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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.6 no.1 Lisboa Apr. 2019

 

 

DIREITO PÚBLICO

“A Tarifa Social enquanto garante de acessibilidade e universalidade do direito à água”

“The Social Tariff as a guarantee of accessibility and universality of the right to water”

 

Simão Mendes de SousaI.

I Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, - Alameda da Universidade, Cidade Universitária, Lisboa, 1649-014, Portugal.

 

RESUMO

O direito à água foi reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Julho de 2010 como um Direito Humano Fundamental. Da forma como internacionalmente o conteúdo deste Direito tem sido gizada, pode-se entender que o mesmo deve ser acessível à generalidade das populações, pelo menos no seu núcleo mínimo. Não se afasta desta ideia, que a escassez do recurso natural, a sua qualificação enquanto bem económico, e o necessário investimento em infraestruturas que garantam a sua qualidade, requerem o estabelecimento de uma tarifa. Contudo, essa tarifa pode ser reduzida em casos de débil condição económica do utilizador. Por intermédio da aprovação do Decreto-Lei n.º 147/2017 de 5 de Dezembro, estabeleceu-se o acesso à tarifa social da água, de modo a garantir o acesso à fruição desse Direito, permitindo deste modo a sua universalidade e acessibilidade. Assim, pretende-se analisar como este Decreto permite garantir o acesso à água de forma universal, equitativa e igualitária, ao mesmo tempo que disciplina a eficiência do consumo de um recurso natural escasso.

Palavras-Chave: Direito Humano Fundamental; Direito à Água; Tarifa; Tarifa Social; Universalidade

 

ABSTRACT

The right to water was recognized by the United Nations General Assembly in July 2010 as a Fundamental Human Right. It can be understood, from its internationally established content, that it must be accessible to the general population, at least in its minimum core. This idea does not imply that the scarcity of the natural resource, its qualification as an economic good, and the necessary investment in quality-assuring infrastructures do not require the establishment of a water tariff. However, this rate may be reduced according to the customer’s purchasing power. Decree-Law no. 147/2017 of 5 December established the access to the social water tariff in order to guarantee the satisfaction of the Right to Water, therefore allowing its universality and accessibility. This paper analyses how this Decree simultaneously ensures access to water in a universal, equitable and egalitarian way, but also regulates the efficiency of the consumption of this scarce natural resource.

Keywords:Fundamental Human Right; Right to Water; Tariff; Social Tariff; Universality.

Sumário: I. Razão de Ordem. II. Direito Fundamental à Água. II. a). O «Minimum Core» do Direito Fundamental à Água. III. A Acessibilidade e Universalidade. IV. A Tarifa Social da Água. V. Conclusões.

 

I. Razão de Ordem.

Com o reconhecimento em 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas do direito à água, este garantiu um estatuto que até então não tinha. Ou seja, com a elevação deste a direito humano, poder-se-á considerar que os Estados se encontram obrigados a assegurar o respeito pelo direito à água, como o respeito por qualquer outro direito humano. É certo, contudo, que este assume a característica de um direito social e/ou cultural, mas não deixa de se poder dizer que o respeito pelo Direito configura, em larga medida o respeito pela dignidade da pessoa humana.

Em decorrência desta ideia, pode ser estabelecido um núcleo mínimo deste direito – o «minimum core» – que o Estado tem sempre de assegurar aos seus cidadãos. Poder-se-á dizer que, com a aplicação de uma tarifa pela prestação do serviço de águas, o Estado limita, ainda que de forma implícita, o acesso a este bem essencial. Entendemos que esta afirmação olvida o facto de a água ter um valor económico para além do seu valor social. Valor económico que deve ser realizado e, como tal, financeiramente regulado.

Do estabelecimento de uma tarifa, de acordo com as limitações decorrentes do regime jurídico de gestão da água, não se poderão olvidar as garantias que o Estado deve criar de acessibilidade e universalidade de acesso à água, realizadas pelo meio de ações e prestações concretas por parte deste aos cidadãos.

O estudo que aqui elaboramos propõe uma abordagem ao direito fundamental à água, como um direito decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana constitucionalmente consagrado e ao qual o Estado Social de Direito Português vincula toda a sua atividade. Em face a vinculação a este princípio, o estado assegura um mínimo de existência condigna que sempre será assegurado com medidas e prestações concretas do Estado.

Assim, como plano de análise, propomos o estudo do direito fundamental à água, a análise do «minimum core» do direito fundamental à água. Posteriormente, estudaremos em que medida o Estado protege a acessibilidade e universalidade do direito fundamental à água, nomeadamente, na sua formulação de acessibilidade económica e financeira. Por último, faremos o estudo da tarifa social da água e as suas vicissitudes decorrentes do novo regime jurídico desta.

II. Direito Fundamental à Água.

I. A matéria associada ao direito humano fundamental de acesso à água gozou, ao longo do tempo que correu entre a sua emergência e o seu reconhecimento pela AGNU, de uma vastíssima evolução1 que, infelizmente, não cabe a este estudo avaliar. Referiremos apenas, por conveniência de análise o período evolutivo posterior ao reconhecimento pela Assembleia-Geral das Nações Unidas do direito à água como um direito humano.

Seguidamente, avaliaremos o princípio da dignidade humana no nosso texto Constitucional e a forma como este influencia toda a arquitetura do normativo constitucional.

II. É, exatamente, pelo princípio da dignidade da pessoa humana que iniciaremos a nossa análise. Na verdade, hipoteticamente, podemos encontrar variadíssimas construções dogmáticas que relacionam o direito fundamental de acesso à água com o princípio de dignidade da pessoa humana e como ambos se encontram interligados, uma vez que, será impensável uma existência digna e condigna sem acesso à água e ao saneamento. Em 2015, e fora da comunidade jurídica internacional, podemos na encíclica papal laudato si, encontrar o estabelecimento do acesso à água potável como “um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”2. Partindo desta premissa, conclui a sua análise, referindo que negar aos pobres o acesso a água potável, seria “negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável”3. Não resultará, apenas deste texto, a essencialidade e universalidade do direito fundamental de acesso à água, mas esta reflexão, deve ser enquadrada como base de raciocínio, para a necessidade de uma utilização eficiente do recurso natural e, consequentemente, uma minimização do desperdício, promovendo a sustentabilidade e a biodiversidade.

Entre nós, o princípio da dignidade da pessoa humana, encontra-se plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, com o legislador constitucional a basear a República Portuguesa na dignidade da pessoa humana. Em face desta opção, o legislador constitucional estabeleceu o limite e o fundamento do Estado de Direito Democrático4, assumindo um dever ser jurídico, vinculativo de toda a atuação do Estado5.

Em face deste princípio, o Estado vincula-se, nomeadamente, a respeitar a existência digna e condigna dos seus entes, sendo certo que este critério baliza a legalidade da sua atuação, obrigando-o a atuar por ação, prevenindo e protegendo o respeito pela dignidade da pessoa humana e por omissão, abstendo-se de comportamentos que a possam afetar de alguma forma6. Assim, esta assume-se como um “standard de protecção universal que obriga à adopção de convenções e medidas internacionais contra a violação da dignidade da pessoa humana e à formatação de um direito internacional adequado à proteção da dignidade da pessoa humana”7.

Facilmente se compreenderá, como decorrência lógica da posição que aqui se assume que, no seio do princípio da dignidade da pessoa humana, como um conceito e um princípio aberto que se vai esculpindo e densificando com subprincípios e garantias intrinsecamente ligadas à evolução da sociedade e, como tal, deve ser assegurado um mínimo de existência condigna de vida, próprio da dignidade da pessoa humana e, subsequentemente do respeito pelos direitos humanos8. Este mínimo assegurará que o Estado se vincula a um conjunto de prestações que lhe pertencem, de modo a permitir a garantia de acesso a este “mínimo de ajuda material que lhes permita levar uma vida condigna”9/10.

Não obstante a evidente dificuldade em discernir qual é o conteúdo exato desse mínimo, compete gizar um conteúdo normativo que seja suficientemente detalhado, que demonstre a arquitetura do conteúdo mínimo do direito acabando este, por entroncar nesse mínimo social que se demonstra intocável por parte do legislador. Ou seja, aquela parcela que sempre se verificará e sobre a qual não se confere ao legislador a possibilidade de a limitar, sendo imune à chamada reserva do financeiramente possível11.

Sumarizando, entendemos o princípio da dignidade da pessoa humana como um conceito aberto que se vai esculpindo com aquilo que se considere como garantia de uma vivência digna e não objetificada e coisificada do ser humano. Assim, e como o princípio da dignidade da pessoa humana se afigura como a essência, como princípio e fim de todo o sistema jurídico-constitucional português, dele decorrem obrigações de ação que garantam essa dignidade; e, contrariamente, omissões de tudo o que possa bulir com esta dignidade base impressa no texto constitucional.

III. Conforme já se referiu, o tratamento do direito à água nas instâncias internacionais, sofreu uma evolução, nem sempre pacífica e consensual, mas em que se foi densificando, ao longo do tempo, aquele que viria a ser o conteúdo essencial da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas , de 2010, A/RES/64/29212.

Na verdade, na votação desta Resolução, verificou-se que existe um amplo consenso relativamente ao reconhecimento do direito fundamental à água como um direito humano, ainda que se tenham verificado 41 abstenções13, a verdade é que este é reconhecido por todos como um direito humano fundamental. Contudo, não deixa de ser alvo de crítica por parte de uma certa Doutrina a imprecisão do texto adotado pela resolução, não explicitando qual o conteúdo e alcance do direito à água, deixando um vazio de conteúdo identificável pelos seus titulares14.

Do texto que acabou por ser aprovado na AGNU, acaba por resultar a ideia de que este não se trata de um Direito absolutamente novo, bem como a ideia da progressiva realização, uma vez que o estabelecimento, a evolução, realização e implementação desse direito, ser definida pelos Estados, nomeadamente, naquilo a que a alocação de recursos e tecnologias diz respeito15.

IV. Há, contudo, um documento anterior a este que, pela sua importância, merece uma breve nota, o “General Comment No. 15:The Right to Water (Arts. 11 and 12 of the Covenant)16”. Este documento estabelece, nomeadamente, ao longo de todas as alíneas do Parágrafo 12, o conteúdo do direito fundamental à água. De igual forma, é aqui que poderemos encontrar um ensaio de definição do direito fundamental à água, que aparece definido da seguinte forma: “The human right to water entitles everyone to sufficient, safe, acceptable, physically accessible and affordable water for personal and domestic uses”17.

Ora, a interpretação deste comentário geral, não pode deixar de salientar que, este tem uma natureza de estabelecimento das obrigações dos Estados, estabelecendo os seus requisitos mínimos dando cobro à teoria do “minimum core18 que adiante analisaremos. O comentário geral, acaba por trazer alguma novidade a um sistema que se encontrava intimamente ligado com a ideia da realização progressiva19 do direito à água, de forma similar à esmagadora maioria dos direitos sociais e culturais20. Assim se demonstra que, mais do que um documento meramente interpretativo, estamos perante um documento que acaba por densificar o que se deve entender pelo direito humano fundamental à água, estabelecendo as suas bases genéricas e enunciando, garantias e obrigações21, sempre baseadas e limitadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana22. De igual modo, o Comentário Geral, refere que os Estados devem prosseguir o caminho da realização completa do direito de forma expedita, efetiva e mediante o possível, uma vez que a completa realização deste Direito se fará mediante a realidade de cada Estado e, subsequentemente, o estado de desenvolvimento do Direito existente, bem como aquilo que seja financeiramente viável23.

Aliás, neste sentido, depõe o Comentário Geral quando estabelece que, os Estados devem prevenir que partes terceiras, possam interferir de alguma forma com o direito à água, seja pelo meio de adoção de medidas legais específicas que impeçam essa restrição, dando para isso um conjunto de exemplos como seja o impedimento de alguém negar o acesso adequado à água; medidas legais restritivas de poluição do recurso natural e outras relativas a sistemas de distribuição24. De igual modo, é a estes Estados que compete arquitetar o complexo normativo regulatório do sector de forma a garantir que o conteúdo do direito é, de facto, verificável e respeitado25, assumindo o rumo de uma implementação plena do Direito.

V. Nas próximas linhas analisaremos o «minimum core» do Direito Fundamental à Água, relacionando-o com figuras próprias do nosso ordenamento jurídico.

a) O Minimum Core do Direito Fundamental à água

I. O conceito do minimum core ou núcleo mínimo de um determinado direito social quer, regra geral, dizer que estamos diante de um conjunto mínimo de características que fazem sempre parte desse direito, e que, pelo menos essas, devem sempre ser asseguradas, como padrões legais de conteúdo desse direito26. Simplificando, este núcleo afigura-se como o conteúdo básico que não é suscetível de limitação por parte dos Estados27.

Decorre desta ideia do núcleo mínimo do direito que se pode densificar, em duas fases, a realização do direito. Isto é, uma primeira em que se delimita qual o conteúdo que deve ser imediatamente realizado e, uma segunda, em que se estabelece qual deve ser o conteúdo inerente à sua completa realização28. A primeira remete-nos para o que, desde logo, é competência do Estado assegurar, e dá lugar ao ponto de partida da realização progressiva, típica dos direitos humanos de índole social e cultural. Em face da própria natureza desta qualificação enquanto direito social, estabelecer-se-á o conteúdo – ainda que, seja tido por conteúdo todas aquelas circunstâncias essenciais que ao Estado compete assegurar – do direito fundamental à água, uma vez que, o grau de realização do direito varia de Estado para Estado. Assim, consoante o grau de desenvolvimento as necessidades básicas – que, fruto de um amplo consenso internacional, são o ponto de partida do conteúdo do direito fundamental à água – de onde se partem podem ser modificadas e ajustadas a uma determinada realidade.

II. Da análise que se tem vindo a realizar, surge, necessariamente, a ideia da realização progressiva deste direito fundamental à água. Ora, a realização progressiva é, em primeiro lugar, uma obrigação dos Estados de identificar objetivos concretos e decidir qual a melhor forma de os alcançar. Ao contrário do que se possa pensar, não se trata de um convite aos Estados para que estes, na espuma dos dias, deixem as suas obrigações de lado e não progridam na realização de um determinado direito. Trata-se, isso sim, de um reconhecimento por parte dos Estados que a realização total destes direitos é feita com o tempo e com avanços concretos que vão sendo dados ao longo dos tempos, sendo obrigação do Estado apenas garantir uma progressiva melhoria do acesso e realização desse direito29.

A realização progressiva de um determinado direito humano, acaba por se fundar numa forma de estabelecimento de determinados padrões que devem ser garantidos pelo Estado, bem como o estabelecimento dos recursos que lhes vão ser necessários acautelar, com vista à realização desses direitos30.

Da realização progressiva do direito não se exclui, naturalmente, que existam obrigações que, pela própria natureza deste, lhe sejam inerentes, que variam dependendo do contexto, mas sempre se tratará de um dever vinculativo, o respeito, a proteção e o cumprimento destas garantias a favor dos beneficiários, de forma não-discriminatória31. Contudo, a possibilidade de reivindicação por parte dos particulares diante do Estado que visa assegurar a disponibilidade desses direitos, é muito menor, em face deste conceito de realização progressiva32.

Para além da crítica de convite ao incumprimento que pode ser assacada à realização progressiva do direito, pode ainda ser feita uma outra, relativa à assunção irrealista de que os Estados levam as suas obrigações a sério, fazendo tudo o que se encontra ao seu alcance para que o direito se realize completamente, ou seja, que os Estados procuram o grau ótimo de realização do direito alocando para isso todos os esforços e recursos33. Esta crítica merece uma enorme atenção, uma vez que, nos países em vias de desenvolvimento essa situação não se verifica, havendo ainda muita dificuldade em alcançar esse grau ótimo de realização do direito.

Não espanta, por isso mesmo, que se tenham afiançado possibilidades, em absoluta correlação com o mecanismo de realização progressiva do direito, de definir pontos que sejam sempre exigíveis e funcionem como um patamar mínimo. É desta dialética que surge a ideia do “core content” do direito, isto é, aquele conteúdo que estabelece as condições mínimas que devem sempre ser asseguradas e cujas ações para as assegurar podem, desde logo ser invocadas, devendo os Estados desenvolver todos os esforços de molde a que esses mínimos sejam cumpridos34.

III. Em face do exposto, urge avançarmos no sentido de definirmos qual é que deve ser entendido como o “minimum core” do direito à água que, pelos Estados, deve ser assegurado.

O conteúdo normativo do direito, aparece enunciado no Parágrafo 12 do Comentário Geral n.º 15 e é composto por três características-base, a saber:

i. Disponibilidade: Deve ser garantida a distribuição de água, sendo esta suficiente para usos domésticos e pessoais;

ii. Qualidade: A água deve ser de qualidade para usos pessoais e domésticos, livre de substanciais químicas e microbiológicas que constituam uma ameaça para a saúde humana;

iii. Acessibilidade: A água deve ser universalmente acessível, respeitando o princípio da não discriminação. Este princípio subdivide-se nos seguintes subprincípios:

a. Acessibilidade física: A água deve ser acessível a todas as franjas da população, ou seja, todos devem ter acesso a água de qualidade sem que lhes seja vedado o acesso a esse direito;

b. Acessibilidade financeira: O acesso à água deve ser economicamente acessível para todos, não havendo exclusão de ninguém, em função da falta de capacidade financeira para custear os serviços;

c. Não-discriminação: A água deve ser assegurada a todos de forma igualitária, sem qualquer tipo de discriminação;

d. Acessibilidade de Informação: O acesso a toda a informação relativa à água deve ser acessível a todos os que queiram recolher informação relativa à água que consomem.

O primeiro reparo que estas três características-base merecem, prende-se com o facto de se poder retirar delas um ponto de partida do direito à água, necessitando de um profundo desenvolvimento a efetuar, mormente, pelo legislador dos vários Estados no sentido de estabelecer patamares legislativos que protejam e implementem de forma eficaz este direito35.

De igual modo, poder-se-á dizer que este é um texto de conteúdo aberto e, razoavelmente, ambíguo, levando a que o interprete-aplicador consiga chegar a conclusões diferentes consoante a interpretação que faça deste texto. Assim, poder-se-á construir mais ou menos responsabilidades para os Estados consoante a interpretação o que limita, a par da realização progressiva, a sua sindicabilidade pelos seus destinatários junto dos Estados.

Não se refere, igualmente, qual a quantidade mínima de água que deve ser assegurada, ainda que empiricamente, alguma Doutrina, com apoio em manuais de boas práticas, se refira a um intervalo em os 25 e os 50 litros de água por dia36.

Este conteúdo normativo constante do Comentário Geral n.º 15 já foi amplamente debatido na Doutrina, sendo certo que, estes não devem ser vistos como de conteúdo exaustivo, aliás, eles definem o nível mínimo essencial de requisitos a observar para satisfação de necessidades essenciais de acesso à água37.

Para aquilo a que ao nosso estudo diz respeito, importa-nos analisar de forma individualizada o requisito de acessibilidade, seus subprincípios e de que modo este é protegido no nosso ordenamento e, como tal, de que forma devem ser tomadas medidas que acabem por o respeitar. É o que faremos em seguida.

III. A Acessibilidade e Universalidade do Direito Fundamental à Água

I. Conforme temos vindo a analisar, a acessibilidade faz parte do conteúdo normativo do direito à água na sua formulação decorrente do Parágrafo 12 do Comentário Geral n.º 15. Esta, comporta várias dimensões, importando para o nosso estudo, aquela que entronca no princípio de acessibilidade financeira do serviço de águas e, acrescentamos nós, de saneamento38. Decorre da acessibilidade deste Direito a garantia de acesso universal, ou seja, a sua universalidade.

Cumpre, em primeiro lugar, referir que para ser verdadeira a afirmação de que este é financeiramente acessível, deve ter-se em conta que os preços praticados para a prestação do serviço devem ser acessíveis. Isto é, respeitando os critérios legais que serão enunciados no próximo número, este montante não deve ter um peso excessivo na dinâmica de custos relativos a outras necessidades, como sejam a alimentação, os serviços de saúde ou o direito à habitação39.

Pode entender-se, das nossas palavras que, em caso algum, admitimos a exceção de gratuitidade dos serviços. Essa leitura afigura-se errada, uma vez que, em determinadas circunstâncias – as de manifesta necessidade social – estes serviços de água e saneamento devem ser gratuitos, sendo esta uma obrigação do Estado que reconhece o Direito à Água como um Direito humano fundamental, e se vincula a dirigir a sua atividade no respeito pela dignidade da pessoa humana e, assim, satisfazendo as necessidades essenciais decorrentes do “minimum core” do Direito40. Aliás, essa prestação Estatal, em nosso entendimento é o garante de universalidade do Direito alicerçada no assegurar de um mínimo de existência condigna que entendemos devido pelo Estado.

Sintetizando, para garantir esta acessibilidade, é aos estados que incumbe regular os preços de mercado, sendo certo que, se pode optar por isenções de consumo até determinado nível de consumo; ou, por um baixo custo até um determinado nível de consumo e se vá penalizando gradativamente o consumo mais elevado, também por razões de sustentabilidade do recurso natural e penalização de comportamentos de consumo que corporizem gastos ineficientes41.

Por último, importa salientar que tanto o setor da água, como o setor do saneamento, são setores onde o gasto de capital é intensivo, donde, para se garantir a sustentabilidade no longo prazo dos serviços de abastecimento e tratamento de águas residuais, obriga a que as decisões a tomar por parte dos Estados na regulação dos preços de mercado, garantam uma progressiva recuperação de custos e uma garantia que o investimento contínuo em infraestruturas não é abalado.

II. Estamos em crer que, neste sentido, o legislador Europeu da Diretiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro ao mesmo tempo em que produzia, uma rutura com o passado, manifestando uma preocupação expressivamente densificadora, ao longo do texto da Diretiva, com o meio ambiente – assumindo-o mesmo como uma prioridade42 – e o estado das águas43. A Diretiva estatui, no seu artigo 9.º, sob a epígrafe, amortização dos custos dos serviços hídricos, que, na definição da tarifa a pagar pelo utilizador, os Estados terão em conta o princípio de amortização dos custos dos serviços hídricos, e do princípio do utilizador pagador (cfr., n.º1), dando ainda incentivos a uma utilização racional do recurso, num texto que se pode reputar de relativamente abstrato. Assim, e em suma, estes montantes devem encontrar respaldo em estudos técnico-científicos constantes do Anexo III à Diretiva. Assim, e com vista ao alcance de um determinado conjunto de objetivos ambientais, o legislador Europeu optou por tomar medidas técnico-financeiras que regulem e desincentivem as más-práticas ambientais.

III. Por seu turno, e para garantir esta acessibilidade, o legislador nacional, na Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro44 que, fundamentalmente, visou transpor a Diretiva-Quadro para o nosso ordenamento, estabeleceu no artigo 1.º os objetivos a prosseguir que, em larga medida confluem com os enunciados na Diretiva-Quadro45.

Para o estudo que aqui desenvolvemos, importa atentar no disposto no artigo 3.º, sob a epígrafe princípios, onde no n.º1, alínea a), se estabelece o princípio do valor social da água, “que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão46; por seu turno, na alínea d) do n.º1 do referido artigo 3.º, o legislador estabelece o princípio do valor económico da água, “por força do qual se consagra o reconhecimento da escassez atual ou potencial deste recurso e a necessidade de garantir a sua utilização economicamente eficiente, com a recuperação dos custos dos serviços de águas, mesmo em termos ambientais e de recursos, e tendo por base os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador”.

Nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º1 da Lei que estudamos, sob a epígrafe princípio da promoção da utilização sustentável dos recursos hídricos, estabelece-se que o regime económico e financeiro promove uma utilização sustentável dos recursos hídricos, designadamente mediante a recuperação dos custos das prestações públicas que proporcionem vantagens aos utilizadores ou que envolvam a realização de despesas públicas, designadamente através das prestações dos serviços de fiscalização, planeamento e de proteção da quantidade e da qualidade das águas [cfr. al b)]; e, a recuperação dos custos dos serviços de águas, incluindo os custos de escassez [cfr. al c)]. O n.º3 do referido artigo 77.º, estatui que os utilizadores dos serviços públicos de abastecimento de água e drenagem e tratamento de águas residuais ficam sujeitos à tarifa dos serviços de águas que se encontra prevista no artigo 82.º, sendo certo que as políticas de preços de águas devem constituir incentivos adequados para que os utilizadores utilizem eficientemente os recursos hídricos, devendo atender-se às consequências sociais, ambientais e económicas da recuperação dos custos, bem como às condições geográficas e climatéricas da região ou regiões afetadas (cfr., n.º4 do artigo 77.º). Ora, este n.º4 ao evidenciar as preocupações sociais no estabelecimento das metas de recuperação de custos, altera o foco de preocupação do legislador para o princípio do valor social da água, bem como a possibilidade de se estabelecer, naturalmente, por meio de outro instrumento legislativo a forma de assegurar a acessibilidade e universalidade do direito fundamental à água47.

A Lei estabelece no n.º1 do artigo 82.º, quais os objetivos visados com o regime de tarifas a praticar pelos serviços públicos. Assim, pretende-se assegurar tendencialmente e em prazo razoável a recuperação do investimento inicial e de eventuais novos investimentos de expansão, modernização e substituição, deduzidos da percentagem das comparticipações e subsídio a fundo perdido (cfr. a al. a) do n.º1); assegurar a manutenção, reparação e renovação de todos os bens e equipamentos afetos ao serviço e o pagamento de outros encargos obrigatórios, onde se inclui nomeadamente a taxa de recursos hídricos (cfr. a al. b) do n.º1); e, assegurar a eficácia dos serviços num quadro de eficiência da utilização dos recursos necessários e tendo em atenção a existência de receitas não provenientes de tarifas (cfr. a al. c) do n.º1).

IV. Por último, e no Decreto-Lei n.º 97/2008, de 11 de Junho, que reviu o regime legal nacional de gestão da água, como uma decorrência da transposição da Diretiva n.º 2000/60/CE do Parlamento e do Conselho, de 23 de Outubro pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (Lei da Água), o legislador optou, desde logo, no preâmbulo48, por estabelecer os princípios que passam a nortear a gestão da água. Assim, “o princípio do valor social da água, pelo qual se reconhece que ela constitui um bem de consumo ao qual todos devem ter acesso para satisfação das suas necessidades elementares, o princípio da dimensão ambiental da água, pelo qual se reconhece que esta constitui um activo ambiental que exige a protecção capaz de lhe garantir um aproveitamento sustentável, e o princípio do valor económico da água, pelo qual se reconhece que a água, constituindo um recurso escasso, deve ter uma utilização eficiente, confrontando-se o utilizador da água com os custos e benefícios que lhe são inerentes”.

Ainda no preâmbulo, o legislador estabelece que, na matéria relativa ao tarifário dos serviços públicos de águas se pretende fixar “um conjunto de regras que acautelem a recuperação, em prazo razoável, dos investimentos feitos na instalação, expansão, modernização e substituição das infra-estruturas e equipamentos necessários à prestação dos serviços; que promovam um emprego eficiente dessas estruturas e equipamentos na gestão dos recursos hídricos que asseguram; e que garantam o equilíbrio económico e financeiros das entidades que levam a cabo estes serviços públicos em proveito da comunidade”. Assim, o legislador pretende que, “as politicas de preços da água devem constituir um incentivo adequado para uma utilização eficiente dos recursos hídricos, devendo ponderar-se, na sua fixação, as consequências sociais, ambientais e económicas que a recuperação de custos possa trazer, bem como as condições geográficas e climáticas das regiões em causa”, devendo a politica tarifária vincular-se a um “fundamento científico seguro”49.

Nos termos do disposto no n.º3, do artigo 3.º do Decreto-Lei, as tarifas de serviços públicos de águas visam garantir a recuperação, num prazo razoável, dos investimentos feitos na instalação, expansão, modernização e substituição de infraestruturas e equipamentos necessários à prestação dos serviços de águas, promover a eficiência dos mesmos na gestão dos recursos hídricos e assegurar o equilíbrio económico e financeiro das entidades que os levam a cabo em proveito da comunidade.

O artigo 20.º do Decreto-Lei estabelece que independentemente da forma de gestão adotada, estão sujeitos ao regime de tarifas todos os utilizadores dos serviços públicos de águas. Para o nosso estudo releva o disposto no artigo 22.º, n.º2, nas alíneas e) e g), assim, o regime tarifário a estabelecer deve, entre outros, garantir a aplicação de uma tarifa a pagar pelo utilizador final que progrida em função da intensidade da utilização dos recursos hídricos, preservando ao mesmo tempo o acesso ao serviço dos utilizadores domésticos, considerando a sua condição socioeconómica, no que respeita a determinados consumos [cfr. a alínea e)]; e, clarificar, quando necessário, as situações que se encontram abrangidas pela diferenciação tarifária [cfr. a alínea g)].

Ora, em suma, a tarifa de serviços públicos que já consta do artigo 82.º da Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro, visa recuperar os custos associados ao funcionamento dos serviços de fornecimento de águas, visando, nomeadamente, garantir uma utilização eficiente dos recursos públicos combatendo, pelo meio de medidas financeiras adequadas, o desperdício de um recurso natural que assume a natureza de bem escasso. Contudo, e conforme já explicitámos, admite-se – até em função dos princípios vinculantes do dispositivo legal – tarifários diferenciados, nomeadamente, por questões de acessibilidade e universalidade e impossibilidade de pagamento por condicionantes sociais. Ora, esta isenção ou redução da tarifa a pagar, foi o mecanismo encontrado pelo legislador Nacional de respeitar o princípio da acessibilidade financeira no acesso à água reconhecido pela sua qualidade de direito social e cultural e balizado pelo seu valor económico, garantindo deste modo a sua universalidade.

Com as preocupações assumidas pelo legislador com as circunstâncias sociais do consumidor final, o legislador reconhece e abre o caminho necessário ao estabelecimento de uma tarifa social que, ao arrepio das recomendações da entidade reguladora, apenas em 2017 ganha a forma de Decreto-Lei que, seguidamente, estudaremos.

IIII. A Tarifa Social da Água.

I. Sumarizado que se encontra todo o iter percorrido pelo reconhecimento do Direito Fundamental à Água, e sua compatibilização com o catálogo de direitos fundamentais, assumidos pela nossa Constituição, nomeadamente pela sua vinculação ao respeito como princípio basilar da dignidade da pessoa humana (cfr. o já estudado artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa), importará assentar as próximas linhas à matéria da tarifa social, e a sua concretização no Direito Português.

II. Recorde-se a realização progressiva do direito para referir que, não obstante, a entidade reguladora do setor na Recomendação IRAR n.º 01/2009 (“Recomendação Tarifária”), emanada do Instituto Regulador de Águas e Resíduos (I.R.A.R.), que versava sobre a formação de tarifários aplicáveis aos utilizadores finais dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo humano, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, apenas em 2017 se produziu um Decreto-Lei que uniformizasse os critérios para atribuição da tarifa social a nível nacional. A este hiato de tempo não será certamente estranha a grave crise económico-financeira que o País atravessou e a dificuldade de alocação dos parcos recursos existentes. Ou seja, a tarifa social, assim cremos, foi sendo adiada por obediência à reserva do financeiramente possível associada aos direitos sociais.

Esta recomendação é, assim, o primeiro alerta que a entidade reguladora emite para a criação de um tarifário que contemplasse a tarifa social para agregados que tivessem menores recursos financeiros, fazendo-o sob a epígrafe «tarifários especiais».

Recomenda a entidade reguladora que, as tarifas a pagar pelo abastecimento de água e pelo saneamento de águas residuais, devem ser reduzidas aos utilizadores cujo agregado familiar possua rendimento bruto, englobável para efeitos de IRS, em que não fosse ultrapassado um determinado valor, fixável pela entidade titular, mas que não excedesse o dobro do valor anual da retribuição mínima mensal garantida50. Ora, esta redução seria concretizada mediante a isenção das tarifas fixas e da aplicação ao consumo total do utilizador de tarifas variáveis do primeiro escalão limitado mensalmente a 15 m351. O peso das tarifas poderia, igualmente, ser reduzido em função do agregado familiar e sua composição52, exigindo-se aos potenciais beneficiários do regime descrito que fizessem prova de cumprimento dos requisitos exigidos para sua aplicação mediante entrega da declaração ou da nota de liquidação do IRS, podendo esta ser substituída por outro meio considerado idóneo pela entidade gestora do serviço53. O período admitido para a aplicação de tarifários especiais seriam 3 anos, findo o qual deveria ser renovada a prova já efetuada de cumprimento dos requisitos, sendo o utilizador notificado com antecedência mínima de trinta dias54. A entidade reguladora deixou, ainda, uma cláusula de salvaguarda, estabelecendo que, ressalvado o caso do n.º1 do ponto 3.1.3, não devem ser empregues tarifas que apelem ao valor do rendimento, do património ou negócios do utilizador final, de modo, a que não restem dúvidas que se tratava de uma situação excecional55.

Em 2014, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (E.R.S.A.R.), na Deliberação n.º 98/2014, aprovou o Regulamento Tarifário do Serviço de Gestão de Resíduos, sendo que o mesmo vinha sendo também aplicado pelos serviços de águas, de molde a produzir uma harmonização de critérios, uma vez que refletia o entendimento mais recente da entidade reguladora. Ora, no artigo 5.º da presente Deliberação, sob a epígrafe Princípios Gerais, a entidade reguladora, estabelece na alínea k), o princípio da promoção da solidariedade económica e social, ainda que o regulador não tenha especificado o que se deve entender por este princípio no espírito do regulamento tarifário. Contudo, para a nossa análise, importa o artigo 22.º da Deliberação que estabelece o tarifário social. Assim, o tarifário social aplicar-se-à a utilizadores domésticos que se encontrem em situação de carência económica comprovada pelo sistema da segurança social [cfr. art. 22.º, n.º1, al. a)], considerando-se em situação de carência social quem beneficie pelo menos de uma das seguintes prestações sociais: complemento solidário para idosos [cfr. art. 22.º, n.º2, al. a)]; rendimento social de inserção [cfr. art. 22.º, n.º2, al. b)]; subsídio social de desemprego [cfr. art. 22.º, n.º2, al. c)]; 1.º escalão do abono de família [cfr. art. 22.º, n.º2, al. d)]; e, pensão social de invalidez [cfr. art. 22.º, n.º2, al. e)]. O tarifário social consiste na isenção de tarifas de disponibilidade56 (cfr. art. 22.º, n.º3). Contudo, o impacto financeiro da aplicação do tarifário social corria pela entidade titular, mediante um subsídio correspondente à diferença entre o valor da faturação que resultaria da aplicação do tarifário base e o resultante da implementação do tarifário social (cfr. art. 22.º, n.º5).

III. Finalmente em 2017, foi publicado o regime de acesso à tarifa social da água no Decreto-Lei n.º 147/2017 de 5 de Dezembro. O objetivo do legislador parece claro, nomeadamente ao estabelecer que um dos desígnios do novo regime legal se prende com a “proteção dos consumidores em situação de vulnerabilidade quando, devido à sua economia domestica, não consigam parar as suas contas de eletricidade, água ou gás e o corte de fornecimento ou a execução dos seus bens possa deteriorar ainda mais a sua situação e afetar irremediavelmente a possibilidade da mesma ser reequilibrada”. Deste modo, o legislador pretendeu proteger os cidadãos que sejam beneficiários de prestações sociais, como adiante se verá. Não deixará, contudo, de se salvaguardar, “a consagração de um conjunto mínimo de requisitos de acesso à tarifa social para a prestação dos serviços de águas aplicável em todos os municípios, assegurando desta forma o acesso a todos os consumidores a nível nacional”.

Avaliando o clausulado legal, o artigo 1.º estabelece, no seu n.º1, que o regime de atribuição de tarifa social para a prestação dos serviços de águas a atribuir pelo município territorialmente competente a aplicar aos clientes finais do fornecimento dos serviços de águas, sendo que no n.º2, se alarga a abrangência do abastecimento de águas, ao saneamento de águas residuais, como seria expectável.

O artigo 2.º concretiza aquilo que o legislador já havia afiançado no preâmbulo do texto legal, sendo que o n.º1 estabelece que apenas as pessoas singulares com contrato de fornecimento de águas são elegíveis para a adesão à tarifa social, replicando o n.º2 o elenco de beneficiários que já o preambulo referiria. No mesmo sentido, o n.º3 replica o critério de quem se encontra em situação de carência económica. A novidade reside no n.º4 que estabelece que os municípios podem estabelecer, mediante deliberação da Assembleia Municipal outros critérios de referência, deixando o legislador uma cláusula de salvaguarda na parte final, restringido aos casos em que “não sejam restritivos em relação aos referidos nos números anteriores”, que é como quem diz, a competência de alteração é sempre para tornar mais favorável ao ente que se encontre em situação de dependência económica, ampliando a sua proteção. O n.º5 estabelece os sítios de publicação obrigatória dos critérios de referência, nomeadamente, o sítio da internet dos órgãos municipais, naturalmente, dos serviços municipalizados também, dos locais de estilo do concelho, bem como as sedes das freguesias. O n.º6 estabelece a forma de cálculo do apuramento do rendimento anual, e o que se entende por agregado familiar, aproveitando o n.º7 para estabelecer como se processa a atualização dos critérios de referência para a situação de carência económica.

O artigo 3.º estabelece que a adesão à tarifa social é voluntária, mediante deliberação da Assembleia Municipal e sob proposta da câmara municipal (cfr. n.º1), competência que não é prejudicada nos casos em que o serviço é prestado por empresas municipais ou intermunicipais (cfr. n.º2). Devem estas entidades, prestar à Câmara Municipal informação sobre o universo de clientes finais, através do envio do NIF dos titulares dos contratos e do código do local de consumo, no prazo de 30 dias após a solicitação (cfr. n.º3), podendo a Câmara Municipal solicitar à DGAL informação estatística sobre o potencial de beneficiários (cfr. n.º4).

Nos termos do disposto no artigo 4.º, o financiamento da tarifa social compete ao município aderente (cfr. n.º1), sendo certo que, nos casos em que o serviço é prestado por entidade difusa do município, o financiamento é suportado na medida da diferença que resultar do tarifário em vigor aplicável e o resultante da deliberação de adesão à tarifa social (cfr. n.º2).

Relativamente aos critérios de fixação da tarifa social, o artigo 5.º estabelece que esta é calculada mediante a aplicação de um desconto e/ou isenção de tarifas determinadas na decisão de adesão à tarifa social (cfr. n.º1), incidindo o desconto sobre o preço a pagar por metro cúbico de água fornecida e sobre as águas residuais recolhidas (cfr. n.º2), sendo a isenção sobre tarifas de valor fixo aplicável (cfr. n.º3). A competência para a fixação do valor do desconto ou isenção, bem como os eventuais limites máximos de consumo sobre os quais estes se aplicam, pertence ao município (cfr. n.º4), sendo certo que estes descontos se destinam exclusivamente ao uso doméstico, e apenas sobre o ponto de ligação à rede de distribuição correspondente ao domicílio fiscal do cliente final (cfr. n.º5), numa concretização daquilo que já se estabelecia no preâmbulo do referido Decreto-Lei.

O artigo 6.º estabelece que a tarifa social é atribuída automaticamente, não carecendo de pedido ou requerimento dos interessados (cfr. n.º1), sendo a instrução e decisão de atribuição, da competência do município (cfr. n.º2), podendo os municípios aderentes solicitar e obter a informação sobre a elegibilidade dos beneficiários mediante o NIF do titular do contrato e do código do local de consumo via DGAL (cfr. n.º3), sendo certo que, as entidades que detenham a informação a disponibilizam para efeitos de instrução (cfr. n.º4). Os clientes finais, podem renunciar ao benefício de aplicação da tarifa social a todo o tempo, bem como a afirmar a sua oposição ao tratamento dos seus dados pessoais, mediante comunicação escrita ao fornecedor de água e do saneamento de águas residuais (cfr. n.º6). Os clientes finais a cuja tarifa social não seja automaticamente aplicável, podem apresentar requerimento à Câmara Municipal, podendo anexar todos os documentos que comprovem a sua elegibilidade (cfr. n.º7). Nos casos em que a Câmara Municipal tenha decidido que os critérios sejam mais vantajosos para o cliente do que aqueles que a lei estabelece, aplicação da tarifa social depende do requerimento do interessado, seguindo o procedimento segundo os trâmites gerais estabelecidos no Código do Procedimento Administrativo.

Relativamente à responsabilidade pela aplicação da tarifa social, o artigo 7.º estabelece que, esta corre por conta do fornecedor com o qual tenha sido celebrado o contrato de fornecimento, sendo a informação necessária para o efeito prestada pela câmara municipal (cfr. n.º1), devendo o desconto ser identificado de forma clara nas faturas enviadas para o cliente (cfr. n.º2). Nos casos em que o fornecedor não é o município, a câmara entrega-lhe no prazo de 30 dias as quantias respeitantes ao desconto ou isenção de tarifa correspondente (cfr. n.º3), tendo a não entrega dos valores referidos, no prazo de 60 dias, efeito suspensivo de aplicação da tarifa social pelo fornecedor dos serviços (cfr. n.º4).

O artigo 8.º estabelece os mecanismos de controlo de verificação e manutenção dos pressupostos de atribuição da tarifa social. Por seu turno, o artigo 9.º estabelece as formas de adaptação dos mecanismos existentes ao novo regime da tarifa social, ficando o artigo 10.º responsável pelas formas de publicitação de adesão ao regime da tarifa social.

No regime jurídico decorrente do Decreto-Lei que analisámos nas linhas anteriores, densificam-se os requisitos, introduzindo um quadro legal de nível nacional que consiga uniformizar o sistema e, por outro lado, introduzir um sistema que se pretenda mais justo e igualitário. De igual modo, há uma inversão na responsabilidade pelo financiamento da tarifa social, uma vez que, contrariamente àquilo que a Recomendação IRAR n.º 01/2009 (“Recomendação Tarifária”) estabelecia, a responsabilidade pelo financiamento do mecanismo da tarifa social, fica agora a cargo da câmara municipal, sendo esta uma das inovações introduzidas em 201757.

IV. Com um novo espectro legal decorrente do estudado Decreto-Lei, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (E.R.S.A.R.), emanou a Recomendação ERSAR n.º 02/2018 (Atualiza e Substitui a Recomendação IRAR n.º 01/2009 em matéria de tarifários sociais aplicáveis aos utilizadores domésticos). A entidade reguladora visa, assim, clarificar os critérios a adotar pelos municípios que adiram ao regime da tarifa social58, recomendando a entidade reguladora que se defina um limite máximo de consumo sobre o qual incida o desconto ou isenção de tarifa social por questões de sustentabilidade ambiental e utilização responsável de um recurso escasso59. De molde a garantir a acessibilidade económica dos serviços a quem se encontre em situação de vulnerabilidade, a entidade reguladora recomenda aos municípios que definam tal desconto tendo em conta o resultado a obter e mensurado através do peso dos encargos médios com o serviço no orçamento familiar, considerando um consumo anual de 120 m3, o encargo tarifário não deve ultrapassar 0,5% dos rendimentos elegíveis60. A entidade reguladora recomenda que a adesão à tarifa social seja sustentada por um estudo prévio que proceda à identificação do universo de potenciais beneficiários e do impacto financeiro dessa redução ou isenção tarifária estabelecidas, atento o financiamento autónomo por parte do município e prazo para o pagamento das quantias relativas ao desconto quando a entidade gestora seja diferente do município61, sendo certo que, “apenas deve existir um tarifário social quando o tarifário geral existente não assegura um nível de acessibilidade económica inferior a 0,5% para os beneficiários elegíveis nos termos do regime da tarifa social da água62. A entidade reguladora também recomenda que a alteração para o regime constante do Decreto-Lei só é necessária quando o existente não permita o acesso a todos os beneficiários elegíveis nos termos do Decreto-Lei63, contudo, o facto de se respeitarem os critérios legais e não ser necessária a adaptação ao novo regime, não desonera a Câmara Municipal de financiar o mecanismo de forma autónoma, não onerando as tarifas cobradas aos restantes utilizadores64. Contrariamente, nos casos em que o regime existente seja mais restritivo do que o constante do regime legal, carece necessariamente de adaptação, no sentido de os incluir, ainda que seja apenas nos casos em que o município decida pela adesão ao regime65.

V. Visto que está o enquadramento legal e regulatório tarifário no setor da água e do saneamento, importa desde já referir que com os critérios decorrentes do Decreto-Lei, se pretende garantir que o Estado cria os mecanismos para que se verifique o cumprimento do núcleo mínimo do direito à água já estudado e, ainda que por meio dos municípios, garante prestações concretas para a verificação de respeito pelo mínimo de existência condigna, nos termos que temos vindo a estudar.

Na verdade, já vimos que em momento algum a acessibilidade financeira significa que os particulares gozam de um direito de acesso à água de forma gratuita66, não querendo isto significar que não exista um mecanismo de gratuitidade para o cumprimento das necessidades básicas. O estabelecimento destas medidas configura, em nosso entendimento, o respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, nomeadamente, no seu subprincípio de respeito pelo mínimo de existência condigna, sendo a tarifa social, o mecanismo encontrado pelo Estado para assegurar a acessibilidade financeira67.

Ora, conforme já se disse, o estabelecimento das medidas concretas que alcancem o objetivo de garantir uma acessibilidade que assegure a universalidade do direito à água será sempre refém da política legislativa do próprio Estado e balizada pelas diretrizes da Entidade Reguladora. O Estado, estamos em crer, fez a sua parte desde logo na Lei da Água68, assumindo os objetivos que, progressivamente, haveriam de ser assegurados pelas entidades gestoras.

De igual modo, para que consiga garantir o mínimo de existência condigna integrante do princípio da dignidade da pessoa humana – como já vimos – o legislador goza de uma ampla margem de discricionariedade quanto aos instrumentos que decide utilizar e a forma como assegura esse mínimo. Assim, e como já defendeu o Tribunal Constitucional69, “o legislador goza da margem de autonomia necessária para escolher os instrumentos adequados para garantir o direito a um mínimo de existência condigna, podendo modelá-los em função das circunstâncias e dos seus critérios políticos próprios”, prosseguindo, estabelecendo que, “pressuposto é, porém, que as suas escolhas assegurem, com um mínimo de eficácia jurídica, a garantia do direito a um mínimo de existência condigna para todos os casos”.

Ainda neste acórdão, são paradigmáticas as palavras do Conselheiro BENJAMIN RODRIGUES, nomeadamente quando este refere que o princípio da dignidade da pessoa humana pode conduzir a que se exija do Estado uma prestação positiva, este deve ser definido como “um verdadeiro direito subjetivo constitucional que só existirá onde esse mínimo de existência possa ser surpreendido. Ora, esse mínimo é, por natureza diferente, de pessoa para pessoa”.

Na verdade, abstratamente a definição desse mínimo é uma tarefa espinhosa que obriga a convocar, novamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido em que este será violado sempre que o Estado deixa o indivíduo sem que este tenha possibilidades de gerir a sua autodeterminação pessoal. Ou seja, um mínimo de condições de sobrevivências sem as quais o ente não consegue viver70. Com este entendimento do que deve ser tomado pelo mínimo exigível, é “correspondentemente à natureza do princípio da dignidade da pessoa humana a que surge associado, simultaneamente absoluto (no sentido de que se entende que estas exigências de dignidade da pessoa humana não cedem perante quaisquer outros valores), mas também condicionado e relativizado pelos níveis de desenvolvimento económico e moral de determinada sociedade, já que com eles variam as exigências concretas que se entende serem impostas ao Estado como decorrência imperativa daquele princípio71.

VI. Assumimos categoricamente que a nossa posição se baseia na ideia de que assegurar o mínimo de existência condigna poderá consistir, mais do que no estabelecimento de uma prestação pecuniária, no assegurar do acesso a direitos essenciais à vida humana (como sejam o direito à saúde, ou o direito à alimentação, ou o direito à habitação ou, por último o direito à água), em condições diferentes do que a maioria. Em momento algum se deve depreender, do cabal cumprimento deste mínimo existencial, que este apenas se atinge por prestações pecuniárias, assumam estas a natureza e nomenclatura que assumirem.

O estabelecimento da tarifa social cumprirá, em nosso entendimento, esse desiderato, devendo ser tratada, como uma manifestação de respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual o estado social de direito português se vinculou no artigo 1.º da Constituição, sendo certo que uma vez assumido este mínimo o legislador dele não poderá dispor, por respeito ao princípio de proibição do retrocesso social72.

Sintetizando, a tarifa social é o garante da acessibilidade e universalidade do direito fundamental à água no nosso ordenamento. É verdade que a sua atribuição deve ser criteriosa e os seus requisitos pontualmente respeitados e, ainda que se depreenda do texto legal que podem as entidades gestoras terem regimes mais vantajosos do que os estabelecidos no Decreto-Lei73, não pode em caso algum, o regulador olvidar a especificidade própria do setor e o cumprimento de metas, quer pela infraestruturação, quer pela renovação do que já existe, sacrificando a qualidade de todos, pela acessibilidade de alguns.

V. Conclusões.

I. O direito fundamental de acesso à água, encontra-se fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que será impensável uma existência digna e condigna sempre que se restrinja o acesso à água e ao saneamento. Ora, o Estado Social de Direito Português, encontra-se vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, sendo este o seu limite e fundamento.

II. Em 2010, as Nações Unidas, por meio de uma Resolução da Assembleia Geral (A/RES/64/292), reconheceram o direito à água como um direito humano, com 122 votos a favor e 41 abstenções. Fundamentalmente, criou-se a convicção que este não se trata de um direito fundamentalmente novo, mas como uma evolução de décadas e cujo conteúdo já havia sido, relativamente, especificado no Comentário Geral n.º 15 do Comité das Nações Unidas para os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, em 2002. Aliás, é este último, que estabelece o «minimum core» do Direito, ou seja, o núcleo mínimo de obrigações que os Estados devem garantir para respeitar o direito fundamental à água.

III. O conceito do «minimum core» quer, regra geral, dizer que se trata de um conjunto mínimo de características que fazem sempre parte de um determinado direito e que, pelo menos essas, devem sempre ser asseguradas, como padrões legais de conteúdo desse direito, tratando-se de um conteúdo básico que não é suscetível de limitação por parte do Estado. Poder-se-á dizer que, em face deste «minimum core», os Estados encontram-se adstritos a uma realização progressiva deste direito, que consistirá na identificação sobre quais os objetivos concretos a realizar e a melhor forma de os alcançar, assentando que a realização plena deste direito se fará mediante o respeito por determinadas etapas de implementação e realização. Os Estados, assim, vinculam-se a garantir que a cada momento, se garante uma progressiva melhoria de acesso ao direito mediante o cumprimento de determinadas metas.

IV. O conteúdo normativo do direito à água é, segundo o parágrafo 12 do Comentário Geral n.º 15, composto por três características-base, a saber: Disponibilidade; Qualidade e Acessibilidade, desdobrando-se este último em: acessibilidade física, acessibilidade financeira, não-discriminação e acessibilidade de informação. Este conteúdo normativo trata-se de um ponto de partida do direito à água, necessitando de desenvolvimento e aprofundamento, estabelecendo patamares legislativos que o protejam e implementem de forma eficaz. De igual modo, poder-se-á dizer que este tem um conteúdo ambíguo, levando o interprete-aplicador a chegar a conclusões diferentes consoante a interpretação que faça do texto, limitando a sua sindicabilidade pelos seus destinatários junto dos Estados.

V. Garantir a acessibilidade económica deste direito será, antes de mais levar em linha de conta que os preços praticados para a prestação do serviço devem ser acessíveis, não devendo o montante a pagar à entidade gestora ser considerado excessivo na dinâmica de custos relativos a outras necessidades de primeiro grau. Garantir a acessibilidade do direito à água é uma tarefa que incumbe aos Estados, através da regulação que faz dos preços e garantindo ou isenções de consumo até determinado nível de consumo; ou, baixo custo até um determinado nível de consumo e vá penalizando gradativamente o consumo mais elevado, penalizando os gastos que repute de ineficientes e injustificados.

VI. A Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro, estabelece no artigo 3.º, n.º1, alínea a) o princípio do valor social da água e, da aplicação conjugada do disposto no artigo 77.º, n.º4 e 82.º, n.º3, evidencia-se a preocupação com as condições sociais de acessibilidade e universalidade do direito fundamental à água respeitando o princípio do valor social da água. Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 97/2008, de 11 de Junho assume logo no seu preâmbulo, o princípio do valor social da água e, no artigo 20.º, n.º2, alíneas e) e g), assume a progressividade da tarifa em função da intensidade do consumo ressalvando as condições socioeconómicas determinando a possível diferenciação tarifaria. Esta redução e isenção tarifária, foi o mecanismo encontrado pelo legislador para respeitar o princípio da acessibilidade financeira no acesso à água reconhecido pela sua qualidade de direito social e cultural balizado pelo seu valor económico e garantindo a sua universalidade.

VII. A primeira manifestação da tarifa social decorreu em 2009, por uma recomendação da entidade reguladora do setor (Recomendação IRAR n.º 01/2009 “Recomendação Tarifária”), conduzindo a uma evolução que culminou em 2017 com o Decreto-Lei n.º 147/2017, de 5 de Dezembro que uniformizou os critérios de atribuição da tarifa social a nível nacional. Em 2014, a Deliberação n.º 98/2014 da E.R.S.A.R. que aprovou o Regulamento Tarifário do Serviço de Gestão de Resíduos, estabeleceu no seu artigo 22.º as condições de acesso à tarifa social. No regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 147/2017, de 5 de Dezembro, introduziu-se um quadro legal de nível nacional que uniformize o sistema e que garanta que este se trata de um sistema justo e igualitário, responsabilizando-se a câmara municipal pelo financiamento do mecanismo de tarifa social.

VIII. A Recomendação ERSAR n.º 02/2018 visa clarificar os critérios a adotar pelos municípios que adiram à tarifa social, recomendando que se estabeleça um limite máximo sobre o qual incidirá o desconto ou isenção, garantindo a acessibilidade económica do serviço a quem se encontre em situação de vulnerabilidade económica, não ultrapassando o encargo, 0,5% dos rendimentos elegíveis para a contabilização. Ainda se estabelece que, quando o regime existente seja mais restritivo do que aquele que consta do regime atual, este deva ser adaptado no sentido de incluir os casos que a lei ordena.

IX. A tarifa social deve ser encarada como o garante da acessibilidade e universalidade do direito fundamental à água no nosso ordenamento, sendo certo que a sua atribuição deve ser criteriosa e os seus requisitos pontualmente respeitados. Isto não invalida que, as entidades gestoras possam ter em vigor regimes mais vantajosos do que os estabelecidos no Decreto-Lei n.º 147/2017, de 5 de Dezembro, contudo, esta não pode sacrificar quer as tarifas dos restantes utilizadores, nem limitar as necessidades de investimento contínuo e avultado quer em infraestruturação nova, quer em renovação da existente sacrificando a qualidade da água que consumimos e a que seguirá para tratamento, com vista à posterior devolução ao meio recetor.

 

1 Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Travessa da boa-hora à ajuda, n.o 40, R/C Esquerdo, 1300-105, Lisboa. ednaldosfjunior@gmail.com.

1 Evolução que pode, entre outras referências bibliográficas ser avaliada consultada e estudada em: S. L. MURTHY, “The Human Right(s) to Water and Sanitation: History, Meaning and the Controversy Over-Privatization”, Berkeley Journal of International Law, Vol. 31, N.o1, 2013, pp. 100-109, disponível em: https://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1434&context=bjil; G. MCGRAW, “Defining and Defending the Right to Water and its Minimum Core: Legal Construction and the Role of National Jurisprudence”, Loyola University Chicago International Law Review, Vol. 8, N.o2, 2011, pp. 112-120, disponível em: https://lawecommons.luc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1020&context=lucilr; M. ULRICH, “The Impact of Law on the Right to Water and Adding Normative Change to the Global Agenda”, George Washington International Law Review, Vol.48, N.o 1, 2015, pp.48-50, disponível em: https://ssrn.com/abstract=2676362; J. CERNIC, “Corporate Obligations Under The Human Right to Water”,Denver Journal of International Law and Policy, Vol. 39, N.o2, 2011, pp. 310-317, disponível em: https://ssrn.com/abstract=1792446; e, por ultimo G. DO NASCIMENTO, “El Derecho al Agua y su Protección en el Contexto de la Corte Interamericana de Derechos Humanos”, Estudios Constitucionales, An~o 16, N.o1, 2018, p. 250, disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/estconst/v16n1/0718-5200-estconst-16-01-00245.pdf.

2 Cfr. PAPA FRANCISCO, Encíclica laudato si, de 24 de Maio de 2015, p.26, disponível em: https://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf

3 Idem, idem. Aliás, ao longo de toda a encíclica papal, há o alerta para o esgotamento dos recursos planetários por uma utilização descuidada e desregrada dos recursos naturais, referindo-se de modo particular à água, assenta que se nota: “um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes reservas”, prosseguindo, com a conclusão de que, “isto se mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade”. Cfr., cit., pp. 26-27.

4 Cfr. J. GOMES CANOTILHO E V. MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.a Edição Revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2017, p.198.

5 Cfr. J. REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p.51.

6 Cfr. J. REIS NOVAIS, Os Princípios, p.52.

7 Cfr. J. GOMES CANOTILHO e V. MOREIRA, Constituição, p.200.

8 Cfr. M. VASCONCELOS ROSA, “O Direito Humano de Acesso à água e ao Saneamento: Legitimado pelo Costume Internacional”, in J. MIRANDA, R. CUNHA MARQUES, A. LUíSA GUIMARA~ES E M. KIRKBY (coord.) Temas de Direito da água, Lisboa, Edição ICJP/CIDP, 2017, p.12, disponível em: https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/e-book_agua_2017_fct.pdf.

9 Cfr. J. REIS NOVAIS, Os Princípios, P.64.

10 Este mínimo de existência condigna foi avaliado, sobretudo, no Acórdão do TC de 19.12.2002, proferido no processo 768/2002, pesquisável em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, que avaliava a possibilidade de uma modificação dos critérios de acesso ao rendimento social de inserção, e qual a possibilidade de sua restrição, ao qual voltaremos adiante. Na Doutrina, o princípio, tem sido enunciado e estudado por J. REIS NOVAIS. Cfr. J. REIS NOVAIS, Direitos Sociais, Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 190 e seguintes. Contudo, como adiante veremos, entendemos que esta garantia de mínimo de existência condigna alicerçado ao conteúdo enunciado na teoria do minimum core do direito à água, nomeadamente à acessibilidade e universalidade do direito à água, fundamentam o regime constante do Decreto Lei n.o 147/2017, de 5 de Dezembro, e o transformam numa destas prestações que incumbem ao Estado de modo a atribuir estas prestações constantes do mínimo de existência condigna.

11 Cfr. J. REIS NOVAIS, Direitos, p.201.

12 O texto da resolução da Assembleia Geral da U.N., pode ser consultado em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/292 ;

13 41 abstenções num universo de 122 votos favoráveis. Há quem tenha entendido que esta proposta de resolução apresentada pela Bolívia se devia à própria batalha que esta travava contra a privatização do setor da água no País. Recorde-se que a Bolívia tem o reconhecimento do direito à água e a garantia da sua acessibilidade e universalidade plasmada no seu texto constitucional, nos artigos 16.o e 20.o da Constitución Política del Estado (CPE). Contudo, a proposta de Resolução apresentada pela Bolívia causou alguma surpresa aos Estados, sobretudo pela vacuidade do texto apresentado e por ser algo precipitada, uma vez que o Conselho de Geneva não tinha ainda apresentado as suas conclusões, o que poderia sugerir que esta Resolução seria prematura. Cfr. S. L. MURTHY, The Human, pp. 102-103.

14 Neste sentido, J. SAURA ESTAPà, “El Derecho Humano al Agua Potable y al Saneamiento en Perspectiva Jurídica Internacional”, Derechos y Libertades: Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, An~o 16, N.o 26, Barcelona, Universidad Carlos III, 2012, p.154.

15 Cfr. S. L. MURTHY, The Human, p.104.

16 Pode ser consultado em: https://www.unhcr.org/publications/operations/49d095742/committee-economic-social-cultural-rights-general-comment-15-2002-right.html;

17 Cfr. Parágrafo n.o2 do Comentário Geral.
18 Cfr. G. MCGRAW, Defining, p.108.

19 Uma monitorização desta realização progressiva pode ser estudada e encontrada em: B. MASON MEIER, R. CRONK, J. LUH, J. BARTRAM E C. DE ALBUQUERQUE, Monitoring the Progressive Realization of the Human Rights to Water and Sanitation: Frontier Analysis as a Basis to Enhance Human Rights Accountability, Oxford Handbook of Water Politics and Policy, 2017, disponível em: https://ssrn.com/abstract=2851032

20 Idem, idem.

21 Cfr. Parágrafo n.o 10 do Comentário Geral.

22 Cfr. Parágrafo n.o 11 do Comentário Geral.

23 Cfr. Parágrafo n.o 18 do Comentário Geral.

24 Cfr. Parágrafo n.o 23 do Comentário Geral.

25 Cfr. Parágrafo n.o 24 do Comentário Geral.

26 Cfr. G. MCGRAW, Defining, p.131.

27 A este respeito J. REIS NOVAIS, ensina que “mesmo não havendo consagração constitucional expressa, é possível de princípios estruturantes como o princípio da socialidade, a dignidade da pessoa, o direito ao desenvolvimento da personalidade ou o próprio direito à vida, fazer decorrer um direito constitucional, justiciável, a um mínimo existencial, então os mesmos princípios jurídicos determinam, designadamente em Constituição com direitos sociais, a necessidade de delimitar em cada direito social um conteúdo normativo suficientemente determinado, justiciável, ou seja, o referido mínimo social que seria furtado à disponibilidade do legislador, que seria directamente acessível pelo juiz e que seria imune, enquanto direito fundamental, às variações das opções políticas conjunturais”, prosseguindo ainda o Autor dizendo que estamos diante do “núcleo indisponível pelo legislador e imune aos constrangimentos da reserva do financeiramente possível”. Cfr. J. REIS NOVAIS, Direitos, p.200.

28 Cfr. G. MCGRAW, Defining, p.132.

29 Cfr. no mesmo sentido, C. DE ALBUQUERQUE, On The Right Track, Good Practices in Realising the Rights to Water and Sanitation, E.R.S.A.R., 2010, p.23, disponível em: http://www.worldwatercouncil.org/sites/default/files/Thematics/On_The_Right_Track_Book.pdf

30 Cfr. M. ULRICH, The Impact, p.46.

31 Cfr. C. DE ALBUQUERQUE, On The Right Track, p.24.

32 Cfr. M. ULRICH, The Impact, p.46

33 Cfr. M. ULRICH, The Impact, p.55

34 Cfr. G. MCGRAW, Defining, pp.130-131.

35 Cfr. G. DO NASCIMENTO, El Derecho, p.250.

36 Cfr. The Right to Water, 13, World Health Organization, 2003, P.13, disponível em: https://www.who.int/water_sanitation_health/en/righttowater.pdf; cfr. ainda, et alia, J. CERNIC, Corporate, p.315; Cfr. G. MCGRAW, Defining, p.136; Cfr. Cfr. S. L. MURTHY, The Human, p.113.

37 Cfr. A. CAHILL, “‘The Human Right to Water – A Right of Unique Status’: The Legal Status and Normative Content of the Right to Water”, The International Journal of Human Rights, Vol. 9, N.o 3, 2005, Routledge, p. 392.

38 Somos da opinião que o direito ao saneamento se encontra interligado com o direito fundamental à água, não sendo o primeiro destacável do segundo. Quando nos referimos ao direito fundamental à água, fazemo-lo em sentido amplo, englobando também o direito ao saneamento. Estamos em crer que deve ser de rejeitar uma conceção do direito à água em sentido estrito, ignorando o direito ao saneamento. Aliás, na construção que fazemos, assumimos que este direito decorre do respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, seria de difícil compatibilização com este, que, protegendo um, ignorássemos o outro.

39 Cfr. C. DE ALBUQUERQUE, On The Right Track, p.34.

40 Cfr. G. DO NASCIMENTO, El Derecho, p.255.

41 J. SAURA ESTAPà, El Derecho, p.164.

42 Cfr., neste sentido, J. MENDES, “Direito Administrativo das águas”, in P. OTERO E P. COSTA GONçaLVES, Tratado de Direito Administrativo Especial, II, Coimbra, Almedina, 2009, p. 27.

43 Abrangendo todas as águas e com o objetivo claro de as melhorar, de forma substancial até 2015, conforme o estabelecido no artigo 4.o, sob a epígrafe objetivos ambientais, no seu n.o1, alíneas a), ii); b) ii).

44 A denominada Lei da água já sofreu várias alterações ao longo do seu prazo de vigência, sendo a redação atualmente em vigor, aquela que consta da Lei n.o 44/2017, de 19 de Junho.

45 E que constam do artigo 1.o da Diretiva-Quadro.

46 Ao assentar neste princípio, o legislador nacional, assume, no seu essencial, os elementos do núcleo mínimo do direito fundamental à água, já estudados, nomeadamente à garantia de acessibilidade e universalidade deste direito.

47 Cfr o disposto no artigo 83.o, n.o2 da Lei n.o 58/2005, de 29 de Dezembro.

48 48 J. MENDES, considera que o preâmbulo do Decreto-Lei é “longo”. Cfr. J. MENDES, Direito, p.118.

49 Como bem nota J. MENDES, o “fundamento científico seguro” para a amortização dos custos dos serviços hídricos “se basear numa análise económica das utilizações da água e de ter em conta o contributo que os diferentes sectores da actividade devem dar para a recuperação dos custos referidos, baseado igualmente naquela análise. Ambos constituem, (…) obrigações da Directiva que decorrem do referido artigo 9.o”. Cfr. J. MENDES, Direito, p.118, nota 319.

50 Cfr. n.o 1 do ponto 3.1.3.

51 Cfr. n.o 2 do ponto 3.1.3.

52 52 Cfr. n.o 5 do ponto 3.1.3.

53 Cfr. n.o 7 do ponto 3.1.3.

54 Cfr. n.o 8 do ponto 3.1.3.

55 Cfr. n.o 10 do ponto 3.1.3.

56 A tarifa de disponibilidade é devida em função do intervalo temporal objeto de faturação e expressa em euros por cada trinta dias, nos termos do disposto no artigo 18.o, alínea a) da Deliberação.

57 No caso da recomendação de 2009, nos termos do n.o7 do ponto 3.1.3, a responsabilidade pertencia à entidade gestora, passando agora para a câmara municipal a responsabilidade pelo financiamento nos termos do artigo 7.o, n.o3

58 Cfr. ponto 2, n.o 2.1.

59 Cfr. ponto 3, n.o 3.2.

60 Cfr. ponto 3, n.o 3.3.

61 Cfr. ponto 3, n.o 3.4.

62 Cfr. ponto 3, n.o 3.5.

63 Cfr. ponto 4, n.o 4.2.

64 Cfr. ponto 4, n.o 4.2.

65 Idem, idem.

66 Cfr. G. MCGRAW, Defining, p.137.

67 Cfr. C. DE ALBUQUERQUE, On The Right Track, p.34.

68 Cfr., conjugadamente, o disposto nos artigos 77.o, n.os 4 e 5; e 83.o, n.o1, al. d) e n.o2. E, ainda, logo no preâmbulo do Decreto-Lei n.o 97/2008, de 11 de Junho.

69Cfr. Acórdão do TC de 19.12.2002, proferido no processo 768/2002, pesquisável em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.

70 Cfr. J. REIS NOVAIS, Direitos, p.308.

71 Idem, idem.

72 O Tribunal Constitucional, no Acórdão do TC de 19.12.2002, proferido no processo 768/2002, pesquisável em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, refere-se ao princípio de proibição do retrocesso social, dizendo que, “o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerais ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado”.

73 Cfr. o artigo 9.o do Decreto-Lei n.o 146/2017, de 5 de Dezembro, em conjugação com o ponto 4, n.o 4.1 da Recomendação ERSAR n.o02/2018.