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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.5 no.1 Lisboa ene. 2018

 

 

DESTAQUE

A valorização de bens do domínio público à luz do regime jurídico do património imobiliário público1

The valorisation of public domain in the legal regime of public real estate assets

 

João Miranda0  

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade – Cidade Universitária, 1649-014 Lisboa. E-mail: joaomiranda@fd.ulisboa.pt

 

RESUMO

O artigo aborda o tratamento da matéria dos bens do domínio público pelo RJPIP da ótica da sua valorização. Conclui que este regime revela preocupações com a valorização destes  bens e também dos do domínio privado, por via da consagração dos princípios da boa administração e da equidade como princípios gerais aplicáveis à gestão, utilização e alienação dos bens imóveis.

Na exploração das formas de valorização do domínio público, focam-se a tensão existente entre esse desígnio e a necessidade de assegurar a proteção destes bens, bem como a problemática da partilha de responsabilidades de gestão entre Estado e regiões autónomas.

 

Palavras-Chave: Domínio público * Princípio Da Boa Administração * Princípio Da Equidade *   Valorização De Bens Do Domínio Público * Proteção Do Domínio Público * Gestão Partilhada Do Domínio Público Marítimo.

 

ABSTRACT

The article covers the treatment of the topic of public domain assets by the RJPIP in view of how they are valued. It concludes that this legal regime is concerned with the appreciation of these assets, including those of private domain, through the implementation of the principles of sound administration and fairness as general principles applicable to the management, use and disposal of real estate assets.

In the exploitation of the ways of enhancing the public domain, it is focused the tension that exists between that aim and the need to provide the protection of these assets, as well as the question of how responsibilities are shared between the State and the autonomous regions.

 

Keywords: Public domain * Principle Of Sound Administration * Principle Of Fairness; Appreciation Of Public Domain Assets * Public Domain Protection * Shared Management Of Maritime Public Domain.

 

Sumário

1. Introdução; 2. A boa administração dos bens públicos; 3. A equidade na gestão dos bens públicos; 4. A valorização dos bens públicos; 5. Problemas atuais da valorização do domínio público; 5.1. A compatibilização da proteção com a valorização; 5.2. A partilha de responsabilidades entre Estado e regiões autónomas na gestão do domínio público marítimo

 

1.Introdução

O  domínio público encontrava-se ausente da versão originária do texto da Constituição portuguesa, tendo apenas nela sido consagrado na revisão constitucional de 1989. A Constituição identifica no n.º 1 do artigo 84.º várias categorias de bens do domínio público: domínio púlico hídrico; domínio público aéreo; domínio público geológico; domínio público estradal; e domínio público ferroviário nacional. No mesmo n.º 1 admite-se a classificação de outros bens como integrantes do domínio público, o que tem sido entendido como a consagração de uma cláusula aberta em matéria de bens dominiais. Por sua vez, o n.º 2  do artigo 84.º preceitua: “A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.”

Não existe, no entanto, um regime legal do domínio público, que dê uma tradução completa ao comando do n.º 2 do artigo 84.º da Constituição. Com efeito, o regime jurídico do património imobiliário público aprovado pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto2 , adiante abreviadamente referido como RJPIP, tem, por um lado, um âmbito de aplicação mais vasto, porque abrange também o domínio privado do Estado, mas queda-se, por outro, por um conjunto de disposições gerais e de modos de utilização do domínio público pela Administração e por particulares, que se encontra muito longe de alcançar o desiderato constitucional.

Houve uma tentativa de aprovação de um regime geral de bens do domínio público através da apresentação na Assembleia da República pelo XVII Governo Constitucional da Proposta de Lei n.º 256/X3 mas essa iniciativa legislativa viria a caducar com o fim da X Legislatura e não mais foi desencadeado qualquer processo legislativo tendente a definir a disciplina geral da dominialidade pública.

Resta-nos, pois, atentar no RJPIP e encarar o modo como neste diploma se procede à caraterização do domínio público. Todavia, o legislador do RJPIP não avançou com qualquer critério para a inclusão de bens no domínio público, para além daqueles que já o são por determinação constitucional (domínio público ex vi constitutione). A doutrina vem assinalando, com pertinência, que só podem integrar o domínio público os bens que sejam necessários à satisfação de necessidades coletivas públicas, ou seja, em que se evidencie uma utilidade pública4.

Na verdade, conforme já tivemos ocasião de assinalar noutra obra, o critério da utilidade pública não é o único que é adotado no RJPIP. Com efeito, “o conceito de domínio público reveste um caráter funcional, expresso na existência de um estatuto jurídico-público de certos bens que os submete a um regime de Direito Administrativo, pela sua afetação a uma utilidade pública”5, com expressão no artigo 16.º mas “além disso, o legislador adota também um critério subjetivo, ligando a dominialidade pública à existência de uma titularidade pública”6, por via do disposto no artigo 15.º.

O que parece de afastar é a natureza excecional do domínio público7, porque a existência de bens na titularidade pública, sujeitos a um especial regime de Direito Administrativo, é perfeitamente compatível com a garantia da liberdade de iniciativa económica privada, no quadro de uma economia de mercado. Agora, a amplitude de bens integrados no domínio público sempre dependerá das conceções político-económicas prevalecentes em cada momento, o que significa que, afora os casos de domínio público ex vi constitutione, o legislador ordinário goza de uma liberdade de conformação apreciável no alargamento ou no encurtamento do leque de bens sujeitos ao regime da dominialidade pública.

Observa-se, no entanto, uma tendência nos Estados membros da União Europeia no sentido de, pelo menos, impedir o alargamento dos bens do domínio público. Isto porque, sob a aparência de uma neutralidade do Direito da União Europeia relativamente ao regime da propriedade vigente nos ordeamentos jurídicos nacionais, consagrada no artigo 345.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a verdade é que a realidade não tem sido bem essa. Refletindo sobre a situação francesa mas com fácil transposição para a situação portuguesa, CHRISTOPHE ROUX assinala que “é hoje nos efeitos induzidos provocados pelo Direito da União Europeia que parecem encontrar-se os maiores riscos para o direito francês da propriedade pública. A redefinição da utilidade pública dos bens pelo Direito Comunitário, o enquadramento contratual e concorrencial dos administradores, via noção de controlo, da relação orgânica unindo os proprietários públicos aos seus bens constituem zonas de conflito em fase de gestação entre as duas ordens jurídicas”8.

Em traços muito gerais, este é o pano de fundo atual da dominialidade pública no ordenamento jurídico nacional.

 

2. A boa administração dos bens públicos

O RJPIP tem a particularidade de conter um conjunto vasto de princípios gerais aplicáveis indiscriminadamente aos bens do domínio público e aos bens do domínio privado. Na realidade, além do princípios gerais da atividade administrativa - legalidade, prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé (artigo 2.º) -, existem princípios comuns aplicáveis aos dois tipos de bens: boa administração (artigo 3.º); onerosidade (artigo 4.º); equidade (artigo 5.º); conssignação (artigo 6.º); concorrência (artigo 7.º); transparência (artigo 8.º); proteção (artigo 9.º); e controlo (artigo 12.º).

Importa determo-nos no princípio da boa administração, sendo de assinalar que o RJPIP foi pioneiro na consagração legal deste princípio e, nessa medida, preparou o caminho para a sua receção posterior no Código do Procedimento Administrativo.

No RJPIP, o princípio da boa administração dos bens do domínio público encontra-se, antes de mais, ligado a uma ponderação do custos e dos benefícios (artigo 3.º, n.º 1). Acresce a isso, o comando legal de que “as despesas com a aquisição, administração e utilização dos bens imóveis devem satisfazer os requisitos da economia, eficiência e eficácia, especialmente quando envolvam um dispêndio significativo de dinheiros públicos”. Ou seja, a eficiência e a economicidade constituem dois dos critérios da boa administração dos bens públicos.

Também aqui se pode travar o mesmo debate que vem existindo, no quadro do Código do Procedimento Administrativo, a propósito do valor jurídico da boa administração, isto é, o confronto entre duas conceções distintas: i) uma propugnando que a boa administração constitui parâmetro de atuação da Administração e, por isso, os tribunais podem sindicar as decisões por ela tomadas não pautadas por critérios de eficiência, ecoomicidade e celeridade (artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo); de outra banda, sustentando-se que a boa administração é um dever para a Administração, mas, sob pena de ofensa à separação de poderes, devem aceitar-se limitações ao controlo efetuado pelos tribunais.

Na defesa da primeira visão, vem-se destacando MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, que considera que não estamos perante um princípio menor, não vinculativo para a Administração, razão pela qual “não deve recusar-se a possibilidade de a violação do princípio da boa administração como eficiência redundar na invalidade da decisão, além de outras consequências habitualmente afirmadas, como as (…) responsabilidades disciplinar ou dos dirigentes públicos, ou ainda, como o Tribunal de Contas já entendeu, a título de causa justificativa da recusa de visto em sede de fiscalização prévia”9.

Pela nossa parte, consideramos que a convocação do princípio da boa administração pelos tribunais administrativos para controlar a eficiência e a economicidade das decisões administrativas deve acontecer com alguma parcimónia, tendo como limite a não afetação do princípio da separação de poderes, isto é, não pode resultar numa ingerência jurisdicional numa zona de autonomia pública. Isto não significa, no entanto, e a questão coloca-se com especial acuidade a propósito da boa administração dos bens públicos, que se recuse, atenta a sua especial natureza, um controlo mais intenso pelo Tribunal de Contas destas decisões.

No plano dos bens públicos, a boa administração remete para uma preocupação voltada, antes de mais, para a existência de uma correspondência entre os bens utilizados e a satisfação de uma necesidade coletiva pública (critério da eficácia). Mas não só, uma vez que impõe igualmente a alocação do menor número de recursos destinado a satisfazer os fins determinados pela lei (critérios da eficiência e da economicidade).

Isto não significa que se possa fixar uma grelha única definidora do que é a boa administração dos bens públicos e sobretudo que esta se paute apenas por objetivos de economicidade e de eficiência, menosprezando outros princípios gerais da atividade administrativa, nomeadamente o princípio da prossecução do interesse público10.

 

3. A equidade na gestão dos bens públicos

Outro princípio a ter em conta na gestão dos bens públicos é o da equidade, podendo mesmo afirmar-se que ele se encontra ligado à boa administração, na medida em que esta postula, como vimos, a necessidade de um juízo de proporcionalidade entre a prossecução do interesse público e objetivos de economicidade e de eficiência.

O princípio da equidade surge proclamado no artigo 5.º do RJPIP, dispondo-se, por um lado, que se deve “atender à equidade na distribuição de benefícios e custos, designadamente entre gerações” (n.º 1). Depois, afirma-se no n.º 2 que a concretização da equidade intergeracional é apreciada na vertente patrimonial à luz de diversas diretivas de ponderação:

“a) A aptidão do bem imóvel para a prossecução de fins de interesse público nos curto, médio e longo prazos;

b) A perspetiva de evolução dos encargos com a manutenção e conervação do bem imóvel;

c) A perspetiva de evolução do valor do bem imóvel de acordo com as suas caraterísticas e face ao mercado imobiliário”.

Ou seja, o legislador do RJPIP acolheu um princípio de solidariedade intergeracional na gestão dos bens públicos, em termos bastante inovadores, sobretudo se tivermos em linha de conta de que a Contituição portuguesa o abriga apenas no quadro do ambiente e qualidade de vida para aproveitamento dos recursos naturais [artigo 66.º, n.º 2, alínea d)]11. Isto significa que a equidade na distribuição de benefícios e de custos entre gerações não se atém no RJPIP ao domínio público natural, comportando igualmente os bens integrados no denominado domínio público artificial, isto é, aqueles bens cuja existência se deve à atividade humana.

Novamente aqui, o legislador do RJPIP remete para um critério de proporcionalidade em sentido estrito ou de equilíbrio, para s ignificar que a gestão dos bens públicos deve ter como meta que os benefícios sejam superiores aos custos.

O princípio da equidade entre gerações surge, por vezes, afirmado como a necessidade de não sacrificar o futuro em prol do presente, para não sobrecarregar as gerações vindouras com encargos. Apela-se a uma ideia de não delapidação de recursos financeiros, atuais e futuros, na satisfação de necessidades que se colocam apenas na atualidade.

Naturalmente, não rejeitamos a conceção exposta mas ela carece também de ser combinada com uma outra que encara a necessidade de realização de investimentos no presente para que sejam legados às gerações futuras bens públicos que permitam a prestação de serviços públicos em boas condições. Donde que cuidar do futuro significa também realizar investimentos no presente. Por exemplo, um défice na construção e na conservação de infraestruturas viária nos tempos hodiernos repercute-se negativamente no futuro, uma vez que onera as gerações futuras com a necessidade de assumirem investimentos que poderiam ter sido realizados antes.

Com isto quer dizer-se que a concretização da justiça intergeracional assenta em duas premissas fundamentais: i) as gerações atuais não podem dissipar recursos na gestão de bens públicos, impedindo que as gerações futuras deles retirem determinadas utilidades; ii) as mesmas gerações presentes estão obrigadas a acautelar a existência futura de bens necessários à provisão de serviços públicos. Dando exemplos de cada uma delas, seria inaceitável que o consumo de recursos naturais sacrificasse a biodiversidade impedindo as futuras gerações de dela fruir, assim como o adiamento na realização de determinados investimentos em infraestruturas e equipamentos públicos redundaria numa perda de qualidade dos serviços públicos por aqueles que deles carecerão a médio ou longo prazo.

Deste modo, o alcance correto do n.º 2 do artigo 5.º do RJPIP envolve que se pondere “quer a análise temporal de aptidão do bem imóvel para a prosecução de fins de interesse público, quer a obrigação de perspetivar o valor do bem, bem como a evolução dos encargos a ter com a sua manutenção e conservação, [assentes] num juízo global relativo à futura capacidade e valor do bem”12.

E por outro lado, os juízos de prognose que a Administração se encontra vinculada a realizar constituem uma manifestção da inclusão dos direitos das gerações futuras no seio da teoria dos deveres do Estado de proteção dos direitos funamentais13.

 

4. A valorização dos bens públicos

A preferência pela expressão valorização em lugar da de rentabilização carece de uma precisão prévia. Esta última encontra-se inevitavelmente ligada a uma aceção mais restritiva, que pretendemos afastar, próxima da ideia de rentabilização económica e financeira, isto é, com base numa visão que encara os bens públicos da ótica do rendimento que eles podem gerar, das receitas resultantes da sua utilização e cedência a sujeitos privados e também da diminuição dos encargos com a sua conservação e manutenção. Não cremos, no entanto, que esta visão se adeque à especial natureza dos bens públicos, independentemente de estes se integrarem no domínio público ou no domínio privado.

Em contrapartida, a ideia de valorização dos bens públicos mostra-se mais rica, porque, sem renegar as preocupações de economicidade, coloca a tónica no “acrecentar de valor” aos bens. Neste sentido, não interessa tanto a mensurabilidade da expressão financeira do bem mas acima de tudo as utilidades que o mesmo gera. Estas utilidades poderão ter uma tradução económica mas o punctum saliens reside na utilidade pública que o bem proporciona ou que dele se pode extrair.

Uma vez que iremos abordar a temática da valorização dos bens do domínio público no número seguinte, para já detemo-nos apenas nos bens integrantes do domínio privado.

Assim, no caso do domínio privado, conforme tivemos ocasião de referir noutra obra, há também que encontrar um equilíbrio entre rentabilização económico-financeira e prossecução do interesse público, visto que “a administração destes bens não visa, pois, uma mera otimização dos bens patrimoniais enquanto instrumentos de produção de riqueza. E não poderia ser assim, porquanto os bens do domínio privado da Administração constituem frequentemente a sede dos serviços públicos, no sentido de que eles são meios instrumentais para o funcionamento dos serviços públicos e para a atividade administrativa aí desenvolvida”14.

E complementando, “deste modo, o legislador do RJPIP não parece ter encarado a alienação como única forma de rentabilização dos bens do domínio privado. Pelo contrário, aponta no sentido de uma proteção destinada a preservar o valor económico do património público. Daqui decorre que a própria manutenção de bens do domínio privado na órbita pública pode ser uma forma de assegurar a sustentabilidade das entidades públicas, sobretudo se estas conseguirem rentabilizar os bens sem pôr em causa a sua função principal”15.

E além disso, o desenvolvimento das próprias políticas públicas obriga a encarar os bens do domínio privado como um património essencial para alcançar os objetivos pretendidos de cada política. Assim se compreende que, por exemplo, que o artigo 23.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, que estabelece as bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e do urbanismo, determine que a existência de bens do domínio privado sejam afetos a finalidades dessa política, nomeadamente para regulação do mercado do solo e prevenção da especulação fundiária, garantia da redistribuição de benefícios e encargos, localização de infraestruturas, de equipamentos e de espaços verdes ou de outros espaços de utilização coletiva e para execução programada de planos urbanísticos.

Uma mera rentabilização económica e financeira de curto prazo, assente na alienação de bens do domínio privado e externalização dos meios utilizados para prossecução das atividades públicas, acaba por redundar, a médio e a longo prazo, numa Administração incapacitada para realizar finalidades de diversas políticas públicas setoriais que lhe estão cometidas.

Deste modo, quebra-se um pouco também o mito de que os bens do domínio privado se destinam exclusivamente a gerar rendimento para a Administração. Não é assim com os bens do denominado domínio privado indisponível, isto é, aqueles que se encontram afetados a uma utilidade pública, mas o mesmo vale para os bens do domínio privado disponível, porquanto não é a circunstância de terem uma natureza meramente financeira ou de integrarem de forma ocasional o património público que faz com que deixem também de estar submetidos aos mesmos princípios gerais de gestão, de utilização e de alienação aplicávei ao domínio público.

Neste campo, como já tivemos oportunidade de salientar, a previsão no RJPIP de princípios gerais comuns ao domínio público e ao domínio privado aponta para uma aproximação de regimes ou tratamento unitário dos dois tipos de bens e, sendo esses princípios jurídico-públicos, daí advém igualmente uma maior submissão do domínio privado a uma disciplina de Direito Administrativo16.

 

5. Problemas atuais da valorização do domínio público

Identificamos como primeiro problema que se coloca a necessidade de compatibilizar os instrumentos destinados à proteção do domínio público, entre os quais avulta a inalienabilidade, e a preocupação de proceder à valorização dos bens nele integrados. Um segundo problema reside em saber se o modelo em que assentou a dominialidade pública, com clara preferência pela atribuição da titularidade de bens do domínio público ao Estado em detrimento das regiões autónomas e das autarquias locais se mostra a melhor solução para proceder à valorização desses bens.

 

5.1. A compatibilização da proteção com a valorização

A proteção dos bens do domínio público é reclamada em virtude da necessidade de assegurar o cumprimento da sua afetação a uma finalidade pública. A Administração não pode, por isso, pôr em causa a integridade e utilidade destes bens17, estando por força do artigo 9.º do RJPIP obrigada a “zelar pela proteção dos bens imóveis (…) através dos meios legais e dos atos de gestão mais adequados”. Para proteção dos bens do domínio público, a lei associou-lhes três caraterísticas fundamentais: a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a impenhorabilidade.

Importa que nos detenhamos sobretudo na primeira destas caraterísticas, que se traduz na exclusão destes bens do comércio jurídico-privado e na impossibilidade de constituição de direitos privados sobre eles (artigo 18.º do RJPIP)

Com efeito, ao contrário do proprietário privado que pode “dispor das suas coisas como entender, o que inclui a faculdade de as vender, doar, permutar, ou, por qualquer modo, onerá-las com direitos reais ou direitos pessoais de gozo”18, a Administração não o pode fazer, em razão precisamente da acima referida afetação da dominialidade.

O tema da valorização dos bens do domínio público é muito atual mas as preocupações da doutrina nacional com ele não são de agora. Assim, deve-se a MARCELLO CAETANO a enunciação do conceito comercialidade de direito público para compreensão da posibilidade  de utilização privativa do domínio público e das mutações dominiais19, o que partia da admissibilidade de rentabilização desta categoria de bens. E também FREITAS DO AMARAL afirmou em 1965 que “o domínio se afirma cada  vez mais, na época moderna, como uma riqueza a explorar, um bem que, na medida em que a sua afetação não for contrariada, é e deve ser objeto de gestão económica”20.

O que se verifica de diferente nos tempos hodiernos é a circunstância de se equacionar a constituição de direitos reais civis sobre o domínio público e de este instituto não ser encarado de forma monolítica, mas sim admitindo a sua divisão em volumes, que é bem visível sobretudo no espaço da cidade através da “sobreposição de usos e funções urbanas”21.

De resto,  o campo do Direito do Urbanismo fornece elementos preciosos para a compreensão deste fenómeno,  nomeadamente por via da constituição de direitos reais civis menores no subsolo. Ou ainda em termos mais amplos, como sublinha CLAUDIO MONTEIRO, “as construções implantadas sob ou sobre o solo não perdem a sua autonomia jurídica e podem constituir um objeto autónomo de direitos públicos ou privados”22.

Agora, o que têm de particular as situações apresentadas é que, mesmo onde existia dominialidade pública, para poderem ser constituídos direitos privados, foi necessário primeiro proceder a uma desafetação. Portanto, a colocação destes bens no comércio jurídico-privado, ou melhor, de partes deles só pode acontecer mediante a sua não sujeição a um regime jurídico-administrativo. A matriz do ordenamento jurídico nacional é claramente tributária da influência exercida pelo direito francês e  afasta-se da solução germânica da “propriedade privada modificada“ (Theorie des modifizierten Privateigentum), à luz da qual, na verdade, o que divisamos é a consagração de uma visão dualista, de Direito Público e de Direito Privado, pois o direito  de propriedade incidente sobre coisas sujeitas a uma afetação (Widmug) sofre uma modificação para assegurar a satisfação da finalidade pública.

A principal questão que fica em aberto no direito português é a de saber em que condições o regime de Direito Administrativo aplicável ao domínio público se mostra adaptável às preocupações de valorização destes bens, mas esse debate requereria um estudo mais desenvolvido, que é incompatível com as limitações do presente artigo.

 

5.2. A partilha de responsabilidades entre Estado e regiões autónomas na gestão do domínio público marítimo

De acordo com o artigo 15.º do RJPIP, os poderes dos titulares de bens do domínio público – Estado, regiões autónomas e autarquias locais23 – desdobram-se em poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição.

A questão que pretendemos agora abordar, ainda que de forma breve, é a de saber se o predomínio do Estado quanto à titularidade de bens do domínio público não deve ser esbatido, precisamente por razões ligadas à necessidade de valorização desses bens.

Dessa ótica, o poder mais interessante é o poder de administração ou de gestão do domínio público, pois envolve o exercício de uma atividade administrativa mas não está, por natureza, excluído de entidades privadas. Mantendo-se o bem na titularidade de um dos três sujeitos públicos acima identificados, nada impede que sujeitos privados procedam à sua administração, de que é exemplo a situação prevista no artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, diploma que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, no qual se prevê no artigo 9.º, n.º 2, que entidades de direito privado, com título de utilização emitido por uma entidade pública, possam proceder à gestão de bens do domínio público hídrico.

Mas não é tanto desta situação que nos pretendemos ocupar mas mais dos casos de relacionamento entre o Estado e as regiões autónomas a propósito da gestão e administração do domínio público marítimo. Concretamente, trata-se de saber quais os limites à transferência de poderes ou faculdades de domínio do Estado para as duas regiões autónomas e se há poderes insuscetíveis de transferência para estes entes públicos menores.

O tema tem motivado uma intensa jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que não se poderá deixar uma nota na totalidade mas apenas um apontamento quanto ao sentido das decisões mais recentes.

Assim, no Acórdão n.º 131/2003, proferido no Proc. n.º 126/2003, refere-se que “é corolário necessário da não transferibilidade dos bens do domínio público marítimo do Estado a impossibilidade de transferência dos poderes que sejam inerentes à dominialidade, isto é, os necessários à sua conservação, delimitação e defesa, de modo a que tais bens se mantenham aptos a satisfazer os fins de utilidade pública que justificaram a sua afetação”.

E mais recentemente,  no Acórdão n.º 136/2016, prolatado no Proc. n.º 521/2015, emitido por causa de um pedido de fiscalização da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 38/2015, de 12 de março, que estabelece as Bases Gerais da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, apresentado pelo Governo Regional dos Açores, afirmou-se, a propósito dos poderes de gestão do espaço marítimo que cabem ao Estado e às regiões autónomas, que “atribuir em exclusivo ao Estado a titularidade dos bens em causa [domínio público marítimo], por poderosas razões que se prendem com a soberania, identidade e unidade do Estado, e depois admitir a possibilidade de tal atribuição, através de transmissão a outras entidades, ou de partilha com outras entidades, dos poderes essenciais ao domínio, seria uma opção constitucional destituída de sentido, pois, esvaziaria de conteúdo essa posição dominial”.

No entanto, não é por causa da manutenção da linha jurisprudencial constante que este último aresto é particularmente relevante mas sim porque em determinadas declarações de voto já se vislumbram brechas nessa orientação que permitem antever que a questão se encontra longe de estar encerrada, podendo vislumbrar-se, inclusive, uma alteração da posição que vem sendo maioritária entre os juízes do Palácio Ratton.

Avulta neste contexto a posição do Conselheiro João Pedro Caupers, que, a propósito do alcance do artigo 8.º, n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que confere a esta Região o direito de “exercer conjuntamente com o Estado poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado”, sustentou que “o conceito de gestão partilhada – necessariamente mais do que a mera intervenção consultiva na gestão, algo menos do que a codecisão – reclama, simplesmente, o máximo da capacidade de intervenção dos órgãos regionais compatível com o exercício da soberania do Estado português”24. E a concluir assinala que “não ignoro que se encontra atribuído ao Estado o monopólio da titularidade dos bens do domínio público marítimo. Mas estou convencido que é uma má opção. Entendo que a expansão dominial, por controversa que seja, deveria ser acompanhada do reconhecimento de que é indispensável, sem pôr em causa a soberania do Estado e as funções de autoridade que este exerce no mar português – nomeadamente nos planos da vigilância, segurança e polícia –, garantir a existência de algum domínio público marítimo açoriano e madeirense. A Lei Fundamental, de resto, não impõe a pertença dos espaços marítimos sob jurisdição nacional ao Estado, limitando-se a afirmar a sua integração no domínio público (artigo 84.º)”25.

Na verdade, embora no nosso entendimento o domínio público marítimo deva pertencer ao Estado por ser essencial para a defesa nacional e por ter a ver com a própria soberania do Estado português face à sociedade internacional26, não custa reconhecer que sendo impossível ao Estado assegurar uma gestão permanenente destes bens, é preferível que tal tarefa seja desempenhada pelas regiões autónomas, em lugar de nada ser feito quanto à proteção ou ao aproveitamento económico dos bens do domínio público marítimo. Por razões que se prendem com a proximidade face à realidade concreta, considera-se que uma maior valorização destes bens passa pela assunção de mais responsabilidades pelas regiões autónomas, no quadro da “gestão partilhada” dos bens do domínio público.

 

 

NOTAS

0 Carla Amado Gomes: Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP); Supervisora Científica da linha de pesquisa Energia, Recursos Naturais & Ambiente; Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto) - carlamadogomes@fd.ulisboa.pt.

1 Corresponde com algumas atualizações à intervenção proferida na Conferência sobre “Gestão e rentabilização de bens públicos”, realizada em 14 de dezembro de 2017, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

2 Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 36/2013, de 11 de março, pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, e pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro.

3 Publicada no Diário da Assembleia da República, II Série – A, n.º 87, de 21 de março de 2009, pp. 19 e ss.

4 O critério foi primeiramente enunciado por MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Adminitrativo, II, 10.ª edição, Coimbra, 1994, pp. 886 e ss.         [ Links ], e depois acolhido por FREITAS DO AMARAL, A utilização do domínio público pelos particulares, Coimbra, 1965, p. 13,         [ Links ] e por ANA RAQUEL MONIZ, O domínio público. O critério e o regime jurídico da dominialidade, Coimbra, 2004, pp. 158 e ss.         [ Links ]

5 Cfr. JOÃO MIRANDA, Comentário ao artigo 1.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in JOÃO MIRANDA / MIGUEL ASSIS RAIMUNDO / ANA GOUVEIA MARTINS / MARCO CAPITÃO FERREIRA / FILIPE BRITO BASTOS / JORGE PAÇÃO / SARA AZEVEDO / DAVID PRATAS BRITO, em comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Público. Domínio Público e Domínio Privado da Administração, Coimbra, 2017, p. 21.

6 Cfr. JOÃO MIRANDA, Comentário…, cit., p. 21.

7 Propugnando a excecionalidade do domínio público, v. JOSÉ PEDRO FERNANDES, Domínio público, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, IV, 1991, p. 179.

8 CHRISTOPHE ROUX, Propriété publique et Droit de l´Union Européenne, Paris, 2015, p. 749.

9 Cfr. MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Comentário ao artigo 3.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in JOÃO MIRANDA / MIGUEL ASSIS RAIMUNDO / ANA GOUVEIA MARTINS / MARCO CAPITÃO FERREIRA / FILIPE BRITO BASTOS / JORGE PAÇÃO / SARA AZEVEDO / DAVID PRATAS BRITO, Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Público. Domínio Público e Domínio Privado da Administração, Coimbra, 2017, p. 36. Do mesmo Autor, um tratamento mais desenvolvido desta problemática encontra-se em Os princípios no novo CPA e em particular o princípio da boa administração, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, 3.ª edição, I, Lisboa, 2016, pp. 281 e ss.

10 Conforme bem assinala MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Comentário…, cit., p. 39, a prossecução do interesse público financeiro descrita no artigo 18.º, n.º 2, alínea a) da Lei de Enquadramento Orçamental aponta no sentido de que uma das dimensões da economia e da eficiência consistir na “utilização do mínimo de recursos que assegurem os adequados padrões de qualidade do serviço público”. O Autor dá inclusive um exemplo em que a boa administração como economia e eficiência devem ser sacrificadas: um arrendamento de um imóvel acima do valor de mercado por haver necessidade de instalação urgente nesse local de um serviço público essencial.

11 Princípio introduzido na revisão constitucional de 1997.

12 Cfr. JORGE PAÇÃO, Comentário ao artigo 5.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in JOÃO MIRANDA / MIGUEL ASSIS RAIMUNDO / ANA GOUVEIA MARTINS / MARCO CAPITÃO FERREIRA / FILIPE BRITO BASTOS / JORGE PAÇÃO / SARA AZEVEDO / DAVID PRATAS BRITO, Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Público. Domínio Público e Domínio Privado da Administração, Coimbra, 2017, p. 46.

13 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Ensaio sobre a proteção constitucional dos direitos das gerações futuras, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, obra coletiva, Coimbra, 2010, p. 491.         [ Links ]

14 Cfr. JOÃO MIRANDA, Comentário ao artigo 51.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., p. 266.

15 Cfr. JOÃO MIRANDA, Comentário ao artigo 51.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., p. 266.

16 Cfr., para mais desenvolvimentos, JOÃO MIRANDA, Comentário ao artigo 1.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., pp. 25-26.

17 Cfr. FILIPE BRITO BASTOS, Comentário ao artigo 9.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., p. 58.

18 Cfr. FILIPE BRITO BASTOS, Comentário ao artigo 18.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., p. 115.

19 Cfr. MARCELLO CAETANO, op. cit., cit., pp. 891-893.

20 Cfr. FREITAS DO AMARAL, op. cit., cit., p. 167.

21 Cfr. CLAUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade. A propriedade à prova no Direito do Urbanismo, Lisboa, 2013, pp. 389 e ss.

22 Cfr. CLAUDIO MONTEIRO, op. cit., pp. 392-393.

23 Embora a Constituição não o impusesse (cfr. artigo 84.º, n.º 2), o legislador do RJPIP optou por limitar a estas pessoas coletivas de base territorial a titularidade dos bens do domínio público. Sobre o debate quanto à delimitação das entidades que poderão ser titulares destes bens, v. JOÃO MIRANDA, Comentário ao artigo 15.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, in Comentário…, cit., p. 91 e doutrina aí citada.

24 Cfr. Declaração de Voto do Conselheiro João Pedro Caupers proferida no Acórdão n.º 136/2016.

25 IDEM.

26 A Constituição não prevê que o domínio público marítimo pertença ao Estado, mas, dando tradução ao preceituado no respetivo artigo 84.º, n.º 2, o legislador ordinário veio conferir essa titularidade exclusiva ao Estado (artigo 4.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro).