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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.6 no.3 Lisboa Dec. 2019

 

 

DESTAQUE

A degeneração do contencioso pré-contratual, dito urgente, num contencioso pós-contratual: o inadmissível ping-pong legislativo na distribuição do ónus do tempo no processo

The degeneration of the pre-contractual litigation, supposedly urgent, into a post-contractual litigation – the unacceptable legislative ping-pong regarding the distribution of the burden of time

 

Elizabeth Fernandez I .

I Escola de Direito da Universidade do Minho, Campus de Gualtar , Braga, 4710-057, Portugal. E-mail:memf@direito.uminho.pt

 

RESUMO

O presente artigo tem como propósito explorar as alterações efetuadas pela Lei n.º 118/19, de 17 de setembro, no domínio do contencioso pré-contratual urgente.

Palavras-Chave: Lei n.º 118/19, de 17 de setembro; contencioso pré-contratual urgente; efeito suspensivo.

 

ABSTRACT

This paper aims to explore the amendments to the Code of Proceedings in the Administrative Courts introduced by Law no 118/2019 of 17 September in the field of urgent pre-contractual litigation;

Keywords: Law no. 118/2019 of 17 September; urgent pre-contractual litigation; Suspensive effect .

 

1. As linhas que se seguem são propiciadas pela recentíssima alteração que o ainda denominado contencioso pré-contratual urgente sofreu através da Lei n.º 118/19, de 17 de setembro.

Não fora esta circunstância, não teríamos grande motivação para tratar de um tema que nunca nos seduziu sobremaneira e não nos veríamos compelidos a regressar a questão já por nós visitada há anos: o dos efeitos suspensivos automáticos ou atribuídos ope legis a certos meios processuais.1

Ainda que nesta fase do trabalho possa ser prematuro revelar a razão pela qual o tema do contencioso pré-contratual urgente ou, se se preferir, da ação administrativa especial urgente, nunca nos ter seduzido, cremos que, pelo menos por honestidade intelectual para com o leitor, esse motivo deve ser desde já desvendado: temos particular repulsa por meios processuais que se apresentam aos seus potenciais utilizadores como urgentes e garantidores de eficácia, mas que guardam logo em si mecanismos que evidenciam que essa urgência e eficácia só acidentalmente poderão ser alcançadas.

Dir-se-á – e numa certa medida com alguma razão – que se este é o motivo para a falta de sedução pelo tema, então esse é um mal que genericamente deveria abranger a falta de entusiamo da autora destas linhas pela globalidade da tutela de direitos que emanam de relações jurídico-administrativas. Na verdade, a prossecução do interesse público é, por assim dizer, o limite natural à efetividade da tutela judicial que os tribunais administrativos podem conceder aos cidadãos e a sua mera existência torna logo mais limitada a concessão cabal e completa dos direitos que derivam de relações jurídico administrativas.

E se a isto somarmos a constatação de que certos nichos de tutela judicial dos direitos dos administrados permanecem ainda – apesar do esforço que tem vindo a ser empreendido e que se reconhece – como zonas de denegação de tutela (a título de exemplo, a execução para pagamento de quantia certa a cargo da Administração) ficaria ainda mais nítida a ideia de que a repulsa aqui confessada por meios judiciais carentes de efetividade, não pode ficar confinada ao contencioso pré-contratual e que, assim sendo, a dedicação que temos vindo a fazer ao estudo e à prática da tutela judicial daqueles direitos seria completamente incompreensível e até, em certa medida, um pouco masoquista.

Mas não é assim.

Quem – como nós – assistiu à reforma do processo administrativo em 2002 e à consolidação da mesma não podia deixar de se sentir (em face da tutela limitada até aí vigente) entusiasmado e seduzido pelo paradigma novo de concessão de tutela judicial plena que se foi instalando paulatinamente nos tribunais e nas consciências de todos, pelo menos até ao limite do respeito pelo princípio da separação de poderes e pelo respeito do princípio da prossecução do interesse público.

De resto, a tutela judicial nas relações privadas também não é isenta de limites, a começar pelo limite da existência e suficiência do património do devedor como garantia do crédito. O direito à concessão de tutela em termos efetivos e equitativos – o direito de ação (aqui compreendido também o direito de defesa), sendo um direito fundamental, não o é em termos absolutos, podendo sofrer compressões quer quando os direitos que se pretendem titular são públicos como também quando são de natureza privada. E convém ter presente que, em face da multipolaridade das relações administrativas, não raras vezes a concessão da tutela tem de ter em conta a articulação proporcional de mais do que um interesse privado (por vezes opostos) e de cada um destes com o interesse público em prossecução.

Revelada esta nossa desconfiança relativamente ao denominado contencioso pré-contratual, cumpre registar que no tempo de vigência do novo paradigma de justiça administrativa (cerca de 16 nos), o regime processual do contencioso de certos contratos públicos é o que tem registado mais volatilidade. E se a Diretiva Recursos foi a responsável pela necessidade de adaptação, o certo é que tal transposição da diretiva em sede processual – tal como em sede substantiva – foi feita de modo faseado.

Para fundamentar as conclusões precedentes – volatilidade e transposição faseada – basta pensar que, na sua versão original, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos não previa que a pendência da impugnação produzisse efeito suspensivo ope legis (apesar de dotar aquele meio processual principal ou satisfativo de natureza urgente), podendo tal efeito ser obtido mediante a concessão de tutela cautelar (especialmente pensada para o contencioso dos contratos públicos que fazem parte do âmbito da Diretiva e dos artigo 100.º do CPTA) prevista no artigo 132.º do mesmo código e, portanto, necessariamente instrumental, reconduzida, tipicamente, a uma especial suspensão de eficácia dos atos administrativos relacionados com a formação dos contratos ali previstos.

Entre 2004 (data de entrada em vigor da reforma de 2002) e 2015 , ou seja, durante cerca de 12 anos, assim foi. Na ausência de estatísticas que nos permitam a confirmação da nossa intuição, a nossa escassa experiência na área aponta para a conclusão de que o meio processual que se destinava, em primeira mão, a evitar a celebração de um daqueles contratos sem que antes uma dada entidade imparcial se pronunciasse sobre a (i)legalidade de certos atos que estão na cadeia de precedente de formação do mesmo (isto é, que se destinava a impedir que se celebrassem contratos assentes em atos inválidos, fazendo perigar a efetividade do direito à invalidação do administrador, in casu, do concorrente preterido) tem vindo a falhar este seu desiderato, quer porque o contrato era imediatamente celebrado a seguir ao ato de adjudicação, quer porque os pressupostos de decretamento de providências cautelares, especialmente previstas no artigo 132.º do CPTA eram aplicadas com rigor – por vezes demasiado apertado – pela jurisprudência, o que, as mais das vezes, permitia a degeneração de um contencioso pré-contratual num contencioso pós-contratual de finalidade meramente ressarcitória, com espectro legalmente limitado ou, pelo menos, com conteúdo indemnizatório altamente duvidoso e com percurso processual pouco seguro.

Com a reforma operada em 2015, o denominado contencioso pré-contratual revelou alterações significativas que se coadunavam com a finalidade inibitória da tutela prevista e pretendida pela Diretiva Recursos (evitar a celebração do contrato ou a sua completa execução). Ficou previsto que quando o ato objeto daquele meios processual fosse o ato de adjudicação, a impugnação deste ato produz efeito suspensivo automático. Concomitantemente, o legislador passou prever um incidente de levantamento do efeito suspensivo a ser usado pela administração ou pelo adjudicatário (contrainteressado naquela ação) para cujo êxito ( e, consequentemente, cessação do efeito suspensivo) qual a lei fixava determinados pressupostos. Não foi esta a única alteração introduzida, mas certamente, foi esta a mais importante.

Sucede que cerca de 4 anos depois da entrada em vigor da reforma operada em 2015, a mais recente alteração legislativa operada em 2019, apesar de manter a precisão de um efeito suspensivo de aplicação automática e sem intervenção do julgador, reduziu este efeito substantivo especial da pendência da impugnação às impugnações do ato de adjudicação que entrem em juízo até ao 10.º dia útil após a notificação do ato de adjudicação. As impugnações que não sejam intentadas neste prazo carecem deste efeito suspensivo automático pelo que a suspensão dos efeitos do ato adjudicatório só poderá ser logrado mediante a instauração de medidas provisórias, dependentes obviamente dos pressupostos próprios desta tutela instrumental.

Sublinhemos os períodos de tempo que fizemos questão de acabar de identificar: 12 anos para passar a estar previsto um efeito suspensivo para o ato de adjudicação; 4 anos para o mesmo ser consideravelmente reduzido, atenta a necessidade de instauração da ação em 10 dias úteis após a notificação do ato de adjudicação

Estes dados serão importantes para justificar os nossos pensamentos finais sobre as mudanças que entraram recentemente em vigor.

As mudanças mais recentes no regime pré-contratual são as seguintes:

1) previsão de condição legal para produção do efeito suspensivo legal (a ação tem de ter sido intentada no prazo de 10 dias úteis a contar da notificação do ato de adjudicação);

2) o efeito suspensivo só tem aplicação nos contratos públicos aos quais se aplique o impedimento comummente denominado como cláusula de stand still;

3) esclarecimento sobre a tempestividade do pedido de levantamento do efeito suspensivo e da sua natureza incidental.

4) finalmente, ficou esclarecida uma dúvida que apoquentava a doutrina e que ocupou a jurisprudência durante anos: o reconhecimento de que o efeito do recurso da decisão de levantamento só poderia ser meramente devolutivo, o que está expressamente previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 143.º do CPTA.

Antes de embarcar no desenvolvimento destas alterações, julgamos pertinente e mesmo absolutamente necessário tratar – ainda que perfunctoriamente – do enquadramento substantivo prévio à alteração central do regime do contencioso pré-contratual urgente atualmente vigente: a cláusula de stand still. Faremos, pois, uma brevíssima incursão sobre o significado, a justificação e as consequências do não cumprimento do dever de não celebrar o contrato durante determinado período de tempo após a notificação do ato de adjudicação que vigora para os contratos previstos no âmbito da Diretiva 2007/77/CE, ainda que com as exceções previstas no ponto dessa mesma diretiva e que vieram a ser transpostas para o direito interno no artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).

 

2. Nesta tarefa é incontornável dar destaque à Diretiva Recursos datada de 2007 (2007/77/CE), a qual pretendeu reforçar a tutela jurisdicional dos interessados não adjudicatários. Como decorre da parte preambular da mesma a inexistência de um prazo que permita interpor um recurso eficaz entre o momento da decisão de adjudicação e o da celebração do contrato em causa é uma deficiência assinalada no sistema, pois, como decorre do mesmo texto, por vezes, essa inexistência conduz a que as entidades adjudicantes, que pretendem tornar irreversíveis as consequências da decisão de adjudicação contestada, procedam rapidamente à assinatura do contrato. Ainda continuando a leitura da parte preambular, pode perceber-se que é por isso que a fim de obviar a esta deficiência, que constitui um obstáculo sério a uma tutela jurisdicional efectiva dos proponentes em causa, nomeadamente dos proponentes que ainda não tenham sido definitivamente excluídos, é necessário prever um prazo suspensivo mínimo, durante o qual a celebração do contrato em questão fique suspensa, independentemente do facto de a celebração ocorrer ou não no momento da assinatura do contrato. Sendo que a duração deste prazo deve proporcionar aos proponentes interessados tempo suficiente para analisarem a decisão de adjudicação e avaliarem da oportunidade de interpor recurso.

Decorre ainda da parte preambular da referida Diretiva que a interposição de um recurso pouco antes do termo do prazo suspensivo mínimo não deverá ter por efeito privar a instância responsável pelo recurso do tempo mínimo indispensável para agir, nomeadamente para prorrogar o prazo suspensivo relativo à celebração do contrato e, por isso, dá conta de que deverá ser previsto um prazo suspensivo mínimo autónomo que não termine antes de a instância de recurso ter tomado uma decisão sobre o pedido.

A Diretiva Recursos veio fixar, pois, um período de standstill (com algumas exceções), prevendo que os Estados-Membros devem garantir que os interessados dispõe de um prazo suficiente para assegurar o recurso eficaz das decisões de adjudicação de contratos tomadas por entidades adjudicantes e que, por isso, a celebração de um contrato na sequência da decisão de adjudicação de um contrato abrangido pela Directiva não pode ter lugar antes do termo de um prazo mínimo de 10 dias consecutivos, a contar do dia seguinte à data em que a decisão de adjudicação do contrato tiver sido enviada aos proponentes e candidatos interessados, em caso de utilização de telecópia ou de meios electrónicos, ou, em caso de utilização de outros meios de comunicação, antes do termo de um prazo mínimo, alternativamente, de 15 dias consecutivos a contar do dia seguinte à data em que a decisão de adjudicação tiver sido comunicada aos proponentes e candidatos interessados ou de 10 dias consecutivos a contar do dia seguinte à data de recepção da decisão de adjudicação do contrato.

Na transposição seletiva desta diretiva, o Estado português verteu no artigo 104.º do CCP, impedimento à celebração do contrato nos 10 dias que se seguem (agora úteis) à notificação do ato de adjudicação aos ainda interessados procedimentais.

O que se pretendeu garantir com a criação deste impedimento à celebração do contrato (que em Portugal é maior, mas apesar de tudo variável, pois dependente da verificação de dias não úteis) é não se tornasse completamente inútil a pretensão impugnatória ou condenatória relativa ao ato de adjudicação no minuto seguinte à notificação da adjudicação, dando ao interessado preterido a efetiva possibilidade de ainda antes do efeito que se pretende evitar com aquela ação, analisar a decisão administrativa e avaliar a possibilidade de impugnação e, se for caso disso, de requerer a tutela jurisdicional precisamente tendente a evitar a celebração de um contrato público assente em atos precedentes violadores do direito administrativo nacional ou europeu. Este prazo de 10 dias (entre nós 10 dias úteis) serve apenas para que se possa requerer a tutela sem ela estar já prejudicada pelo curso da situação real, destinando-se a evitar que adjudicante e o adjudicatário, cientes de que um interessado pode recorrer aos tribunais, se apressem a celebrar o contrato com o único intuito de torpedear o efeito útil da tutela impugnatória ou condenatória.

Dito de uma forma muito simples: o prazo destina-se a dar um avanço (ou uma vantagem temporal) ao interessado na requisição da concessão de tutela judicial, sabendo-se de antemão que a decisão da oportunidade da postulação dessa tutela requer mais tempo do que a celebração do contrato e que o ritmo de atuação administrativa por contraposição à atuação dos tribunais pode, neste caso, comprometer a concessão daquela específica forma de tutela, se tal vantagem temporal não existir de antemão.

Há que ter presente que no âmbito material dos contratos públicos abrangidos pela Diretiva Recursos, pretendeu-se garantir não um qualquer conteúdo de tutela judicial efetiva, mas a única tutela judicial adequada para satisfazer alguém que se viu preterido procedimento concursal, por ilegalidade do procedimento ou do ato de adjudicação. O juízo de adequação que emana da Diretiva Recurso foi o mais alto possível: a apreciação da validade do ato de adjudicação tem de preceder a celebração do contrato. Por outras palavras, a tutela da invalidade do ato de adjudicação é inibitória2, porque visa sustar a celebração do contrato no qual – a verificarem-se – se repercutem os efeitos das invalidades apontadas à adjudicação. A tutela visa, ela própria, inibir a verificação de um ilícito. A justificação para este reforço de tutela – genericamente defendido para a tutela de direitos fundamentais pessoais – não deriva apenas da natureza do direito substantivo que é defendido pelo interessado preterido (esse justificaria a emanação de uma tutela cautelar), mas, sobretudo, do particular interesse estratégico que a celebração dos contratos abrangidos pela diretiva tem para o interesse público nacional ou regional. Este interesse público nestes contratos reclama uma tutela máxima que, por isso mesmo, se antecipa como preterida apenas em situações muito especiais, sendo por isso que a substituição da concessão desta tutela por outra menor (como a ressarcitória, in casu, admitida pela aplicação ao contencioso pré-contratual dos artigos 45.º e 45.º-A do CPTA) deve ser encarada, a nosso ver, e para cabal cumprimento da Diretiva Recursos, com excecionalidade máxima.

O avanço conferido pelo período de standstill é uma técnica necessária para garantir a oportunidade temporal de impugnar o ato de adjudicação sem que o contrato possa já estar celebrado, mas aquele prazo não esgota a imposição resultante da Diretiva de que o contrato não pode ser celebrado antes da emanação de uma pronúncia judicial sobre a legalidade dos atos administrativos que estiveram na sua formação. A imposição derivada do n.º 3 do artigo 2.º da Diretiva é clara: em caso de impugnação judicial do ato de adjudicação, a celebração só se pode dar se o tribunal tiver apreciado a sobre a legalidade desse ato favoravelmente aos demandados E isto parece-nos ser assim desde que a impugnação seja tempestiva e mesmo que a situação em causa não estivesse abrangida pela cláusula de standstill ou a impugnação tenha dado entrada após o decurso desse período temporal. São dois instrumentos (procedimental e processual) destinados a permitir 1) que o contrato não precede a impugnação e 2) que o contrato não precede a decisão judicial3.

Foi este o entendimento que vingou em 2015 sobre o modo como a diretiva deveria ser transposta neste ponto. Mantendo em beneficio do interesse de adjudicante e adjudicatário e da estabilidade dos interesses que lhes dizem respeito prosseguir o prazo de caducidade é mais curto (um mês) do que o geral (reduzido para um terço da duração geral ) ,e por isso, ficou previsto que o pedido do interessado (pressupõe-se tempestivo) de concessão de tutela suspende a possibilidade de celebração do contrato, aplicando-se este regime quer o contrato esteja submetido a clausula de standstill, quer não o esteja ouainda nas situações em que tal cláusula não seria aplicável procedimentalmente4,5.

Pensamos que a transposição da diretiva levada a cabo em 2015 (impondo efeito suspensivo no que se refere à impugnação da adjudicação independentemente da existência e vigência do período de standstill. não só era a correta, como era a única suscetível de conduzir ao cumprimento do interesse inequívoco que se pretendeu preservar com a mesma. A ideia é a de garantir que, uma vez sindicado o ato de adjudicação, o contrato não seja celebrado enquanto o tribunal não se pronunciar sobre a pretensão do autor preterido no procedimento de contratação. Se o prazo de impugnação é de um mês então esse efeito tem, a nosso ver, que estar garantido durante esse período6.

Por outro lado, quer por exigências nacionais (artigo 20.º da CRP) quer por exigências internacionais (artigo 6.º da CEDH) o prazo de impugnação, ou seja, o exercício de direito de ação tem de estar sujeito a um prazo razoável e proporcional que permita o exercício deste direito fundamental e a garantia de um processo equitativo. O legislador português nunca considerou que esse prazo pudesse ser de 10 dias e, por isso, o fixou no prazo de um mês. Restringir o efeito suspensivo ao exercício do direito de ação por parte do interessado a apenas 10 dias (ainda que úteis) significa, na prática, restringir desproporcionalmente o direito de ação para um prazo exíguo.

Note-se que o risco de que o contrato seja celebrado antes da pendência da ação judicial é inerente ou natural ao exercício deste direito de ação em particular e , por isso, corre por conta do interessado. Com efeito, dispondo este de um mês para impugnar e sabendo este que tal impugnação produz efeito suspensivo destinado a garantir a utilidade da tutela cuja concessão foi por ele requerida, este já tem consciência de que se a ação for intentada depois do decurso da suspensão procedimental ou se o conhecimento da ação por parte dos demandados tiver lugar depois desse momento, que a celebração do contrato pode ter lugar, sem violar qualquer período suspensivo e apresentar-se como, uma realidade antes de o juiz pode decidir sobre a concessão da tutela que lhe foi requerida. Exatamente por causa deste risco é que ficou previsto que mesmo que o contrato tivesse sido já celebrado entre o fim da suspensão procedimental e antes do início da suspensão processual, o efeito pretendido com a instauração ainda faria sentido para suspender a execução do contrato celebrado, evitando que a consolidação de situações de facto possam interferir ou mesmo obstaculizar a concessão da tutela judicial adequada que era a inibitória (preventiva), convolando-a numa outra tutela menos intensa que é a tutela ressarcitória (reparadora).

 

3. Desde o nosso ponto de vista, o sistema previsto e agora revogado era coerente e fazia sentido. Com a garantia dada por um efeito suspensivo automático, impugnada que fosse a adjudicação no prazo de um mês a contar da notificação da mesma, o autor podia optar entre a maximização da sua tutela judicial, intentado a ação dentro do período de standstill, ou optar por impugnar o ato depois desse período ter decorrido e dentro do prazo de caducidade da ação. No primeiro caso, maximizaria a suspensão do procedimento numa fase prévia à própria celebração do contrato; no segundo (a não ser em contratos de execução muito rápida ou quase instantânea) lograria que, ainda que celebrado o mesmo, a execução deste pudesse ser contida ainda numa fase muito prematura.

Na verdade, o direito de ação pode está sujeito ao limite máximo de um mês, mas tal não significa que seja indiferente ao interessado preterido a utilização de qualquer um dos dias que fazem parte desse período temporal para intentar a ação de impugnação do ato de adjudicação . O dia escolhido para a apresentação do ato postulativo é da responsabilidade do interessado preterido quer para efeitos de caducidade do exercício desse direito, quer para outros efeitos acessórios que a mesma envolva. Será ainda uma consequência da sua liberdade e da sua vontade.

Agora, o recente encurralamento legal do interessado preterido no período inicial do prazo de caducidade (coincidente com o período de standstill) não só não lhe permite esta escolha, como ainda vai determinar o mesmo a impugnar mais rapidamente, sempre dentro desse prazo , o mais cedo possível e, por isso, com graves perigos para o exercício cabal, correto e regular do ato postulativo de que vai ser destinatário o Tribunal, o adjudicante e o contrainteressado adjudicatário.

Mas mais: fazer coincidir o período de standstill com o prazo dentro do qual a impugnação adquire efeito suspensivo legal automático é redundante. Se existe impedimento procedimental para a celebração do contrato, então não há qualquer interesse processual que justifique a previsão de um efeito suspensivo para a celebração do contrato em período coincidente. Por ouro lado, entre o fim de standstill e o decurso do prazo de impugnação restante incumbe ao interessado preterido ser diligente no exercício do seu direito, sendo como é sabedor que o impedimento procedimental acabou e que a qualquer momento o contrato até agora impedido de ser celebrado pode sê-lo a qualquer momento.

As considerações que acabamos de fazer fazem-nos intuir que as alterações processuais introduzidas pela recente reforma de 2019 não foram pensadas tendo como ponto de vista a necessidade de garantia da tutela judicial efetiva do interessado preterido no concurso em causa, mas antes o de garantir que uma ainda mais rápida estabilização da tutela do adjudicantes e do adjudicatário, assegurando que a mesma se consolida no fim os 10 dias úteis sem notícia de impugnação. Proposta a ação depois desses 10 dias não se verifica qualquer efeito suspensivo. Nem para a celebração do contrato, nem para a continuação da execução do contrato entretanto celebrado. A solução legal mais ampla revogada por esta reforma permitia que a diligência temporal do autor na postulação da sua pretensão em juízo determinasse no máximo a continuação da suspensão da celebração do contrato ou no pior a execução do mesmo ou a continuação da execução do mesmo. A partir da entrada em vigor do novo regime previsto pelo artigo 103.º-A do CPTA, o autor não tem escolha (a ação de impugnação do ato de adjudicação só tem efeito suspensivo do contrato ou da execução se for intentada no período de standstill) no qual já estava proibida a celebração do contrato para os que nela vierem a ser demandados e , por outro lado, a postulação da sua pretensão satisfatória tem de ser feita naquele prazo de 10 dias úteis se este quiser que tenha efeito suspensivo

Notamos, ainda, que, tal como revista, a solução em análise (atribuição de efeito suspensivo legal se a ação tiver sido intentada nos primeiros 10 dias úteis do prazo de caducidade de um mês), é totalmente incoerente com o sistema no qual se insere. Com efeito, se a impugnação da adjudicação suspende automaticamente a celebração do contrato e ou a execução do mesmo se já celebrado só quando intentada no prazo de 10 dias úteis (e só nos contratos que obedecem a standstill) então, é forçoso admitir que a execução do contrato só continuará eventualmente a carecer de suspensão em casos residuais de natureza patológica. Na verdade, se intentada a ação no período de standstill em princípio não terá lugar já de per si a execução do contrato precisamente porque em virtude da impugnação e do funcionamento do período de standstill, o contrato não chegou a ser celebrado. Assim, o efeito suspensivo que a parte final do artigo 103º-A mantém nesta revisão só pode ser um, de dois: 1) o efeito suspensivo sobre uma execução do contrato levada cabo na pendência do efeito suspensivo automático, isto é, em violação daquele efeito processual ou 2) a execução do contrato que teve lugar porque entre a impugnação e o conhecimento da impugnação pelos demandados, estes celebraram o contrato.

 

4. Antes de passarmos à análise das questões que ficaram por resolver pensamos ser necessário lançar um olhar sobre a tramitação da ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual.

Apesar de produzir um efeito suspensivo automático, a petição inicial na qual o autor postula sua pretensão impugnatória/condenatória não é liminarmente conclusa ao juiz apreciação liminar, ordenando este a citação ou procedendo ao indeferimento mesma. Isto resulta da concatenação do n.º 1do artigo 101.º e do artigo 81.º do CPTA. A citação é, pois, levada a cabo pela secretaria sem precedência de despacho judicial. Isto permite a produção de um efeito suspensivo legal automático sem que o juiz se tenha pronunciado, pelo menos perfuntoriamente, sobre a evidência da regularidade ou da irregularidade da ação, designadamente e, até, da tempestividade legalmente prevista. Obviamente que esta circunstância potencia, em muito, a produção de efeitos suspensivos injustificados e estamos em crer que a opção terá sido deliberadamente tomada na lógica de potenciar a efetividade pretendida para esta tutela a que já supra nos referimos.

Mas perguntar-se-ão os leitores, por que razão estamos a chamar à colação a citação oficiosa dos demandados feita pela secretaria judicial sem precedência de despacho judicial? É que temos visto defendido que o efeito suspensivo só começa a produzir-se com a citação dos demandados e daí a necessidade de requerimento de citação urgente7. Os que assim o defendem , fazem-no com 2 argumentos: a) por um lado, a suspensão só se pode dar por parte dos demandados e só pode ser respeitada por estes quando estes tomam conhecimento da pendência da ação, não produzindo a mera pendência da mesma, de per si, este efeito instrumental; b) mesmo não estando legalmente previsto que o efeito suspensivo opere com a citação, isso mesmo deve decorrer, por analogia, da previsão do n.º 1 do artigo 128.º do CPTA que clarifica que o efeito suspensivo opera com aquele ato de comunicação processual8.

Obviamente que não tendo sido implementado um sistema eletrónico de aviso de que a ação deu entrada na distribuição do SITAF que permitisse, pelo menos à adjudicante, identificar a pendência de um contencioso pré-contratual incidente sobre determinado procedimento, nem tão pouco uma obrigação legal de consulta da distribuição antes de celebrado o contrato (depois dos 10 dias úteis de standstill) é lógico que só o conhecimento dessa pendência pode tornar efetivo esse efeito suspensivo legal, impedindo adjudicante e adjudicatário de celebrar o contrato e ou de o executar.

Mas a comunicação necessária para o desencadeamento desse efeito não tem de ser a citação e, no caso concreto, nem faz sentido que o seja. Em primeiro lugar, o preceito dá conta de que o efeito suspensivo se dá com a pendência da ação até ao 10 dia útil seguinte a notificação do ato de adjudicação. Foi o legislador que fez derivar a suspensão dessa circunstância: pendencia de uma dada ação num certo prazo. Por isso, a nosso ver será suficiente que o impugnante dê conta desse facto aos demandados ou pelo menos ao adjudicante, mediante a entrega ao mesmo do comprovativo de entrada da ação que o sistema eletrónico de gestão de entrega de pelas processuais produz. Tal notificação pode ser feita pelos mais variados meios, mas já que o procedimento concursal é tramitado em plataforma eletrónica , esta informação poderia perfeitamente ser fornecida através dessa mesma plataforma.

A citação como meio de comunicação para a produção do efeito suspensivo, só faria sentido, como ato de comunicação privilegiado nos casos em que a citação é precedida de despacho judicial e não é oficiosamente levada a cabo pela secretaria judicial. Quando a citação é, por imposição legal (ou judicial ao abrigo do princípio de gestão processual) precedida de um despacho liminar, tal significa que o legislador pretende que os demandados apenas sofram os efeitos processuais e substantivos dessa pendência, depois de ter procedido a uma análise liminar . É por isso que noutra sede9 defendemos que a obrigação de não executar o ato suspendendo ou de impedir a execução do mesmo pelo seu beneficiário só se deve verificar depois da citação e não após qualquer outro ato de comunicação praticado pelo requerente10. Porque o requerimento cautelar está sujeito a despacho liminar, sendo o juiz que ordena a citação dos demandados e faz desencadear os efeitos legais da pendência daquela providência, entre os quais os suspensivos, faz sentido que a proibição de executar o ato comece a funcionar com tal ato de comunicação processual11.

Já quando o legislador não faz depender a produção dos efeitos suspensivos de uma análise judicial prévia, então o ato de citação não contém, considerado em si mesmo, nada de materialmente diverso do que a simples informação documentada por parte do autor aos demandados de que deu entrada da ação de impugnação do ato de adjudicação a que se refere o artigo 103º-A do CPTA. Não faz também sentido que atenta a redução drástica do prazo de impugnação com efeito suspensivo, a operatividade desse mesmo efeito fique ao encargo de uma máquina administrativa cuja eficácia o autor não domina e que não depende da sua vontade. Logo, se já antes da reforma operada em 2019 se justificaria esta solução, agora ela impõe-se para garantia de produção dos efeitos suspensivos, sob pena de o efeito suspensivo ser apenas uma miragem ou uma mera aparência de cumprimento de transposição da Diretiva Recursos, permitindo que a demora na citação possa levar à celebração do contrato no dia seguinte ao período de impedimento procedimental, mas antes da citação pela secretaria12. Mesmo que se queira argumentar que só a citação pela secretaria seria admissível porque esta só fará a citação depois de verificada a regularidade formal da petição nos termos do artigo 80.ºdo CPTA sempre se dirá, atento à restrição desse controlo a aspetos meramente formais a ausência de um controlo prévio pelo juiz sobre a regularidade da ação e, até , sobre a sua manifesta improcedência, tornam desproporcional que apenas este ato processual de comunicação provoque o efeito suspensivo que a lei reserva para a entrada da ação dentro no período legal agora determinado. Tal desproporcionalidade é intensificada atento o exíguo prazo de impugnação com efeito suspensivo.

A urgência do procedimento e a citação sem precedência de despacho judicial são instrumentos usados pela lei e destinados a lograr o grau de tutela máximo por esta pretendido para a impugnação de ato de adjudicação: impedir a celebração ou a execução de um contrato público alicerçado numa adjudicação anulável ou nula não pode, nem deve ser boicotada pela necessidade de citação para produção dos seus efeitos suspensivos e muito menos onerando o interessado com a necessidade de requerer a citação prévia à distribuição, uma vez que esta demora mais tempo do que uma citação sem precedência de despacho judicial.13

Cremos que a opção do legislador nos concede razão quanto a este ponto. Clarificado que ficou com esta revisão recente que os efeitos suspensivos da providência cautelar prevista no 128.º do CPTA apenas se verificam após a citação, estamos em crer que se a opção do legislador tivesse querido ser a mesma para a situação do artigo 103.º-A do CPTA, este a teria certamente introduzido de forma expressa no referido preceito. Não o fez. E, pelas razões já supra apontadas, a nosso ver, não se justifica de modo algum a sugerida aplicação analógica do 128.º do CPTA ao caso concreto, pois que como se viu, a citação para a ação não é, contrariamente ao que sucede naquela outra sede, precedida do controlo judicial prévio.

 

5. Notemos que o efeito suspensivo automático (quando tem lugar) só pode ser levantado judicialmente, não podendo, ao contrário do que sucede na situação prevista no artigo 128.º do CPTA, libertar-se o adjudicante do mesmo por ato de autoridade em que declare de modo concreto e fundamentado a gravidade que deriva para o interesse púbico de tal suspensão14. O adjudicante está aqui, pois, numa situação manifestamente mais complicada. Esta circunstância ilustra que o efeito suspensivo é ferramenta processual absolutamente essencial para conseguir a maximização do grau de tutela judicial que o legislador reservou para a impugnação judicial do ato de adjudicação dos contratos públicos que se enquadram no artigo 100.º do CPTA. É tão essencial que nem mesmo o princípio de separação de poderes foi suficiente para justificar uma disponibilidade da celebração do contrato ou da execução do mesmo por parte do demandado. Só o juiz, mediante contraditório prévio de todas as partes envolvidas, e a ponderação dos interesses me presença incluída apodera, em decisão fundamentada concluirá se a suspensão se deve manter ou se, antes, deve ser levantada.

Esta solução fazia recair o ónus do tempo no processo sobre o adjudicante e o adjudicatário. Mesmo assim, a distribuição deste ónus a favor do autor não se afigurava desproporcional, atenta a urgência do processo e a celeridade da tramitação do incidente.

A indisponibilidade do levantamento administrativo do efeito suspensivo mantém-se na revisão de 2019, com a clarificação de que o recurso da decisão de levantamento ou de não levantamento produz efeito meramente devolutivo15. Só que, uma vez que só terão efeito suspensivo as impugnações de adjudicações ocorridas nos processos em que se aplique o período de standstill e intentadas nos primeiros 10 dias úteis do prazo de um mês legalmente destinado à impugnação, é patente que o objetivo da alteração legal foi que o efeito suspensivo ocorresse num menor número de casos, diminuindo, também, concomitantemente, a necessidade de pedir o levantamento desse efeito, ao mesmo tempo que aumenta, correlativamente, a necessidade de apresentação de medidas provisórias por parte do autor da ação. A desejada redução das situações em que o efeito suspensivo tem lugar conduz novamente, num quase regresso ao passado (ao período anterior à revisão de 2015) à redistribuição do ónus do tempo neste processo, carregando mais o lado do autor, pois querendo este manter um efeito suspensivo ou similar terá de requerer medidas provisórias isto é, cautelares voltando a ser o autor a esperar que as mesmas sejam decretadas e já não o adjudicante a esperar que a máquina judicial levante a suspensão.

Cremos que da Diretiva recursos é trespassada pela ideia de que na impugnação da adjudicação o ónus do tempo deve correr por conta do adjudicante e do adjudicatário e não por conta do interessado preterido, pelo menos até à prolação da decisão em primeira instância sobre a pretensão postulada por este ao tribunal. Só esta distribuição do ónus do tempo no processo é, quanto a nós, compatível com a garantia de uma tutela inibitória de grau máximo que a diretiva parece dar sinais claros de querer consagrar. Por isso, se já estávamos seguros de que a redução a 10 dias úteis do prazo de impugnação com efeitos suspensivos é atentatória do direito fundamental à tutela judicial efetiva, prevista nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa, não podemos concordar com aqueles que ainda assim defendem que a solução agora em vigor não viola directivamente a Diretiva recursos. Pensamos precisamente o contrário, pois a alteração legal terá como efeito dificultar de forma séria o êxito da tutela inibitória (que orienta a diretiva), colocando o ónus do tempo de a obter de novo a cargo do autor e, concomitantemente, reforça a convolação da mesma em tutela ressarcitória por via da verificação de uma situação de facto consumada ou de….. que justifique, se danos houver que decorram da ilegalidade daquela adjudicação (da verificação do ilícito que se tinha como objetivo prevenir) – a mera fixação de uma indemnização pelo ilícito, mantendo-se, na ordem jurídica o contrato ilegalmente celebrado ou executado, eivado com ilegalidade relevante.

Uma última palavra relativa ao incidente de levantamento do efeito suspensivo. Apesar de poder ser considerada como contracautelar, a decisão de levantamento não deve, a nosso ver, apreciar, mesmo que apenas perfuntoriamente, a validade do ato de adjudicação. Como decorre da lei, do que se trata é de avaliar se os danos resultantes da celebração do contrato e da eventual consumação do mesmo é superior ao interesse público em concreto e atual e, ainda, aos interesses privados em presença. Se não o for, a manutenção a tutela inibitória, isto é, do grau de tutela máximo concedido ao interessado no âmbito material deste contencioso, poderá ter que regredir para uma tutela de menor intensidade, meramente ressarcitória, in pecunia. Como todos os envolvidos no processo ( interessado, adjudicante e adjudicatário) merecem um certo grau de tutela judicial efetiva, a concessão da tutela máxima ao interessado (inibitória) só deverá ceder perante a desproporcionalidade na restrição dos direito de tutela dos demais, recuando, numa composição ponderativa de interesses em presença para tutela de intensidade menor, isto é para a tutela possível em concreto, que há -de ser a reparatória de um ilícito que já não se pode evitar, desde que se demonstre que o mesmo produziu certos danos no interessado.

Esta ponderação é, por isso, independente da avaliação da procedência do pedido formulado, mais precisamente é independente, nesta fase, da avaliação da determinação da ilegalidade do ato impugnado e das probabilidades de obter vencimento a final, isto porque, se tiver vencimento nesta conclusão tal será fundamento para formulação de um pedido ressarcitório e ,se não lhe assistir razão neste ponto, a ação improcederá também nesta nova pretensão indemnizatória. Não há aqui lugar, no incidente do levantamento, à apreciação do fumus boni iuris da pretensão invalidatória formulada pelo impugnante16. Pensamos que o que se pretendeu introduzir com o incidente de levantamento não é ponderar a manutenção do efeito suspensivo considerando as possibilidades e procedência da impugnação, mas antes afastar a tutela inibitória , substituindo-a por uma eventualmente ressarcitória , quando ponderados os interesses privados ou públicos em presença estes pesem mais do que os do autor. Esta tutela só se manterá no grau máximo se os danos que resultam do levantamento do efeito suspensivo forem superiores para o autor por comparação com os danos que tal levantamento produziria a esfera jurídica do adjudicatário ou do adjudicante17.

Dizer isto não equivale a concluir que o comportamento processual do adjudicante é irrelevante como legitimante do pedido de levantamento. A isto voltaremos nas linhas finais.

 

6. Feita esta cirúrgica incursão nas mudanças operadas, temos para nós que teria sido interessante ter ponderado soluções concretas e expressas para algumas situações propiciadas pela impugnação do ato de adjudicação ou , se se preferir, pelo contencioso pré contratual. Talvez isto pudesse também contribuir – a par da especialização dos tribunais para os litígios derivados da contratação pública – para a diminuição do tempo de pendência destes litígios, produzindo soluções processualmente mais equilibradas e coerentes.

Em primeiro lugar, teria sido relevante determinar a consequência substantiva e processual da violação do efeito suspensivo automático pela entidade pública e pelo contrainteressado operada na pendência do processo de impugnação sem a prévia antecedência de decisão de pedido de levantamento do efeito suspensivo. Estamos em crer que uma solução viável seria a de tal constituir sem mais (isto é sem necessidade de o interessado deduzir incidente de ineficácia dos atos de execução ) um impedimento à convolação do objeto do processo em pretensão ressarcitória, tudo se passando para aquele efeito como se ao contrato não tivesse sido celebrado e ou executado. Outra alternativa seria a fixação judicial de multas significativas pela celebração do contrato ou por cada dia de execução do mesmo na pendência do efeito suspensivo legal sem que se tenha esperado pela decisão de levantamento ou sequer sem que a mesma tenha sido requerida), assim dotando este meio processual de uma espécie de tutela auto executiva, sem esquecer a responsabilidade penal que deveria ser acompanhada de advertência expressa na incursão em crime de desobediência qualificada.

A mesma solução poderia defender-se quando o contrato foi celebrado ainda em período de standstill, pois que a consequência é precisamente a da ineficácia do mesmo, nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo do 287.º do CCP.

Por isso simpatizamos com a ideia de que deveria resultar claro do regime alterado a vedação da possibilidade de manutenção da possibilidade de convolação do contencioso pré-contratual em contencioso ressarcitório nos casos em que tal necessidade tenha decorrido da violação pelos demandados do efeito suspensivo pela celebração do contrato e, ainda, da inadmissibilidade de invocação (em sede executiva) de uma causa legítima de inexecução se a mesma derivar, precisamente, do incumprimento do efeito suspensivo do processo, de alguma medida provisória ou cautelar judicialmente decretada ou, mesmo, do impedimento substantivamente derivado da cláusula de standstill.

São consequências que estão em coerência com o sistema, mas que, a nosso ver, e na ausência de uma expressão legal de proibição dirigida aos demandados, careceriam de estar expressas de modo a dissuadir comportamentos desviantes.

Em segundo lugar, perguntamo-nos como se poderá concatenar a precisão do prazo de 10 dias úteis para garantir o efeito suspensivo automático com o efeito suspensivo do prazo de impugnação produzido nos termos do artigo 58.º do CPTA pela utilização de meios impugnatórios administrativos meramente facultativos . Mantendo-se a suspensão do prazo de impugnação quando usados aqueles meios, agora clarificada pela nova redação do artigo 101.º do CPTA. e, sendo o prazo de 10 dias úteis a que se refere o 103.º- A do CPTA um prazo que faz parte do prazo de impugnação de um mês fixado pelo 101.º do mesmo código, como prazo de caducidade, pensamos que este também estará suspenso entre a apresentação da impugnação administrativa e o decurso do prazo para decisão da mesma, o que à primeira vista poderá determinar o equivalente aumento do período de tempo em que a impugnação da adjudicação pode ser intentada com efeito suspensivo. A não ser assim, as impugnações administrativas serão aqui uma miragem como forma alternativa de resolução de litígios, porque não obstando estas à suspensão do prazo de impugnação, ninguém as utilizará nestes casos, o que encaminhará todos os processos para resolução heterónoma, por terceiro imparcial, quer este seja estadual ou arbitral. Por outro lado, quem vai intentar uma impugnação administrativa depois de te dado entrada da ação de impugnação nos 10 dias úteis?

Em terceiro lugar, entendemos que não resulta equilibrado para a garantia da tutela efetiva dos demandos e dos interesses por estes titulados, a manutenção do efeito suspensivo do recurso da decisão judicial da ação de impugnação do ato de adjudicação, pelo menos sem que se determine expressamente qual o período de vigência do efeito suspensivo automático dessa mesma impugnação. Note-se que este efeito suspensivo do recurso só se verifica quando este tem por objeto uma decisão estadual e já não quando tem por objeto uma decisão arbitral (n.ºs 1 e 3 do artigo 143.º, alínea a), n.º 3 do artigo 180.º e n.º 3 do artigo185.º-A, todos do CPTA), caso em que o recurso tem efeito meramente devolutivo.

Neste último caso se a decisão for de improcedência, obviamente que o efeito suspensivo ainda que não levantado (por não ter sido solicitado ou ter sido negado o levantamento) deve cessar a sua vigência. O problema coloca-se quando o efeito do recurso da decisão final de mérito é o suspensivo, pois em caso de improcedência o efeito suspensivo automático parece manter-se. A Diretiva recursos aponta em sentido diverso quando prevê que o contrato não deve ser celebrado até que um tribunal tenha podido fazer uma apreciação da legalidade da adjudicação.

Aliás, independentemente do efeito suspensivo que um recurso de apelação ou que um recurso revista excecional ou per saltum possam determinar, o efeito suspensivo legal deve, a nosso ver cessar, quando a decisão de primeira instância vai no sentido da improcedência da pretensão de interessado, não devendo subsistir depois de um terceiro imparcial se ter pronunciado quanto à legalidade do ato de adjudicação, declarando a conformidade de tal ato com a lei e os princípios que enformam o mesmo, que é apenas o que a Diretiva pretende garantir. Depois desta decisão estar tomada em desfavor a tese do autor parece desproporcional (em termos de distribuição do ónus do tempo no processo) que o efeito suspensivo legal continue a impedir – na pendencia do recurso com efeito suspensivo – a celebração do contrato ou a execução do mesmo.

Em último lugar, julgamos que o equilíbrio dos interesses em tensão necessitaria da introdução de uma solução normativa específica que tivesse por objetivo responsabilizar o impugnante do ato de adjudicação beneficiante do efeito suspensivo da mesma, em caso de impugnação injustificada culposa que tenha provocado danos ao interesse público ou aos privados envolvidos. Mais uma vez, a solução de alegado reequilíbrio foi outra, que não esta. Não nos parece admissível que o equilíbrio substantivo dos interesse ativos e passivos em presença tenha passado prioritariamente pela imposição de pendência da ação nos primeiros 10 dias úteis do prazo de impugnação sem que o legislador tenha ponderado introduzir regras sobre a responsabilidade em que pode incorrer o autor se der entrada de ação manifestamente infundada, tendo com isso obtido também um efeito suspensivo infundado suscetível de ter causado danos na esfera do interesse público ou dos interesses privados em presença. Seria importante manter o prazo de um mês para produção do efeito suspensivo, mas ao mesmo tempo prever um regime de responsabilidade pelos danos que a suspensão causar no âmbito de uma impugnação injustificada imputável ao impugnante. Mantendo o prazo de 10 dias úteis para obtenção do efeito suspensivo da impugnação entendemos que não fica muito mais difícil a admissibilidade da responsabilização do impugnante por danos que possa causar (com dolo ou negligência grosseira) com uma impugnação de efeito suspensivo infundada, uma vez que é a própria lei que precipita o exercício do seu direito de ação, com os riscos inerentes.

 

7. Feita esta primeira incursão no tema, fica a ideia que não conseguimos dissipar da nossa mente: a de que a drástica restrição da suspensão do efeito suspensivo automático foi decidida pelo Estado, na sua veste de legislador, quando tendo feito recair sobre si em 2015, mas na veste de Estado administrador, o ónus do tempo do processo nestes processos deu conta – volvidos apenas 4 anos – da insuficiência e da ineficácia do incidente processual de levantamento do efeito suspensivo em tempo ainda útil.

Em vez de criar soluções que pudessem resolver a ineficácia e a desrazoável demora de processos, mesmo dos urgentes, e que resolvessem esse problema para todos os que recorrem à justiça administrativa, decidiu optar pela solução mais fácil e parcial possível. O Estado Administrador disse ao Estado legislador que assim não podia ser: a decisão de levantamento demorava muito tempo a ser tomada e, entretanto, o contrato ou a sua execução continuavam suspensos.

Devolvendo a bola ao interessado, o legislador decidiu que tudo tinha de ser ao contrário novamente e que as situações de necessidade de dedução do incidente de levantamento, a terem de manter-se, tinham de ser reduzidas ao mínimo pela restrição do efeito suspensivo operada pela diminuição do prazo de impugnação fazendo-o corresponder aos casos e ao preciso período de standstill.

Desta forma, é o interessado que terá de voltar a lidar com a ineficiência da máquina, antecipando a impugnação em apenas 10 dias úteis (com evidentes perigos na correção e preparação do ato postulativo) ou requerendo medidas preventivas que demorarão o tempo que tiver de ser.

O Estado continua estrategicamente a não investir na tutela judicial que avalia a legalidade das suas atuações ou omissões e só resolve o problema, à sua medida, quando a insuficiência de tutela lhe bate à porta, tendo apenas resistindo escassos 4 anos até alterar novamente o artigo 103.º-A do CPTA, desta vez a seu favor, num ping-pong legislativo inadmissível.

É caso para dizer que uma desgraça nunca vem só.

 

1 E. FERNANDEZ, “Revisitando o artigo 128.º, n.º 2 do CPTA: agora na perspetiva do contrainteressado”, Cadernos de Justiça Administrativa, N 90, novembro/dezembro, 2011.

2 L. G. MARIONI, Tutela inhibitória, Marcial Pons, 2014, pp. 23-24. Destacamos a caracterização prévia e sumária que com que o autor nos apresenta a tutela inibitória: a) uma tutela específica, a qual procura conservar a integridade do direito, exercendo uma função preventiva, b) orienta-se pelo futuro dirigindo-se a prevenir a consumação, a continuação ou repetição de um dado ilícito; c) a mesma é levada a cabo por uma ação de cognição exaustiva (ação inibitória). Desenvolvendo o tema numa obra mais vasta, L. G. MARIONI, Técnica Processual e Tutela dos Direitos, AAFDL Editora, 2020.

3 É por isso, a nosso ver, que a Diretiva não se preocupa com a suspensão da execução dos contratos em causa : é que a transposição das regras da diretiva recursos a execução dos contratos nunca teria lugar a não ser quando os mesmos não estiverem submetidos a cláusula de standstill.

4 Reconhecendo que nas situações e que o contrato se celebrou porque a impugnação foi ulterior ao período de standstill sem que fosse do conhecimento dos demandados que a ação havia sido intentada ou nos casos em que tal cláusula não tem aplicação procedimental, o contrato pode já estar celebrado, o legislador estendeu o efeito suspensivo da impugnação da adjudicação ao início ou continuação da execução do contrato já celebrado, o que era coerente e fazia sentido embora nesta sede já não esteja, salvo o devido respeito a transpor a Diretiva Recursos, mas a ir mais longe do que esta. na extensão da tutela judicial que a mesma pretende garantir.

5 No contencioso dito comum, e mais particularmente no que se refere à impugnação de deliberações sociais, a solução é outra para um problema semelhante o prazo de impugnação (sem efeito suspensivo) de 30 dias, mas a providência cautelar de suspensão de deliberação social deve ser intentada em 10 dias, dispondo o n.º 3 do artigo 381 do CPC que, citado o requerido, a execução da deliberação suspendenda se torna ilícita. O efeito suspensivo deriva da instauração de uma providência cautelar, em prazo curto (10 dias), mantendo-se o prazo de impugnação 30 dias) inalterado e esta sem efeito suspensivo autónomo.

6 Em termos diferentes , mas, no fundo, coincidindo no essencial, ver M. AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4.ª ed., Almedina, p. 841.

7 AROSO DE ALMEIDA, Comentário, p. 841.

8 R. ESTEVES DE OLIVEIRA, “A tutela cautelar ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, Cadernos de Justiça Administrativa , N.º 115, pp. 18-19, sugere que o efeito suspensivo se dá com a entrada da petição em juízo e não com a citação, muito embora sem explicar como é que os demandados podem cumprir um efeito suspensivo que desconhecem.

9 FERNANDEZ, Revisitando.

10 O ponto 11 da Diretiva-recurso dispõe que caso um Estado-Membro exija que uma pessoa que tencione interpor recurso informe a entidade adjudicante da sua intenção, é necessário que fique claro que tal não afeta o prazo suspensivo ou qualquer outro prazo para interpor recurso.

11 Assim o defendemos noutra sede (ver nota 1) e, finalmente, o legislador decidiu clarificar que tal proibição de execução só se inicia com a citação. Faz nestes casos sentido a determinação da citação urgente (ou seja, antes da distribuição) se o requerente recear fundamentadamente que a execução do ato pode ocorrer antes da citação “normal” se efetivar.

12 Por isso, alguns autores se apressam a expressar o incómodo com o prazo de 10 dias úteis , pois partindo da certeza de que só a citação pode operar o efeito suspensivo neste caso também, tendem a aconselhar que a impugnação deva dar entrada nos primeiros dias desses 10 dias úteis para permitir que nos restantes dias, mas ainda dentro do impedimento procedimental a citação tem lugar, e com ela o efeito suspensivo, apontando assim, mesmo na vigência da norma revogada, para um deficit de tutela judicial do autor . Neste sentido, AROSO DE ALMEIDA, Comentário, p. 841, revoltado – se assim podemos dizer – com este deficit, o referido autor considera que o período de standstill deveria ser o mesmo que prazo de impugnação, ou seja, um mês.

13 Um alerta para os casos em que a competência de primeira instância pertença ao STA: a organização deste tribunal superior (pensada para a apreciação de recursos de decisões judiciais) não contempla a previsão de mecanismos prévios que permitam a citação antes da distribuição, o que pode fazer perigar a operacionalidade da citação urgente e dos interesses que a mesma visa proteger. Notamos que tem de existir um juiz de turno que possa decidir se a citação tem ou não de ser prévia à citação sendo que só depois desta decisão é que o processo é distribuído. Mas para isso é necessário que esse juiz de turno esteja designado (mesmo fora do período de férias judiciais) e que a secretaria promova o contacto com o mesmo (que habitualmente não trabalha fisicamente no tribunal) imediatamente para aquele efeito. Fazemos o alerta porque, na nossa prática temos visto que este problema pode ser um verdadeiro empecilho a produção de efeitos suspensivos ou outros e, por isso, pode deflagrar numa denegação de justiça.

14 Uma das críticas que se promoveu ao 128 do CTA foi, precisamente, a de o contrainteressado não ter forma de se libertar do efeito suspensivo automático, não sendo possível invocar a produção de efeitos particularmente gravosos na esfera jurídica dos seus interesses privados, o que por nós foi diagnosticado como déficit de tutela e, por isso, defende-mos que o contrainteressado tem o direito de resistir aos efeitos suspensivos, prosseguindo com a execução do ato de que beneficiário, sob pena de assim não sendo , o preceito ser inconstitucional por restrição desproporcional do seu direito (enquanto demandado) à tutela judicial efetiva). Neste sentido, FERNANDEZ, Revisitando.

15 Na ausência de disposição própria, era aplicada a estes recursos o efeito geral dos recursos, isto é, o efeito suspensivo. A questão foi alvo de larga discussão jurisprudencial.

16 Em sentido divergente, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4/10/2017 (processo n.º 1329/16.1BELSB), no qual se sumariou que “O fumus boni iuri não constitui, neste âmbito, um requisito autónomo e cumulativo, mas é um fator a considerar na ponderação dos interesses envolvidos, em termos que, se for possível configurar como provável o fracasso da pretensão formulada na ação de contencioso pré-contratual, pode, ponderados ainda os prejuízos para o interesse público e para a adjudicatária, conduzir ao levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação e respetivo contrato”. Da nossa parte, diremos que se o tribunal dispõe de elementos para concluir pelo fracasso da ação, o que se impõe é que profira decisão na ação, o que deverá ter efeito direto na cessação dos efeitos suspensivos da mesma.

17 A solução é mais evidente no n.º 2 do artigo 381 do CPC segundo o qual “ainda que a deliberação seja contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, o juiz pode deixar de suspendê-la, desde que o prejuízo resultante da suspensão seja superior ao que pode derivar da execução”.