembleia Constituinte procurou disfarçar o desastre no último momento; a doutrina tradicional ignorou o desastre e investiu tudo no estudo e na explicação do disfarce. E assim gerações de estudantes e de juristas passaram a ser formados na resolução de um problema que só existe em Portugal.

Se se disser a um recém-chegado jurista espanhol, alemão, italiano, sul-africano ou norte-americano que o principal e primeiro problema que os juízes portugueses têm para resolver numa qualquer questão de direitos fundamentais é saber se o direito constitucional em causa é um direito, liberdade e garantia ou é um direito de natureza análoga a direito, liberdade e garantia ele só poderá pensar que o absurdo que está a ouvir é um problema de comunicação, que algo se deve estar a perder na tradução.

 

1 O presente texto constitui, com pequenas adaptações, um extracto de um livro a publicar nas Edições Almedina, Coimbra, 2020, com o título “Uma Constituição, dois sistemas? Direitos de liberdade e direitos sociais na Constituição portuguesa”.

2 Com excepção de adaptações afins em Constituições claramente inspiradas na Constituição portuguesa, como as de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Timor-Leste.

3 Cf. a reunião desses projectos em J. MIRANDA (org.), Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição, I, Lisboa, 1978.

4 Essa proposta de sistematização foi da iniciativa da Comissão de Sistematização, de que faziam parte Jorge Miranda (PPD) e Vital Moreira (PCP), cujos trabalhos decorreram entre 26 de Junho e 3 de Julho de 1975. O Parecer e a proposta da Comissão foram apresentados ao Plenário a 5 de Julho (Diário da Assembleia Constituinte, n.º 13, pp. 271 e ss) e viriam a ser aprovados a 24 de Julho (Diário da Assembleia Constituinte, n.º 23, de 25 de Julho, pp. 958 e ss).

5 Esta 2.ª Comissão, integrada pelo actual Presidente do Tribunal Constitucional, Costa Andrade (PPD), viria a reunir e aprovar o seu Parecer e propostas já em fins de Julho e Agosto de 1975 (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 30, de 13 de Agosto, pp. 784 e ss), portanto, num período posterior à aprovação da sistematização da Constituição atrás referida, tendo o texto correspondente sido aprovado na especialidade a partir de 19 de Agosto (Diário da Assembleia Constituinte, n.º 33, de 20 de Agosto).

6 Embora não seja decisivo, há aqui uma confluência de potenciais elementos dissonantes que conformam a conjura que anuncia o desastre iminente. Sabe-se, e hoje podemos concluí-lo com certeza, que o trabalho das Comissões acabou por ser decisivo para o conteúdo da Constituição: as suas propostas foram sistematicamente aprovadas. Mas, no caso da parte da Constituição sobre direitos fundamentais, a Parte I, temos três comissões, com composição diversa e trabalhando em tempos diversos, que são incumbidas de dar corpo a um conjunto que se supunha dever ser coerente: a Comissão de Sistematização, a Comissão dos Direitos e Deveres Fundamentais – título II, e a Comissão dos Direitos e Deveres Fundamentais – título III. Não é difícil imaginar que, com três Comissões distintas, com composição diferente e a funcionar em tempos distintos, alguma coisa podia correr mal. E, de facto, correu…

7 Cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 13, pág. 276.

8 No fundo, esse mesmo texto havia sido inspirado na Constituição alemã, com a diferença de que, desta, não constava a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. De resto, essa inovação lusitana é mais uma incursão do legislador constituinte português numa controvérsia doutrinária que se havia desenvolvido na Alemanha nas décadas anteriores. Cf. J. REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares, Coimbra, 2018, pp. 19 e ss.

9 Esta Comissão, que funcionou a partir de Fevereiro de 1976, foi também integrada por Jorge Miranda e Vital Moreira (que, juntamente com Carlos Lage, do PS, seriam os respectivos relatores). Tanto Jorge Miranda como Vital Moreira reivindicam a autoria material da iniciativa do artigo 17.º. Para o primeiro, cf. J. MIRANDA, Da Revolução à Constituição, Memórias da Assembleia Constituinte, Lisboa, 2015, pp. 376 e ss; para o segundo, ver https://observador.pt/2015/06/02/afinal-pai-do-artigo-17-da-constituicao/amp/.

10 Por exemplo, o direito à greve foi promovido ao título II, mas o direito a assistência quando em situação de desemprego ou o direito à retribuição ou o direito a férias pagas, não.

11 Por exemplo, a liberdade sindical e o direito de tendência foram promovidos ao título II, mas o direito de propriedade não. Por sua vez, a liberdade de iniciativa económica privada foi transferida da organização económica, mas, apesar de nada ter a ver com direitos sociais, foi transferida para o título III, não para o título II. Diga-se que, além do mais, este último caso é verdadeiramente enigmático. Em princípio, sendo uma liberdade, dever-se-lhe-ia aplicar, antes de 1982, o pretenso regime especial dos direitos enunciados no título II, já que o artigo 17.º o estendia às "demais liberdades". Porém, em 1982, podendo a livre iniciativa económica ser transferida para o título II, não foi; foi transferida, sim, mas para o título III. Significava isso que deixava de se lhe aplicar aquele regime ou, ao invés, continuaria a beneficiar dele, mas agora já não na qualidade de demais liberdade, mas na qualidade de direito de natureza análoga aos enunciados no título II? Mas, sendo assim, por que foi transferida para o título III e não para o II, já que, manifestamente, é uma liberdade, não um direito social?