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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.6 no.3 Lisboa Dec. 2019

 

 

DESTAQUE

O desejável aprofundamento do diálogo entre tribunais.
A consulta prévia, os tribunais arbitrais e o Supremo Tribunal Administrativo

The desirable deepening of dialogue between courts.
Preliminary hearing, arbitral tribunals and the Supreme Administrative Court

 

Paula Costa e Silva I .

I Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, Lisboa, 1649-014, Portugal. E-mail:paulacostasilva@icloud.com

 

RESUMO

O presente texto explora a possibilidade de formulação de consulta prejudicial, prevista no artigo 93.º do CPTA, pelos tribunais arbitrais ao Supremo Tribunal Administrativo.

Palavras-Chave: consulta prévia; tribunais arbitrais; Supremo Tribunal Administrativo; diálogo entre tribunais; homogeneidade decisória;

 

ABSTRACT

The paper analyses the admissibility of a preliminary ruling, provided for in article 93 CPTA, from arbitral tribunals to the Administrative Supreme Court.

Keywords: preliminar hearing; arbitral tribunals; Supreme Administrative Court; dialogue between courts; uniform decisions.

 

1. Iniciaremos o presente texto com um pequeno desvio nos permitirá chegarmos com maior rapidez ao centro: da perspectiva do processual civilista, entre as regras mais interessantes do contencioso administrativo, merece destaque o artigo 93.º do CPTA1.

Dispõe esta regra:

Artigo 93.º

1 - Quando à apreciação de um tribunal administrativo de círculo se coloque uma questão de direito nova que suscite dificuldades sérias e possa vir a ser suscitada noutros litígios, pode o respetivo presidente, oficiosamente ou por proposta do juiz da causa, adotar uma das seguintes providências: [redacção da Lei n.º 118.º/2019]

a) Determinar que no julgamento intervenham todos os juízes do tribunal, sendo o quórum de dois terços, devendo a audiência decorrer perante o juiz da causa nos termos do no n.º 2 do artigo 91.º, e havendo lugar à aplicação do disposto no artigo anterior; [redacção da Lei n.º 118.º/2019]

b) Submeter a sua apreciação ao Supremo Tribunal Administrativo, para que este emita pronúncia vinculativa dentro do processo sobre a questão, no prazo de três meses. [redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 118.º/2019]

Se, enquanto extraneus, não erramos, supomos que o artigo 93.º esteja ordenado a conferir maior consistência e, mediatamente, estabilidade a decisões que, pela natureza do seu objecto, sejam especialmente complexas de julgar (questão de direito nova que suscite sérias dificuldades)2.

Com a reforma de 2019, passa a prever-se, não apenas um quórum distinto para o julgamento alargado [alteração à alínea a) do n.º 1], mas, numa segunda alteração de enorme relevância, o poder de intervenção oficiosa do presidente do tribunal. Se, até aqui, tanto o julgamento alargado, quanto a consulta prejudicial, dependiam de impulso do juiz da causa, com a entrada em vigor da Lei n.º 118.º/2019, de 17 de setembro, o presidente pode determinar um ou outro oficiosamente.

Esta alteração atribui ao presidente do tribunal o dever de promover as condições para que a decisão que venha a recair sobre questão de direito nova – como tal, não decidida anteriormente – possa ser a melhor possível. A lei prevê dois meios para que se alcance esta finalidade: ou se provoca a intervenção do colégio de decisores da instância para que intervenham na discussão e decisão da questão nova ou se suscita a imediata intervenção do Supremo.


2. Através do julgamento alargado consegue-se, ainda, promover a estabilidade da jurisprudência porquanto deverão intervir na decisão os juízes que poderão ter de julgar, em processos de que sejam titulares, questão de direito igual à que constitui objecto desta decisão; a questão a decidir em julgamento alargado deve ser, não apenas nova e complexa, mas também repetível. Poderia estranhar-se este pressuposto de admissibilidade de qualquer um dos meios processuais. Perguntar-se-ia se não seria sempre desejável que a decisão a proferir sobre questão nova e complexa fosse sempre a melhor possível, sendo a melhor possível a decisão que resultasse de um colégio alargado de decisores. Se, em tese, esta opção seria possível, o não retardamento da decisão do caso, seguramente inerente à deslocação da competência funcional para um órgão distinto – o colégio de decisores – impõe alguma ponderação. Esta foi reflectida pela lei: o n.º 2 do artigo 93.º exclui a admissibilidade da consulta prejudicial em processos urgentes.

Acresce que, a aceitarem-se as razões estruturais, que encerram a presunção de serem mais correctas as decisões proferidas por órgãos integrados por juízes mais experientes, a boa decisão de uma questão de direito nova e altamente complexa, mas que se não prefigura como repetível, pode ser assegurada através do esquema de recursos.

A consulta prejudicial, directamente formulada ao Supremo, dir-se-ia ser a solução óptima para que se antecipasse logo na decisão da causa aquela que poderá vir a ser a decisão dada a posteriori pelo Supremo Tribunal em sede de recurso. Não é objectivo do presente texto defrontarmo-nos com as muitas dificuldades que este meio suscita. Uma delas, porventura aquela que surge como a mais relevante, é a que entronca na regra constante do n.º 3, do artigo 93.º, nos termos do qual “[a] pronúncia emitida pelo Supremo Tribunal Administrativo não o vincula relativamente a novas pronúncias, que, em sede de consulta ou em via de recurso, venha a emitir no futuro, sobre a mesma matéria, fora do âmbito do mesmo processo.” Afinal, os benefícios que a consulta prejudicial, vinculante para o decisor da causa, traria, esbatem-se: o Supremo, não ficando vinculado à sua própria decisão, poderá alterá-la se, julgada a causa de acordo com o sentido da consulta prejudicial, tiver de decidir um recurso interposto desta decisão. Mas, não obstante este pequeno grande obstáculo a uma decisão estável da causa, o mecanismo da consulta prejudicial tem potencialidades para, com uma eventual alteração legislativa, se transformar num instrumento muito virtuoso.


3. Agora vamos ao pequeno desvio. O campo de observação é o contencioso das patentes. Este começa a aproximar-se do recorte institucional que nos vai interessar para a solução que, no final, deixaremos à consideração do leitor.

Desde cedo se discutiu se os tribunais arbitrais tinham competência para conhecer da questão, tipicamente suscitada na defesa, da invalidade das patentes. Em face de uma regra, constante do Código da Propriedade Industrial, que não se limita a regular a competência material na jurisdição comum, nela determinando a competência exclusiva de um concreto tribunal, mas que afecta o contencioso de validade das patentes aos tribunais estaduais, suscitou-se um problema que entronca num dos dois únicos princípios processuais fundamentais, no caso, o princípio do contraditório. Se apenas os tribunais estaduais podiam conhecer da validade das patentes, se as partes se viam remetidas para uma arbitragem necessária no contencioso entre titular de patente e titular de uma autorização de introdução de um genérico no mercado, como podia este último defender-se adequadamente se aos tribunais arbitrais, aqueles que o Estado considerara exclusivamente competentes, estava vedado conhecer de uma questão consubstanciadora de uma exceção peremptória impeditiva?

Não é relevante tomarmos aqui posição sobre este problema. O que nos interessa recordar, porque é um dos fios da presente teia, é que sobre esta matéria foram proferidos acórdãos substancialmente contraditórios pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional. Enquanto o Supremo entendeu que a exclusão de competência dos tribunais arbitrais para o contencioso de validade não afrontava o princípio do contraditório porquanto a parte tinha um meio de dedução desta matéria – o demandado podia desencadear processo autónomo, na pendência da arbitragem, junto dos tribunais estaduais, pedindo a declaração de invalidade da patente e sustando-se aquele procedimento até decisão final –, o Tribunal Constitucional tomou posição inversa, decidindo pela impossibilidade de supressão da faculdade processual de dedução da excepção peremptória perante o tribunal arbitral. No contencioso das patentes a contradição entre as posições dos Supremos Tribunais é particularmente sensível por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porquanto a uma primeira decisão do Supremo se sucedeu a sobredita decisão do Tribunal Constitucional, depois da qual se sucedeu nova decisão do Supremo que, afastando-se da solução do Tribunal Constitucional, retoma a jurisprudência do primeiro acórdão do Supremo.

Mas, supomos que bem mais grave do que um eventual atrito interinstitucional, são as consequências de uma contradição da jurisprudência das Cortes Supremas na vida dos jurisdicionados. Aquando da prolação destes acórdãos, estava – e supomos continuem – pendentes um número significativo de processos arbitrais. Será expectável que em percentagem elevada tenha sido deduzida, perante o tribunal arbitral, a excepção de invalidade da patente. Independentemente de competir ao tribunal da causa a decisão sobre a admissibilidade da excepção, sabe o decisor que, qualquer que seja a sua decisão, ela será sempre vulnerável. Se aceitar conhecer da excepção, estará respaldado pela decisão do Tribunal Constitucional; se tomar posição contrária, apoiar-se-á na jurisprudência do Supremo. Contudo o que todos os intervenientes sabem é que, até ao último recurso e perante a contradição de decisões dos Supremos Tribunais, qualquer decisão é reversível. Dir-se-á que esta é uma consequência normal perante a compartimentação de competências das diversas estruturas. Mas – e chegamos, assim, à pergunta que nos servirá de ponto de reflexão no contexto das alterações ao CPTA – pergunta-se: será comportável para os jurisdicionados que aguardem durante largos anos até à estabilização da jurisprudência num problema que, sendo frequente no concreto contexto em que emerge, se agudiza em face da contradição de decisões das Cortes Supremas? Não deveria prever-se um instrumento que propiciasse a um diálogo interinstitucional sempre que fosse detectada uma questão de Direito nova e complexa, susceptível de repetição e em que se houvesse formada jurisprudência contraditória dos Supremos Tribunais? Poderão as competências próprias das diversas ordens de Tribunais justificar soluções que permitem a criação de entropia na vida dos jurisdicionados?

Fica a questão que não tem solução estrutural simples. Ainda que nos pareça, assentando-se na necessidade de estabilizar o Direito em benefício dos seus destinatários, que alguma coisa deveria começar a ser equacionada. E o ponto de partida poderia bem ser a previsão do corpo do n.º 1 do artigo 93.º do CPTA: a provocação de um diálogo interinstitucional – e não apenas intrainstitucional, como sucede nas hipóteses cobertas pela regra – sempre que se identificasse uma questão de Direito nova e complexa, susceptível de repetição e em que, atendendo à – e não obstante a – esfera de jurisdição de cada ordem de tribunais, pudesse verificar-se uma colisão de julgados. É evidente que tudo é mais simples quando os diversos decisores integram a mesma ordem. Mas, diremos, as finalidades que se visam atingir através do artigo 93.º do CPTA – e apesar da diminuição de eficácia do instrumento, em virtude da sua natureza precária para o Supremo Tribunal – são transversais. Haverá espaço para um repensar dos efeitos das fronteiras?


4. Juntemos, agora, o último elemento que suportará a proposta que faremos a final e que poderá determinar um aprofundamento do diálogo entre os tribunais que decidam sobre matéria administrativa e o Supremo Tribunal de Justiça.

Voltemos à Lei n.º 118.º/2019, de 17 de setembro, e às alterações que trouxe ao CPTA. Entre elas, vai relevar a previsão de recurso das decisões proferidas por tribunais arbitrais.

Não nos interessa, nesta instância, sindicar a bondade das razões que podem ter justificado a criação deste regime de impugnação das decisões arbitrais. Como todas as opções, terá vantagens e inconvenientes. O que supomos dever sublinhar é que a previsão de recurso de quaisquer decisões a que o Estado reconheça eficácia, se inscreve na margem de escolha do legislador. E se a irrecorribilidade das decisões arbitrais é comum na arbitragem de direito privado, ela não integra o núcleo das características definidoras da arbitragem. Competirá, assim, ao legislador ordinário prever, em cada tempo e lugar, a solução que considera ajustar-se melhor às circunstâncias para as quais legisla.

Lembremos o que ocorreu com a consagração da ausência de dupla conforme enquanto requisito de admissibilidade do recurso de revista. Ao ter criado uma condição processual de acesso ao Supremo Tribunal, terá o legislador analisado as taxas de reversão das decisões proferidas pelas instâncias. E desta análise pôde concluir que a percentagem de revogações seria de tal modo negligenciável que seria inadequado que todas as decisões proferidas pelas Relações admitissem recurso para o Supremo. Isto porque terá seguramente podido concluir que, na esmagadora maioria dos casos, havendo duas decisões conformes, nada alterava o Supremo Tribunal. A presunção de acerto das decisões das instâncias, na ponderação entre diversos bens em confronto (possibilidade de obter pronúncia do órgão de cúpula da magistratura vs sobrecarga deste supremo tribunal com a análise de casos que não justificariam a sua intervenção, acrescida do retardamento do trânsito em julgado e da impossibilidade prática de os Supremos se dedicarem à demais funções que se reconhecem a estes tribunais), aconselharia a restrição do recurso sem perigo real para o direito de acesso á Justiça, lido este como o direito de acesso à boa decisão. Decisões boas das instâncias acautelariam as situações jurídicas materiais litigiosas; o Estado de Direito manter-se-ia íntegro. A consagração da revista excepcional operaria o fecho do sistema.


5. Regressemos à previsão de recurso das decisões arbitrais. Sendo pouco curial admitir-se que, ao inverter o paradigma de que partira, o legislador tivesse agido imponderadamente, seguramente concluiu haver desacerto na maioria das decisões arbitrais proferidas em matéria administrativa, sendo necessária a consagração de recurso. A impugnação impor-se-ia mesmo para garantir uma melhor decisão, especialmente quando estão em causa o interesse público e, necessariamente, recursos públicos. Poderá contra-argumentar-se que esta razão não pode valer porquanto, na ausência de recurso, dificilmente se poderia concluir pelo desacerto das decisões arbitrais. Estas teriam ficado sem controlo pelo que ninguém poderia concluir pelo respectivo desacerto; somente depois de escrutinadas e revogadas pelos tribunais competentes para o julgamento do recurso permitiriam a construção de uma estatística que, atendendo à percentagem de cassações (com substituição no julgamento do objecto do recurso), imporia a impugnação. Como esta não estava prevista, este tipo de razão não poderia demonstrar-se.

O que acaba de dizer-se supomos ser argumento válido contra uma das razões possíveis para a alteração da solução legal: não será, seguramente, o diálogo entre tribunais arbitrais e tribunais administrativos a explicar a inversão da regra relativa à recorribilidade porquanto, não estando este previsto, não terá sido o desacerto dos acórdãos arbitrais judicialmente aferido que pode ter motivado o legislador.

E também não pode ser sido a crítica exercida pela Ciência do Direito a provocar esta alteração. Com efeito, se a publicidade das decisões arbitrais, imposta por lei, teria permitido um escrutínio alargado quanto ao acerto ou desacerto das decisões arbitrais, o Estado administrador, incumprindo sistematicamente as injunções do Estado legislador, não deu publicidade às decisões arbitrais. Com isto se impediu a ciência jurídica, sempre atenta à jurisprudência e às evoluções que esta provoca, de cumprir a sua função de divulgação e reelaboração do sistema a partir da inferência da solução do ou dos casos.


6. Sejam, então, quais forem as razões justificativas da alteração do regime de impugnação das decisões arbitrais, temos, agora, em vigor uma solução que dispõe a recorribilidade em termos amplos. Também sobre aspectos de regime e de crítica legislativa não cuidaremos nesta circunstância. O aspecto que queremos sublinhar é que, através da previsão de um regime de impugnação, a reforma do CPTA vai permitir um aprofundamento do diálogo entre tribunais arbitrais e tribunais administrativos. E este diálogo é, tomando agora posição crítica, muito virtuoso. O clima de suspeição e de desgaste em que foi sobrevivendo a arbitragem administrativa não se manterá, não apenas quando o Estado administrador cumprir a obrigação, por si sistematicamente violada, de publicar as decisões arbitrais, como pela elevação do diálogo entre decisores de diferentes instâncias ao plano interinstitucional. Tribunais arbitrais e tribunais estaduais, todos têm a beneficiar com este diálogo. Porém, e se o Estado avança com uma nova solução, para que possa afirmar-se ter cumprido o comando de dispor instrumentos que aperfeiçoam a tutela dos direitos através da implementação de controlos de legalidade não pode o Estado nada fazer em face da morosidade da justiça administrativa. Num Estado de Direito não é aceitável que os jurisdicionados vejam o seu caso decidido em vinte meses (média dos processos arbitrais administrativos mais complexos) para, depois, terem de aguardar vários anos pela decisão do recurso. Se o Estado não quer que se afirme que a previsão de recurso teve como único objectivo impedir o trânsito das decisões e retardar a execução, provavelmente beneficiando-o, deverá mostrar inequivocamente que, não obstante entender adequado estender o processo de decisão (com a interpolação de recursos), criou meios para que o tempo da Justiça não seja excessivamente alongado.


7. As vantagens de um diálogo entre tribunais que, até aqui, não conversavam entre si – as acções de anulação, atendendo à pretensão nelas deduzida, nunca permitirão que os tribunais estaduais, caso destruam a decisão, se pronunciem sobre o mérito – são, do nosso ponto de vista, incomensuravelmente superiores à desvantagem que vemos neste novo paradigma: o retardamento inevitável do tempo da decisão e do cumprimento coercivo.

É evidente que se poderia hipotizar trazer este diálogo consigo um espírito de emulação entre tribunais, que se veriam como concorrentes directos. Tribunais arbitrais e tribunais estaduais esforçar-se-iam, não apenas por decidir bem, mas por decidir de forma a que a Ciência do Direito não pudesse afirmar serem boas as decisões de uma estruturas e menos boas a de outra. Mas ainda que este espírito se verificasse, o que revelaria uma insuficiente maturidade funcional para a qual não encontramos razão demonstrada, quem dele beneficiaria seria o jurisdicionado. A concorrência imporia uma elevação sempre constante do rigor técnico das decisões.

Mas a grande vantagem do diálogo interinstitucional reside na possibilidade de, finalmente, as decisões dos tribunais arbitrais poderem ser debatidas e escrutinadas nos tribunais estaduais. Sempre que for interposto recurso de uma decisão arbitral e o tribunal estadual houver de tomar posição, quer porque cassa a decisão, devendo, então, decidir o objecto do recurso, quer porque a mantém, caso em que deixará enunciadas as razões pelas quais não considera a decisão arbitral ilegal, ter-se-á operado um escrutínio, e com ele um diálogo, entre decisores. E este efeito é extremamente relevante se se pensar que, apesar da ausência de divulgação das decisões arbitrais proferidas, não ser provavelmente desprovida de acerto a afirmação de que os mais complexos problemas jurídicos suscitados com as perturbações no cumprimento – usada esta expressão em termos extremamente amplos – foram decididos, pelo menos nas duas últimas décadas, nos tribunais arbitrais. E toda a jurisprudência aí criada ficou oculta. Ora, nenhum sistema de Direito evolui se aqueles que podem ser os focos do seu progresso são, sem que se perceba porquê, escondidos de todos. Como num Estado de Direito é inaceitável que o Estado exerça as suas competências com desvio de poder – razão pela qual não pode admitir-se a explicação segundo a qual nunca foi implementado um sistema de publicação de decisões para que fosse possível criar-se uma imagem negativa, e insusceptível de ser rebatida, da justiça administrativa arbitral -, só pode lamentar-se que nenhum diálogo tenha havido, até aqui, com a jurisprudência dos tribunais arbitrais. Boa ou má, porque recaindo sobre questões complexas, teria sido analisada por intervenientes diversos daqueles que foram os concretos decisores. Ao ter ficado oculta, não pôde ser criticada, nem por outros tribunais, nem pela Ciência do Direito. Ao ficar oculta, não podido ser ponderada, em nada pôde contribuir para a evolução do Sistema. Esta é uma conclusão lamentável pelos recursos que, neste ínterim, se perderam e por aquilo de que o principal prejudicado pela não evolução do Sistema, o jurisdicionado, não pôde beneficiar.


8. O aprofundamento do diálogo interinstitucional entre tribunais arbitrais e tribunais administrativos terá, entre as suas diferentes consequências, a de a jurisprudência uniformizada poder partir de uma decisão arbitral. Veja-se que a lei não foi tão longe que admitisse um recurso de uniformização perante a colisão de decisões proferidas por tribunal arbitral e por tribunal administrativo [cfr. a redacção do n.º 1do artigo 152.º, , introduzida pela Lei n.º 118/2019, diploma que, tendo previsto o recurso para o Supremo de acórdão arbitral, não ampliou a previsão da alínea a)]. Mas, ao ter admitido o recuso para o Supremo, sempre que exista a oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, do acórdão arbitral com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, acabará por poder ocorrer, ainda que a decisão vinculante seja sempre a do Supremo Tribunal Administrativo, uma uniformização no sentido da decisão arbitral. Com isto, e sendo a jurisprudência arbitral debatida pelo Supremo, terão os árbitros cumprido aquela que sempre entendemos ser também a sua função: contribuir para a evolução do Direito e, assim, para o aprofundamento da democracia.


9. E chegamos, agora, ao último ponto, aquele que consubstancia a proposta que gostaríamos de deixar para reflexão.

Como vimos, o artigo 93.º do CPTA previa dois mecanismos que, supomos, visam concorrer para a não contradição de decisões e, consequentemente, para a mais rápida estabilização da jurisprudência em torno de questões de Direito novas, complexas e repetíveis.

Pergunta-se: não seria possível aprofundar-se o debate entre os tribunais arbitrais e os tribunais administrativos conferindo-se àqueles a faculdade de dirigirem consultas prévias ao Supremo Tribunal de Justiça?

Supomos a imediata reacção negativa de quem nos lê. Dir-se-á que a lei não prevê a atribuição desta competência ao presidente do tribunal arbitral ad hoc ou ao presidente do tribunal arbitral institucionalizado porquanto tal competência colidiria com a celebração de convenção de arbitragem. Percebe-se, imediatamente, que esta crítica não toca as arbitragens necessárias: nestas seria absolutamente artificial afirmar que as partes haviam prevenido a competência dos tribunais estaduais porquanto essa prevenção lhes é imposta por lei.

Mas o que dizer da crítica se pensarmos nas arbitragens voluntárias puras, aquelas em que a submissão de uma questão a arbitragem depende da vontade de ambas as partes? Com isto ficarão de fora do ponto de crítica as arbitragens unilateralmente impostas por uma parte ou aquelas que, fazendo parte dos elementos de um concurso, deverão ser aceites sob pena de exclusão do concorrente e que qualificamos como arbitragens putativamente voluntárias.

Se nos ativermos às arbitragens administrativas voluntárias puras, não colidirá a consulta prejudicial com a atribuição de competência para o julgamento da acção aos árbitros? Se estes remetem a decisão da questão de Direito nova e complexa para o Supremo Tribunal Administrativo não frustram a convenção de arbitragem?

Supomos que a resposta a esta interrogação seja positiva. Com efeito, e ainda que a causa acabe por ser decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo quando este, julgando um recurso de substituição, conheça do recurso, o primeiro decisor a pronunciar-se não terá sido o órgão de cúpula da jurisdição administrativa estadual. Aliás, não ocorrendo a consulta prejudicial, quando o Supremo conhecer do recurso, contará já com uma decisão prévia, sobre cujo acerto ou desacerto lhe competirá pronunciar-se. O tribunal arbitral terá trilhado caminho novo; quando o recurso chega ao Supremo Tribunal Administrativo, será tipicamente intenso o debate já previamente travado quanto à melhor solução a dar à questão de Direito nova, complexa e espectavelmente repetível. O Supremo ponderará todos estes dados, sendo, necessariamente, por eles influenciado (como, aliás, sucede com qualquer tribunal que deva agir após a prática de actos postulativos pelas partes, actos que se caracterizam exactamente por visarem persuadir o decisor).


10. A atribuição de competência aos árbitros para que estes julguem um litígio prejudicará irremediavelmente a aplicação do mecanismo previsto alínea b) do n.º 1 do artigo 93.º do CPTA na pendência de um processo arbitral? Estará o tribunal arbitral impedido de remeter a decisão de uma questão nova, complexa e repetível para o Supremo Tribunal Administrativo, ainda que se antecipe a intervenção deste órgão na fase do recurso?

A resposta parece-nos ser agora negativa. Com efeito, se a celebração de convenção de arbitragem pura impede que o tribunal arbitral dirija uma consulta prévia ao Supremo Tribunal Administrativo sem consulta prévia às partes, nada o impede de debater com as partes a formulação de tal consulta, a fim de obter o respectivo acordo à deslocalização do centro de decisão. Se esta translatio da competência decisória de uma dada questão não se revela particularmente complexa quando a cooperação e o diálogo que com ela se trava é intrainstitucional, tudo se torna mais complexo quando este diálogo é, não apenas interinstitucional, como pressupõe a intervenção, na decisão da causa, de um decisor integrado numa ordem cuja competência as partes preveniram. Mas veja-se que o peso desta razão se esbate se se tiver sempre em consideração o pano de fundo que permite justificar a proposta que acabámos de fazer: a previsão de recurso das decisões arbitrais. Na verdade, ainda que as partes hajam prevenido a competência primária da ordem dos tribunais administrativos para o julgamento da causa em primeira instância, aquela competência não pode ser por elas prejudicada no momento em que a lei dispõe a recorribilidade das decisões arbitrais, atribuindo a competência para o conhecimento da impugnação aos tribunais administrativos.

11. Resta-nos terminar.

No momento em que fechamos este texto, temos consciência de que a proposta que esboçámos se prestará a fortes e duras críticas. Mas talvez que o debate que se possa provocar permita iluminar um caminho de aprofundamento do diálogo entre tribunais arbitrais e tribunais administrativos, que julgamos até aqui inexplorado. Na medida em que o aprofundamento de qualquer diálogo, transparente e leal, beneficiará o jurisdicionado e o Estado de Direito, as críticas que sejam desferidas contra o que se conclui serão sempre positivas porque também elas concorrerão para a concretização daquela finalidade.

 

1 Sobre o artigo 93.º CPTA, M. AROSO DE ALMEIDA, Manual de processo administrativo, 3.a ed., Coimbra, Almedina, 2017, pp. 380 e ss.; M. AROSO DE ALMEIDA e C.A. FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2017, sub artigo 93.º.

2 Segundo a proposta de Lei n.º 92/VIII, o julgamento alargado e a consulta prejudicial são consagrados para “favorecer a qualidade das decisões dos tribunais administrativos de círculo e alguma uniformidade na resolução de diferentes processos sobre a mesma matéria.”