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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.5 no.1 Lisboa ene. 2018

 

 

DESTAQUE

Desacordos razoáveis e discricionariedade legislativa: um estudo a partir da teoria principialista dos direitos fundamentais

Reasonable disagreements and legislative discretion: a study based on the principles theory of constitutional rights

 

Bruno Sacramento 0  

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade – Cidade Universitária, 1649-014 Lisboa. E-mail: bruno.sacramento@yahoo.com

 

RESUMO

Este trabalho trata essencialmente da relação entre os direitos fundamentais, o controle de constitucionalidade e o princípio democrático no âmbito dos chamados desacordos morais razoáveis. Os limites entre a competência legislativa e a judicial no âmbito dos desacordos são problematizados a partir de um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro que analisou a constitucionalidade do crime de aborto com base numa ponderação inspirada na teoria principialista dos direitos fundamentais, de Robert Alexy. Sustenta-se que é possível buscar o equilíbrio nessa relação por meio da teoria dos princípios e do reconhecimento de um espaço de discricionariedade legislativa. Para isso, serão associadas algumas ideias da teoria principialista, da teoria alexyana da representação argumentativa e da justificação pública.

 

Palavras-Chave: Controle de constitucionalidade * desacordos razoáveis * representação argumentativa * discricionariedade legislativa * justificação pública.

 

ABSTRACT

This paper deals essentially with the relationship between fundamental rights, judicial review and the democratic principle in the context of so-called reasonable disagreements. The limits between legislative and judicial competence in the scope of the disagreements are problematized from a case judged by the Brazilian Federal Supreme Court that analyzed the constitutionality of the crime of abortion based on a balancing inspired by the principles theory of constitutional rights, by Robert Alexy. It is argued in this paper that it is possible to seek balance in this relationship through the theory of principles and the recognition of a space of legislative discretion. To this end, some ideas of the principles theory, of the Alexy’s theory of the argumentative representation and of the public justification will be associated.

 

Keywords: Judicial review * reasonable disagreements * argumentative representation * legislative discretion * public justification.

 

Sumário

Introdução; 1. A teoria principialista dos direitos fundamentais de Robert Alexy e a decisão do Habeas Corpus n.º 124.306 – STF; 2. Fiscalização de constitucionalidade e legitimidade democrática; 2.1. Robert Alexy e a teoria da representação argumentativa; 2.2. Os desacordos morais razoáveis e a representação argumentativa; 3. As limitações ao Estado judicial na teoria alexyana e os desacordos morais razoáveis; 3.1. Os princípios formais e a teoria das discricionariedades legislativas; 3.2. Uma lacuna sobre os desacordos morais razoáveis?; 4. Desacordos morais razoáveis, teoria dos princípios e discricionariedade legislativa;4.1. A fiscalização de constitucionalidade entre o desacordo moral e o desacordo jurídico; 4.2. Desacordo moral, insegurança normativa e os limites epistêmicos da ponderação; 4.3. Os limites da jurisdição constitucional e da discricionariedade epistêmica normativa. Os limites entre o seguro e o inseguro e o filtro da justificação pública (teoria da convergência); 4.4. Fundamentos da discricionariedade nos desacordos morais razoáveis: o princípio formal da competência decisória do legislador; 4.5. Os desacordos morais razoáveis, a fórmula do peso e a discricionariedade legislativa; 5. Conclusão.

 

Introdução 

Em 7 de novembro de 2011, na Universidade de Harvard, o ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro LUÍS ROBERTO BARROSO debatia com o professor MARK TUSHNET sobre papel do Poder Judiciário e das cortes supremas nas democracias. Naquela ocasião, ambos assumiram posições pessoais favoráveis à liberação do aborto. Contudo, enquanto para TUSHNET essa escolha caberia ao povo, que com o tempo acabaria adotando a opção correta por meio de seus representantes, para BARROSO o Poder Legislativo teria uma preferência, mas se não agisse, a atribuição seria transferida ao Judiciário1. Em 2015, BARROSO defendeu que, nesses casos, as supremas cortes possuem um papel de “vanguarda iluminista, de forma a “empurrar a história quando ela trava2Em julgamento concluído em 29 de novembro de 2016, num Habeas Corpus3 impetrado por médicos que eram responsáveis por uma clínica clandestina de aborto, ainda que o remédio constitucional não preenchesse os requisitos para ser conhecido, o ministro BARROSO, de fato, dá o empurrão na históriaproferindo voto no sentido de que o crime de aborto é inconstitucional até os três meses de gestação, posição adotada de ofício e que foi vencedora na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal4.

A decisão gerou polêmica no que se refere à sua legitimidade e à sua metodologia.

Aliás, não poderia ser diferente. O crime de aborto está previsto no Código Penal brasileiro desde sua edição em 1940, norma que vem sendo aplicada normalmente desde então. Além disso, em razão da falta de consenso durante a assembleia constituinte, houve acordo para não incluir na Constituição de 1988 uma regra que expressamente permitisse ou proibisse o aborto, deixando a matéria para a legislação infraconstitucional5. Na constituinte brasileira, assim como ainda hoje no país e em grande parte do mundo, trata-se de uma questão extremamente divisiva, em razão de diferentes concepções morais, filosóficas, políticas ou religiosas sobre o tema6.

Se a sociedade brasileira é extremamente dividida, se nunca houve maioria suficiente para revogar o tipo penal, se os constituintes de 1988 não quiseram efetivamente decidir a questão, é aceitável que, com base na interpretação de princípios constitucionais e em defesa dos direitos fundamentais da mãe, o Poder Judiciário sobreponha sua visão sobre aquela que até agora prevaleceu na sociedade?

E a dúvida se mantém independentemente do mérito. Se a parcela da sociedade favorável ao aborto obtiver a maioria suficiente para editar uma lei revogando o crime de aborto, poderá o Judiciário intervir, declarando-a inconstitucional, e com isso manter o delito em função da defesa dos direitos fundamentais do nascituro?7 Em suma, pode a decisão de liberar ou proibir o aborto ficar unicamente a cargo da Justiça?

O problema, no entanto, pode ser colocado sob outra perspectiva. Como questiona o próprio ministro BARROSO ao comentar o HC 124.306, “se o juiz está convencido”, por diversos fundamentos objetivos e racionais de que criminalizar o aborto no primeiro trimestre viola o direito fundamental da mulher, o que ele deve fazer? Deve privilegiar o “argumento formal de que a competência é do Congresso”em detrimento do“argumento substantivo”?8. E – acrescenta-se – na situação oposta, se estiver convencido de que uma eventual norma descriminalizante viola os direitos fundamentais do nascituro? Num e noutro caso, deve decidir o mérito da questão, como defendeu e fez o ministro BARROSO, ou deve deixar para o Congresso, como defendeu TUSHNET?

Algumas decisões das cortes constitucionais expõem claramente a tensão existente entre direitos fundamentais e democracia. Nesses temas, comumente polêmicos e divisivos, como o aborto, a pena de morte, a eutanásia, a descriminalização de drogas leves – os chamados desacordos morais razoáveis– o problema ganha especial relevo e enseja a reflexão sobre os limites de atuação dos tribunais e a legitimidade de suas decisões num Estado de direito democrático e pluralista.

Além da legitimidade, a decisão é um ótimo exemplo para reflexão sobre a metodologia utilizada pela jurisdição constitucional nas decisões envolvendo direitos fundamentais. Ora, se o tipo penal do aborto é aplicado normalmente desde 1940, inclusive após a promulgação da Constituição de 1988, como pode, da noite para o dia, tornar-se inconstitucional com base na aplicação de princípios?

A metodologia utilizada por BARROSO em seu voto proferido no HC 124.306 é a preconizada pela teoria principialista dos direitos fundamentais, de Robert ALEXY9. Os direitos fundamentais são vistos essencialmente como princípios e, em caso de eventual colisão entre eles, a solução se dá por meio de uma ponderação regida pelo princípio da proporcionalidade. No caso concreto que resultou na inconstitucionalidade, em síntese, o ministro BARROSO considerou que havia uma colisão: de um lado, o direito à vida do nascituro, e de outro, diversos direitos sexuais da mulher e sua autonomia, princípio este extraído da norma prevista no inciso III, do artigo 1, da Constituição brasileira – a dignidade da pessoa humana.

Nessas matérias, em que há na sociedade um profundo desacordo, com argumentos convincentes de ambos os lados, a metodologia alexyana não permitiria que o Judiciário chegasse a qualquer resultado, especialmente quando as decisões são baseadas em princípios extremamente abstratos como a dignidade da pessoa humana? Haveria, ao menos nesses casos, um excesso de poder capaz de substituir o Estado legislativo pelo Estado judicial?

O objeto do trabalho é analisar esses problemas que envolvem a relação entre direitos fundamentais, controle de constitucionalidade e o princípio democrático, especialmente no âmbito dos desacordos morais razoáveis. Sustenta-se que é possível buscar o equilíbrio nessa relação por meio da teoria dos princípios e do reconhecimento de um espaço de discricionariedade legislativa. Para isso, serão associadas algumas ideias da teoria principialista, da teoria alexyana da representação argumentativa e da justificação pública no âmbito da teoria da convergência.

 

1. A teoria principialista dos direitos fundamentais de Robert Alexy e a decisão do Habeas Corpus n.º 124.306 – STF

A teoria dos direitos fundamentais de ALEXY tem como principal pilar a teoria dos princípios, baseada no pensamento de DWORKIN10. Defende-se a existência de uma separação forte entre regras e princípios em função da diferente estrutura lógica das espécies normativas. As regras aplicariam-se na lógica do tudo ou nada (all-or-nothing fashion), ou são válidas e aplicam-se ao caso ou são consideradas inválidas, enquanto que os princípios seriam meras razões prima facie, que podem não prevalecer em função do maior peso ou importância de outro princípio diante das circusntâncias de um caso concreto.

ALEXY desenvolve as lições de DWORKIN, introduz a ideia de que os princípios são mandamentos de otimização e utiliza a teoria dos princípios como base de sua teoria dos direitos fundamentais. Para o autor, assim, diferentemente das regras, os princípios são normas que se aplicam de forma gradual e ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas presentes no caso. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelas normas colidentes11.

As diferenças também se revelariam marcantes nos casos de conflito ou colisão12. Em caso de conflito envolvendo regras, que ocorre na dimensão da validade, ou é incluída uma cláusula de exceção em razão de outra regra ou mesmo de um princípio, ou ela é considerada inválida, sendo retirada do ordenamento jurídico. Os princípios, no entanto, por ordenarem que algo seja realizado na maior medida possível, frequentemente colidem com outros princípios. Nesses casos, a solução da colisão e a otimização ocorrem por meio de uma ponderação, quando se definirá o princípio que irá prevalecer no caso concreto, sem que haja declaração de invalidade daquele que for preterido. Nessa linha, em oposição às regras - aplicadas por subsunção -, a ponderação seria a forma de aplicação dos princípios13.

A ponderação, que expressa a otimização em relação às possibilidades jurídicas, é regida pelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito – terceiro subprincípio do princípio da proporcionalidade14. Seu significado seria idêntico à lei da ponderação: “Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”15.

A ponderação, dessa forma, é um meio comparativo e otimizante dos princípios colidentes no que se refere às possibilidades jurídicas, estabelecendo uma espécie de concordância prática16 entre eles e afastando, porque desproporcionais, as decisões que não os concretizem de forma ótima. Essa operação jurídica comparativa pode ser racionalmente explicada por meio da fórmula do peso.

ALEXY tenta, dessa forma, racionalizar ao máximo a ponderação, criando uma fórmula aritmética que, em sua versão simplificada, possui a seguinte configuração:

 

 

Essa fórmula apenas representa os argumentos utilizados na ponderação17. O Wij representa o peso concreto de um princípio (Pi) em relação com outro princípio em colisão (Pj), que será o cociente dos demais fatores: Ii, que representa a intensidade da interferência com Pi, e Ij, que representa a importância de satisfazer o princípio em colisão Pj, além de Wi e Wj, que representam o peso abstrato dos princípios em colisão18.

A já referida decisão do HC 124.306 obedeceu, em linhas gerais, a metodologia alexyana. Diante da situação fática – interrupção da gravidez - e da incidência de diversos princípios de direitos fundamentais, apreciou a constitucionalidade do ato normativo estatal que criminaliza o aborto com base numa ponderação regida pelo princípio da proporcionalidade. Primeiro, aplicou o teste da proporcionalidade, de acordo com os três subprincípios. Considerou que a medida possui duvidosa adequação para proteger a vida do nascituro, pois não seria capaz de produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país. Considerou não se mostrar uma medida necessária, porquanto o Estado poderia evitar a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos, como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em situação adversa. Por fim, no que se refere à proporcionalidade em sentido estrito, realizou a ponderação entre o direito fundamental à vida do nascituro e diversos direitos fundamentais das mulheres, como autonomia, direitos sexuais e reprodutivos, integridade psíquica e física, e a saúde. Entendeu que até os três meses de gestação as restrições que a medida impõe aos direitos fundamentais das mulheres não são compensadas pela proteção que garante ao direito à vida do nascituro, razão pela qual a medida seria desproporcional e, portanto, inconstitucional.

Embora algumas pequenas questões possam ser levantadas19, de um modo geral, a decisão obedece à metodologia básica da teoria principialista e resolve um dos temas mais controvertidos na sociedade, declarando – ainda que com efeitos interpartes - a inconstitucionalidade da norma penal com base em princípios constitucionais. Alguns aspectos problemáticos mais específicos serão analisados na sequência do trabalho. Por ora, importa saber se uma decisão como essa se legitima democraticamente, tema que é objeto do próximo tópico.

 

2. Fiscalização de constitucionalidade e legitimidade democrática

2.1. Robert Alexy e a teoria da representação argumentativa

A possibilidade de uma Corte Constitucional, órgão sem legitimação democrática, anular determinada opção legislativa dos representantes do povo em nome dos direitos fundamentais é um clássico problema da teoria constitucional.

A teoria alexyana, que considera os direitos fundamentais essencialmente como princípios que devem ser otimizados e sua metodologia que exige, na prática, uma ponderação com base no princípio da proporcionalidade, parece colocar esse problema em maior evidência. Como se viu na decisão do aborto, o raciocínio jurídico utilizado não dá relevância à interpretação do tipo penal, ao seu histórico, ao fato de a opção dos constituintes de 1988 tenha sido a de não regular expressamente a matéria e ao fato de que o entendimento no sentido da inconstitucionalidade da norma penal não tem prevalecido na jurisprudência. Como aponta MATTIAS KUMM, argumentos relativos ao texto legal, à história e aos precedentes têm um papel modesto nessa sistemática20.

Nesse contexto, o problema da legitimidade democrática das decisões judiciais que utilizam essa metodologia na fiscalização de constitucionalidade também mereceu atenção de ROBERT ALEXY. Para o autor, é possível reconciliar jurisdição constitucional e democracia e para isso apresenta a teoria da representação argumentativa21.

A ideia central do autor é a de que, na base da ponderação, está uma forma de argumentar que é racional e que, inclusive, pode ser explicitada pela fórmula do peso. A jurisdição constitucional que cumpre essa forma de argumentar, no entanto, só satisfaz às exigências da legitimação democrática se ela consegue ser uma representação argumentativa do povo.

A premissa é a de que a jurisdição constitucional é um exercício de poder estatal e, num Estado democrático, no qual todo poder emana do povo, a jurisdição constitucional só se legitima se for compatível com a democracia. O exercício do poder estatal pelos parlamentares é legítimo porque representam o povo de forma democrática, por ele são eleitos e controlados, tendo em conta a possibilidade de não os reeleger. Os juízes do tribunal constitucional não são eleitos, nem controlados pelo povo, por isso a única forma de compreender a jurisdição constitucional como representação do povo é pelo conceito-chave de representação argumentativa.

Para ALEXY, a democracia baseada apenas em eleições e regra da maioria é um modelo puramente decisionista. Contudo, um modelo adequado de democracia deveria abarcar também o argumento, institucionalizar o discurso como meio de tomada de decisão pública, o que corresponde à democracia deliberativa. Nessa linha, a representação do povo pelo parlamento é volitiva (ou decisionista) e argumentativa (ou discursiva)22. Já a do tribunal, é puramente argumentativa23.

O autor alemão prossegue levantando uma possível objeção, mencionando que a ideia de representação argumentativa pode ser criticada sob a alegação de que tudo não passa de uma overidealization24 e uma fantasia, e que o tribunal pode simplesmente declarar cada argumento como um argumento que representa o povo, não havendo limites e controle. ALEXY refuta as objeções. A jurisdição constitucional, como argumento, não admitiria tudo, pois é possível distinguir argumentos jurídico-constitucionais bons de ruins, ou melhores de piores. A fundamentação racional permite a objetividade suficiente para que se controle a plausibilidade dos argumentos. Essa plausibilidade, entretanto, seria suficiente para a deliberação ou reflexão, mas não para representação, pois esta não prescinde de um número suficiente de cidadãos que aceite esses argumentos como corretos. A representação argumentativa exigiria, então, o preenchimento de duas condições: (i) a existência de argumentos sólidos ou corretos e (ii) a existência de pessoas racionais capazes e dispostas a aceitar os argumentos válidos ou corretos porque eles são válidos ou corretos25.

 

2.2. Os desacordos morais razoáveis e a representação argumentativa

KUMM26 contesta parte das ideias de ALEXY, questionando se devemos acreditar que essas condições são possíveis no mundo real. Na verdade, nada garante que as soluções dos tribunais – inclusive as realizadas por meio da metodologia alexyana – serão geralmente corretas e tampouco que as pessoas racionais, com o tempo, concordarão que a solução é a mais correta. Nesse sentido, o grande problema é a onipresença dos chamados desacordos razoáveis.

Como alerta WALDRON em sua oposição ao judicial review27, em nossas sociedades pluralistas, pessoas de boa-fé, bem informadas e bem-intencionadas discordam profundamente sobre quais direitos possuem, seu conteúdo e seu alcance. Discordam sobre questões centrais que refletem escolhas maiores que qualquer sociedade moderna precisa enfrentar e que são o ponto focal da discordância moral e política, como aquelas envolvendo o aborto, a eutanásia, a pena de morte, os direitos de suspeitos de crimes, as pesquisas científicas sobre células-tronco embrionárias, entre outras28.

Apesar da crítica, KUMM sustenta que é possível aceitar a teoria da representação argumentativa de ALEXY se for feita uma distinção entre a solução correta num sentido político e num sentido constitucional29. Num sentido político - que se refere à solução mais justa ou eficiente para determinado problema - é muito comum haver desacordos. As pessoas buscam a decisão correta, mesmo que, a rigor, possam não concordar sobre qual é a melhor solução e sabem que terão que resolver a questão pelo procedimento majoritário. Já a decisão correta num sentido constitucional, não exige que o legislador encontre a solução ideal, a melhor entre aquelas possíveis, mas apenas que não escolha uma solução desarrazoada. O papel dos tribunais não seria, então, escolher uma das alternativas do desacordo razoável, mas trabalhar no delineamento das fronteiras do que é ou não razoável. Isso significa que, diante desses complexos casos, quando aplicam o teste de proporcionalidade, os tribunais deverão conceder certa deferência para o Legislativo. Essa deferência decorreria do necessário respeito ao processo democrático num mundo onde prevalecem os desacordos razoáveis.

Nesse sentido – o da correção constitucional -, conclui que é possível uma decisão correta e é possível que as pessoas, ao longo do tempo, aceitem essa decisão como constitucionalmente correta, reconhecendo-se, dessa forma, a representação argumentativa.

O problema da legitimação democrática das decisões da justiça constitucional que envolvem os desacordos morais razoáveis foi reconhecido pelo próprio ALEXY. Em recente publicação, repisa em linhas gerais os argumentos anteriormente utilizados para defesa da teoria da representação argumentativa, mas, segundo se pode inferir, passa a reconhecer que: (i) há casos em que não é possível distinguir argumentos constitucionais bons dos maus, melhores dos piores; (ii) há casos em que mais de uma resposta é correta ou discursivamente possível; (iii) esses casos se referem aos desacordos razoáveis.

Essas são as palavras de ROBERT ALEXY:


 

"A fiscalização da constitucionalidade como argumentação não permite tudo, pois, num número considerável de casos, é possível distinguir os argumentos constitucionais bons dos maus, e entre melhores e piores. Esta é uma questão teorético-argumentativa a que tentei responder através de uma teoria do discurso racional. Na verdade, a teoria do discurso racional não preclude o ‘desacordo razoável’. Preclude, porém, a noção de que todo o desacordo é razoável. Se todos os desacordos sobre direitos fossem razoáveis, o argumento de WALDRON contra a fiscalização da constitucionalidade, que é essencialmente baseado na existência de desacordo, seria, de fato, muito forte. Há, todavia, casos em que apenas uma resposta é discursivamente possível, e é, neste sentido, certo ou correta.(...) A existência de argumentos bons ou corretos é suficiente para a deliberação ou reflexão, mas não para a representação. Por esta razão, o nível ideal de argumentação e correção tem de ser conjugado com o nível real de aceitação efetiva (....)”(destaque nosso)30.

 

Nos desacordos razoáveis, não há uma resposta que possa se chamar de correta. Tendo em vista os direitos fundamentais presentes na Constituição brasileira, pode-se afirmar que permitir o aborto até a décima-segunda semana é a solução correta? Parece que essa é uma solução aceitável do ponto de vista constitucional, quiçá seja até a melhor no que se refere ao mérito31, mas igualmente seriam aceitáveis a que permite até a décima semana, a que permite sob a condição de que seja realizado o chamado aconselhamento dissuasivo, ou mesmo a que proíbe. Certamente, há inúmeros argumentos para defender quaisquer delas. Se assim for, como se tem alertado32, tratar-se-á de uma mera substituição de uma decisão aceitável sobre a qual muitos discordam, mas tomada pela maioria dos representantes do povo, por uma decisão aceitável tomada pela maioria dos juízes, pois a discordância, aliás, também tende a manter-se entre eles.

Também não há aceitação. Aqueles que, por suas convicções filosóficas, morais ou religiosas, são contrários ao aborto, jamais irão efetivamente aceitar a decisão. Da mesma forma, se a decisão fosse em sentido inverso. O que ocorre nessas situações é uma tolerância quando a decisão é tomada pelos órgãos representativos, cientes de que, embora se tenha garantido o exercício do direito de participar da decisão que a todos importa, seja por movimentos de apoio ou simplesmente pelo voto, sua posição foi derrotada pela maioria e de que, eventualmente, pode ser modificada em outro cenário político.

Dessa forma, a inevitável conclusão é a de que, exceto em situações excepcionais, em que a decisão da maioria extrapola o que pode ser identificado como desacordo razoável, as decisões sobre temas como esse, que em certa medida facilitadas pela metodologia alexyana, não se legitimam numa sociedade democrática, o que, como se viu, parece ter sido reconhecido pelo próprio ALEXY.

 

3. As limitações ao Estado judicial na teoria alexyana e os desacordos morais razoáveis

Como se anotou, a decisão do HC 124.306, em linhas gerais, segue a metodologia de ponderação alexyana. Entretanto, com base na própria teoria alexyana da representação argumentativa, considera-se que ela não se legitima democraticamente. É preciso identificar, então, por qual razão isso acontece.

Parece ser suficientemente claro que a teoria principialista dos direitos fundamentais pode garantir um amplo poder aos tribunais no exercício da revisão judicial da legislação. Há, todavia, alguns elementos em sua estrutura que servem de contenção, reduzindo o poder de fogo do tribunal otimizador e concretizador de direitos fundamentais.

Neste tópico, serão expostas as limitações ao poder judicial previstas na teoria principialista, questionando-se sobre uma eventual insuficiência no que se refere ao tratamento dado ao problema dos desacordos morais razoáveis.

 

3.1. Os princípios formais e a teoria das discricionariedades legislativas

Uma das clássicas críticas à teoria alexyana é a de que retiraria por completo a margem de liberdade de conformação do legislador33. Se os princípios são mandamentos de otimização que devem ser aplicados na maior medida possível e os direitos fundamentais são considerados princípios, então não restaria outra opção ao legislador a não ser concretizar esses direitos fundamentais de forma ótima, no ponto máximo, e isso tudo levando em conta todos os direitos fundamentais e em todas as possíveis hipóteses de conflito.

Somando-se a isso o exercício de um intenso controle de constitucionalidade, com ampla margem de ponderação, a verdade é que nada restaria ao legislador. Todas as verdadeiras decisões seriam tomadas pelos tribunais, com base na constituição, que sobre tudo já disporia, bastando-se, então, convocar o tribunal para dotar de validade o conteúdo normativo da constituição, o que levaria a uma diminuição considerável da importância do processo democrático34.

ALEXY, em resposta, defende que não há esse aniquilamento do papel do legislador tendo em vista que a teoria dos princípios está conectada com uma teoria da discricionariedade ou deferência ao legislador35. O reconhecimento dos princípios formais, ou procedimentais – especialmente o da competência decisória do legislador36– serviria como um contrapeso aos princípios materiais e, segundo o autor, garantiria um modelo com uma adequada teoria da discricionariedade legislativa, cujo fundamento seria a fórmula do peso37. Nessa linha, seria dever de um tribunal constitucional respeitar essa discricionariedade, o que conduziria a uma redução da intensidade com que a fiscalização da constitucionalidade interfere com o princípio da democracia38.

Assim, são reconhecidos espaços decisórios ao legislador por meio da (i) discricionariedade estrutural e da (ii) discricionariedade epistêmica.

A discricionariedade estrutural ou material é tudo aquilo que as normas constitucionais nem obrigam, nem proíbem. Ela se divide em discricionariedade para definir objetivos, para definir meios, e para sopesar39. O que, em função das normas constitucionais, não está proibido ou ordenado, está permitido. Segundo ALEXY, ela é menos problemática, pois coincide com aquilo que definitivamente foi deixado pela constituição à liberdade do legislador40. Na ponderação, a indicação de que há uma discricionariedade estrutural ocorre em caso de empate entre os princípios conflitantes. Na aplicação da fórmula do peso, ocorre quando o cociente Wij é igual a 1.

A discricionariedade epistêmica ou cognitiva ocorre nas hipóteses de incerteza empírica e incerteza normativa. Quando é incerto aquilo que é obrigatório, proibido ou facultado em razão dos direitos fundamentais, há discricionariedade epistêmica41. Ela está conectada com a segunda lei da ponderação42, segundo a qual quanto mais pesada for a intervenção em um direito fundamental, tanto maior terá que ser a certeza das premissas nas quais essa intervenção baseia-se. A confiabilidade nos pressupostos empíricos e normativos é representada pelas variáveis Re e Rn nos dois lados da equação, conforme a última versão da fórmula do peso, a chamada fórmula do peso completa e refinada43. Segundo demonstra, as variáveis são capazes de garantir discricionariedade ao legislador44 45.

 

3.2. Uma lacuna sobre os desacordos morais razoáveis?

Desde a publicação original da obra Teoria dos Direitos Fundamentais em 1985, a teoria alexyana tem influenciado decisivamente o pensamento jurídico contemporâneo46. O princípio da proporcionalidade como um parâmetro de exame e controle de constitucionalidade dos direitos fundamentais propagou-se por diversos ordenamentos jurídicos e tem tido um papel marcante na jurisprudência de inúmeros tribunais constitucionais, chegando-se a considerá-lo como um elemento do constitucionalismo global, um princípio universal47.

No entanto, se a teoria dos princípios alcançou um grande desenvolvimento teórico no que se refere aos direitos fundamentais e princípios materiais, não houve o correspondente acompanhamento no que se refere aos princípios formais e a teoria das discricionariedades. Apesar de fazer referência aos princípios formais na versão original de 1985, não passava de uma ideia embrionária48 e foi só no posfácio de 2003 que ALEXY dispensou maior atenção ao assunto, sem ainda deixar claro, todavia, alguns pontos fundamentais, como a própria natureza de princípio e seu peso. Foi apenas em 2014, quase trinta anos depois, que apresentou novos desenvolvimentos, promovendo significativas modificações metodológicas, inclusive na sua fórmula do peso. Para MARTIN BOROWSKI, um dos teóricos da teoria dos princípios, os princípios formais são o elemento da teoria que permaneceu como uma peça estranha e enigmática e que mesmo os seus defensores estão de acordo em apenas poucos postulados49. Embora alguns pontos tenham sido melhor esclarecidos no último trabalho de ALEXY, muitas questões permanecem em aberto50. Um maior desenvolvimento com relação ao papel e ao método de aplicação dos princípios formais é fundamental para garantir o equilíbrio capaz de evitar que da teoria dos princípios decorra um modelo de Estado judicial51.

Nessa linha, um dos pontos que permanecemsem maiores desenvolvimentos é o problema dos limites da atuação da jurisdição constitucional nos desacordos razoáveis. Ainda que já se tenha superficialmente cogitado a possibilidade de utilização da discricionariedade epistêmica para acomodar o problema dos desacordos52, com a aparente concordância de ALEXY53, o tema não recebeu tratamento específico.

Dessa forma, nas próximas linhas, procura-se abordar diretamente o problema do desacordo moral e o controle de constitucionalidade no âmbito da teoria dos princípios. Defende-se que o problema dos desacordos, de fato, pode ser equacionado com base na discricionariedade epistêmica normativa, cujos limites podem ser precisados por meio da ideia de justificação pública, com base na teoria da convergência.

 

4. Desacordos morais razoáveis, teoria dos princípios e discricionariedade legislativa

4.1. A fiscalização de constitucionalidade entre o desacordo moral e o desacordo jurídico

O primeiro passo para se compreender o problema do desacordo razoável é verificar como ele se apresenta no exercício do controle de constitucionalidade. Nesse contexto, é possível identificar as diferentes perspectivas em que ele se manifesta perante o parlamento e a corte constitucional54.

Para isso, é necessário primeiro clarificar os diferentes planos ou dimensões do desacordo. NOVAIS55, em contraponto às já mencionadas ideias de WALDRON56, destaca que o desacordo não pode ser resumido apenas ao “desacordo político sobre o conteúdo e o alcance particular de um direito”. Segundo o autor, ele se desenvolve em sucessivos planos: há o desacordo (político, filosófico ou moral) sobre a própria existência do direito; depois, sobre o seu conteúdo originário (o que está prima facie incluído em seu âmbito de proteção); sobre seu alcance, considerando a previsão de colisão com outros bens, interesses e direitos; e, ainda, sobre a legítima limitabilidade concreta e individual do direito. Por fim – e aqui é o ponto mais importante -, considerando a consagração dos direitos como direitos fundamentais garantidos na constituição, o desacordo possui uma outra dimensão que é transversal aos quatro planos referidos: a dimensão jurídica. Nessa linha, o desacordo deixa de ser exclusivamente moral, de busca e decisão política sobre a solução mais adequada, sobre o bem, a justiça ou a sociedade bem ordenada, e passa a adquirir também uma natureza jurídica, incidindo sobre a eventual existência de violações aos direitos fundamentais enquanto garantias jurídicas.

A identificação desses planos permite compreender que, diante da profunda e persistente divergência moral, política e filosófica na sociedade sobre a decisão correta em temas específicos que envolvem os direitos fundamentais, como se viu, cabe ao parlamento eleito, por meio do voto da maioria, a arbitragem provisória desse desacordo, adotando uma entre as possíveis soluções57.

Já à jurisdição constitucional, cabe o papel de verificar se a solução encontrada pelo legislador está de acordo com os parâmetros da constituição. Naqueles casos excepcionais em que o legislador constituinte já disciplinou a matéria por meio de uma regra, a atuação do tribunal não suscita maiores problemas58. Nos outros, porém, o desacordo persiste, e o que importará à jurisdição constitucional é sua dimensão jurídica, se a opção legislativa viola ou não os princípios constitucionais59, normalmente, direitos fundamentais.

O grande problema, porém, é a dificuldade de separação entre essas perspectivas, na medida em que, na análise da inconstitucionalidade de determinada opção legislativa como, por exemplo, a criminalização do aborto, será necessário determinar as consequências dos princípios constitucionais extraídos de fórmulas abstratas, como o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. E a profunda divergência moral, filosófica e religiosa existente sobre a natureza do embrião, se pode ou não ser considerado pessoa humana60, leva à profunda divergência se deve merecer ou não a mesma proteção por parte daqueles princípios. Nessa linha, para solucionar o desacordo jurídico (constitucionalidade ou inconstitucionalidade), o tribunal acabará arbitrando a divergência moral, escolhendo um dos lados.

Na utilização da metodologia alexyana, essa situação fica ainda mais clara. A solução do desacordo jurídico passa necessariamente pela ponderação entre os princípios constitucionais em colisão, que deverão ser otimizados. Com base nessa estrutura de argumentação jurídica, o tribunal decidirá a questão, justificando se a solução encontrada pelo legislador é ou não proporcional e, portanto, constitucional.

Nessa sistemática, o resultado dependerá do peso concreto dos princípios diante das circunstâncias do caso. Esse peso, por sua vez, dependerá dos pesos abstratos de cada princípio, da intensidade da intervenção sobre um dos princípios e da importância da satisfação do outro. Esses elementos é que vão determinar qual dos princípios terá prioridade. Acontece que a classificação de cada uma dessas variáveis em, por exemplo, leve ou grave, para inserção na fórmula do peso, será realizada fundamentalmente com base em argumentos morais61, o que corresponderá à justificação externa da decisão. Logo, as diferentes concepções morais refletem diretamente sobre o conteúdo e o peso dos princípios que são otimizados na ponderação e, portanto, no seu resultado no sentido da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade da norma fiscalizada.

 

4.2. Desacordo moral, insegurança normativa e os limites epistêmicos da ponderação

A ponderação é uma forma de argumentação racional que tem como estrutura formal um esquema matemático - a fórmula do peso -, assim como a subsunção possui em sua estrutura formal um esquema dedutivo62. Num e noutro caso, contudo, o cumprimento da estrutura formal é uma condição necessária, mas não suficiente para garantir a racionalidade da decisão63. Esta depende do cumprimento dessa estrutura, o que corresponde à justificação interna da decisão, mas também da racionalidade das premissas adotadas, o que se refere à sua justificação externa64.

A justificação externa preocupa-se com a verdade das premissas, com as razões atribuídas às variáveis na fórmula do peso65. Para que haja racionalidade na ponderação, deve-se ter segurança sobre as premissas que justificam o grau de afetação e a importância de satisfação dos princípios em colisão. Há situações, no entanto, que essa segurança não está presente. Nesses casos, estamos diante dos chamados limites epistêmicos da ponderação, limites do conhecimento humano e da possibilidade de se emitir juízos racionais sobre o que está mandado, proibido ou permitido66 em função dos direitos fundamentais.

A insegurança decorre da divergência sobre as premissas empíricas ou normativas. É esta última que está ligada ao caso dos desacordos razoáveis. Ela se manifesta em função da divergência sobre os pesos que cada um dos direitos fundamentais possui em determinado caso e aquilo que é possível deduzir do que a constituição expressamente manda, proíbe ou permite67.

Como se viu, esse é o típico caso dos desacordos morais razoáveis. Normalmente, as constituições não os resolvem definitivamente. Tais assuntos, em regra, são regulados por meio de princípios abstratos em razão da falta de consenso e justamente para que se possa acomodar as diferentes concepções políticas, morais, religiosas e filosóficas do que é o correto68. Como se anotou, o aborto no Brasil é um exemplo claro. Pode-se afirmar, com segurança, que as normas extraídas dos textos que apenas preveem que é garantido o direito a vida (artigo 5º da Constituição Federal) e que a República Federativa do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1 da Constituição Federal) solucionam o problema de saber se a interrupção da gravidez, ou mesmo a eutanásia, devem ou não ser permitidas?

A rigor, a solução dos desacordos depende muito menos da declaração de direitos69 do que das concepções morais e filosóficas adotadas e utilizadas para defesa de certas concepções de justiça e que são reportadas às fórmulas constitucionais abstratas, como a própria dignidade da pessoa humana. No HC 124.306, a solução foi construída por meio da concepção que atribui à fórmula da dignidade da pessoa humana um princípio de autonomia que garante à mulher o direito à disposição incondicionada do seu corpo, o que conduz ao direito de interromper a gravidez. Trata-se de uma concepção aceitável. Mas diante dessa complexa questão, igualmente poderia ter sido atribuída à dignidade da pessoa humana outras concepções aceitáveis que ensejariam a proteção da vida do nascituro, conduzindo à proibição do aborto70. Aliás, diversos países, cujas constituições garantem a dignidade humana e o direito à vida, adotam uma dessas duas soluções.

Dessa forma, fica claro que nos desacordos diversas soluções são discursivamente possíveis considerando os termos da constituição71, o que, na prática da ponderação alexyana, significa a possibilidade discursiva de se atribuir diferentes valores às variáveis na fórmula do peso, possibilitando fundamentar diversos resultados em função dos argumentos normativos utilizados, sendo precisamente isso o que configura a insegurança normativa72.

Nessas hipóteses, a ponderação acaba não consistindo num procedimento racional de argumentação jurídica, porquanto não representa o que se pode extrair com segurança sobre o que a constituição manda, proíbe ou permite, mas apenas uma escolha do que é bom, ou melhor, dentre as opções constitucionalmente possíveis. Nas sociedades democráticas, porém, essa tarefa cabe ao povo. Essa é a razão pela qual a existência da divergência razoável capaz de gerar insegurança ou incerteza sobre as premissas é razão para a atribuição de um espaço de discricionariedade legislativa, a discricionariedade epistêmica normativa.

 

4.3. Os limites da jurisdição constitucional e da discricionariedade epistêmica normativa. Os limites entre o seguro e o inseguro e o filtro da justificação pública (teoria da convergência)

O reconhecimento de uma discricionariedade epistêmica normativa em função de um desacordo moral acaba, em última análise, tendo o significado de garantir um espaço de decisão ao legislador em função da profunda divergência moral existente na sociedade. Isso não pode significar, no entanto, que o legislador é livre para impor restrições aos direitos fundamentais, como se possuísse o monopólio do que é correto e constitucionalmente adequado. Há que se ter claro, então, a dimensão dessa discricionariedade, o que significa os limites entre o que pode decidir o parlamento e o que pode decidir o tribunal por meio de uma declaração de inconstitucionalidade. Quando se pode julgar que há segurança normativa e por quais argumentos, afinal, pode o tribunal anular uma opção legislativa por inconstitucionalidade em matérias que envolvam desacordos?

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que não é necessariamente problemática a utilização de argumentos morais na justificação de uma decisão judicial, ainda mais em casos envolvendo os desacordos que, sem dúvida, podem ser classificados entre aqueles assim chamados casos difíceis, em que não há uma resposta pronta no ordenamento e exige-se uma atividade mais criativa do juiz73. Aliás, aponta-se que a estrutura formal do princípio da proporcionalidade tem justamente o mérito de deixar clara a argumentação moral74. O problema, então, não é a utilização de argumentos morais para justificar a decisão e as consequências e pesos de cada princípio, mas a atuação em um cenário de incerteza em que o sentido e o peso dado aos princípios em colisão não signifique mais do que a escolha de um dos lados num cenário de profunda divisão.

É nesse contexto que ganha força a ideia da justificação pública como filtro limitador dos argumentos utilizados pela jurisdição constitucional no exercício do controle de constitucionalidade75.

Nesse contexto, seria possível defender a ideia da justificação pública de acordo com uma teoria da independência, exigindo-se que as consequências normativas extraídas dos princípios divisivos sejam razões comuns, ou seja, independentes ou autônomas de doutrinas abrangentes, concepções de bem ou pressupostos não partilhados76, aproximando-se da ideia rawlsiana de razão pública. No entanto, como ressalta COUTINHO77, tal ideia seria problemática, tendo em vista que, em determinadas situações, nenhuma justificação normativa poderia se desenvolver de forma independente. Seria o caso, por exemplo, do princípio da dignidade humana, “ora centrado na autonomia do sujeito, ora centrado na igualdade fundamental de todos na sua mera humanidade”, não sendo possível, portanto, atribuir “um conteúdo normativo nuclear ao mesmo princípio independentemente de tais concepções, a que correspondem doutrinas e pressupostos abrangentes, ora de matriz cristã, ora de matriz kantiana”. E como se viu, a partir de uma ou outra, são retiradas conclusões opostas com relação ao aborto, à eutanásia ou a procuração medicamente assistida.

Menores problemas, contudo, suscita a ideia da justificação pública no âmbito de uma teoria da convergência78. Nesse caso, não são exigidas as razões comuns e, portanto, a completa independência das teorias abrangentes. Exige-se que confluam razões diferentes, correspondentes às diversas concepções e doutrinas abrangentes, desde que acomodáveis no âmbito de um pluralismo razoável. Nessa linha, os argumentos deverão ser partilhados ou, no mínimo, aceitáveis por todos que fazem parte da comunidade, apesar da diversidade de concepções e doutrinas79.

Semelhante ideia é a defendida por NOVAIS ao tratar do princípio da dignidade da pessoa humana80. Diante do fato do pluralismo razoável, em que as diversas concepções compreensivas de caráter religioso, filosófico ou moral convivem em uma sociedade democrática e aberta, em que as pessoas de boa-fé, então, divergem do sentido do que seja uma vida boa e uma vida digna, a tentativa de “definição jurídica da dignidade da pessoa humana segundo os pressupostos próprios e particulares de uma única teoria compreensiva – seja a cristã, a kantiana, a utilitarista ou uma qualquer outra – não poderia produzir mais que perspectivas pessoais ou grupais, tão legítimas quanto as outras”, mas representaria uma perspectiva unilateral, uma “tentativa de oficialização estatal de uma dessas concepções” e a “imposição de mundividências, de projectos e concepções da vida boa aos outros que pensam de modo diverso”81. Desse modo, na justificação e delimitação do conteúdo do princípio constitucional da dignidade humana e na correspondente aplicação judicial do princípio aos casos concretos, deve-se em primeiro lugar verificar e relevar todas as diferentes teorias compreensivas que podem ser acomodadas dentro do pluralismo razoável. Em segundo lugar, no entanto, considerando-se um Estado de direito neutral perante essas mesmas teorias compreensivas, deve-se identificar quais são seus pontos convergentes, em que todos aqueles que perfilham aquelas teorias consideradas inseridas dentro de um pluralismo razoável possam rever-se, aceitar ou que não possam razoavelmente rejeitar, o que corresponderia ao conceito rawlsiano de consenso sobreposto. Nessa linha, o autor desenvolve um conteúdo negativo do princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, quando ele é considerado violado, mas levando em conta uma adesão consensualizada em torno das suas consequências jurídicas, exigência de um Estado de Direito pluralista e democrático. Levando em conta suas principais linhas de desenvolvimento – “respeito da humanidade intrínseca, garantia individual das possibilidades de desenvolvimento e de prosperidade como sujeito e reconhecimento de igual dignidade a todas as pessoas” -, reputa ser possível sua aplicação consensual no que se refere às pessoas nascidas, o que não ocorre no que se refere ao nascituro e, consequentemente, sobre as consequências jurídicas do princípio no que se refere a casos que envolvem o aborto e outros envolvendo a biomedicina e biotecnologia82 83.

Dessa forma, no âmbito dos desacordos razoáveis, o que se busca são zonas de convergência e zonas de divergência entre as diversas doutrinas e teorias na concretização de princípios constitucionais abstratos, o que corresponde a zonas em que há segurança ou insegurança normativa84.

Nesse contexto, para essa análise, só importam concepções que possam se acomodar no âmbito do pluralismo razoável85. Entre elas, podem ser identificadas zonas de maior ou menor convergência. Naquelas em que há uma completa convergência, pode-se falar em consenso sobreposto, o que corresponde, em linhas gerais, à completa segurança normativa, não havendo que se falar em dúvida ou em limites epistêmicos para fins de se identificar o que é proibido, permitido ou imposto em função dos princípios constitucionais (direitos fundamentais) em um caso concreto.

Essa reconstrução hipotética das divergentes ou convergentes consequências normativas extraídas dos princípios constitucionais em função das diversas teorias abrangentes86 é, portanto, essencial para determinação do nível de confiabilidade das premissas normativas, o que pode influenciar decisivamente na aplicação do princípio da proporcionalidade. Sua consideração é, aliás, decorrente das exigências da lei epistêmica da ponderação87 e, dentro da aplicação da fórmula do peso, é decisiva para a inclusão e definição da variável Rn. Nos desacordos razoáveis, quanto maior a divergência, maior a insegurança normativa, e menor a confiabilidade epistêmica nas premissas.

Tais conceitos são fundamentais também para definir os limites do Poder Legislativo e da jurisdição constitucional nos desacordos. Dentro daquilo que configura o desacordo razoável, onde tudo é discursivamente possível considerando os termos da constituição, há insegurança normativa88 capaz de gerar discricionariedade epistêmica ao legislador. Assim, o âmbito de atuação da jurisdição constitucional para fins de uma declaração de inconstitucionalidade se reduz, cabendo invalidar aquilo que extrapolar as fronteiras do pluralismo razoável89 com base nos consensos sobrepostos. Portanto, o limite da discricionariedade epistêmica normativa é o limite dos desacordos que se situam dentro do pluralismo razoável.

 

4.4. Fundamentos da discricionariedade nos desacordos morais razoáveis: o princípio formal da competência decisória do legislador

O equilíbrio na relação entre direitos fundamentais, controle de constitucionalidade e princípio democrático diante de casos que se configuram como desacordos morais razoáveis passa, necessariamente, pela análise do papel dos princípios formais, especialmente do princípio da competência decisória do legislador.

Como já referido, nos desacordos, o parlamento tomará uma decisão que inevitavelmente dividirá a sociedade. Alguma solução terá que ser dada. Ou a lei criminaliza o aborto ou não criminaliza. Com a morte assistida e as drogas leves é a mesma coisa. Independentemente de qual seja a solução, parte da sociedade não a aceitará como a mais correta, mas terá que conviver com ela em razão de que foi a adotada pela maioria do povo, até que seja eventualmente modificada. Nesses casos, a legitimidade democrática da decisão não decorre, então, da efetiva aceitação da decisão como correta, mas do voto e da decisão da maioria.

Já a legitimação da jurisdição constitucional, como se viu, decorre da representação essencialmente argumentativa, exigindo-se argumentos que possam ser reputados corretos e que as pessoas aceitem esses argumentos porque são corretos. Nos desacordos, como também se anotou, a profunda divergência moral ou filosófica impede a representação.

Em função do princípio democrático, portanto, os desacordos impactam de modo diferente na atuação do legislador eleito e na atuação da jurisdição constitucional, pois só desta última se exige a efetiva aceitação. Quanto maior e mais profunda for a divergência, menor será a existência de decisões reconhecidamente corretas e menor será sua legitimidade democrática.

Conforme ALEXY90, o princípio democrático confere um peso especial às decisões do parlamento. Exige, sobretudo, que o legislador democraticamente legitimado deve tomar tantas decisões importantes para a sociedade quanto seja possível. Refere-se à autoridade das decisões do parlamento e ao seu âmbito de competência. Além disso, tendo em conta sua natureza de princípio, trata-se de um mandamento de otimização, isto é, uma norma que exige que algo – nesse caso, a decisão do legislador democrático – seja realizado na maior medida possível, de acordo com as condições fáticas e jurídicas existentes.

Nessa linha, pelo que já se demonstrou, fica claro que nas concretas situações que revelem a existência de profundo desacordo moral e jurídico, o princípio democrático deve ser otimizado, ganhando mais peso a decisão do legislador legitimado pelo voto popular. Vale dizer, quanto maior for o desacordo, maior é a insegurança das premissas normativas constitucionais e, portanto, maior é a exigência de respeito à decisão legislativa.

Ao legislador, assim, é dada uma primazia para atuar nos cenários de incerteza normativa. O legislador deve tomar uma decisão que poderá restringir determinados direitos fundamentais em função da promoção de outros, ainda que num cenário de incerteza91 sobre qual é a melhor solução em razão do que determinam os princípios constitucionais. Nesse contexto, nos desacordos, é maior a incerteza e também o número de soluções juridicamente possíveis92. Ainda que estas possam ser muito diferentes, devem ser entendidas pelo Tribunal como numa relação de paridade93.

Se o princípio formal da competência decisória do legislador não for levado em conta, a opção legislativa tomada com base em determinada concepção sobre o que é melhor só será considerada constitucional quando coincidir exatamente com a concepção do tribunal. Essa situação equivaleria ao modelo que não confere qualquer autoridade à decisão do legislador democraticamente eleito94. A consideração do princípio formal da competência decisória do legislador exige, então, que prima facie sua decisão seja respeitada, só podendo ser desconsiderada diante de razões suficientes para afastá-la.

Assim, os princípios formais e, especialmente, o princípio da competência decisória do legislador, são um importante instrumento para delimitação das competências de ponderação e de tomada de decisão. Considerar apenas a existência de princípios materiais, levaria a uma solução extrema que corresponderia ao Estado judicial95.

Não é por outra razão que, embora com considerável atraso quando comparado aos princípios materiais, os princípios formais vêm recebendo maior atenção de ALEXY e dos demais estudiosos da teoria dos princípios, exercendo atualmente um papel fundamental na teoria de ponderação alexyana, inclusive com relação às variáveis que compõem a nova fórmula do peso.

 

4.5. Os desacordos morais razoáveis, a fórmula do peso e a discricionariedade legislativa

Ainda que haja muita discussão sobre a forma como os princípios formais devem ser incluídos na ponderação e na fórmula do peso, o modelo apresentado por ALEXY em seu último trabalho sobre o tema96 – o modelo epistêmico -parece resolver adequadamente o problema da discricionariedade legislativa nos desacordos.

O modelo epistêmico fundamenta-se em uma ponderação de segunda ordem, que é a responsável por incorporar a confiabilidade epistêmica na fórmula do peso, que é a ponderação de primeira ordem.

Como explica ALEXY, caso se admitam premissas abaixo do nível de certeza, a realização dos direitos fundamentais aumentaria se escolhidas as premissas mais favoráveis aos direitos fundamentais e, com isso, seria reduzida a discricionariedade legislativa97. Isto é, e para o que aqui nos interessa, diante da insegurança normativa existente nos desacordos morais razoáveis em função das diversas interpretações jurídicas possíveis dos princípios em colisão, simplesmente escolher aquela interpretação (premissa normativa) mais favorável a determinados direitos fundamentais, reduziria a discricionariedade legislativa, levando, comumente, a juízos de inconstitucionalidade. Dessa forma, os direitos fundamentais requerem não só uma otimização substancial, mas uma otimização epistêmica98.

Assim, segundo ALEXY, o ponto decisivo na ponderação de segunda ordem é que os direitos fundamentais como mandamentos epistêmicos de otimização (princípios materiais) colidem com o princípio formal do legislador democrático99. Essa ponderação ocorre num meta-nível100, onde o que importa é saber quais as variáveis e com que classe de escalas devem ser inseridas na fórmula do peso101. Como já referido102, há três cenários de confiabilidade na escala epistêmica: certeza, plausibilidade e não evidentemente falso. Esses cenários são condições de precedência: toda vez que o valor epistêmico de determinado princípio é certo, o princípio material (direito fundamental) tem precedência sobre o princípio formal, incluindo-se o número 20 (1) na fórmula, não influenciando em nada na ponderação de primeira ordem. Se, no entanto, o valor epistêmico do princípio é plausível ou não evidentemente falso, o princípio formal tem precedência e serão inseridos, respectivamente, os números 2-1(½) e 2-2(¼) na fórmula, tendo o poder de reduzir os valores substanciais e a importância dos princípios a que se referem na ponderação de primeira ordem. Assim, para o que nos importa, quanto maior o desacordo capaz de gerar insegurança normativa, maior será a redução da importância do princípio na ponderação.

A forma de como as variáveis Re e Rn podem efetivamente gerar discricionariedade legislativa nos casos de desacordo moral razoável pode ficar mais clara com a análise de um exemplo. Para isso, utilizamos mais uma vez a decisão sobre o aborto.

A leitura da decisão do Supremo Tribunal Federal (HC 124.306) permite concluir que o conflito principal foi estabelecido entre as normas da Constituição brasileira que garantem o direito à vida do nascituro (artigo 5º, caput) e a dignidade humana (autonomia) da mulher (inciso III do artigo 1). Para a análise da ponderação na fórmula do peso, consideraremos apenas essas duas normas103.

Na análise da proporcionalidade em sentido estrito realizada, buscou-se “verificar se as restrições aos direitos fundamentais das mulheres decorrentes da criminalização são ou não compensadas pelo direito à vida do feto”.

Assim, considerou-se que a criminalização do aborto “produz um grau elevado de restrição a direitos fundamentais das mulheres”. Portanto, grau de intensidade da interferência com Pi (Dignidade Humana – inciso III do artigo 1 – autonomia da mulher) elevado ou sério (Ii=4).

Entendeu-se, por outro lado, que “o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação avança e o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto”. A norma repressiva penal poderia ser considerada constitucional quando o feto já esteja mais desenvolvido, a partir dos três meses de gestação104. Diante disso, pode-se inferir que, após o primeiro trimestre, foi avaliado que o grau de importância de satisfazer o direito a vida é elevado, do que se conclui que até o primeiro trimestre, o grau de importância da satisfação de Pj (direito à vida do nascituro – artigo 5º, caput) seria médio ou moderado (Ij = 2).

Com base nos termos da decisão, pode-se entender ainda que o peso abstrato de ambos os princípios em colisão foi considerado elevado (Wi e Wj = 4). Tendo em vista que possuem o mesmo valor, eles se neutralizam105 e poderiam até ser desconsiderados.

Na decisão, não se fez referência ao nível de confiabilidade epistêmica empírica ou normativa, nem mesmo mencionou-se o nível de divergência existente nem relação aos princípios constitucionais utilizados que pudesse influenciar na ponderação realizada. Dessa forma, não se levou em conta a variável referente a confiabilidade epistêmica (Re e Rn).

Desse modo, pode-se entender que a ponderação considerou:

 

 

O resultado superior a 1 significa que teve prioridade o princípio da autonomia da mulher em face do direito à vida do nascituro nas circunstâncias de uma gestação até os três meses, o que determinou a inconstitucionalidade da norma penal repressiva. Esse modelo corresponde à formula do peso em sua versão básica, que só considera a dimensão material da ponderação106 e, portanto, não releva qualquer fator epistêmico.

Todavia, se atentarmos para os elementos da fórmula do peso completa e refinada107, os fatores epistêmicos (empíricos e normativos) também são considerados, inclusive separadamente. Assim, o exemplo pode ser refeito, com a inclusão das variáveis relativas à confiabilidade epistêmica.

Em primeiro lugar, julga-se que a questão envolvendo a confiabilidade nas premissas empíricas não possui qualquer papel na solução do caso, razão pela qual não há razão para incluir a variável Re108.

O mesmo não se pode afirmar sobre a confiabilidade nas premissas normativas. Sobre a dignidade da pessoa humana (da qual foi retirado o princípio da autonomia da mulher), no que refere às suas consequências normativas na discussão do aborto, como se viu, há uma grande divergência. Embora seja possível considerar que a criminalização do aborto implica uma elevada interferência com esse princípio, sem dúvida essa não é uma premissa que pode ser considerada como certa. Desse modo, na ponderação de segunda ordem entre esse princípio material e o princípio formal, há precedência deste último, do que resulta a necessidade de incluir na fórmula do peso a variável Rn. Pode-se julgar, então, que seja uma premissa plausível (Rn= ½).

No que se refere ao outro princípio em colisão, há grande divergência se o direito à vida realmente confere uma proteção jurídica plena ou ampla ao nascituro, ou seja, do mesmo modo que confere aos nascidos, dependendo das concepções filosóficas ou religiosas a respeito da vida. Parece haver consenso, entretanto, de que garante ao menos uma proteção moderada109 110 . Como a decisão levou em conta o nível de proteção consensual, há precedência do princípio material na ponderação de segunda ordem, devendo-se considerar o cenário epistêmico-normativo como certo (Rn = 1).

Assim, levando-se em conta esses elementos, tem-se:

 

 

Como se vê, a aplicação da variável R permitiu a diminuição da importância do princípio com menor convergência e segurança normativa, implicando um resultado igual a 1, o que garante a discricionariedade ao legislador111.

Com isso, é possível concluir que o modelo adotado por ALEXY é capaz de promover a otimização do princípio democrático, garantindo que quanto maior for a divergência e, portanto, a insegurança normativa sobre determinadas questões, maior seja a discricionariedade do legislador.

 

Conclusão

A persistência dos desacordos morais razoáveis nas sociedades democráticas e pluralistas contemporâneas tem sido utilizada atualmente como um dos principais argumentos por aqueles que contestam o judicial review (WALDRON), na medida em que não haveria vantagem em substituir a decisão da maioria implementada pelos parlamentos como representantes do povo pela decisão de uma maioria de juízes que não possuem essa credencial.

Uma decisão que substitua a opção legislativa acomodável num pluralismo razoável pela opção do tribunal por meio do controle de constitucionalidade não se legitima democraticamente. Com base na teoria da representação argumentativa (ALEXY), a jurisdição constitucional, como exercício de poder, só se legitima se for vista como representante argumentativa do povo, isto é, se for possível identificar argumentos corretos e as pessoas os aceitarem como corretos. Isso não acontece no âmbito dos desacordos morais razoáveis. Nessas matérias, só é possível considerar a existência de argumentos reconhecidamente corretos se a correção for num sentido constitucional (KUMM), o que garante o reconhecimento de um espaço de opções legislativas constitucionalmente válidas. Logo, o papel da jurisdição constitucional é justamente demarcar esses limites, que devem coincidir com os limites do pluralismo razoável.

A delimitação desse espaço pode ser construída com base na teoria principialista dos direitos fundamentais (ALEXY), por meio da discricionariedade epistêmica normativa. A existência do desacordo moral razoável acarreta o desacordo de natureza jurídica, possibilitando diversas soluções jurídicas discursivamente admissíveis sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um ato normativo em função dos princípios constitucionais (direitos fundamentais). Essa diversidade de alternativas, por sua vez, provoca a insegurança normativa, na medida que gera incerteza sobre o que é permitido, proibido ou imposto em razão dos direitos fundamentais num caso concreto. Em virtude do reconhecimento dos princípios formais ou procedimentais como verdadeiros princípios (mandamentos de otimização), especialmente o da competência decisória do legislador, quanto maior for o desacordo razoável e, portanto, a incerteza normativa, maior será discricionariedade a ser reconhecida ao parlamento. Sob pena das matérias permanecerem sem regulação, ao legislador é dado atuar no âmbito da incerteza normativa e empírica, e sua opção, ainda que divisiva, será legítima em função de suas credenciais democráticas. O tribunal, ao contrário, só pode rever essa opção se possuir suficiente segurança empírica e normativa para declarar uma inconstitucionalidade por meio de argumentos reconhecidamente corretos.

A correlação entre divergência e insegurança normativa, bem como entre convergência e segurança normativa, permite precisar os limites da discricionariedade epistêmica normativa em função dos desacordos razoáveis pela ideia da justificação pública no âmbito da teoria da convergência (REIS NOVAIS E PEREIRA COUTINHO). Nesse contexto, a existência de segurança normativa pode ser associada à possibilidade de se demonstrar discursivamente a convergência de consequências normativas extraídas dos princípios constitucionais pelas diversas doutrinas e teorias abrangentes que podem ser acomodadas dentro do pluralismo razoável.

O filtro da justificação pública no âmbito da teoria da convergência adapta-se ao modelo de ponderação alexyana. A estrutura formal de argumentação consistente na fórmula do peso completa e refinada possui variáveis relativas à confiabilidade nas premissas empíricas (Re) e normativas (Rn). A justificação externa da decisão no que se refere à inclusão e a escolha do número na escala da variável Rn nos desacordos razoáveis, dependerá justamente da reconstrução hipotética das diferentes possíveis conclusões extraídas dos princípios constitucionais em função das diferentes doutrinas abrangentes, demonstrando-se a maior ou menor divergência que será capaz de fundamentar o nível de confiabilidade das premissas normativas em certo, plausível e não evidentemente falso.

Considerando essas precisões sobre a ideia de justificação pública, o modelo alexyano de ponderação de primeira e segunda ordem é capaz de gerar a discricionariedade legislativa e equilibrar adequadamente a relação entre direitos fundamentais, controle de constitucionalidade e princípio democrático no âmbito dos desacordos morais razoáveis.

Tudo o que é aqui colocado, por consequência, vai de encontro à metodologia utilizada na decisão sobre o aborto (HC 124.306) e ao papel de vanguarda iluminista dos tribunais, porquanto parecem incompatíveis com as exigências democráticas presentes num Estado Democrático e Pluralista de Direito.

 

 

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NOTAS

0 Carla Amado Gomes: Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP); Supervisora Científica da linha de pesquisa Energia, Recursos Naturais & Ambiente; Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto) - carlamadogomes@fd.ulisboa.pt.

0 Mestrando em Direito e Ciência Jurídica, especialidade de Direitos Fundamentais, na Universidade de Lisboa. Advogado da União na Advocacia-Geral da União (AGU – Brasil).

1 O diálogo foi narrado e parcialmente transcrito em L. R. BARROSO, A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria, in Revista Brasileira de Políticas Públicas, 5, 2015, p. 25.

2 BARROSO, A razão, p. 42.

3 Acórdão do Supremo Tribunal Federal de 29.11.2016, proferido no Habeas Corpus n.º 124.306, pesquisável em: Ver link
(doravante, HC 124.306).

4 A situação do aborto pode ser definitivamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 442, que aguarda julgamento e discute a constitucionalidade da norma penal que criminaliza o aborto até o primeiro trimestre de gestação.

5 O movimento feminista pleiteou junto aos constituintes a inclusão de regra que permitisse a interrupção da gravidez. A igreja católica pressionou para incluir no texto a completa proibição, ganhando apoio de parte da “bancada evangélica”. Pela controvérsia sobre o ponto, os constituintes decidiram não incluir dispositivo tratando do assunto (M. I. BALTAR DA ROCHA, A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese, 2006, p. 371).

6 Aliás, segundo o próprio BARROSO, “o aborto é, inequivocamente, a questão moral mais controvertida do debate público contemporâneo” (L. R. BARROSO, A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo, 2012, p. 101).

7 Foi o que fez o Tribunal Constitucional Federal alemão na primeira decisão sobre o aborto, em 1975, ao anular uma reforma legislativa que permitiu o aborto até 12 semanas de gestação (decisão de 25.02.1975, 39 BVerfGE 1).

8 L. R. BARROSO, O STF em 2016: o ano que custou a acabar, 2017, p. 11.

9 Cf. p. 7 e nota de rodapé n.º 11, do voto-vista do ministro BARROSO no HC 124.306.

10 R. DWORKIN, The model of rules, 1967, in Faculty Scholarship Series, 3609, pp. 22 e ss.

11 R. ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, 2011, p. 90-91.

12 ALEXY, Teoria, pp. 91 e ss.

13 R. ALEXY, On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison, in Ratio Juris, 16, 2003, pp. 135 e ss.

14 A otimização das possibilidades fáticas, de modo a evitar custos ou interferências nos princípios envolvidos, relaciona-se com os primeiros dois subprincípios da proporcionalidade: adequação e necessidade. Cf., por exemplo, R. ALEXY, Principios Formales, in DOXA, 37, 2014, p. 17.

15 ALEXY, Teoria, p. 167.

16 ALEXY, Teoria, p. 173.

17 R. ALEXY, Prólogo, in J. P. QUISPE, La ponderación y la autoridade em el derecho. El rol de los princípios formales em la interpretación constitucional, 2016, p. 19.

18 O detalhamento do funcionamento da fórmula do peso será feito na sequência, referindo-se, inclusive, à fórmula em sua última versão, conforme apresentada por ALEXY em 2014.

19 Em primeiro lugar, não obstante se tenha considerado duvidosa a adequação e desnecessária a medida, prosseguiu-se para a terceira etapa do teste da proporcionalidade, o que, em tese, seria dispensável. Entretanto, a importância da decisão e a complexidade do caso parecem, de fato, sugerir a necessidade da mais ampla justificação, com a análise mais completa possível da proporcionalidade da medida. Esse pequeno desalinhamento com a metodologia parece depor em favor da decisão. Em segundo lugar, foram incluídas na ponderação os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sem, no entanto, identificar-se expressamente qual norma constitucional que os garante. Por fim, não foi utilizada também a fórmula do peso. Esta, entretanto, nada mais faz do que dar maior objetividade ao raciocínio desenvolvido na ponderação. A sua ausência, vale dizer, não muda seu conteúdo, tampouco permite que se diga que não foi cumprida a metodologia alexyana.

20 M. KUMM, ALEXY´S Theory of Constitutional Rights and the Problem of Judicial Review, in M. KLATT, Institutionalized Reason., 2012. p. 202

21 Cf. R. ALEXY, Balancing, constitutional review, and representation, in International Journal of Constitutional Law, 3, 2005.

22 Esse fato provaria a compatibilidade entre representação e argumentação. E, segundo o autor, a representação necessariamente exige correção. Portanto, um conceito plenamente formado de representação deve incluir uma dimensão ideal, que conecta a decisão com o discurso (ALEXY, Balancing, p. 579).

23 Em trabalho posterior, que será objeto de comentário na sequência, em atenção a críticas de Kumm (ALEXY´s Theory, pp. 206-207), ALEXY releva o fato de que a indicação dos juízes de um Tribunal Constitucional normalmente é feita por quem possui legitimação democrática, o que geraria uma ligação indireta, razão pela qual passa a entender a representação do tribunal como “essencialmente argumentativa”(R. ALEXY, Direitos Constitucionais e Fiscalização da Constitucionalidade, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 88, 2013 p. 524).

24 ALEXY, Balancing, p. 579.

25 ALEXY chama essas pessoas de “pessoas constitucionais, com apoio no conceito de “pessoa liberal”, de John Rawls (ALEXY, Balancing, p. 580).

26 KUMM, ALEXY´s Theory, pp. 208-209.

27 JEREMY WALDRON põe em causa a própria existência da justiça constitucional em um Estado de direito com fundamento na persistência dos desacordos razoáveis. Em razão dos propósitos do trabalho, não há como reproduzir os argumentos do autor. Em essência, discute a autoridade para arbitragem dos desacordos e, assim, defende que não haveria vantagem em transferir a decisão dessas questões do parlamento, que garante a igual participação de todos, para a jurisdição constitucional. Cf. J. WALDRON, Derecho y desacuerdos, 2005, pp. 253 e ss. e 290 e ss. e J. Waldron, A essência da oposição ao Judicial Review, In A. C. A. BIGONHA e L. MOREIRA, (Org.), Legitimidade da Jurisdição Constitucional, 2010, pp. 93 e ss.

28 WALDRON, A essência, pp. 113-114.

29 KUMM, ALEXY´s Theory, pp. 209-210.

30 ALEXY, Direitos Constitucionais, pp. 525-526.

31 De fato, ao olhar o mapa do aborto, verifica-se que ele é permitido até determinado período de gestação em muitos países democráticos, com ou sem a exigência de determinados requisitos. Outros tantos, porém, possuem legislação restritiva, como a Irlanda, o México e o Chile. Este, aliás, até a reforma de 2017, criminalizava o aborto inclusive quando a gravidez resultava de estupro. O mesmo problema se coloca quanto à eutanásia. Países como Holanda, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Canadá e seis estados norte-americanos não criminalizam o suicídio assistido. São países desenvolvidos, mas ainda são minoria. Nessa questão importante e que envolve direitos fundamentais, é possível dizer qual a posição é correta?

32 Por exemplo, KUMM, ALEXY´s Theory, p. 209.

33 Sobre essa discussão, com resumo das principais críticas e seu contraponto, cf. V. AFONSO DA SILVA, Teoría de los princípios, competências para la ponderación y separación de poderes, in J. SIECKMANN, La teoría principialista de los derechos fundamentales: Estudios sobre la teoría de los derechos fundamentales de Robert Alexy, 2011, pp. 243 e ss. e V. AFONSO DA SILVA, Direitos fundamentais e liberdade legislativa: o papel dos princípios formais, in Fernaldo Alves Correia (et al), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Joaquim José Gomes Canotilho, 2012, p. 918 e ss.

34 Essas críticas foram elencadas pelo próprio ALEXY no posfácio de sua Teoria dos Direitos Fundamentais (Teoria, pp. 576-578).

35 ALEXY, Teoria, pp. 584 e ss. e ALEXY, Principios, p. 16.

36 Em linhas gerais, esse princípio exige que as decisões relevantes para a sociedade devem ser tomadas pelo legislador democrático (ALEXY, Teoria, p. 615).

37 ALEXY, Principios, p. 16.

38 ALEXY, Direitos Constitucionais, pp. 519 e 523-526.

39 ALEXY, Teoria, p. 584 e ss.

40 ALEXY, Principios, p. 24 e ALEXY, Teoria, p. 584. Nesse sentido, segundo o autor, não se exige justificação para que o legislador seja livre quando a constituição não o obriga a nada, razão pela qual os princípios formais não desempenham nenhuam papel com relação à discricionariedade estrutural.

41 ALEXY, Teoria, p. 612.

42 Cf. ALEXY, Teoria, p. 617.

43 Desde 2003, a variável R representava a confiabilidade epistêmica. No entanto, tendo em vista que reconhecia a discricionariedade epistêmica empírica e a discricionariedade epistêmica normativa, mas, contraditoriamente, mantinha só uma variável R na fórmula, concordando com alguns críticos, Alexy apresentou em 2014 a fórmula do peso completa e refinada, dando lugar a duas variáveis R que representam a dimensão epistêmica da equação. Essa é a nova fórmula: Cf. ALEXY, Principios, p. 18-20 e, M. KLATT/ J. SCHIMIDT, A Discricionariedade Epistêmica no Direito Constitucional, in F. SANTOS DE MORAIS/ J. C. KRAEMER BORTOLOTI, A Jurisdição Constitucional e os Desafios à Concretização dos Direitos Fundamentais, 2016, pp. 231-234.

44 Como as variáveis Re e Rn possuem 20, 2-1 e 2-2 (ou 1, ½ e ¼) para, respectivamente, os cenários de confiabilidade equivalentes à certeza, plausabilidade e não evidentemente falso, toda vez que o nível de confiabilidade nas premissas está abaixo da certeza, as variáveis epistêmicas tem o poder de reduzir os valores materias da fórmula. Sobre o ponto e sobre como essa redução gera discricionariedade ao legislador, cf. ALEXY, Principios, pp. 19-20 e 27-29. O assunto será tratado com maiores detalhes na sequencia do trabalho.

45 Sobre a discricionariedade epistêmica, cf. também KLATT/ SCHIMIDT, A Discricionariedade, pp. 197 e ss.

46 Sobre o ponto, cf. L. R. BARROSO, Grandes Transformações do Direito Contemporâneo e o Pensamento de Robert Alexy, in R. ALEXY, Princípios Formais e outros aspectos da teoria discursiva do direito, 2014, pp. 85 e ss.

47 Cf. A. STONE SWEET/ J. MATHEWS, Proportionality Balancing and Global Constitutionalism, in Faculty Scholarship Series, 14, 2008, e M. KLATT/ M. MEISTER, La proporcionalidad como principio constitucional universal, 2017.

48 AFONSO DA SILVA, Direitos, p. 921.

49 M. BOROWSKI, Principios Formales e Formula del peso, in J. P. QUISPE, Ponderacion e discricionariedad: un debate en torno al concepto y sentido de los principios formales en la interpretación constitucional, 2016, p. 60-61. Na mesma linha, o próprio Alexy, ao afirmar que não existe âmbito da teoria dos princípios em que as opiniões de seus próprios defensores sejam mais divergentes do que no âmbito dos princípios formais (ALEXY, Prólogo, p. 22).

50 Cf., por exemplo, J. P. QUISPE, El problema de los principios formales en la doctrina de la ponderación de Robert Alexy: del in dubio pro libertate al in dubio pro legislatore, in Quispe, Ponderación, 2016, pp. 243 e ss., P. WANG, Formal Principles as Second-Order Reasons, in M. BOROWSKI, Rechtsphilosophie und Grundrechtstheorie. Zum System Robert Alexys, 2016, pp. 9-13 e J. SIECKMANN, Principios Formales, in QUISPE, Ponderacion, pp. 289 e ss.

51 Nesse sentido, é a conclusão de Portocarrero Quispe: “Sin una adecuada teoría de los principios formales, la más general teoría de los principios y su postulado de optimización de los derechos fundamentales representaría efectivamente uma sobreconstitucionalización del sistema, convirtiendo a la Constitución en el huevo jurídico originario a partir del cual se deducen todas las repuestas a los problemas que se presenten en la sociedad, a la vez que dejaría de lado al legislador democrático, entronando al mismo tiempo al juez constitucional como máximo y, en realidad, único intérprete de dicho Santo Grial jurídico. La función de los principios formales en la teoría de los principios radica precisamente en evitar dicho panorama” (QUISPE, El problema, p. 260).

52 KUMM, ALEXYy´s Theory, pp. 210-212.

53 R. ALEXY, Comments & Responses, in M. KLATT, Institutionalized Reason - The Jurisprudence of Robert Alexy, 2012, p. 339. No referido trabalho, Alexy limita-se a concordar a possibilidade aventada por MATTIAS KUMM.

54 Sobre o ponto, cf. J. REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, 2017, pp. 118 e ss.

55 REIS NOVAIS, Direitos, pp. 120-121.

56 Cf. item 2.2 e nota 28, supra.

57 REIS NOVAIS, Direitos, pp. 131 e 133.

58 A pena de morte no Brasilé um bom exemplo.Conforme o artigo 5.º, inciso XLVII: “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada(...)”.

59 REIS NOVAIS, Direitos, p. 128-136.

60 Há aqueles que defendem que o embrião é pessoa humana desde a concepção, com todos os direitos e deveres, mas com diferentes posições quanto ao verdadeiro marco decisivo: a penetração do evócito pelo espermatozoide; a fusão dos cromossomos que ocorre um dia depois; a nidação do útero; catorze dias após a fecundação, quando surge a chamada linha primitiva; quarenta dias após a fecundação; e, por fim, quando o feto adquire capacidade de sentir dor. Para outros, tanto o embrião quanto o feto são apenas pessoas humanas em potencial, com gradações diferentes à medida do desenvolvimento (essa parece ter sido a posição adotada no HC 124.306). Outros consideram pessoa humana apenas após o nascimento. Por fim, outros só consideram pessoa humana após a verificação das condições de viabilidade e capacidade de interação apuradas após o nascimento. Sobre essas diversas posições aqui resumidas, cf. REIS NOVAIS, Direitos, p. 129.

61 KLATT/ MEISTER, La proporcionalidad, pp. 27-28.

62 ALEXY, On balancing, pp. 433 e ss.

63 ALEXY, Prólogo, p. 18.

64 ALEXY, Prólogo, p. 18.

65 KLATT/ SCHMIDT, A Discricionariedade, p. 206.

66 QUISPE, La ponderación, p. 141.

67 QUISPE, La ponderación, p. 143.

68 Cf. WALDRON, A essência, p. 116.

69 Conforme ressalta Waldron, uma declaração de direitos influencia, mas não soluciona as questões em jogo nos desacordos. Assim, saber o que é essa influência e se ela proíbe uma disposição legislativa questionada “permanece discutível entre pessoas sensatas” (WALDRON, A essência, p. 115).

70 Sobre as diferentes formas de ler a dignidade humana e suas consequências antagônicas em relação aborto, eutanásia e a procriação medicamente assistida, Cf. L. PEREIRA COUTINHO, Human Dignity as a Background Idea, in S. KIRSTE, Human Dignity as a Fondation of Law, 2013, pp. 105 e ss. Cf. também BARROSO, A dignidade, p. 100.

71 SIECKMANN, Principios, p. 305.

72 QUISPE, La ponderación, 144-145.

73 BARROSO, Grandes, p. 80.

74 KLATT/ MEISTER, La proporcionalidad, p. 29.

75 Sobre o tema, cf. L. PEREIRA COUTINHO, Jurisdição constitucional e justificação pública, in J. LAMEGO, Atas das I e II Jornadas de Metodologia Jurídica, no prelo.

76 PEREIRA COUTINHO, Jurisdição.

77 PEREIRA COUTINHO, Jurisdição.

78 PEREIRA COUTINHO, Jurisdição.

79 PEREIRA COUTINHO, Jurisdição.

80 J. REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana, II, 2016, pp. 75 e ss. A ideia de ambos os autores é semelhante, não havendo exata correspondência apenas em decorrência da utilização de diferentes conceitos de razão pública. Ao que parece, o conceito de razão pública utilizado por NOVAIS equivale ao conceito de Justificação Pública no âmbito da teoria da convergência utilizado por Coutinho. A controvérsia existente sobre a ideia de razão pública e a divergência aqui referida é, aliás, mencionada pelo último autor (PEREIRA COUTINHO, Jurisdição).

81 Alerta o autor que, tendo em conta as consequências jurídicas demolidoras que resultam da eventual utilização bem-sucedida do princípio no plano jurídico-constitucional, “ele não deveria ficar sujeito e vulnerável à insegurança jurídica, à arbitrariedade, decisionismo e subjectivismo que resultariam, inevitavelmente, de uma sua utilização conflitual, não consensual nem generalizadamente compartilhada” (REIS NOVAIS, A Dignidade, p. 77).

82 Nas palavras do autor: “(...) são conhecidas a sensibilidade e a controvérsia que encerram normalmente a discussão sobre a natureza e os efeitos da atribuição da dignidade antes do nascimento e, para o que nos importa, sobre o sentido normativo que decorre do princípio jurídico-constitucional da dignidade na sua aplicação à vida humana antes do nascimento(...) Assim, independentemente da posição que cada um de nós ou cada corrente de pensamento assuma, com inteira legitimidade, sobre o problema, parece óbvio, a qualquer observador desapaixonado, que se trata de um domínio de profunda e perene divergência nas sociedades ocidentais, em que qualquer tentativa de consenso ou de acordo generalizado não pode ultrapassar patamares mínimos de convergência de posições(...)”. Reconhece, então, o autor a “absoluta impossibilidade estrutural de um consenso ou de um acordo mínimo generalizável sobre os pontos controversos referidos, seja entre nós, seja em qualquer sociedade ocidental em que os mesmos problemas se colocam e discutem, com idênticos resultados, há inúmeras décadas. Logo, não é possível ou, pelo menos, juridicamente adequado, em Estado de Direito, partir da adesão estatal a uma concepção particular de dignidade humana antes do nascimento que se sabe, à partida, corresponder necessariamente à visão apenas de uma corrente religiosa, filosófica ou ideológica e que poderia ser imposta coercivamente à outra parte da sociedade num intrínseco desrespeito das convicções nucleares de cada um” (REIS NOVAIS, A Dignidade, pp. 90-91). 83 Em sentido mais geral, ressaltando que os juízes constitucionais devem decidir exclusivamente com base em princípios jurídicos e utilizar argumentos de princípio suscetíveis de adesão e reconhecimento pelos seus pares, independentemente de convicções políticas morais, religiosas ou filosóficas de cada um, cf. REIS NOVAIS, Direitos, p. 132.

84 Pelo que se viu, portanto, a concretização do princípio da dignidade humana para casos que envolvam pessoas não nascidas, sem dúvida, implicará uma zona de insegurança normativa.

85 Desse modo, concepções racistas, extremistas, entre outras, não são relevadas para esse fim.

86 Defende-se, assim, a justificação pública, no âmbito de uma teoria da convergência hipotética, conforme esclarece PEREIRA COUTINHO (Jurisdição).

87 ALEXY, Principios, p. 19. Neste trabalho, ALEXY confirma definitivamente que a segunda lei da ponderação, ou lei epistêmica, aplica-se não só às premissas empíricas, mas também às premissas normativas.

88 QUISPE, La ponderación, p. 145.

89 Na linha da já referida posição de KUMM (ALEXY´S Theory, p. 210).

90 ALEXY, Principios, p. 20-21.

91 AFONSO DA SILVA, Direitos, p. 930.

92 QUISPE, La ponderación, p. 145. O fato de haver o desacordo moral razoável amplia o espectro de medidas possíveis ao legislativo na necessária ponderação para proteção dos direitos fundamentais em jogo. E é exatamente o número de possibilidades jurídicas possíveis que gera a discricionariedade (ALEXY, Teoria, p. 622). No aborto, por exemplo, vai desde sua permissão sem necessidade de aconselhamento dissuasivo ou período de reflexão, até a criminalização. Em sentido semelhante, tratando da investigação científica das células estaminais embrionárias e das formas de proteção do embrião, cf. REIS NOVAIS, Direitos, p. 134.

93 Sobre a paridade como fundamento da liberdade legislativa, Virgílio Afonso da Silva aduz que “Para um mesmo problema, devido à diversidade de variáveis e aos níveis de incerteza envolvidos, é não só possível, mas também provável, que haja mais de uma solução que satisfaça o critério de otimização. Nesse sentido, ainda que as soluções sejam diferentes, pode-se dizer que elas estão em uma zona de paridade, dentro da qual toda resposta é ótima e, por conseguinte, constitucional. Só assim é possível aceitar, sem desvio de função, que um tribunal constitucional, ainda que sustente outra solução para um determinado caso envolvendo direitos fundamentais, possa aceitar a decisão do legislador, por entender que, ainda que ambas não sejam idênticas, não há uma que seja melhor do que a outra” (AFONSO DA SILVA, Direitos, pp. 931-932).

94 Cf. BOROWSKI, Principios, pp. 70-72.

95 SIECKMANN, Principios, p.305.

96 ALEXY, Principios, pp. 24 e ss.

97 ALEXY, Principios, p. 25.

98 ALEXY, Principios, p. 25.

99 ALEXY, Principios, p. 25.

100 Segundo QUISPE, o meta-nivel “no es outra cosa que el nível de la certeza epistémica respecto de las premisas que justifican la afectación recíproca de los princípios materiales contrapuestos” (QUISPE, El Problema, pp. 229-230).

101 ALEXY, Principios, p. 26.

102 Cf. nota n.º 45, supra.

103 O exemplo aqui construído não pretende, assim, reproduzir fielmente a ponderação realizada na decisão, mas apenas utilizá-la como base para análise. Na decisão, o principal argumento utilizado foi o peso do direito fundamental à autonomia da mulher, norma extraída expressamente do enunciado que garante a dignidade humana. Foram, contudo, incluídos outros argumentos paralelos, como os direitos à integridade física e psíquica da mulher, seus direitos sexuais e reprodutivos e, ainda, “reflexos sobre a igualdade de gênero”. Como já se referiu, no caso dos direitos sexuais e reprodutivos, não foi referida qual a norma que os garante na Constituição brasileira, o que dificulta sua análise. No caso da igualdade de gênero, entende-se que se tratou de um mero argumento de reforço, tendo em conta, inclusive, que para nós não ficou absolutamente claro em que medida a norma penal poderia violar o princípio da igualdade pelo fato de que os homens não engravidam, tendo em vista que nesse caso não poderia tratar igualmente situações absolutamente diferentes.

104 A decisão refere que até o primeiro trimestre, “o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno” (HC 124.306, p. 17).

105 ALEXY, Principios, p. 18.

106 ALEXY, Principios, p. 18.

107 ALEXY, Principios, p. 19.

108 Em termos jurídicos, a questão fundamental não é propriamente se o embrião já deve ou não ser considerado pessoa humana, mas a proteção jurídica conferida pela constituição, especialmente quais os deveres estatais para com o embrião, se são ou não os mesmos impostos relativamente às pessoas nascidas. Nesse sentido, REIS NOVAIS, A dignidade, p. 90.

109 Não se cogita, por exemplo, da inconstitucionalidade da norma que criminaliza o aborto sem o consentimento da gestante, mesmo antes dos três meses de gestação.

110 Aqui há necessidade de se fazer uma pequena reflexão. A forma como se coloca a questão reputa ser possível haver insegurança ou segurança normativa não só genericamente quanto à classificação (moderada ou elevada). Considera haver divergência e insegurança normativa apenas em relação a determinados níveis de proteção ou de importância de um direito fundamental. Nesse caso, há divergência se, de fato, o direito à vida confere um grau de proteção elevado ao nascituro. Já parece não haver divergência, no entanto, de que o direito à vida confere ao menos um grau de proteção moderado, podendo-se falar numa convergência entre as concepções razoáveis. Isso mostra como a divergência e, portanto, o nível de confiança epistêmica pode variar conforme o grau de proteção ou de importância que se está considerando. Essa forma de análise da confiança epistêmica parece ser bastante adequada no que se refere especificamente às premissas normativas. O ponto, no entanto, merece maior reflexão e desenvolvimento, o que não é possível nos limites do trabalho. Por ora, ressalta-se apenas que isso não interfere no resultado do exemplo tratado, porquanto se fosse considerado o grau elevado de importância do direito à vida (Ij=4), a confiança epistêmica nas premissas normativas seria avaliada como plausível (Rn=1/2), gerando o mesmo resultado.

111 ALEXY, Principios, p. 28.