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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.5 no.2 Lisboa jul. 2018

 

DIREITO PÚBLICO

Investidores, trabalhadores do sector público, estudantes e pensionistas: quem “confia” na jurisprudência constitucional?

Investors, public employees, students and pensioners: who “trusts” in constitutional case-law?

 

Marta Vicente1  

Universidade Católica Portuguesa,
Rua de Diogo Botelho - 1327,
4169-005 Porto,
E-mail: mvicente@porto.ucp.pt

 

RESUMO

O presente artigo centra-se na jurisprudência constitucional mais recente sobre o princípio da proteção da confiança, pondo a nu as dificuldades do legislador em aprovar reformas estruturais numa série de matérias. A ideia é seguir os primeiros três testes do “roteiro metodológico” que orienta a avaliação do Tribunal Constitucional, a saber: imprevisibilidade, legitimidade e irreversibilidade. A nossa análise viabiliza a conclusão de que, a partir do momento em que o Tribunal admite a verificação do primeiro teste, apurando que o legislador encetou comportamentos geradores de expectativas de continuidade, os dois testes que se seguem não serão obstáculos ao estabelecimento de uma situação de confiança legítima. Isto acontece, em nosso entender, porque as expectativas presumem-se legítimas enquanto se alicerçarem numa atividade legislativa prévia, mesmo que a sua base normativa possa dizer-se irremediavelmente danificada.

 

Palavras-Chave: proteção da confiança; segurança jurídica; jurisprudência constitucional; Estado de Direito; retroatividade;

 

ABSTRACT

The article focuses on the Portuguese Constitutional Court recent case-law on the principle of legitimate expectations, aiming to highlight the legislator’s difficulties in passing some structural reforms in a great number of issues. The idea is to follow the first three “tests” of the methodological path which orientates the review led by the Court: unpredictability, legitimacy and irreversibility. Our analysis enables the conclusion that, once the Court verifies the first test by determining that the legislator has behaved in such a way as to generate expectations of continuity, the remaining tests will not be an obstacle in establishing that those expectations are worth of protection. In our view, this is because expectations are presumed to be legitimate as long as they are based on previous legislative activity, even if their normative foundations are irremediably compromised.

 

Keywords: legitimate expectations, legal certainty, constitutional case-law, rule of law; retroactivity;

 

Sumário

1. Introdução; 2. Proteção da confiança e segurança jurídica; 3. Análise dos primeiros três testes do princípio da proteção da confiança; 3.1. O primeiro teste: imprevisibilidade; 3.2. O segundo teste: legitimidade; 3.3. O terceiro teste: irreversibilidade; 4. Notas conclusivas.

 

1. Introdução

É desnecessário relembrar o particular impacto que o princípio da proteção da confiança assumiu na jurisprudência constitucional mais recente, especialmente durante o período em que Portugal esteve submetido ao Programa de Assistência Económico-Financeira2. Foi com base num tal princípio que o Tribunal Constitucional rejeitou a validade constitucional da chamada “requalificação” dos trabalhadores da administração pública3, do regime jurídico que instituía uma redução (não transitória) de 10% nas pensões atribuídas pela Caixa Geral de Aposentações4, e da Contribuição de Sustentabilidade5.

Este não será, porém, um trabalho sobre a “jurisprudência da crise”, que já lá vai6, nem tampouco sobre alguns dos aspetos que, pressuposto o princípio da proteção da confiança, mais controvérsia geraram a nível doutrinal, concretamente, as acusações de “dirigismo constitucional” e a intensidade do controlo (standard of review) das justificações apresentadas pelo legislador para modificar um dado regime jurídico7. Expliquemo-nos um pouco melhor.

Como é consabido, o princípio da proteção da confiança assume, entre nós – por influência do direito alemão – uma “mecânica aplicativa” específica, que faz depender a tutela da confiança dos cidadãos da verificação de quatro requisitos ou testes cumulativos. Tais “testes” foram sistematizados pelo Acórdão n.º 128/2009, a propósito de uma questão de constitucionalidade que envolvia matéria fiscal, e tendo por base critérios elaborados em jurisprudência anterior8. Os primeiros testes procuram escrutinar a consistência e a legitimidade das expectativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados expectativas de continuidade; (2) estas expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; (3) os privados tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual. O quarto teste culmina num exercício de sopesação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito9, constituindo tais interesses, de uma parte, a confiança dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente, de outra, as razões de interesse público que motivaram essa não continuidade.

Esclarecendo o que avançámos supra, o objeto do presente escrito centrar-se-á na primeira parte da mecânica aplicativa descrita, ou seja, nas condições que permitem o apuramento da existência de uma base de confiança e a conclusão sobre a respetiva legitimidade. Várias razões justificam esta opção.

Em primeiro lugar, os últimos anos foram permeados por uma “veia reformista” moralizadora, que abriu espaço para alguma jurisprudência constitucional inovadora, especialmente no campo daquilo que deve entender-se por “confiança legítima” em reformas legislativas levadas a cabo na área do acesso ao ensino superior10 ou das pensões de reforma. Em segundo lugar, o desdobramento operacional do princípio da proteção da confiança nos testes referidos tem relevo prático e pragmático, porquanto o Tribunal Constitucional não efetuará o quarto e decisivo teste se estiver convicto de que a as expectativas dos particulares não respeitam os antecedentes11. Finalmente, sem prejuízo do direito alemão12 e do seu “imitador” europeu13, o modelo português apresenta-se como uma ferramenta analítica de relevo no direito constitucional comparado, sobretudo se comparada com o que sucede no ordenamento jurídico francês, onde inexiste proteção da confiança qua tale14, ou com o italiano, onde a Corte Costituzionale se limita, as mais das vezes, a controlar a ragionevolezza da alteração normativa15.

O fito do presente texto é, pois, tão-só, o de pôr a nu, através da jurisprudência constitucional mais recente, as dificuldades que se fazem sentir na avaliação e qualificação das expectativas dos particulares em face de medidas do poder legislativo que os afetam desfavoravelmente.

 

2. Proteção da confiança e segurança jurídica

O princípio da proteção da confiança é normalmente encarado como um subprincípio ou uma decorrência do princípio da segurança jurídica, este último um componente essencial do princípio do Estado de Direito. No entanto, a segurança jurídica é um conceito mais amplo do que a proteção da confiança, e nem sempre as soluções jurídicas propostas por uma e outra se revelam inteiramente coincidentes16. Vejamos.

A segurança jurídica procura genericamente garantir que a ordem jurídica fornece uma base fiável para o comportamento dos cidadãos, assegurando que a atuação dos poderes públicos, para além de acessível e cognoscível, respeita índices de previsibilidade (não retroatividade) e calculabilidade quanto ao direito aplicável a uma dada situação. Ou seja, a segurança jurídica pugna por que o direito assuma certas características pelo valor intrínseco destas, independentemente, portanto, de para os cidadãos resultarem desvantagens do seu menor adimplemento17. Em França, até recentemente como vimos, o equivalente funcional da segurança jurídica, consubstanciado na garantia dos direitos decorrente do artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, servia apenas para sustentar exigências de inteligibilidade da lei e de não afetação de direitos adquiridos18.

Ora, o princípio da proteção da confiança, enquanto “encarnação” subjetiva (não indispensável) da segurança jurídica19, procura garantir a previsibilidade do direito por forma a proteger a confiança que o cidadão haja razoavelmente depositado na manutenção de uma situação que lhe era favorável. Neste sentido, como explica Sylvia CALMES, a proteção da confiança assume-se como um elemento “moderador” da segurança jurídica, procurando, em razão de princípios como a soberania estadual e da autorrevisibilidade das leis, adaptá-lo à situação concreta e atenuar os resultados excessivos a que conduziriam os seus postulados20. Ou seja, do que se trata é fundamentalmente de coordenar a mudança, o que implica, numa escala gradativa de tutela, questionar umas vezes o se, outras apenas o como dessa mudança21.

O poder moderador a que a Autora faz referência está particularmente respaldado na apreciação, pelo Tribunal de Justiça, da validade de normas jurídicas (autenticamente) retroativas. O considerando recorrente do Tribunal nesta matéria coonesta que existe, no direito europeu, uma presunção de invalidade de normas retroativas, cuja elisão não está, no entanto, excluída, caso fique demonstrada a indispensabilidade da eficácia retroativa para a consecução do interesse geral comunitário e a não afetação da confiançalegítima dos interessados22.

A distinção não é, bem entendido, desconhecida na jurisprudência constitucional. Recentemente, no Acórdão n.º 474/13, analisando a constitucionalidade de uma norma que estendia a possibilidade de cessação do vínculo de emprego público, por razões objetivas, aos funcionários públicos com nomeação definitiva anteriormente a 2008, a Conselheira Maria Lúcia Amaral avançou que:



    «No caso, e quanto a uma das normas em juízo, o princípio afetado é o da continuidade da ordem jurídica. Se em 2008 o legislador toma a decisão (que o Tribunal em cumprimento do princípio da presunção de constitucionalidade dos atos legislativos coonestou) de transformar maioritariamente a relação de vínculo de função pública em relação de emprego público regida pelos cânones contratuais do direito do trabalho, e o faz então com a salvaguarda da manutenção do quadro e estabilidade quanto ao regime de cessação do contrato (...); se em 2013 acaba com essa estabilidade, alterando a decisão anterior (...), então – e sobre isso não há dúvidas – a ordem jurídica em que tudo isto acontece sofre disrupções e descontinuidades que põem desde logo em causa a dimensão objetiva da “confiança” e da “segurança”, enquanto elementos centrais de um Estado de Direito»23


Estas notas chamam a atenção para um aspeto determinante: a pedra de toque do princípio da proteção da confiança, entenda-se, aquilo que lhe confere autonomia normativa relativamente a figuras próximas (v.g., boa-fé, proporcionalidade, segurança jurídica) é o enfoque na situação daquele que confia. É esta dimensão subjetiva da confiança que confere ao princípio a sua marca genética e é também por força dela que, no plano legislativo, a avaliação das expectativas dos cidadãos se revela particularmente intrincada, sobretudo nas situações em que a situação jurídica do particular não possa reputar-se “consolidada”.

Ou seja, a menor solidez da proteção da confiança no campo legislativo, transversal a todos os ordenamentos jurídicos, não fica a dever-se – em exclusivo – à maior deferência para com as razões oferecidas pelo legislador no teste em que culmina o princípio24. Deve-se, também, às dificuldades na apreciação da consistência e legitimidade das expectativas dos particulares, por um lado, e, por outro, no apuramento do nexo de causalidade entre o comportamento dos poderes públicos e os “planos de vida” levados a cabo pelos privados.

Exemplificando. No direito administrativo, a proteção da confiança do particular fica muitas vezes dependente do facto de este estar de boa-fé, isto é, de conhecer o vício que afetava o ato praticado ou de poder antecipar a alteração das circunstâncias ou a superveniência de conhecimentos técnicos e científicos25. No plano constitucional, o conhecimento da ilegitimidade da base da confiança – uma lei – é, naturalmente, uma questão mais complexa, pois mesmo pressupondo que nem sempre é juridicamente suficiente agir de acordo com a lei, é obviamente difícil questionar, por este prisma, a validade de uma expectativa.

 

3. Análise dos três primeiros testes do princípio da proteção da confiança

3.1. O primeiro teste: imprevisibilidade

O primeiro teste da mecânica operativa do princípio da proteção da confiança passa, assim, por apurar se o legislador encetou comportamentos capazes de gerar nos privados expectativas de continuidade. Exige-se, portanto, que a alteração legislativa seja imprevisível à luz de um critério de razoabilidade, isto é, tomando como referência aquilo que o cidadão-médio26, seria capaz de conhecer ou antecipar. Não há dúvidas de que, na nossa jurisprudência – como noutras - existe uma escala de imprevisibilidade que varia em função do grau de consolidação da situação jurídica, do contexto em que esta se formou e do comportamento do legislador27. Visto que o Tribunal não autonomiza o princípio da proteção dos direitos adquiridos, admitindo que as normas legais que os lesem possam ser apreciadas à luz do princípio da proteção da confiança28, no topo da mencionada escala de imprevisibilidade estarão, naturalmente, normas legais retroativas que agridam situações consolidadas.

No Acórdão n.º 202/2014, de que trataremos infra com maior detalhe, estava em causa uma lei da Assembleia da República (Lei n.º 14/2010, de 23 de julho), que revogava, com efeitos retroativos, um decreto-lei do Governo (Decreto-lei n.º 188/2008, de 23 de setembro) que servira de base legal específica para a celebração de um aditamento ao contrato de concessão relativo aos direitos de exploração do terminal portuário de Alcântara. O Tribunal Constitucional, não abrindo mão do método de ponderação em que se verte o princípio da proteção da confiança, tomou na devida consideração o facto de o concessionário não ser titular de uma mera expetativa, mas de um “direito contratualmente fundado”, concretamente, o direito resultante da celebração do aditamento ao contrato de concessão de que o decreto-lei foi fundamento legal.

Mais abaixo na escala de imprevisibilidade, e desta feita atribuindo particular relevo ao contexto de formação da situação jurídica, estão as situações com forte vocação de consolidação, que no direito comparado resultam, por ex., de leis de incentivação económica ou mais genericamente de situações de indução pública de comportamentos29.

O último degrau desta escala é composto pelas situações jurídicas que, não estando consolidadas nem tendo vocação “congénita” para a consolidação, têm subjacente uma atuação legislativa de reforço das expetativas dos particulares. Aqui, como sublinha Ferrari, “le degrée de consolidation de la situation importe moins que le comportement de l’autorité normative”. Os Acórdãos n.ºs 474/13, 862/13 e 3/2016 oferecem importantes exemplos deste terceiro tipo de situações.

No primeiro, o Tribunal Constitucional analisou – já o vimos – uma norma que estendia a possibilidade de cessação do vínculo de emprego público, por razões objetivas, aos funcionários públicos com nomeação definitiva anterior a 2008. Considerou-se, aí, que o impulso de “laboralização” do regime de emprego da Administração Pública, concretizado, entre outros diplomas, pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, não abrangeu a “morte jurídica” do vínculo público, em especial dos funcionários públicos com nomeação definitiva, que continuaram, por força da cláusula de salvaguarda inscrita no n.º 4 do artigo 88.º daquele diploma, imunes à cessação da relação laboral por razões objetivas.

Aquela cláusula foi entendida pelo Tribunal como uma reforço-promessa, pelo legislador, da intenção de não entender o regime da cessação da relação laboral por causas objetivas a certo tipo de funcionários públicos, cujas expectativas na manutenção desse regime jurídico saíram, assim, particularmente reforçadas:30



    “Operou-se, assim, um reforço significativo das expectativas alimentadas por esses trabalhadores, que dificilmente poderiam buscar manifestação mais expressiva do Estado quanto à exceção de que mereciam relativamente à cessação da relação jurídica de emprego público”.


Já no Acórdão n.º 862/13, chamado a apreciar uma norma que instituía um corte de 10% nas pensões de reformas pagas aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações, o Tribunal concluiu que estava perante uma alteração normativa imprevisível, visto que as sucessivas reformas empreendidas no sistema de segurança social sempre haviam demonstrado preocupação redobrada na salvaguarda de direitos adquiridos e, em certos casos, de direitos em formação:



    «Pela evolução do regime de pensões, verifica-se que o legislador, sempre que interveio nesse regime, em sentido mais desfavorável aos subscritores e pensionistas, quer quanto às condições de aposentação quer quanto à fórmula de cálculo, teve o cuidado de salvaguardar as situações jurídicas, seja em formação seja já constituídas (...).
    Ora, com este modo de alteração do regime de aposentação, o Estado, nomeadamente o legislador, encetou comportamentos capazes de gerar nos pensionistas “expectativas” fortes (...) de que o quantum de pensão não seria diminuído».

Ou seja, estando em causa reformas estruturais – entenda-se, sem caráter excecional ou transitório - o Tribunal tende a não tomar em consideração, na apreciação da imprevisibilidade das medidas legislativas, aspetos conjunturais associados ao contexto económico-financeiro, ou mesmo considerações factuais como a constituição de grupos de trabalho para gizar reformas num determinado sector, ou o impulso legiferante no Parlamento31. Já em face de medidas excecionais – como, por exemplo, a contribuição extraordinária de solidariedade ou as reduções remuneratórias dos trabalhadores do sector público – o Tribunal concluiu que a conjuntura de “absoluta excecionalidade económica e financeira” conduzira inelutavelmente a uma “relativização” ou “atenuação” das expectativas dos cidadãos afetados por estas medidas32.De forma lapidar, pode ler-se, no Acórdão n.º 572/14:



    «A situação de confiança imputável ao Estado não se forma com a mesma consistência relativamente a uma medida de caráter extraordinário e transitório, que justifica uma “excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual”. Perante a excecionalidade da situação de facto que propulsionou a necessidade da contribuição – situação de emergência económico-financeira que fez diminuir as transferências do Orçamento de Estado para os sistemas de proteção social – mais atenuadas surgem as expectativas daqueles que por ela foram afetados».


O último e mais recente daqueles arestos – o Acórdão n.º 3/2016 – tratou de uma norma constante do Orçamento do Estado para 201533, em que se subordinava o direito ao pagamento ou o montante das subvenções mensais vitalícias devidas a ex-titulares de cargos públicos a uma condição de recursos. Tais subvenções são, recorde-se, prestações de natureza não contributiva que têm como escopo recompensar o empenho do beneficiário na coisa pública e compensar eventuais perdas patrimoniais que esse empenho haja acarretado. Em 2005, depois de várias alterações, o legislador revogou o regime jurídico das subvenções vitalícias, prevendo, contudo, um regime transitório para as subvenções já em pagamento e para os titulares de cargos públicos que, até ao termo dos mandatos em curso, preenchessem os requisitos para beneficiar dos direitos conferidos pelas disposições revogadas34.

Uma vez mais, o Tribunal Constitucional – ainda que com o cuidado de sublinhar que as constantes modificações ao regime jurídico das subvenções deveriam ter “alertado” os afetados relativamente à “precariedade” do regime – chega à conclusão de que o regime transitório introduzido pelo legislador em 2005 num contexto em que ambicionava pôr termo àquele tipo de prestações seria uma confirmação de que as subvenções já em pagamento ou quase em pagamento manteriam a sua configuração original de puros benefícios, isto é, desconectadas de qualquer propósito de mitigação da carência económica35.

Seria errado ver nesta terceira hipótese de reforço das expetativas uma idiossincrasia da justiça constitucional portuguesa. No direito europeu, o Tribunal de Justiça, sempre muitíssimo cauteloso no que respeita às violações do princípio da proteção da confiança, não exclui a hipótese de haver bases de confiança complexa de aquisição progressiva ou bifásica. Estas corresponderiam, na verdade, àquelas situações em que um ato posterior de uma instituição europeia vem completar e consolidar o regime jurídico existente, o qual seria per se insuficiente para infirmar a regra de revisibilidade das opções normativas no domínio do mercado interno36.

As situações de reforço, pelo legislador, das expetativas dos particulares estão associadas à distinção – que abordámos há pouco – entre segurança jurídica e proteção da confiança no domínio legislativo. Neste preciso sentido: o que está em causa, na tutela da confiança, não é a expectativa genérica de continuidade do ordenamento jurídico, ou o cumprimento, pelo direito, de uma das suas mais importantes funções que é a de pacificação e normalização das relações jurídicas. Para que o princípio entre em jogo é necessário (ou deveria ser) que o legislador se tenha “descolado” dessa expetativa genérica, ao ponto de tornar “imprevisível” a normal revisibilidade das leis.

 

3.2. O segundo teste: legitimidade

O segundo teste da mecânica aplicativa do princípio da proteção da confiança exige que as expectativas do cidadão na não alteração desvantajosa de um dado regime jurídico sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas.

Esta avaliação é feita no “quadro axiológico jurídico-constitucional”37, ou seja, tento em conta a “teleologia normativa” do ordenamento constitucional38, e assenta, no fundo, na ideia de que as expectativas dos cidadãos não têm uma existência desgarrada dos demais valores e princípios constitucionais. Como se antecipou supra, este “teste de legitimidade”, que acresce ao “teste da previsibilidade”, reveste elevado nível de complexidade, pois, à partida, terá sido o Estado-legislador, seja através de um comportamento positivo seja através de um comportamento negativo, a gerar a base da confiança cuja legitimidade agora se avalia. Por outras palavras, no domínio legislativo, só é possível um qualquer juízo sobre a legitimidade das expectativas do particular se se admitir que a mera atuação em conformidade com o direito vigente é insuficiente para assegurar a respetiva tutela jurídico-constitucional39.

No Acórdão n.º 355/13, o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar a constitucionalidade de normas que alteravam o regime de acesso ao ensino superior por parte dos alunos do ensino recorrente40. Concretamente, antes da entrada em vigor dessas normas, o aluno que frequentasse um curso científico-humanístico do ensino recorrente não estava sujeito à realização de exames nacionais, o que naturalmente não o dispensava de, querendo aceder ao ensino superior, realizar exames nacionais às provas de ingresso consideradas necessárias pelas instituições de ensino superiora que almejasse aceder. À luz do novo regime jurídico introduzido em 2012, o aluno do ensino recorrente que queira candidatar-se ao ensino superior passa a ter de realizar exames nacionais a todas as disciplinas do curso, e não apenas às provas de ingresso41. A medida entrou em vigor em fevereiro de 2012, não prevendo qualquer regime transitório para os alunos que estivessem em condições de aceder ao ensino superior nesse mesmo ano.

Concluiria o Tribunal no sentido de que as expectativas dos alunos afetados na não alteração, com efeitos para 2012, das regras de acesso ao ensino superior não seriam fundadas em boas razões, porquanto:



    «Os alunos agora afetados – e neste grupo incluem-se todos aqueles que não perspetivem o ensino recorrente com um desiderato de “mera certificação do ensino secundário”, sejam ou não já detentores dessa certificação – vinham beneficiando de um regime de privilégio injustificado relativamente aos alunos dos cursos científico-humanísticos ministrados em regime diurno e que pretendessem, igualmente, aceder ao ensino superior. As normas em crise são, na verdade, meramente declarativas da convicção – aliás, de conhecimento geral – de que o ensino recorrente estava a ser instrumentalizado para finalidades contrárias à sua “matriz enformadora”, e de que a prolongada inércia legislativa na correção desta matéria urgia ser invertida».


Apesar de a validade das expectativas dos cidadãos depender de um dado “referente sistémico”42 – a Constituição – o certo é que a hermenêutica constitucional e o confronto com a realidade constitucional condicionam o modo como esse referente sistémico é entendido. É impossível não pressentir o impacto destas considerações quando em causa estejam relações jurídicas duradouras, como aquela que une os pensionistas ao Estado, sujeitas a enorme erosão axiológica e à chegada de novos princípios constitucionais, como os princípios da sustentabilidade e da justiça intergeracional43.

É, assim, com alguma estranheza que se encaram certas asserções contidas no Acórdão n.º 862/13, a propósito da chamada “convergência” das pensões44. Pode ler-se, a dada altura, o seguinte (os itálicos são nossos):



    “Se existia um regime diferenciado de cálculo da pensão [entre os subscritores da CGA e os beneficiários da Segurança Social], isso é imputado exclusivamente ao Estado, que sentiu necessidade de assegurar de modo diverso a proteção na velhice e invalidez dos trabalhadores da Administração Pública (...).
    Mas, como referido, a convergência não é invocável, uma vez que foi o próprio legislador que disciplinou toda a formação do direito à pensão dos atuais beneficiários do regime da Caixa. Por isso mesmo, a confiança destes relativamente à continuidade e idoneidade desses critérios legais não pode agora ser questionada pelo mesmo legislador, através de medidas desenquadradas de uma reforma estrutural do sistema de segurança social”.


O Tribunal reincidiu no mesmo tipo de argumento, no Acórdão n.º 3/2016, sobre a lei que subordinava as subvenções vitalícias de ex-titulares de cargos públicos a uma condição de recursos, estribando o caráter legítimo das expectativas dos beneficiários na circunstância de ser a própria Constituição, no n.º 2 do artigo 117.º, a remeter para a lei a determinação dos direitos, regalias e imunidades dos titulares de cargos políticos.

Deteta-se, aqui, uma certa sobreposição entre a existência de uma base de confiança, por um lado, e a legitimidade da confiança nessa base, por outro, assumindo o Tribunal que a primeira é condição suficiente da segunda. Esta sobreposição é ontologicamente redutora – para não dizer inviabilizadora - do teste que agora se aborda. A avaliação do requisito das “boas razões” já leva pressuposto que tenha sido o Estado-legislador, com o seu comportamento, a potenciar uma situação de confiança.

Os problemas de interação entre a igualdade e a proteção da confiança afluíram, de forma igualmente expressiva, no Acórdão n.º 474/13, já mencionado. Aí o Tribunal rejeitou em absoluto que a manutenção em vigor da cláusula de salvaguarda do n.º 4 do artigo 88.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, pudesse colidir com o princípio da igualdade, assumindo como natural que trabalhadores com idêntico tipo de vínculo e a desempenhar as mesmas funções possam estar subordinados a regimes de cessação do vínculo público distintos, consoante a data de acesso ao emprego público. Como se lê no Acórdão: 45



    “Noutra perspetiva, falece justificação para a lesão de expectativa fortemente reforçada pelo legislador, na igualdade formal que se obtém entre esses trabalhadores e os trabalhadores em regime de contrato de trabalho em funções públicas constituídos a partir de 2009.
    A uniformidade das relações jurídicas laborais não constitui um valor per se, nem integra, seja no regime público, seja no privado, fundamento de interesse público para postergar a tutela da confiança legítima e justificar a não continuidade do comportamento estadual quanto à modificação de elementos nucleares e identitários do estatuto laboral”.


É importante reter que, ao contrário do que sucedeu no Acórdão n.º 862/13, o Tribunal não mobilizou o princípio da igualdade como critério de apuramento da legitimidade das expectativas dos cidadãos, convocando-o tão-só como razão de interesse público a ter em conta no momento final de ponderação dos interesses em presença46.

Não nos parece, em todo o caso, que o resultado da operação legislativa intentada em 2013 tenha sido o de produzir uma igualdade formal entre os trabalhadores do setor público. Não se pretendeu tratar estes trabalhadores indiferenciadamente, talqualmente reclamaria a igualdade formal, mas antes estender um determinado aspeto do regime jurídico (a cessação da relação laboral por causas objetivas) a trabalhadores que se afiguraram ao legislador merecedores de um tratamento jurídico igual em face de um novo tertium comparationis: já não a data do estabelecimento do vínculo, mas o tipo de vínculo de emprego público47.

A circunstância de o Tribunal Constitucional reiterar amiúde que “o princípio da igualdade não opera diacronicamente”48. não nos ajuda particularmente. O que aí se pretende dizer é que a mobilização do “tempo” como critério de diferenciação entre situações jurídicas não constitui, per se, uma violação do princípio da igualdade, e que a aplicação de diversos regimes jurídicos a realidades substancialmente iguais é produto da conjugação da revisibilidade das leis (criação de novos regimes jurídicos) com uma exigência de segurança jurídica (conservação de regimes jurídicos). Dizer-se que uma alteração legislativa que ambicione estabelecer um tratamento igual para situações iguais à luz de um tertium comparationis (à partida) constitucionalmente razoável é um exercício de igualdade formal parece-nos apressado.

Cumpre finalmente destacar o Acórdão n.º 202/14, mencionado supra. Como vimos, estava em causa a revogação, com efeitos retroativos, do diploma que constituíra a base legal de um contrato de concessão dos direitos de exploração de um terminal de contentores. A acrescentar ao que se já se disse, releva o facto de, em 10 e 22 de outubro de 2008, terem dado entrada na Assembleia da República dois pedidos de apreciação parlamentar com vista a fazer cessar a vigência do diploma49; e de, em 2009, o Tribunal de Contas ter publicado o Relatório n.º 26/2009, incidente sobre o aditamento ao contrato de concessão, onde sancionou duramente a ausência de procedimento competitivo, a falta de fixação, pelo contraente público, de critérios objetivos de value for money, e a excessiva onerosidade das condições de financiamento contratualizadas.

Concluiu o Tribunal no sentido de que estariam verificados os quatro testes em que se desdobra o princípio da proteção da confiança, considerando que na base da Lei n.º 24/2010 estaria uma discordância essencialmente “política”, e que, na sequência do diploma de 2008, o particular passara a ser titular de um direito contratualmente fundado50. A confiança deste seria, então, legítima, justificada e fundada em boas razões, sobrevivendo incólume quer aos pedidos de apreciação parlamentar, quer ao relatório do Tribunal de Contas.

Na declaração de voto aposta à decisão, a Conselheira Maria Lúcia Amaral chamou a atenção para dois pontos nevrálgico (os itálicos são nossos):51



    “Não pode ser relegado para o domínio dos dados constitucionalmente irrelevantes o facto de o particular ter aceite celebrar a modificação do contrato – que o investiu na posição jurídico-subjetiva cuja especial densidade e natureza agora se invoca – num momento em que ainda desconhecia se o diploma legislativo que servira de base legal para a outorga desse mesmo contrato iria perdurar na ordem jurídica (...).
    Ora, de acordo com o Relatório do Tribunal de Contas referido no presente acórdão, o contrato de concessão de serviço público seria congenitamente desequilibrado, pelo facto de o risco do negócio ser transferido em termos não-irrelevantes para o concedente público (...)”.


Este segmento da declaração de voto deve ser entendido na perspetiva de quem considera que não houve, da parte do legislador, usurpação da reserva de administração e correspondente violação do princípio da separação de poderes, inscrito no n.º 1 do artigo 111.º da Constituição. Parece-nos que tal usurpação existiu, mas a fundamentação deste arrazoado extravasa o âmbito material do presente texto.

Contudo, admitindo que o legislador estaria verdadeiramente a atuar no exercício da função legislativa, o grau de consolidação das expetativas exigiria que a revogação retroativa do decreto-lei viesse acompanhada de uma compensação. As regras que orientam a gestão do equilíbrio entre a versão liberal do “Estado-homem honesto”52, fiel aos compromissos assumidos, e a versão democrática do Estado-atualizador do “bem comum” também valem, como é abundantemente conhecido, para o legislador.

 

3.3. O terceiro teste: irreversibilidade

Os “planos de vida” são a projeção metodológica da ligação existente entre o princípio da proteção da confiança e o princípio do Estado de Direito enquanto garantia da liberdade das pessoas. Num Estado adjetivado como de “Direito”, os cidadãos devem poder saber com o que contam, por forma a que possam autodeterminar-se, isto é, “de modo a que se tornem exequíveis aqueles projetos individuais de vida cujo traço é indispensável para a realização autónoma e responsável do desenvolvimento da personalidade humana”53

Nestes termos, os planos de vida constituem, no fundo, a atividade de confiança que avaliza o nexo existente entre a base da confiança e os exercícios de autodeterminação pessoal, social e profissional realizados pelos particulares. Quanto mais irreversíveis forem as escolhas associadas àqueles exercícios, maior será o “peso” das expetativas dos particulares e, por conseguinte, maior terá de ser a magnitude e a premência dos interesses públicos invocados pelo legislador para superar essas expectativas.

A jurisprudência constitucional viabiliza, nesta matéria, algumas conclusões interessantes, mas que não podem, neste ponto de análise, haver-se por surpreendentes. Obviamente que quando a situação de confiança (consolidada ou com forte vocação de consolidação) pressuponha a realização de atos de execução (de um contrato, de um investimento), os “planos de vida” não carecem de muita demonstração. Bastará ao particular evidenciar que fez – ou que começou a fazer – exatamente aquilo que o ato jurídico-público gerador da situação de confiança lhe impunha que fizesse. No Acórdão n.º 202/2014, o Tribunal limitou-se a relembrar que, na sequência da celebração do aditamento ao contrato de concessão, o cocontratante fez “não apenas um grande, mas um total investimento de confiança”, porquanto procedeu à elaboração dos estudos necessários à realização do respetivo plano de investimentos, e levou a cabo as obras contratualizadas adquirindo, para o efeito, o necessário equipamento.

Normativamente equivalentes são, para o Tribunal, as situações de confiança que envolvam “grandes opções de vida”, ou seja, exercícios fundamentais da autodeterminação pessoal e profissional, como, por ex., a opção de aposentação/reforma54, de escolha da profissão55 ou de permanência no setor público56. Dos Acórdãos n.ºs 572/14, 187/2013 e 572/14 resulta a convicção de que, em matéria de pensões de reforma, num sistema de benefício definido como o nosso, em que se garante a cada pensionista uma taxa fixa de substituição sobre os vencimentos de referência, os pensionistas «já não possuem a mesma facilidade de readaptação a condições económicas mais exigentes», ou seja, já não terão igual capacidade para refazer as suas condições de vida e de procurar fontes de rendimento complementares.

Um terceiro conjunto de situações envolve opções de vida que, não podendo qualificar-se de “irreversíveis”, implicam, porém, uma sobrecarga de esforço pessoal, financeiro ou profissional para os particulares. A mudança das regras de acesso ao ensino superior para estudantes-atletas de alta competição, num momento em que estes já haviam realizado parte das provas de ingresso (já haviam concluído o 11.º ano), é a este propósito paradigmático. Decisivo no juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 176/12, foi a circunstância de que «o eventual exercício do direito de repetir as provas do 11.º ano representaria sempre uma notória sobrecarga de esforço, com riscos para o rendimento escolar nas disciplinas do ano letivo em curso».

Idêntico arrazoado esteve subjacente ao Acórdão n.º 241/2015, incidente sobre normas do Regulamento Nacional de Estágio, aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, que previam um aumento significativo dos emolumentos devidos pela realização do estágio, com aplicação imediata ao curso de estágio já a decorrer e cujos custos de inscrição os estagiários já haviam pago. Ora, nestas circunstâncias, o Tribunal Constitucional não deixou de reconhecer que a exigência de pagamento dos montantes adicionais ocorreu num momento em que os estagiários, em busca de qualificações, já haviam pago “uma quantia bastante significativa (...) para acederem a uma dada profissão”.

 

4. Notas conclusivas

O périplo empreendido evidenciou algumas das tendências e dificuldades de aplicação do princípio da proteção da confiança a nível constitucional. A desconstrução do princípio num roteiro metodológico que, num primeiro momento, se desdobra em três “testes” (para alguns) com uma ordem ou sequência lógica, tem inequívocas vantagens do ponto de vista da legitimidade e do controlo da decisão proferida. Contudo, praticamente não se detetaram situações em que à verificação do primeiro teste se tenha seguido um juízo de não preenchimento dos restantes, o que atesta que talvez aquela ordem ou sequência não seja, afinal, assim tão “lógica”. São várias as razões que esteiam este diagnóstico.

Uma delas reside na equiparação entre a base da confiança e a legitimidade dessa confiança, de onde decorre que só quando estejam em causa privilégios manifestamenteindevidos – entenda-se, hipóteses de “conhecimento geral”, ou em que o carácter indevido do privilégio já era suficientemente notório ao tempo em que o mesmo foi atribuído - devem as expectativas dos cidadãos reputar-se ilegítimas ou não fundadas em boas razões57. Não basta, portanto, uma simples incongruência ex postfacto sobre o mérito dos regimes jurídicos introduzidos pelo legislador. Foram, pois, postas a nu as dificuldades do legislador em rebater satisfatoriamente o caráter conservador58 do princípio da proteção da confiança através de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos para lá dos da sustentabilidade financeira do Estado numa perspetiva de curto-prazo.

Finalmente, os “planos de vida” que os cidadãos tenham eventualmente articulado com estribo numa situação de confiança nem sempre chegam com idêntico “peso” ao momento ponderativo. Há planos de vida que espelham decisões que se estimam irreversíveis, e dos quais resultará, coerentemente, o nível máximo de tutela da confiança, ou seja, a inviabilidade tout court da mudança ambicionada; e há planos de vida que espelham decisões à partida reversíveis, mas que se considera excessivo reverter, caso em que o legislador poderá “superar” a inconstitucionalidade por banda da adoção de um regime transitório que limite o âmbito subjetivo de afetação da mudança sem obstaculizar a mudança.

 

 

NOTAS

1 Assistente convidada, Faculdade de Direito | Escola do Porto, Universidade Católica Portuguesa | Porto, Rua de Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto, email.: mvicente@porto.ucp.pt.

2 Doravante, PAEF. Cfr., neste sentido, J. BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, II, 6.º ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 819.

3 Cfr. o n.º 1 do artigo 4.º, conjugado com a alínea b) do artigo 47.º, do Decreto n.º 177/XII da Assembleia da República, na parte em que revoga o n.º 4 do artigo 88.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, preceitos cuja validade constitucional foi escrutinada, em sede de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade, no Acórdão do TC de 29.08.2013, proferido no processo n.º 754/13. Os acórdãos do Tribunal Constitucional a que doravante será feita referência podem ser consultados, na íntegra, em: Ver link.

4 Cfr. as alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII, da Assembleia da República, normas cuja conformidade com a Constituição foi objeto de escrutínio, também em sede de fiscalização abstrata preventiva, no Acórdão do TC de 19.12.2013, processo n.º 1260/13.

5 Cfr. os n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º, e os n.ºs 1 a 5, e 6 do artigo 4.º do Decreto n.º 262/XII, da Assembleia da República, que instituiu uma redução das pensões de montante superior a €1000, cuja validade foi controlada, uma vez mais em fiscalização abstrata sucessiva, pelo Acórdão do TC de 14.08.2014, proferido no processo n.º 819/2014.

6 Sobre a importância do fim do PAEF e – em geral – da austeridade nas ponderações levadas a cabo pelo Tribunal Constitucional, v. a declaração de voto do Conselheiro-Presidente Costa Andrade no Acórdão do TC de 09.02.2017, proferido nos processos n.ºs 290/16 e 408/16, sobre a opção de, no ano de 2016, continuar a reverter a receita proveniente da sobretaxa do IRS liquidada na Madeira para o Orçamento do Estado.

7 Cfr., sobre o tema, P.MOTA PINTO, “A proteção da confiança na “jurisprudência da crise””, in G. DE ALMEIDA RIBEIRO/L. PEREIRA COUTINHO (org.), O Tribunal Constitucional e a Crise, Coimbra, Almedina, 2014, p. 135 e ss., S. TSAKYRAKIS, “Justice Unrobed: Judicial Review of Austerity Measures in Portugal”, E-Publica. Revista eletrónica de Direito Público, vol. 4, n.º 1, maio 2017, pp. 53-75, disponível em: Ver link, (acedido em 11 de dezembro de 2017).

8 Cfr. o Acórdão do TC de 30.10.1990, proferido no processo n.º 287/90, o leading case nesta matéria. Segundo o Acórdão do TC de 12.03.2009, proferido no processo n.º 772/07, o Tribunal Constitucional estabelecera, no Acórdão n.º 287/90, “os limites do princípio da proteção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de retroatividade inautêntica, retrospectiva”. A tutela da confiança, naqueleparticular feixe de circunstâncias, far-se-á quando se reúnam dois pressupostos essenciais: “a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constante não possam contar” e quando “não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes”, o que implica o recurso ao princípio da proporcionalidade.

9 Neste sentido, M. L. AMARAL, “A proteção da confiança”, in C. AMADO GOMES (org.), V Encontro dos Professores Portugueses de Direito Público, Lisboa, ICJP, 2012, p. 24, disponível em: Ver link, (acedido em 7 de março de 2018).

10 V. os Acórdãos do TC de 28.03.2012, proferido no processo n.º 645/11, e o Acórdão do TC de 27.06.2013, proferido no processo n.º 917/12, que abordaremos infra.

11 Avança M. L. AMARAL, V Encontro, p. 25, que estes testes aparecem ordenados com um grau crescente de precisão e de exigência, à semelhança do que sucede com as três dimensões do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, ao ponto de que uma medida legislativa que não respeite o primeiro torna desnecessário o apuramento do segundo. Parece-nos que nem sempre a jurisprudência constitucional viabiliza esta conclusão (por razões que esclareceremos ao longo do texto), embora seja aceitável dizer-se que só envereda para o derradeiro “teste” se as expectativas dos particulares cumprirem as exigências de “peso” que os primeiros exercícios procuram estabelecer. V., por ex., o Acórdão do TC de 27.6.2013, proferido no processo n.º 917/12, que abordaremos infra.

12 G. GRASMANN, “La constitutionnalité des règles de droit rétroactives et rétrospectives dans la jurisprudence allemande”, Revue internationale de droit comparé, vol. 41, n.º 4, 1989, pp. 1017-1024, D. URANIA GALETTA, “La tutela dell’affidamento nella prospettiva del diritto amministrativo italiano, tedesco e comunitario: un’analisi comparata”, Diritto amministrativo, 2008, pp. 757-790.

13 Refira-se, aliás, que no modelo europeu, o máximo a que o operador económico pode aspirar em situações de retrospetividade, após a árdua conclusão de que se formou uma situação de confiança legítima, é uma limitação ao princípio da aplicação imediata da lei nova, traduzida no dever de as instituições europeias preverem medidas transitórias que suavizem o modo de implementação da alteração legislativa. Sobre o tema, v. J. RAITIO, The Principle of Legal Certainty in EC Law, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 2003, pp. 193-194.

14 Os desenvolvimentos da última década são, porém, entusiasmantes. Por um lado, o Conseil constitutionnel, apesar de recusar integrar o princípio da segurança jurídica no bloco de constitucionalidade, mostra-se, sobretudo desde a introdução da Question Prioritaire de Constitutionnalité (em 2008), mais aberto a algumas das suas consequências normativas. Com efeito, se a proteção dos cidadãos contra alterações legislativas continua a fazer-se por intermédio do artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão («garantie des droits») e do hermetismo que é característico do Tribunal na exposição dos seus considerandos, este deixou abertamente de proteger apenas as situações adquiridas («situations légalement acquises») para cobrir também certo tipo de situações em curso, especialmente em matéria fiscal e de incentivação económica, em função da confiança (as «attentes légitimes» ou «les effets qui peuvent légitimement être attendus de telles situations») gerada pela atuação do legislador. V., concretamente, da parte do Conseil constitutionnel, as Décisions n.ºs 2013-682 DC, de 19.12.2013, 2013-685 DC, de 29.12.2013, 2014-435 QPC, de 5.12.2014, 2014-706 DC, de 18.12.2014, 2015-474 QPC, de 26.06.2015, 2015-723 DC, de 17.12.2015, 2015-727 DC, de 21.01.2016, 2016-538 QPC, de 22.04.2016, 2017-604 QPC, de 17.01.2017, 2017-642 QPC, de 7.07.2017 (todas as decisões estão disponíveis em: Ver link. Igualmente relevante é a jurisprudência do Conseil d’État sobre alteração de normas regulamentares administrativas. A alta jurisdição administrativa francesa continua a recusar aplicar o princípio da proteção da confiança (confiance légitime) fora de questões que relevem do direito europeu, mas encontrou, desde o famoso acórdão KPMG (Décision n.º 288460, de 24.03.2006, disponível em. Ver link, um “paliativo” - talvez até mais forte que o “original” – ao retirar do princípio da segurança jurídica uma obrigação, para as autoridades administrativas, de editar medidas transitórias quando a aplicação imediata das normas regulamentares comportar um sacrifício excessivo (“atteinte excessive”) para a situação pessoal e financeira do administrado. V., na doutrina francesa, S.CALMES, Du principe de protection de la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français, Paris, Dalloz, 2001, pp. 130 e ss., e mais recentemente, entre muitos outros, G. EVEILLARD, “Sécurité juridique et droit transitoire”, Revue du Droit Public, n.º 3, 2016, p. 741, F. GRECH, “Le principe de sécurité juridique dans l’ordre constitutionnel français”, Revue française de droit constitutionnel, n.º 102, 2015, p. 408, e P. Y. GAHDOUN, “L’emergence d’un droit transitoire constitutionnel”, Revue du Droit Public, n.º 3, 2016, p. 156.

15 Em Itália, a configuração de um princípio de “legittimo affidamento” permanece um tanto ou quanto obscura. Durante algum tempo, vigorou a teoria do “combinato disposto”, segundo a qual o princípio não operaria autonomamente, mas apenas em conjugação com outros preceitos constitucionais, mormente direitos fundamentais. Tratar-se-ia, neste quadro, de um princípio geral em matéria de direitos fundamentais, mas não de um princípio fundamental de direito constitucional, capaz de invocação mesmo na ausência de uma afetação de direitos fundamentais. A Sentenza n.º 416/99, de 27.10.1999, sobre a introdução de uma proibição de cúmulo de pensões de reforma (obtidas antecipadamente) com rendimentos de trabalho independente, é unanimemente considerada pela doutrina como um “ponto de viragem” nesta matéria, pois nele a Corte Costituzionale destacou abertamente a existência de um “affidamento dell cittadino nella sicurezza giuridica (...) quale essenziale elemento dello stato di diritto”, alicerçando-o no artigo 3.º da Constituição italiana (v., entre outros, G. Matucci, Tutella dell’affidamento e disposizioni transitorie, Padova, Cedam, 2009, p. 170, M. Luciani, “Il dissolvimento della retroattività. Una questione fondamentale del diritto intertemporale nella prospettiva delle vicende delle leggi di incentivazione economica”, Giurisprudenza italiana, 2007, pp. 1825 e ss., D. Urania Galetta, “Legittimo affidamento e leggi finanziarie, alla luce dell’esperienza comparata e comunitaria: riflessioni critiche e proposte per un nuovo approccio in materia di tutela del legittimo affidamento nei confronti dell’attività del legislatore”, Foro amministrativo: TAR, 2008, p. 1912, e P. Carnevale/G. Pistorio, “Il principio di tutela dell legittimo affidamento del cittadino dinanzi alla legge fra garanzia costituzionale e salvaguardia convenzionale”, Costituzionalismo.it, n.º 1, 2014, disponível online em: Ver link.
Em todo o caso, ao contrário do que sucede abertamente nos modelos português e europeu, a Corte Costituzionale prefere não individualizar metodologicamente os pressupostos de uma situação de confiança, optando por tomar em consideração, no momento da ponderação, as características específicas dessa situação (M. Gigante, “Il principio di affidamento e la sua tutela nei confronti della pubblica amministrazione. Dell’Albero e del Ramo”, Diritto e Società, n.º 3-4, 2009, p. 410). Nessa ponderação, a Corte atribui bastante peso aos interesses financeiros do Estado, como a sustentabilidade do sistema de pensões, e ao interesse do Estado em reverter tratamentos de privilégio de alguns grupos de cidadãos (Sentenza n.º 390/1995, de 20.07.1995, 446/02, de 24.10.2002, 311/09, de 16.11.2009, 316/2010, de 3.11.2010), e não excluiu que daí possa resultar – mesmo – a lesão de direitos subjetivos perfeitos, inclusivamente de pensões já concedidas (Sentenza n.º 446/02, de 24.10.02, e 211/97, de 17.06.97). É evidente, porém, que a afetação desses direitos subjetivos perfeitos - cujos efeitos se prolongam no tempo – inclina a ponderação no sentido de lesão do legittimo affidamento dos cidadãos. Atente-se na Sentenza n.º 236/2009, de 16.07.2009, sobre a eliminação do estatuto de que gozam os professores universitários em vias de completar 70 anos (professori fuori ruolo), que consiste, basicamente, no facto de estes beneficiarem de um período de três anos durante o qual, apesar de não terem nenhuma cátedra, desenvolvem atividade científica e pedagógica e mantêm o tratamento académico e científico. A Corte Costituzionale, não obstante o legislador ter previsto um regime transitório, foi particularmente sensível à circunstância de a lei em causa, se aplicada àqueles professores a quem já tivesse sido atribuído o estatuto de professori fuori ruolo, modificar uma situação consolidada. Os acórdãos da Corte Costituzionale podem ser consultados em Ver link.

16 V., sobre esta diferença, T. KRUGER, “The quest for legal certainty in international civil cases”, Collected Courses of the Hague Academy of International Law, vol. 380, Leiden, Brill|Nijhoff, 2016, pp. 291 e ss., F. F. PAGANO, “Legittimo affidamento e attività legislativa nella giurisprudenza della Corte costituzionale e delle Corti sovranazionali”, Diritto Pubblico, n.º 2, 2014, pp. 591-592, P. CARNEVALE, “Più ombre che luci su di un tentativo di rendere maggiormente affidabile lo scrutinio delle legge sotto il profilo della tutela del legittimo affidamento”, Giurisprudenza costituzionale, 2002, p. 3670.

17 S. CALMES, Du principe, pp. 166 e ss.

18 V. o que dissemos na nota de rodapé n.º 14 do presente texto.

19 V., por ex., o Acórdão do TC de 22.04.2009, proferido no processo n.º 505/08.

20 S. CALMES, Du principe, pp. 181-182.

21 É para isso que M. GIGANTE, Mutamenti nella regolazione dei rapporti giuridici e legittimo affidamento, Milano, Giuffrè, 2008, pp. 6-7, chama a atenção quando qualifica o princípio da segurança jurídica como um princípio “estático” e o princípio da proteção da confiança como um princípio “dinâmico”. Sobre a variabilidade da tutela oferecida pelo princípio da proteção da confiança, v. G. MATUCCI, Tutella dell’affidamento, pp. 62 e ss.

22 V., na doutrina, S. BASTIANON, La tutela del legittimo affidamento nel diritto dell'Unione Europea, Milano, Giuffrè, 2012, p. 86, P. CRAIG, “Substantive legitimate expectations in Domestic and Community law”, Cambridge Law Journal, vol. 55, 1996, p. 305 (acesso a partir da base de dados Ver link, e na jurisprudência, entre muitos outros, os Acórdãos do TJUE de 05.10.94, proferido no processo C-133/93 (Crispoltoni), e de 01.04.1993, proferido nos processos apensos C-260/91 e 261/91 (Diversinte e Iberlacta).

23 Apesar de votado com a maioria, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa com fundamento no princípio da proteção da confiança, a Conselheira Maria Lúcia Amaral apôs declaração de voto, porventura no sentido de enfatizar que, no caso em análise, teria abordado a questão de constitucionalidade no plano da continuidade da ordem jurídica e não no plano da proteção da confiança. V., também, o Acórdão do TC de 14.08.2014, proferido no processo n.º 819/2014, onde se apreciou a contribuição de sustentabilidade, recordando o Tribunal que “[A] intensidade com que esta confiança merece ser protegida não pode ser tida, pelo Direito, como algo de meramente instrumental face à defesa de certos e determinados direitos subjetivos.Não está em causa um mero instrumento que sirva apenas para a afirmação de posições jurídicas detidas por um certo grupo da sociedade portuguesa. Está em causa, mais do que isso, o cumprimento de um princípio objetivo, decorrente de escolhas de valor que estruturam toda a ordem constitucional (artigos 2.º e 63.º) e que, por isso mesmo, interessam à comunidade no seu todo” (os itálicos são nossos). Ou seja, não estaria em causa apenas a lesão das legítimas expectativas dos pensionistas afetados, como também a capacidade de a própria reforma gerar segurança, ao tornar “particularmente difícil que as pessoas saibam com o que podem contar relativamente ao destino que irá ser dado às contribuições”.

24 M. GIGANTE, Diritto, p. 419.

25 V., por exemplo, os artigos 166.º a 168.º, do novo Código de Procedimento Administrativo.

26 De destacar o modo como o Tribunal de Justiça da União Europeia entende este requisito, através do critério do “operador prudente e avisado”. Trata-se, aqui, de um standard normativo que, em função de vários critérios (ex., características do setor económico e dos instrumentos de regulação económica mobilizados, informações disponibilizadas pelas instituições europeias, legitimidade dos investimentos realizados), enuncia o que deveria ser previsível para um operador ou conjunto de operadores em identidade de circunstâncias. Afigura-se-nos certeira a proposta de M. Gigante, Mutamenti, p. 151, que considera haver boas razões para falar de uma “personalização da diligência” (personalizzazione della diligenza), visto que a definição do comportamento de referência é feita por referência às condições e meios do concreto operador demandante e não de um operador médio abstratamente concebido.

27 S. FERRARI, “Les critères d’identification de la situation protégée de l’imprévisibilité de la règle de droit”, Revue du Droit Public, n.º 3, 2016, pp. 867-873.

28 L. AMARAL, V Encontro, pp. 28-29, esclarecendo que, na hipótese de uma norma legal afetar situações adquiridas, o peso dessas expectativas será, naturalmente, superior.

29 V., por ex., no direito italiano, a extensa reflexão em torno das “leggi di incentivazione economica”, que acentua a dimensão sinalagmática ou quase-contratual deste tipo de instrumentos [F. F. PAGANO, “Disposizioni di natura incentivante e meritevolezza dell’affidamento ingenerato dal legislatore (osservazioni a margine di Corte Costituzionale n.º 108 del 2016)”, Rivista Associazione Italiana dei Costituzionalisti, n.º 2, 2017, disponível em: Ver link, (acedido em 11 de dezembro de 2017), L.BENADUSI, “Attività di finanziamento pubblico aspetti costituzionali ed ammnistrativi”, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1966, pp. 890-957, A.PACE, “Leggi di incentivazione e vincoli sul futuro legislatore”, in Potere costituente, rigidità costituzionale, autovincoli legislativi, Padova, Cedam, 2002, pp. 165-194, F.RIGANO, “La leggi promozionali nella giurisprudenza costituzionale”, Giurisprudenza italiana, n.º 3, 1999, pp. 2223-2232, ou, no caso europeu, os Acórdãos do TJUE de 17.12.1998, proferido no processo T-203/96 (Embassy Limousines), de 28.04.88, proferido no processo C-120/86 (Mulder), e de 10.07.2009, proferido no processo C-201/08 (Plantanol).V., no direito alemão, a decisão do BverfG, Judgment of the First Senate of 6 December 2016, 1 BvR 2821/11 1 BvR 321/12 1 BvR 1456/12, disponível em: Ver link, (acedido em 11 de dezembro de 2017), sobre a constitucionalidade, à luz da garantia da propriedade privada (concretamente, da segunda parte do n.º 1 do artigo 14.º da Grundgesetz), das alterações à lei da energia nuclear, que fixou datas definitivas de encerramento das centrais em termos que não permitiram aos operadores a utilização dos volumes adicionais de eletricidade inicialmente conferidos, comprometendo a amortização dos investimentos.

30 Mais à frente, no mesmo acórdão, pode ainda ler-se o seguinte: “Esse quadro de expectativa sólida, que já vimos assente em comportamento positivo do Estado, deparou, é certo, com o agudizar das dificuldades económico-financeiras do Estado e com as vinculações decorrentes do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (...). Porém, estes mesmos trabalhadores, juntamente com a generalidade daqueles que recebem por verbas públicas, viram ser-lhes impostas pelo Estado medidas de redução remuneratória nos anos de 2011, 2012, e no ano em curso de 2013, com motivação que assentou no benefício de maior estabilidade no emprego – relativamente aos trabalhadores aos quais é aplicável o Código do Trabalho – juízo em que a inaplicabilidade de causas de cessação da relação laboral por razões objetivas tomou parte principal. Mais se intensificou, então, o quadro gerador da confiança, resistente a tais constrangimentos, e em função dessa motivação”. Criticando este argumento, v. P. Mota Pinto, O Tribunal Constitucional, p. 171.

31 Houve apenas uma situação em que, em face de uma medida estrutural, o Tribunal admitiu tomar em conta o condicionalismo envolvente para retirar legitimidade às expectativas dos cidadãos. Foi o caso das pensões de sobrevivência, cuja nova fórmula de cálculo, introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2014, foi escrutinada no Acórdão do TC de 30.05.2014, proferido nos processos n.ºs 14/2014, 47/2014 e 137/2013. Concluiria aí o Tribunal que “face a todo o condicionalismo que rodeou a implementação do novo regime de cálculo e redução das pensões de sobrevivência – e, em especial, a situação de emergência económica e financeira, que determinou já uma diminuição conjuntural das pensões, incluindo as atribuídas no âmbito do sistema complementar, não só as expectativas de estabilidade na ordem jurídica surgem agora mais atenuadas, como são sobretudo atendíveis relevantes razões de interesse público que justificam, em ponderação, uma excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual” (o itálico é nosso).

32 Cfr., ainda, o Acórdão do TC de 21.9.2011, proferido no processo n.º 72/11, o Acórdão do TC de 5.04.2013, proferido nos processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013. Idêntica conclusão vem sendo destacada em alguma jurisprudência estrangeira. V., por exemplo, a Sentenza n.º 316/2010, de 3.11.2010, da Corte costituzionale. Neste último, analisando uma norma que previa a não atualização automática de pensões superiores a certo montante durante o ano de 2008, a Corte costituzionale sublinha que “la norma impugnata se sottrae, infine, a censure di palese irragionevolezza, perché, limitandosi a rallentare la dinamica perequativa delle pensioni di valore più cospicuo, non determina alcuna riduzione quantitativa dei trattamenti in godimento. Essa così finisce per impore ai relativi percettori un costo contenuto, sia pure tenendo conto dei riflessi futuri del mancato adeguamento circonscritto al 2008".

33 Falamos do artigo 80.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro.

34 V. o artigo 8.º da Lei n.º 52-A/2005, de 10 de outubro.

35 De forma clara, no mesmo Acórdão, pode ler-se que o Estado alimentou as expectativas dos beneficiários “não tanto por aquilo que o legislador fez”, mas “mais por aquilo que não fez”, por nunca ter alterado a natureza das subvenções. Em sentido crítico, v. a declaração de voto da Conselheira Maria Lúcia Amaral, que discorda do entendimento excessivamente privatístico do princípio seguido pela maioria, rejeitando ver no comportamento do legislador “um fenómeno indutor de representações psicológicas”.

36 Foi o que concluiu no Acórdão do TJUE de 10.07.2009, proferido no processo C-201/08 (Plantanol). Em causa estava a supressão antecipada, pelo legislador alemão, de benefícios fiscais à produção de biocombustíveis, cuja duração fora inicialmente fixada até 2009. O Tribunal de Justiça alertou que um dos elementos a ter em conta na interpretação das Diretivas em causa era o de que alguns meses antes de suprimir o regime de isenção fiscal o legislador nacional confirmara, na lei relativa ao imposto sobre a energia, o ano de 2009 como o ano de extinção do regime privilegiado de tributação daqueles produtos. Também na decisão do BverfG sobre o encerramento das centrais nucleares, mencionado em nota anterior, se enfatizou a importância do comportamento do legislador no reforço das expetativas dos investidores, visto que o direito de utilizar os volumes de energia conferidos em 2002 havia sido reiterado pelo legislador, em 2009, a título de regime transitório.

37 Cfr. o Acórdão do TC de 30.05.2014, proferido nos processos n.ºs 14/2014, 47/2014 e 137/2013, sobre várias disposições da Lei do Orçamento de Estado para 2014.

38 Cfr. o Acórdão do TC de 27.06.2013, proferido no processo n.º 917/12, sobre a alteração das regras de acesso ao ensino superior por parte dos alunos do ensino recorrente.

39 Nas palavras de A. GROSSERIES e M. HUNGERBÜHLER, “Rule change and intergenerational justice”, in J. C. TREMMEL (ed.), Handbook of Intergenerational Justice, United Kingdom, Edward Elgar, 2006, p. 112, “as to the legitimacy component, it assumes that is not always morally sufficient to act in accordance with the law” (o itálico é nosso).

40 Falamos, concretamente, dos n.ºs 4 e 6 do artigo 11.º, e do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro.

41 Para além desta medida, o diploma continha ainda uma outra, válida apenas para os alunos do ensino recorrente que já tivessem concluído um curso de ensino secundário não recorrente. Nos termos do n.º 5 do artigo 15.º do Diploma, a classificação final de um aluno nestas circunstâncias passou a ser apurada, para efeitos de candidatura ao ensino superior, a partir das classificações obtidas no ano terminal, não se levando em conta a avaliação sumativa interna. O objetivo deste normativo era o de evitar a mobilização do ensino recorrente para fins estranhos à suamatriz enformadora, na perspectiva de que tal ensino vinha sendo usado por muitos alunos como uma plataforma para a subida das notas “internas” por forma a facilitar o acesso a certos cursos do ensino superior.

42 Cfr. a declaração de voto da Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, no Acórdão do TC de 14.08.2014, proferido no processo n.º 819/14, sobre a contribuição de sustentabilidade. Vale a pena atentar na seguinte passagem: “A confiança não pode ser avaliada apenas numa óptica individual, devendo ser considerados também o interesse da comunidade e o princípio da justiça intergeracional. De facto, não é só o valor da pensão atribuída que merece a proteção da confiança. Os cidadãos que agora contribuem também têm uma expectativa tutelável de que um dia receberão uma pensão suficiente (referente sistémico da proteção da confiança)”.

43 Sobre o tema, v. S.TAVARES DA SILVA, “O problema da justiça intergeracional em jeito de comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013”, Cadernos de Justiça Tributária, 2013, pp. 6 e ss.

44 Em Itália, levantaram-se problemas semelhantes a propósito do aumento da idade mínima da reforma e dos anos de descontos, medidas legislativas sobre as quais recaíram, entre outras, as Sentenzas n.ºs 349/1985, de 12.12.1985, e 390/1995, de 20.07.1995, da Corte costituzionale. L. ANTONINI, “Il ridimensionamento del sistema pensionistico, ovvero: fra fatti ostinati e argomenti deboli il principio del montante attuariale dei contributi come possibile controlimite (concorrente)”, Giurisprudenza costituzionale, 1996, p. 3724, comentando a decisão, alerta precisamente para a discrepância entre o montante de descontos e o montante da pensão e para o relevo que essa circunstância deve ter na ponderação da ragionevolezza da medida legislativa: “La riduzione del trattamento, quindi, più che ad intacare un diritto propriamente riconducibilile nell’area di tutela di cui all’art. 38.º Cost. (che perlomeno nel dato letterale fa riferimento alla vechiaia...) nel caso di specie interviene a desincentivare una pratica derivante da un trattamento di privilegio introdotto a suo tempo delle legge. Nel bilanciamento con il valore costituzionale dell’equilibrio finanziario, pertanto, entrava semplicemente un diritto quesito debole (...)” [o itálico é nosso].

45 Em sentido crítico, v. M.LUCAS PIRES, Os regimes de vinculação e a extinção das relações jurídicas dos trabalhadores da Administração Pública, Coimbra, Almedina, 2013, p. 118.

46 V., em sentido próximo, o Acórdão do TC de 13.01.2016, proferido no processo n.º 74/15, quando aí se destaca que “de ponderação mais problemática é a consideração de que estamos perante a tradução legislativa de uma valoração atualmente negativa do benefício, com grande difusão e peso na consciência social, que o legislador é livre de também perfilhar, uma vez que a autorrevisibilidade de soluções anteriormente adotadas é conatural à função legislativa, de acordo com o princípio democrático”. O ponto tampouco passou desapercebido ao Conselheiro Pedro Machete, que na sua declaração de voto chama a atenção para a importância, no quadro da operação ponderativa levada a cabo no último teste, das “preocupações de justiça social e de coerência valorativa contrárias à continuação das condições privilegiadas” de atribuição da subvenção. Ainda no domínio da interação entre o princípio da igualdade e o princípio da segurança jurídica, há que destacar o Acórdão do TC de 14.08.2014, proferido no processo n.º 819/14, sobre a contribuição de sustentabilidade. Aqui o Tribunal Constitucional não pôs de parte que, em alguns casos, a disparidade entre a carreira contributiva e o montante de pensões poderia ser fundamento bastante para acomodar um corte retrospetivo, mas negou que esse corte pudesse ser “cego”, isto é, tratar todos os pensionistas indiferenciadamente sem atender à efetiva verificação daquela disparidade.

47 Recorde-se que, com a reforma de 2008 (Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro), alguns trabalhadores mantiveram o vínculo de nomeação definitiva, enquanto outros viram o seu vínculo convertido para vínculo contratual, muito embora conservando a impossibilidade de cessação do vínculo de emprego público por causas objetivas.

48 V. o Acórdão do TC de 22.04.2009, proferido no processo n.º 505/08, e a jurisprudência aí citada.

49 Falamos, concretamente, do Pedido de Apreciação Parlamentar n.º 94/X, do PSD, e do Pedido de apreciação parlamentar n.º 97/X, do PCP.

50 A convicção de que se tratou de uma discordância política teria impacto no quarto teste, pois – como explica Fabio Merusi, na mais conhecida monografia italiana sobre o tema, a ponderação entre continuidade e mudança tem por objeto interesses “homogéneos”, e “la mutatta visione política di un problema non è, de per se stessa, un interesse economico rispetto alle situazione di affidamento determinata di una legge precedente” (F. MERUSI, Buona fede e affidamento nel diritto pubblico. Dagli anni “trenta” all’alternanza, Milano, Giuffrè, 2001, p. 75).

51 Sobre o tema, v., entre outros, M. L. AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1998.

52 Cfr. C. BROYELLE, “Confiance légitime et responsabilité publique”, Revue du Droit Public, n.º 2, 2009, p. 332.

53 M. L. AMARAL, “Dever de legislar e dever de indemnizar a propósito do caso «Aquaparque do Restelo»”, Themis, vol. 1, n.º 2, 2000, p. 97.

54 V., no direito italiano, as reflexões de L. Antonini, Giurisprudenza, p. 3734.

55 V. o Acórdão do TC de 10.12.2014, proferido no processo n.º 1326/13.

56 V. o Acórdão do TC de 29.08.2013, proferido no processo n.º 754/13.

57 Cfr. GROSSERIES e HUNGERBÜHLER, Handbook, p. 114. Segundo os Autores, “the difficulty in practice is rather to determine the extent to which individual citizens can be expected to know about these different theories. This is the reason why only clear cases of pre-existing undue privileges (for example, on which different theories of justice converge) will qualify as instantiations of justice-oriented reforms”.

58 Conservador, entenda-se, no preciso sentido de que permite a alguém que obteve uma coisa, mantê-la.