SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número3IntroduçãoAlgumas notas sobre as alterações ao Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho operadas pela Lei n.º 76/2017, de 17 de agosto que define o Sistema de Defesa da Floresta Contra Incêndios índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.4 no.3 Lisboa dez. 2017

 

DESTAQUE

Reflexões (a quente) sobre o princípio da função social da propriedade

Reflexions about the principle of property's social function

 

Carla Amado Gomes0  

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade – Cidade Universitária, 1649-014 Lisboa. E-mail: carlamadogomes@fd.ulisboa.pt

 

RESUMO

Este artigo revisita o princípio da função social da propriedade, a propósito da questão da reforma da legislação florestal. O problema da terra abandonada, que potencia a propagação de fogos, e da eventual imposição de deveres, fiscais e outros, aos proprietários, não ficou resolvido mas reavivou o debate sobre os limites do direito de propriedade (rústica) no confronto com interesses sociais como a segurança, a protecção do ambiente e a defesa de direitos de terceiros. A propósito do relatório da Comissão Técnica Independente, cujo ponto 10 acentua a necessidade de um maior controlo do cumprimento dos deveres de limpeza e cuidado pelos proprietários rurais, empreendeu-se um percurso pelo Direito Constitucional e pela jurisprudência constitucional portuguesa, bem assim como pela Constituição brasileira — a que mais desenvolvimento deu ao princípio no seu seio —, a fim de analisar a valia de algumas soluções eventualmente a implementar no futuro.

 

Palavras-Chave: Propriedade * Função social * Floresta * Bolsa de Terras

 

ABSTRACT

This article revisits the principle of property's social function having in mind the recent reform of forestries legislation. The problem of abandoned land, which encourages the propagation of fires, and the eventual imposition of duties and taxes on landowners, has not been solved but has revived the debate about the limits of (rustic) property rights in confronting social interests as security, environmental protection and the defense of third party rights. Regarding the report of the Independent Technical Commission (point 10) emphasising the need for a greater control of the fulfilment of the duties of cleaning and care by the rural proprietors, we go through Portuguese Constitutional Law and constitutional jurisprudence, as well as through the Brazilian Constitution – the one that more developed the principle - in order to analyse the value of some solutions that may be implemented in the future.

 

Keywords: Property * Social function * Forest * Land Bank

 

Sumário

Introdução; 1. A “função social da propriedade”: uma fórmula irradiante; 1.1. A função social da propriedade na Constituição da República Portuguesa; 1.2. A “função ecológica” da propriedade como desdobramento da função social; 1.3. A função social da propriedade na Constituição do Brasil (de 1988); 2. Função social e abandono da terra: as recomendações da Comissão Técnica Independente; 3. Nota conclusiva

 

0. Introdução 

Em 2017, vivemos a Primavera, o Verão e o Outono do nosso descontentamento. Os devastadores incêndios que consumiram, entre 1 de Janeiro de 2017 e 31 de Outubro último, um total de 442.418 hectares de espaços florestais, entre povoamentos (264.951 ha) e matos (177.467 ha)1, que mataram mais de uma centena de pessoas e feriram mais de três centenas, que destruíram habitações e instalações industriais em proporções inéditas, além de provocarem uma onda de consternação nacional, iluminaram um conjunto de omissões a que o Governo reagiu com um vasto leque de medidas, tanto no plano do ordenamento florestal como da protecção civil, quer no campo da prevenção como da fiscalização. Se é inegável que as tragédias foram fruto de uma conjugação de circunstâncias, humanas e climáticas, que agravou muito o risco e potenciou os danos2, a verdade é que a gestão do risco de incêndio revelou muitas fragilidades, as quais importa corrigir ponderadamente, uma vez que o quadro climático futuro — com extremar de secas e de ondas de calor — é propício à repetição de eventos como os deste Verão.

Como se verifica pela consulta aos múltiplos diplomas emanados do Governo, nos dois momentos de resposta emergencial, este é um problema com várias “frentes” — sociais, ambientais, económicas, jurídicas, administrativas. Na impossibilidade de analisar todas elas, vamos circunscrever-nos a um tema que tem merecido algum debate neste contexto, que está subjacente ao único diploma que não foi aprovado no pacote de Junho (o “Banco de Terras”), e que é sublinhado pela Comissão Técnica Independente (CTI) como uma prioridade: referimo-nos à função social da propriedade.

 

1. A função social da propriedade: uma fórmula irradiante

A função social da propriedade foi uma “invenção” de León Duguit, que num conjunto de seis conferências proferidas na Universidade de Buenos Aires, em 1911, explanou o conceito e o filiou no princípio da solidariedade. Duguit parte do pressuposto de que a autonomia proclamada pelo Estado liberal, que fecha o indivíduo em si próprio, não é natural; é antes a interrelação entre as pessoas que está na base do conceito de sociedade, interrelação essa que se traduz na solidariedade. A propriedade é um conceito que pressupõe o indivíduo como uma ilha, quando a pessoa é, ao contrário, essencialmente gregária e interdependente. Logo, a propriedade não deve servir apenas interesses individuais, mas sim ser “produtiva”, numa lógica de interesse comunitário. Note-se que o pensamento de Duguit não tem qualquer filiação marxista ou socialista, uma vez que não preconiza nem a apropriação colectiva de meios de produção nem a propriedade exclusivamente pública. Duguit apenas acentua a necessidade de transformar uma riqueza individual num benefício também colectivo3.

A teoria de Duguit influenciou várias Constituições, de forma expressa. A primeira delas foi a Constituição do México, de 1917, em cujo artigo 27º se dotava o poder público de competência para impor restrições ao direito de propriedade, “em benefício social” e em prol de uma distribuição equitativa de recursos. Na Europa, foi a Constituição de Weimar, de 1919, a pioneira na consagração do princípio da função social da propriedade — o seu artigo 153º dispunha o seguinte: “A propriedade é garantida pela Constituição. Os seus conteúdo e limites serão fixados por lei. A propriedade acarreta obrigações. O seu uso deve fazer-se igualmente no interesse geral”. Este preceito influenciou marcadamente a Lei Fundamental de Bona, de 1949, que afirma, no n.º 2 do artigo 14º, que “A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem da comunidade”.

Paralelamente, a Constituição italiana de 1947 estabelece, no artigo 42.º, que “A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina os seus modos de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a sua função social e torná-la acessível a todos”. Por seu turno, a Constituição espanhola de 1978 dita, no n.º 2 do artigo 33º, que “A função social destes direitos [à herança e à propriedade] limita os seus conteúdos, em conformidade com a lei”. Já a Constituição portuguesa de 1976 (doravante, CRP) não utiliza a expressão4, mas isso não impediu o Tribunal Constitucional de afirmar a sua valência, no Acórdão 76/85, onde se escreveu que “[...] a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função social”.

 

1.1 A função social da propriedade na Constituição da República Portuguesa

Com efeito, a nossa Constituição garante a protecção do direito de propriedade no artigo 62.º, remetendo implicitamente o desenho das faculdades nele contidas para a lei civil, que absorve o percurso histórico do instituto (cfr. o artigo 1305º do Código Civil, doravante CC)5. Ser proprietário traduz-se em gozar de forma plena e exclusiva dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertençam, embora com os limites e restrições impostos pela lei, estabelece o CC. E a Lei Fundamental, precisamente no artigo 62.º, n.º 2, reconhece na utilidade pública uma das restrições possíveis ao direito de propriedade — a mais drástica, uma vez que o extingue —, mas sempre com a contrapartida da justa indemnização. 

O direito de propriedade, como realçam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA não figura entre os direitos, liberdades e garantias, na CRP. Isso não lhe diminui importância, mas retira-lhe “ a dimensão quase sacrossanta que lhe era conferida no «individualismo possessivo» e na concepção tradicional conservadora dos direitos fundamentais assente na indissociabilidade da liberdade e propriedade”6. Note-se, de resto, que logo o artigo 17º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que lançou o modelo para as Constituições liberais e para as modernas Cartas de Direitos, muito embora caracterizando o direito de propriedade como um direito “inviolável e sagrado”, não deixou de ressalvar a excepção da “necessidade pública” como causa de restrição, acentuando a contrapartida da “justa e prévia” indemnização. 

Assim, e como o Tribunal Constitucional teve oportunidade de realçar, no Acórdão 257/92,

“(…) poderá afirmar-se que além dos limites estabelecidos pela própria Constituição (no que respeita à propriedade de meios de produção), deve entender-se que o direito de propriedade está indirectamente sob reserva das restrições estabelecidas por lei, dado que a Constituição remete em vários lugares para a lei (cfr. artigos 82.º, 87º e 99º). Aliás, o próprio artigo 62.º, inclui, ele mesmo, uma cláusula geral de expropriação por utilidade pública (n.º 2) sendo esta evidentemente um caso limite das possíveis restrições legais ao direito de propriedade privada. 

Por outro lado, a garantia do direito de propriedade não inclui, só por si, a garantia da liberdade de empresa, pois a Constituição estabelece uma clara distinção entre direito de propriedade e iniciativa económica privada (cfr. artigo 85º). Em todo o caso, terá de se considerar que os limites constitucionais estabelecidos para a iniciativa económica privada implicam uma autorização constitucional para as necessárias restrições ao uso e fruição da propriedade. 

Finalmente, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e à admissão de restrições, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros, das liberdade de uso, fruição e disposição”.

 

A CRP, no entanto, não se fica por esta proclamação garantista e liberal; antes adjectiva o exercício do direito de propriedade numa perspectiva de utilidade social — apontando para a função social da propriedade que outras Constituições expressamente identificam no seu seio. Realce-se que, depois de inserir o direito de propriedade na secção dos “Direitos económicos, sociais e culturais” — o que o não impede de revestir a natureza de direito fundamental de natureza análoga7 —, a CRP faz abundantes referências à propriedade rústica na Parte (II) da “Organização Económica”, contextualizando a propriedade numa lógica de utilidade social. 

Os condicionamentos impostos pela necessidade de proteger o ambiente e de promover uma gestão racional dos recursos naturais devem compreender-se, hoje, na noção de “função social” da propriedade rústica — vejam-se os artigos 66º, n.º 2, alínea d) e 93º, alínea d) da CRP. O Tribunal Constitucional teve oportunidade de o confirmar no Acórdão 866/96, em tema de direito de caçar, embora em termos que não seguimos inteiramente. No que aqui interessa reter, vale frisar que o Tribunal reconheceu autonomia a um interesse colectivo (lúdico, dos caçadores, de convívio com a Natureza) em face de um interesse individual (dos proprietários sujeitos ao regime geral), sendo que o primeiro justifica a compressão de algumas faculdades de uso exclusivo do proprietário. Pela nossa parte, preferiríamos que o Tribunal tivesse filiado a função social que aqui invocou nas normas que citámos acima — e às quais a Conselheira Fernanda Palma apela na sua Declaração de Voto, na qual nos revemos inteiramente, quando escreve que “a Constituição consagra um relacionamento da pessoa com o ambiente (artigo 66º, n.º 1) incompatível com tais pressupostos [antropocêntricos, da liberdade irrestrita de caçar] ou, no mínimo, superador desta visão das coisas, considerando a estabilidade ecológica como incumbência do Estado [artigo 66º, n.º 2, alínea d)]”. 

São, além disso, de realçar, no texto da CRP: a afirmação de que a política agrícola assenta, entre outros, nos princípios do acesso à propriedade ou posse da terra directamente por aqueles que a trabalham [artigo 93º, alínea b)], e do uso e gestão racional dos solos e dos restantes recursos naturais, nos limites da sua capacidade regenerativa [artigo 93º, alínea d)]8; que os meios de produção em abandono podem ser expropriados, bem como ser objecto de arrendamento ou concessão de exploração compulsivos, em condições a fixar pela lei (artigo 88º, n.ºs 1 e 2); que os modelos de exploração agrícola deverão conformar-se com a política agrícola, podendo haver expropriação de latifúndios de excessiva grandeza e redistribuição das terras por pequenos agricultores, nos termos da lei e sem prejuízo de um período probatório de teste da viabilidade e racionalidade dessa exploração (artigo 94º, n.º 2); e que os regimes de arrendamento e outras formas de exploração da terra alheia serão regulados por lei, de modo a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador (artigo 96º, n.º 1).

 

A propósito deste último segmento, o Tribunal Constitucional teve ocasião, num processo de fiscalização sucessiva abstracta promovido pelo Provedor de Justiça, de afirmar que a função social pode justificar a remição do arrendamento rural pelo arrentário/rendeiro. O Tribunal, no Acórdão 159/07, começou por realçar que as restrições admitidas pela Constituição ao direito de propriedade não se circunscrevem às descritas no artigo 62.º, n.º 2, ou seja, não se limitam à requisição e expropriação por utilidade pública. No entender dos Juízes do Palácio Ratton, o âmbito de protecção da norma que reconhece o direito de propriedade está condicionado, na sua extensão, “pela complexa ordem de valores constitucional”. Ora, esta protecção, no que à propriedade de um elemento de produção como o solo rural diz respeito (um bem escasso), tem por pressuposto a sua utilização racional, o que lhe associa “efeitos que de algum modo ultrapassam a esfera de interesses do seu proprietário”. 

O Tribunal Constitucional reiterou argumentos já avançados pela Comissão Constitucional (no Acórdão 404/82) em sede de apreciação da constitucionalidade do mecanismo da remição previsto no extinto regime da colonia, em cujo plano operava também uma “transmissão forçada” da esfera do proprietário para a do rendeiro que implantara benfeitorias não removíveis da terra cultivada. É inegável que, numa translação deste tipo, o direito de propriedade do primeiro fica inelutavelmente sacrificado perante o direito de apropriação do segundo; mas cumpre sublinhar que a transmissão para o rendeiro é feita em homenagem a um princípio que de certa forma alça uma posição individual a instrumento da realização também de um interesse colectivo — a rentabilização económica da terra —, o que lhe confere uma força acrescida na ponderação de interesses.

No Acórdão em apreço não poderia deixar de se cumprir um último rito argumentativo, de passagem obrigatória: a avaliação da proporcionalidade da medida. Depois de observar que a remição é facultativa e se faz contra o pagamento de uma quantia pelo rendeiro ao proprietário, a determinar em função de critérios legalmente previstos e objectivamente justos, o Tribunal Constitucional considerou a norma não inconstitucional, ainda que, em bom rigor, o teste da menor onerosidade possível da medida restritiva, em concreto, pudesse revelar outras vias menos gravosas — mas esse é um domínio que, salvo erro manifesto, cabe no núcleo incomprimível de escolha do legislador democrático, ao qual o Tribunal deve conceder um crédito de confiança.

 

Todas estas normas concorrem para concluir que à CRP não basta garantir a existência do direito de propriedade numa dimensão puramente liberal; antes lhe acrescenta uma vertente social, que se induz da interpretação sistemática dos preceitos mencionados. Esta vertente social atenta na necessidade de distribuição de riqueza promovida pela exploração agrícola pelos pequenos agricultores, mas prende-se igualmente com vinculações jusambientais, que militam no sentido de uma exploração ecologicamente equilibrada de um recurso escasso — o solo rústico9.

 

1.2 A “função ecológica” da propriedade como desdobramento da função social

A este propósito, cumpre notar que existe pelo menos uma Constituição que distingue entre função social e função ecológica10. É o caso da Constituição colombiana de 1991 (revista em 2015), cujo artigo 58.º, §2.º, estabelece que “A propriedade é uma função social que implica obrigações. Como tal, é-lhe inerente uma função ecológica”. Esta norma, que é vista como uma evolução de uma concepção antropocêntrica para uma concepção biocêntrica de ambiente, muito comum nos Estados da América Latina, já foi invocada algumas vezes perante a Corte Constitucional da Colômbia. Apesar de constituir uma limitação acrescida aos poderes dos proprietários, a função ecológica não implica forçosamente a nacionalização da terra, sendo certo que se a afectação de poderes tradicionalmente ligados à propriedade for tão intensa que reduza a propriedade a uma realidade vazia de faculdades para o seu titular, em nome da salvaguarda de valores ecológicos, há direito a expropriação de utilidade pública com atribuição de indemnização àquele.

Num dos Acórdãos mais representativos (C-126/98), a Corte Constitucional colombiana afirmou o seguinte:

 “36. (...) En efecto, como ya se mostró, la Carta autoriza el dominio sobre los recursos renovables, aunque, como es obvio, debido a la función ecológica que le es inmanente (CP art. 58), ese derecho de propiedad se encuentra sujeto a las restricciones que sean necesarias para garantizar la protección del medio ambiente y para asegurar un desarrollo sostenible (CP arts 79 y 80). Además, esa misma función ecológica de la propiedad y la primacía del interés general sobre el particular en materia patrimonial (CP art. 58) implican que, frente a determinados recursos naturales vitales, la apropiación privada puede en determinados casos llegar a ser inconstitucional. Igualmente la Corte considera que, con esos mismos fundamentos constitucionales, el Estado puede también legítimamente convertir en bienes de uso público determinados recursos renovables considerados de utilidad social, aunque, como es obvio, y teniendo en cuenta que la Carta reconoce la propiedad privada adquirida con arreglo a las leyes, en tales eventos es deber de las autoridades reconocer y expropiar los dominios privados que se hubieran podido legalmente consolidar”.

 

Normas como esta, ou se limitam a cumprir uma função decorativa, ou fundamentam opções políticas que rompem com o paradigma tradicional da intangibilidade da propriedade privada11. Afirmar que a propriedade — rústica — pode ter, além de uma função social, de produtividade abstracta, uma função ecológica, de preservação e promoção do valor ecológico dos solos e habitats naturais, significa, por exemplo, que a terra privada pode ser expropriada para realizar tais funções e que o valor da expropriação deverá pautar-se por critérios distintos dos gerais (presentes em Códigos de Expropriações por utilidade pública). Ou, numa linha mais atenuada de “expropriação” (enquanto expropriação de faculdades ou quase-expropriação), pode sustentar a imposição ao seu proprietário de ónus de conservação de componentes ambientais relevantes, cuja proporcionalidade deverá ser avaliada para determinação do direito a compensação (por facto lícito)12. Como igualmente aponta para que o proprietário privado possa ser compensado por se abster de usos puramente económicos do solo e providenciar serviços ambientais. Ou ainda e sem querer esgotar os exemplos, tal norma pode justificar que, num esquema de arrendamento ou venda de terras forçados — ou seja, cujos proprietários não observam os requisitos mínimos de exploração útil da terra — se exijam, nos concursos, candidaturas que privilegiem projectos com dimensão ecológica, ligados à agricultura com métodos biológicos ou à preservação de espécies ameaçadas.

Retomando uma vez mais as palavras da Corte Constitucional da Colombia,  no aresto supra citado,

“36. (...) Ahora bien, en la época actual, se ha producido una "ecologización" de la propiedad privada, lo cual tiene notables consecuencias, ya que el propietario individual no sólo debe respetar los derechos de los miembros de la sociedad de la cual hace parte (función social de la propiedad) sino que incluso sus facultades se ven limitadas por los derechos de quienes aún no han nacido, esto es, de las generaciones futuras, conforme a la función ecológica de la propiedad y a la idea del desarrollo sostenible. Por ello el ordenamiento puede imponer incluso mayores restricciones a la apropiación de los recursos naturales o a las facultades de los propietarios de los mismos, con lo cual la noción misma de propriedad privada sufre importantes cambios”.

 

Com ou sem desdobramentos, a cláusula da função social da propriedade surge como uma espécie de abuso de direito ao contrário13: no contexto do Estado liberal, a preocupação era a de evitar que o proprietário, senhor absoluto do bem, fizesse um uso das suas faculdades que pudesse perturbar a utilização da propriedade de terceiros (recorde-se o exemplo paradigmático do proprietário condenado pelo Tribunal de Apelação francês de Colmar, em 1855, por ter construído no seu prédio uma chaminé falsa, totalmente inútil, com a única finalidade de tapar uma janela do vizinho); reversamente, no quadro do Estado social, importa verificar a efectiva utilização da propriedade para os fins que lhe são naturais, por um proprietário cuja atitude revela um défice de desenvolvimento das suas faculdades e um subaproveitamento das utilidades do bem. A lógica da função social corresponde a um poder que é simultaneamente dever, a uma prerrogativa de exercício não solitário mas solidário14, a um feixe de faculdades que “impõe ao proprietário o dever de exercê-las, atuando como fonte de comportamentos positivos”15. A propriedade, como estabelece a Lei Fundamental de Bona supra citada, “obriga”.

 

1.3 A função social da propriedade na Constituição do Brasil (de 1988)

É na Constituição do Brasil (de 1988)16 que a “função social” surge desenhada com mais amplitude e com maior detalhe. Desde logo, a Constituição brasileira faz figurar a função social da propriedade como um dos pilares da ordem económica do Estado (artigo 170º, III), e tanto imóveis urbanos como rústicos a devem cumprir17. A aferição da observância da função social obedece a critérios descritos no artigo 186º: “I) aproveitamento racional e adequado; II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III)  observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Como se vê, a função social da propriedade rural aparece aqui desdobrada em três dimensões —económica, ecológica e socio-laboral —, devendo cada tipo de propriedade ser exercida, descontando as suas particularidades, tendo em conta a realização de todas (mas ver infra, a propósito do artigo 185º)18.

No caso dos imóveis urbanos, o artigo 182.º, §2.º afirma que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. O §4º do mesmo preceito atribui aos municípios, no quadro de lei federal e nos termos do plano urbanístico aplicável, o poder de exigir “do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I) parcelamento ou edificação compulsórios; II) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III) desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. Acresce a previsão do corpo do artigo 183º, que admite a aquisição, por ocupação ininterrupta e sem oposição por cinco anos19, de área urbana até duzentos e cinquenta metros quadrados “desde que a utilize para sua moradia ou de sua família (...) [e] desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”20

No caso dos imóveis rústicos, a previsão do corpo do artigo 184º é bem ilustrativa dos poderes da União no que toca a fazer observar a função social da propriedade rural aos seus proprietários, conferindo-lhe o poder de desapropriação/expropriação da mesma, sempre com intervenção dos tribunais, “mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. Estamos aqui perante o que a doutrina brasileira caracteriza como desapropriação-sanção, que tramita de modo bifásico: em primeira linha, um procedimento administrativo (para aferir, através de parâmetros  técnicos, se a terra é produtiva); em segunda linha, um processo judicial no âmbito do qual se discute o valor da indemnização, que reveste a particularidade de ser paga em títulos de dívida e não em dinheiro, como o seria em caso de expropriação por utilidade pública.

Esta norma é falsamente ampla, uma vez que o artigo 185º excepciona da possibilidade de expropriação-sanção os imóveis de pequenos e médios proprietários que não possuam outros. Além disso, e em clara afronta ao artigo 184º, excepciona igualmente a propriedade “produtiva” — o que deve ser lido como a propriedade que, mesmo não cumprindo a sua função social, tenha rendimento económico, ou seja, que seja utilizada em proporção igual ou superior a 80% e cujo grau de eficiência seja igual ou superior a 100%21. Este contra-critério ignora o catálogo ínsito no artigo 186º como traduzindo, na globalidade da sua observância, o cumprimento do princípio da função social, na medida em que menospreza todos os critérios aí consignados salvo o primeiro.

Com efeito, o artigo 186º, quando densifica os critérios a que se resume a função social, explicita a diferenciação entre aproveitamento economicamente e ecologicamente adequado (I. e II.). Isto traduz-se em que “não se objectiva a exploração pela exploração ou a exploração a qualquer custo [uma vez que] nada adianta a exploração excessiva, que esgota o potencial produtivo da terra”22. Porém, a difícil articulação entre o princípio estabelecido no artigo 184º e as excepções consignadas no artigo 185º, leva a que nenhuma propriedade economicamente produtiva possa ser objecto de desapropriação-sanção mesmo que o seu uso seja ecologicamente incorrecto (embora possa sofrer outro tipo de sanções) e que os critérios laborais não sejam observados23. Em contrapartida, a propriedade rústica que não seja explorada ou que seja insuficientemente explorada pelo grande proprietário pode ser expropriada a titulo sancionatório, uma vez constatada (através de um due process) essa inutilidade social. E, independentemente da expropriação-sanção, os entes públicos podem impôr ónus relacionados com vinculações de natureza ecológica aos proprietários (que traduzem um dos critérios de função social)24, cabendo aferir, sobretudo em face do princípio da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso, se cabe compensação por facto lícito ou se deve reconduzir tal dever ao princípio do usuário-pagador25.

No plano dos bens imobiliários privados, urbanos ou rústicos, a Constituição do Brasil tão pouco esquece a necessidade de exercer as faculdades inerentes ao direito de propriedade, estabelecendo no corpo do artigo 191.º que “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”26. Note-se que aqui o princípio da função social vai ainda mais longe do que no caso supra analisado, da propriedade rústica, uma vez que o artigo 191.º autoriza a translação da propriedade, em nome do princípio da função social, entre privados e não, como no caso descrito no artigo 184º, a favor da União. O que acentua a ideia de que o princípio da função social da propriedade induz “uma verdadeira metamorfose qualitativa do direito na sua realização concreta, dirigida à satisfação de exigências de carácter social”27.

 

2. Função social e abandono da terra: as recomendações da Comissão Técnica Independente

Como começou por escrever-se, estas reflexões relacionam-se com um dos problemas identificados pela CTI como causa dos incêndios ou como causa de maximização dos seus danos. Na verdade, o combate ao abandono da terra constitui, na perspectiva da CTI, um objectivo fundamental a perseguir no quadro da reforma da legislação florestal. Conforme pode ler-se no Ponto 10.10 do Relatório da CTI:

 

“O abandono rural, refletido nas propriedades sem dono conhecido ou sem intenção de intervenção, e os grandes incêndios florestais como consequência, constituem os maiores entraves à valorização do espaço e à necessária compartimentação da paisagem que podem contribuir de forma preponderante para a contenção dos GIF [Grandes Incêndios Florestais]. 

(...) A CTI considera que são necessárias mudanças no quadro institucional e nas políticas públicas que, sem alterar a atual distribuição da propriedade, promovam de modo decidido a mobilização produtiva e a adequada gestão das terras. Dois princípios devem presidir a essas medidas: o exercício dos direitos associados à propriedade privada subordina-se e deve estar condicionado a prioridades coletivas (a começar pela segurança das pessoas); o Estado não se substitui aos proprietários que cumpram os seus deveres, mas corresponsabiliza-os no cuidado e gestão das suas terras. 

Algumas iniciativas desenvolvidas nos últimos anos, como os Fundos Imobiliários Florestais, as zonas de intervenção florestal (ZIF) e, mais recentemente, as entidades de gestão florestal (EGF), são bons exemplos que pretendem estabelecer fórmulas que possibilitam a constituição de unidades produtivas de dimensão suficiente, através do ordenamento e gestão comum das superfícies florestais de diferentes proprietários. Mas essas figuras têm duas fortes condicionantes à gestão ou de implementação de medidas de proteção estrutural: a incorporação das terras é sempre voluntária para os proprietários, e pressupõe sempre a sua identificação.

 

A CTI recomenda: 

 

a) O quadro normativo das ZIF e das EGF deve estabelecer que o ordenamento florestal e as decisões sobre gestão da terra num perímetro territorial, uma vez que seja aprovado pela maioria dos seus proprietários, obrigará todas as propriedades desse perímetro. Isto é aplicável às terras sem dono conhecido (já estabelecido para as EGF) mas também às restantes propriedades. Em qualquer caso deverá ser obrigatória a integração das propriedades na ZIF ou EGF, sempre que seja delimitada uma zona de intervenção integrada, apoiada num plano de gestão da área correspondente[28]. 

Para resolver as impossibilidades criadas pela falta de identificação de proprietários, devem ser criadas disposições legais que permitam que a intenção de realizar investimentos e de gerir interesses comuns (entenda-se da comunidade ou de grupo de proprietários), se possa sobrepor à ausência de registo de propriedade ou da falta de participação de proprietários por um tempo determinado, salvaguardando-se sempre os direitos de propriedade. 

 

b) Aprovação de um normativo que introduza a obrigação de todos os proprietários se corresponsabilizarem na gestão das suas terras, estabelecendo um regime sancionatório para os que incumpram essas obrigações (para os proprietários de terras em situação de abandono manifesto que constituam comprovadamente um elevado risco de incêndio para as propriedades limítrofes, estando estas integradas num plano de gestão). 

Nestas condições os proprietários podem ter três opções: iniciar uma gestão adequada das terras; integração das terras numa ZIF, EGF ou outra fórmula de gestão coletiva; ou cedência das propriedades ao Banco de Terras (ou na Bolsa Nacional de Terras). 

 

c) Implementação de medidas conducentes à perca de direitos de propriedade, em situações de interesse público, para quem não assegurar os mínimos deveres de proprietário, nomeadamente a atualização de registos nas conservatórias /finanças. 

Este normativo poderia ter aplicação, numa fase inicial, nas áreas declaradas de alto e muito alto risco de incêndio e em Zonas de Proteção aos Aglomerados”. 

 

Resulta deste conjunto de recomendações um crescendo argumentativo no sentido de tornar efectivos os instrumentos que existem e, se necessário, adoptar novas medidas que responsabilizem os proprietários rurais pela boa gestão das suas terras29. Repare-se que a CTI alude às zonas de intervenção florestal (criadas pelo DL 127/2005, de 5 de Agosto, e com várias alterações, sendo a última a introduzida pelo DL 27/2014, de 18 de Fevereiro) e às Entidades de Gestão Florestal, de criação recente (DL 66/2017, de 12 de Junho) —ambos mecanismos de agregação de terra rústica para fins de exploração silvícola, numa lógica de incremento da rentabilização a partir da extensão (uma ZIF tem no mínimo 500 ha, e uma EGF, 100 ha), com repartição de custos e benefícios. A CTI ressalta também a interpenetração destas realidades (nomeadamente, das EGF) com o Banco de Terras (único diploma que soçobrou na discussão parlamentar e que virá eventualmente substituir parcialmente a Bolsa de Terras), numa tentativa de dar ainda mais continuidade à exploração, na medida em que do Banco de Terras farão parte, além de terrenos rústicos do domínio privado do Estado e dos Institutos Públicos30, terrenos sem dono conhecido.

 

O Banco de Terras será, a vingar tal solução, um sucessor da Bolsa de Terras31, criada pela Lei 62/2012, de 10 de Dezembro32 — e que tem revisão programada para Dezembro de 2017. A Bolsa de Terras tem por objectivo “facilitar o acesso à terra através da disponibilização de terras, designadamente quando as mesmas não sejam utilizadas e, bem assim, através de uma melhor identificação e promoção da sua oferta” (artigo 3º, n.º 1). As terras podem ser de propriedade pública (domínio privado do Estado, autarquias e outras entidades públicas), privada ou baldios, e são cedidas pelos proprietários em arrendamento rural33, gerido pela Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento rural (e por entidades por si autorizadas), que lhes pode cobrar uma taxa pelo serviço prestado. 

Para além de dinamizar a aproximação entre oferta e procura de terras com aptidão agrícola, florestal e pastoril, a Bolsa de Terras tem também por missão promover o aproveitamento económico de terras sem dono conhecido e não utilizadas para os fins enunciados. Aqui, ao contrário do que sucede relativamente a terras com dono identificado, o princípio não é — naturalmente — o da voluntariedade, antes sendo os contratos celebrados com a entidade gestora e ficando submetidos a várias condicionantes.

A questão da gestão dos terrenos sem dono conhecido foi a mais sensível — e continua a ser. A solução da Lei 62/2012 foi a de permitir a sua integração na Bolsa de Terras, com possibilidade de arrendamento pela entidade gestora por períodos máximos de um ano e por um prazo máximo de 15 anos (o prazo de aquisição da propriedade por usucapião, sem registo do título ou da posse, com boa fé: artigo 1296º do CC), e integração da terra no domínio do Estado a partir dessa dilação temporal34. O proprietário, cuja identidade se procura obter através de um processo de reconhecimento regulado pela Lei 152/2015, de 14 de Setembro (actualmente revogada pela Lei 78/2017, de 17 de Agosto35) pode, até ao limite dos 15 anos sobre o reconhecimento do prédio como “sem dono conhecido”36, reclamar os seus direitos sobre a terra, mas deve respeitar os contratos em curso.

Refira-se que a Lei 62/2012 é acompanhada pela Lei 63/2012 na fixação de benefícios à integração de terras na Bolsa de Terras. Por um lado, o IMI é reduzido entre 50 a 100%37 e, por outro lado, o proprietário que não havia cumprido as suas obrigações registais e que o queira fazer para poder integrar o seu prédio na Bolsa de Terras beneficiará de uma redução de 75% no valor dos emolumentos.

Sem embargo de a Lei 62/2012 ter gerado alguns movimentos de dinamização de Bolsas de Terras locais através das Câmaras Municipais (Ponte Lima, 2013;  Figueira da Foz, 2014; Alfândega da Fé, 2015; Santa Maria da Feira, 2016; Vieira do Minho, 2016; Marvão, 2016; Vagos, 2017), e de a área disponível já ir além de 10.000 ha, estamos em presença de números manifestamente baixos, tendo em conta a dimensão do país e o número de municípios envolvidos. Porventura os incentivos previstos na Lei 63/2012 ficam aquém das necessidades de revitalização de um sector que assistiu a uma redução das explorações agrícolas em ¼, que viu desaparecer metade das explorações com menos de 5 ha, e que perdeu mais de 100 mil pessoas, entre 1999 e 200938. O êxodo rural, intensificado desde a década de 1990, que envelheceu o interior e esqueceu agricultura e pastorícia, não se altera sem contrariar a tendência de litoralização do país — como já se escreveu, “se Portugal fosse uma jangada já se tinha virado”39 —, sem dar novas e promissoras perspectivas  a quem quer trabalhar a terra. Esta observação vale, claro, para o diploma que vier a revogar a Lei 62/2012.

 

A CTI não descarta, porém, a aplicação de medidas mais gravosas, como sanções a proprietários negligentes e mesmo perda do direito de propriedade. Tendo em consideração que a legislação já prevê a aplicação de contraordenações aos proprietários que não implementem (devidamente) as medidas preventivas estabelecidas na legislação sobre o sistema nacional de defesa contra incêndios (inscrito no DL 124/2006, de 28 de Junho, com última alteração pelo DL 76/2017, de 17 de Agosto) e nos planos (sobretudo, municipais e intermunicipais) elaborados ao abrigo dessa legislação (cfr. o artigo 10º do DL 124/2006), bem assim como a imputação de despesas realizadas em acções de execução substitutiva em face da inércia daqueles, cobráveis, no limite, em processo de execução fiscal (cfr. o artigo 21.º do DL 124/2006), que sanções restariam? O projecto de lei do Bloco de Esquerda sobre o Banco Público de Terras Agrícolas40 previa, num primeiro momento —  pressupondo, antes de mais, a identificação do proprietário, e ainda a realização de um procedimento administrativo de declaração de abandono41 —, o agravamento do IMI para o dobro, através de uma alteração do Código do IMI (alteração vigente desde 2006, em bom rigor, ainda que apenas para prédios rústicos com áreas florestais42; e já previsto, desde 2011, em sede de imóveis urbanos devolutos há mais de um ano e meio, para o triplo43). E, num segundo momento, o arrendamento compulsivo dos imóveis ao Banco/Bolsa de Terras, caso por três anos consecutivos tenham sofrido o agravamento do IMI (ou seja, tenham permanecido na atitude de abandono da terra) e desde que a tal tenham sido condenados por sentença do tribunal comum da área da situação do bem44. Ressalte-se que o Projecto filia esta possibilidade no n.º 2 do artigo 88º da CRP, cujo n.º 1 admite mesmo a  expropriação “dos meios de produção em abandono”45.

Por ora, mantém-se em vigor a Lei 62/2012, que criou a Bolsa de Terras, mas perdeu-se a possibilidade de continuar a desenvolver os procedimentos de identificação de donos de terras sem dono conhecido, uma vez que a Lei 78/2017 (que cria o cadastro simplificado) revogou, no seu artigo 30º, a Lei 125/2015, mas não lhe substituiu sistema de idêntico alcance, pois tem um âmbito de aplicação territorial restrito às zonas indicadas no artigo 31.º (“como projecto-piloto, à área dos municípios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Penela, Sertã, Caminha, Alfândega da Fé e Proença-a-Nova”. Se por distração, se intencionalmente, certo é que esta paralisia, não inviabilizando que as terras sem dono conhecido integrem de imediato o Banco de Terras, inviabiliza a contagem de prazos para que as terras declaradamente orfãs passem para o domínio privado do Estado e possam ser definitivamente transaccionadas.

A Lei 78/2017 representa, descartado este pormenor, um avanço assinalável na resolução de (parte) do problema da gestão da terra rústica e sobretudo florestal. Este diploma, uma vez ultrapassada a fase “experimental” e alargado a todo o território, permitirá trazer ao Registo Predial muitos prédios rústicos de cuja existência a Autoridade Tributária tem conhecimento (e aos quais dirige notas de liquidação do IMI) mas cuja titularidade não é conhecida das entidades administrativas46 — nomeadamente, para efeitos de aplicação de contraordenações por não cumprimento das obrigações de gestão de combustível/limpeza de terrenos previstas no DL 142/2006. Intensificando-se este controlo talvez alguns proprietários se tornem mais conscientes de que “a propriedade obriga”, sobretudo quando está em causa a segurança de pessoas e bens. Sem querer diabolizar aqui a figura do proprietário rural e também sem esquecer que muitas falhas houve das entidades públicas na gestão dos incêndios florestais dos últimos meses, a verdade é que 85% da terra em Portugal é de propriedade privada e que a falta de cuidado na sua gestão contribuiu, comprovadamente, para o agravamento do potencial combustível no terreno. 

Não basta, contudo, evitar que a propriedade cause dano a terceiros; essa era a lógica liberal, que leva à clássica proibição de abuso de direito e que fundamenta resposta afirmativa à questão de saber se se pode obrigar um ou dois proprietários a cumprir um plano de gestão florestal, através da limpeza dos seus terrenos — a sua inércia não pode comprometer o sucesso da actuação dos restantes proprietários vinculados ao plano. Hoje, sob a égide do princípio da função social da propriedade, é possível e necessário pedir mais: a terra não se basta com estar apenas limpa, deve ser produtiva, na medida das suas características e aptidões. Uma terra produtiva é uma terra habitada ou, pelo menos, habitualmente frequentada, o que gera inerente cumprimento das regras de cuidado que aproveitam à gestão do proprietário e à segurança de terceiros. Cumpre, pois, consciencializar os proprietários alheados dessa percepção de função social da propriedade da importância da mesma, não só através de acções pedagógicas mas primacialmente incentivos reais a uma gestão produtiva, directa ou por terceiros47 — Bolsa/Banco de Terras incluído. 

 

Cumpre sublinhar, a propósito de incentivos, que pode parecer descabido falar de ajudas aos proprietários quando se apela ao cumprimento da função social da propriedade. Naturalmente que a concessão de ajudas, incentivos, subsídios, deverá estar subordinada a um princípio de necessidade, devidamente comprovada, sob pena de quebra do princípio da igualdade na justa repartição dos encargos públicos. Mas não deve descartar-se o apoio a actividades agrícolas quer quando se incentivam novas utilizações ou revitalizações de antigas, quer quando se está perante situações de emergência climática, como secas, inundações ou pragas. A promoção (ou reposição) da igualdade de oportunidades na actividade agrícola deve ser contextualizada no movimento de alheamento do Estado relativamente a este sector nas últimas décadas, o que obriga a um movimento de sentido inverso, se necessário de discriminação positiva na revitalização de actividades cujo desenvolvimento aproveita (também) à colectividade no seu todo. 

Ainda a pretexto de incentivos, a criação da figura dos fundos municipais de sustentabilidade ambiental e urbanística, pelo artigo 62.º, n.º 4, da Lei 31/2014, de 30 de Maio (Lei de Bases da Política dos Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo), abre novas possibilidades de financiamento a projectos de conservação da Natureza através da actividade agrícola, ou de promoção da qualidade dos bens ambientais e seus serviços através do pagamento de serviços ecologicamente benéficos a quem explore a terra rústica48. Se é certo que cuidar da propriedade “obriga”, no sentido em que deve ser promovida uma gestão adequada aos seus fins, não é menos verdade que quem cuida para além do nível necessário deve ser premiado por esse benefício colectivo que produz49. Também desta forma se poderá aliciar proprietários rurais a adoptar comportamentos mais ecologicamente amigos50.

 

A persistência de comportamentos de alheamento e abandono, sobretudo em áreas de risco elevado de incêndio, deve ser combatida — se necessário, através de medidas de penalização fiscal e mesmo de arrendamentos compulsivos. O arrendamento compulsivo constitui uma restrição da faculdade de uso do proprietário, é certo; porém, na equação da função social, representa uma medida proporcionada na medida em que permite manter o vínculo — não avançando para uma expropriação, que de resto não oferece, por si só, garantias de melhor gestão —, promover a produtividade do bem e incrementar a segurança pública. O arrendamento compulsivo é, de resto, admitido em sede de legislação sobre reabilitação urbana (cfr. os artigos 55º e 59º do DL 307/2009, de 22 de Setembro, com última alteração pelo DL 88/2017, de 27 de Julho)51, e já foi opção, para propriedade rural, na legislação revolucionária — cfr. o DL 653/74, de 22 de Novembro (revogado). E, como assinalámos em momento anterior deste texto, o Tribunal  Constitucional português já considerou não desconforme à CRP soluções mais gravosas, como a venda forçada (de proprietário a rendeiro), ou de idêntica intensidade, como a proibição de uso exclusivo (em sede de caça).

Ou seja, e resumindo e retomando a recomendação gradativa da CTI, um proprietário já identificado ou a identificar que revele um comportamento negligente terá, em regra, três opções: passar a gerir adequadamente as suas terras; integrá-las num modelo de gestão colectiva; ou ceder as terras para arrendamento pela Bolsa/Banco de Terras. Caso não acolha nenhuma das três, poderá ver agravadas as suas obrigações fiscais e, no limite, ser forçado a aceitar um arrendamento compulsivo da sua propriedade pela entidade gestora da Bolsa/Banco de terras. Hipóteses como a expropriação deverão ficar reservadas para situações excepcionais como, por exemplo, aquelas em que a terra não dê garantias de produtividade, e se torne por isso inatractiva; ou em que a morfologia do terreno seja rebelde aos aproveitamentos agrícolas mais adequados e não permita soluções de integração em sistemas de gestão colectiva; ou para situações em que sobre a terra descuidada recaiam vinculações ecológicas que inibam aproveitamentos rentáveis, mas que em razão da sua localização em área de risco elevado de incêndio deva estar limpa de materiais combustíveis — transitando então tal tarefa, por força da expropriação, para mãos públicas52.

 

3. Nota conclusiva

 Como se conclui das breves reflexões tecidas sobre a função social da propriedade, esta vinculação transmuta uma noção quase intocável no período liberal num conceito cada vez mais permeável à necessidade de realização de objectivos de interesse geral, um direito absoluto num poder-dever. “A liberdade de conformação legislativa cresce na medida em que aumenta a relação social do objeto de propriedade, a  ser avaliada a partir da peculiaridade e função deste. Em geral, o legislador ao determinar o conteúdo e limites da propriedade é obrigado a colocar os interesses do proprietário e os aspectos do bem comum numa relação justa de equilíbrio e compensação”53. Se as alterações anunciadas serão postas em prática e, sobretudo, se uma vez em forma de lei revelarão efeito útil no terreno, é o que se verá. Certo é que, mesmo que se materializem em lei e, sobretudo, se enraizem nas consciências das pessoas, não constituirão, só por si, a resposta única e milagrosa a um problema complexo porque multipolar e cujas soluções vão ser permanentemente desafiadas por um inimigo implacável porque imprevisível: o aquecimento global. Adivinham-se Verões ainda mais quentes nos anos vindouros e conseguir arrefecer os seus elevados impactos será um constante desafio à coordenação técnica e à adequação jurídica das soluções que agora se colocam à prova.

 

 

NOTAS

0 Carla Amado Gomes: Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP); Supervisora Científica da linha de pesquisa Energia, Recursos Naturais & Ambiente; Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto) - carlamadogomes@fd.ulisboa.pt.

1 Dados do 10.º Relatório provisório do ICNF — ver link (acesso em 21 de Dezembo de 2017) —, traduzindo números que representam o 6.º valor mais elevado em número de ocorrências e o valor mais elevado de área ardida, desde 2007, e um aumento de 428% em relação à média anual para o período. Refira-se que na Revista Visão de 26 de Outubro de 2017, a informação sobre a área ardida indica 506.000 ha (p. 26)

2 Segundo o climatologista Carlos da Câmara, verificou-se em Portugal a regra dos três 30: temperaturas superiores a 30.ºC; humidade do ar a menos de 30%; e vento superior a 30 km/h — Revista Visão, 19 de Outubro de 2017, p. 53.

3 Sobre o pensamento de León Duguit, cfr. S. FOSTER / A. WALSH / D. BONILLA, “Introduction: The Social Function of Property: A Comparative Law Perspective (Symposium)”, in Fordham Law Review, n.º 80, 2011, pp. 101 segs (disponível em: http://ssrn.com/abstract=1960022:  (acesso em 21 de Dezembro de 2017).

4 Curiosamente, a Constituição de 1933 afirmava, no artigo 35.º, que «a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade podendo a lei determinar as condições do seu emprego e exploração conformes com a finalidade colectiva» .

5 Para uma justificação constitucional do direito de propriedade, M. NOGUEIRA DE BRITO, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, 2008.         [ Links ]

6 J.J.J. GOMES CANOTILHO / V. MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, 4ª ed., Coimbra, 2007 — Anotação ao artigo 62.º, pp. 798 ss., 800.

7 Sobre o artigo 62.º da CRP, J.MIRANDA / R. MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed., Coimbra, pp. 1239 segs (anotação ao artigo 62.º, por R. MEDEIROS); J.J. GOMES CANOTILHO / V. MOREIRA, Constituição..., cit., pp. 798 ss.

8 Esta disposição constitui uma concretização, em sede de política agrícola, do imperativo estatuído na alínea d) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP, no qual se sublinha o respeito pela capacidade regenerativa dos recursos naturais numa lógica de gestão racional.

9 Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional 159/2007, ponto 12.

10 Na doutrina, veja-se J. DELGADO DE MIGUEL, Derecho Agrario Ambiental. Propiedad e ecologia, Pamplona, 1992, pp. 80 ss.

11 Cfr. M. J. ROJAS CORTES, Función ecológica de la propiedad en Colombia: de la imprecisión conceptual a la construcción de un nuevo derecho de propiedad, Tese de Grado, Bogotá, 2007, pp. 42-43 (disponível aqui: ver pdf: acesso em 21 de Dezembro de 2017).         [ Links ]

12 Pode tratar-se de casos do tipo daquele que José Joaquim GOMES CANOTILHO sinalizou a propósito da delimitação da figura do ‘privilégio agrário’ observado no ordenamento jurídico alemão — Protecção do ambiente e direito de propriedade (Crítica de jurisprudência ambiental), Coimbra, 1995, esp. pp. 87-90. Vejam-se também as referências às situações analisadas pelo Tribunal Constitucional alemão no âmbito da densificação do “conteúdo indemnizável” do direito de propriedade sujeito a compressões por força do princípio da função socio-ambiental feita por A. KRELL, “A relação entre protecção ambiental e função social da propriedade nos sistemas jurídicos brasileiro e alemão, in Estado socioambiental e direitos fundamentais, coord. de Ingo Sarlet, 2010, Porto Alegre, pp. 178-181.

13 Fazendo idêntica aproximação, mas na perspectiva de que utilizar a propriedade de acordo com a sua função social constitui uma decorrência do princípio do abuso de direito tal como estamos habituados a visualizá-lo, J. DELGADO DE MIGUEL, Derecho Agrario..., cit., pp. 85 segs; M. TEIXEIRA, “As limitações do direito de propriedade de bens imóveis no Direito português, in Cadernos do CENoR, n.º 1, 2013, pp. 137 segs, 144.

14 Cfr. J. DELGADO DE MIGUEL, Derecho Agrario..., cit., p. 90.

15 G. BERCOVICI, anotação ao artigo 170.º, in Comentários à Constituição Federal de 1988, coord. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra, Rio de Janeiro, 2009, pp. 1953 segs, 1953.

16 Como assinala O. GOMES (“A função social da propriedade, in Textos em homenagem ao Prof. Ferrer Correia, II, Coimbra, 1989, pp. 423 segs, 435), foi com o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de Novembro de 1967) que o princípio da função social passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, o princípio já constava formalmente das Constituições de 1934 (artigo 113.º, n.º 17) e 1946 (artigo147.º) — A. Krell, A relação entre protecção ambiental..., cit., p. 182.

17 Sobre os artigos 170.º, e 182.º a 191.º, cfr. as anotações nos Comentários à Constituição Federal de 1988, cit., pp. 1935 segs, e 2021 ss. Para consulta da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro sobre estas disposições, veja-se http://www.stf.jus.br/portal/constituicao.

18 Nas palavras de G. BERCOVICI, o conteúdo essencial da noção de função social da propriedade está descrito no artigo 186.º e aplica-se a todos os tipos de propriedade e meios de produção — anotação ao artigo 170.º, cit., p. 1953.

19 Assinala C. A. MALUF (Anotações aos artigos 182.º e 183.º, in Comentários à Constituição Federal de 1988, cit., p. 2029), que estes cinco anos se devem contar a partir do início de vigência da Constituição de 1988, ou seja, só haveria direito a alegar a usucapião de bem ocupado a partir de 5 de Outubro de 1993.

20 Cfr. também os §§2.º e 3.º do preceito, que restringem esta possibilidade a pessoas que a queiram exercer por mais de uma vez e que exclui os imóveis públicos da possibilidade de usucapião.

21 Neste sentido, C. F.PINTO E SILVA / V. KIRSHMEYER / R. BELTRAME, Anotação ao artigo 185, in Comentários à Constituição Federal de 1988, cit., pp. 2067 segs, 2069 e 2076 (aqui já em anotação ao artigo 186.º).

22 C. F. PINTO E SILVA / V. KIRSHMEYER / R. BELTRAME, Anotação ao artigo 186.º, in Comentários à Constituição Federal de 1988, cit..., p. 2076.

23 A interpretação deste critério reclama algum cuidado, como observam C. F. PINTO E SILVA / V. KIRSHMEYER / R. BELTRAME, Anotação ao artigo 186.º, cit., p. 2077. Com efeito, para que este critério esteja a ser violado, necessário se torna que a inobservância dos preceitos laborais reflicta “um desprezo pelo Direito a merecer a sanção prevista no artigo 184.º da Constituição da República. O princípio da proporcionalidade reclama aplicação”. Uma situação que cabe inquestionavelmente nesta previsão é a do trabalho escravo.

24 Conforme assinala P.  MOURA RIBEIRO (“A função social da propriedade”, in Revista brasileira de Direito comparado, n.º 38, 2011, pp. 121 segs, 131), a imposição, aos proprietários rurais, da afectação de pelo menos 20% da área de suas propriedades a “reserva legal” (para preservação do ambiente) constitui um exemplo de ónus deste tipo, sancionado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

25 Cfr. as reflexões tecidas a este propósito por A. KRELL, A relação entre protecção ambiental..., cit., pp. 182-186. O autor remata a sua exposição assim: “É tarefa dos tribunais efetuar uma ponderação racional e objectiva dos bens e interesses envolvidos em cada caso, para poder decidir se a intervenção estatal concreta de proibição ou restrição de uso da propriedade exige uma indenização do particular (ex: agricultor), se há uma delimitação restritiva da propriedade que merece uma compensação na base da equidade ou, ainda, se existe ‘apenas uma delimitação de um vínculo ecológico sem relevância indemnizatória’ ” (p. 106).

26 O § único do artigo 191.º exclui a propriedade pública da possibilidade de usucapião.

27 Carlos A. MALUF, Anotações..., cit, p. 2033.

28 Ressalte-se que, neste momento, por força do disposto nos artigos 12.º e 13.º do DL 16/2009, de 14 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo DL 65/2017, de 12 de Junho, as áreas de exploração silvícola integrados em ZIFs e em outros modelos de exploração pública ou comunitária, e explorações privadas de dimensão significativa, devem aprovar Planos de Gestão Florestal, determinando livremente as opções de natureza económica mas sujeitando-se às orientações definidas pelo Plano Regional de Ordenamento Florestal, a elaborar pelo ICNF. As explorações não integradas nas áreas referidas podem — mas não devem — submeter-se a estes planos de gestão (cfr. o n.º 3 do artigo 13.º citado).

29 No que toca à limpeza dos terrenos, veja-se o DL 124/2006, de 28 de Junho, com última alteração pelo DL 83/2104, de 23 de Maio, em especial os artigos 15.º e 38.º.

30 Discutindo a questão de saber se bens do domínio privado do Estado podem estar vinculados à função social, J. DELGADO DE MIGUEL, Derecho Agrario..., cit., p. 67 — concluindo que sim.

31 Cfr. a página da Bolsa de Terras em ver link

32 A Proposta de lei do Governo (Proposta de Lei 66/XIII, de 21 de Março) que visava a substituição da Bolsa de Terras pelo Banco de Terras (e  que soçobrou na votação parlamentar em razão dos votos contra do PCP, PEV, PSD e CDS-PP: cfr. ver link: acesso em 21 de Dezembro de 2017) apresenta diferenças sensíveis mas, em nossa opinião, não muito significativas, das quais assinalamos: 

i) desdobramento do regime de disponibilização de terras em, de um lado, Banco de Terras (para terras do domínio privado do Estado e Institutos Públicos e terras sem dono) e, de outro lado, Bolsa de Terras (para terras de outras entidades públicas e de entidades privadas); 

ii) Alteração dos critérios de preferência no arrendamento, com adição de candidatos desempregados e refugiados, mas com preterição do critério de adopção de métodos de produção orgânica em favor de candidatos desempregados, em caso de empate; 

iii) possibilidade de integração dos terrenos sem dono conhecido na contiguidade de matas nacionais na área dessas matas (sem explicitar se tal integração é feita à condição de identificação do dono, a qual deverá pressupor indemnização por expropriação); 

iv) criação do Fundo de Mobilização de Terras, que se alimentará preferencialmente de rendas provenientes da cedência de terras numa proporção de 33%.

33 Ressalte-se que o contrato de arrendamento não desonera o proprietário do cumprimento de obrigações, nomeadamente da limpeza dos terrenos — cfr. o artigo 5.º, n.º 6, da Lei 62/2012.

34 Cfr. os artigos 9.º e 15.º da Lei 62/2012.

35 Que cria o Sistema de Informação Cadastral Simplificada. Foi objecto de regulamentação pelo Decreto Regulamentar 9-A/2017, de 3 de Novembro.

36 Cfr. o artigo 2.º, alínea d) da Lei 152/2015.

37 Esta redução parece operar por força da mera disponibilização do terreno na Bolsa de Terras, não se exigindo, aparentemente, a sua utilização efectiva por terceiro. A não ser que possamos entender a redução de 50% para os casos de mera disponibilização e a redução de 100% para as situações em que o prédio rústico seja objecto de arrendamento que lhe imprima produtividade.

38 Dados veiculados no Projecto de Lei 500/XIII/2ª, de 13 de Abril de 2017 (BE).

39 Citação do livro de Pedro Almeida Vieira, O estrago da Nação, Lisboa, 2003 — a partir do blogue do autor: http://bocasmacao.blogs.sapo.pt/3179.html (acesso em 21 de Dezembro de 2017).

40 Projecto de lei 500/XIII/2ª, de 13 de Abril de 2017, que recupera um Projecto de lei anterior (311/XI, de 11 de Junho de 2010).

41 Cfr o artigo 6.º do Projecto de lei 500/XII/2ª. O procedimento envolveria: i) o recenseamento prévio dos terrenos com aptidão agrícola em situação de abandono (leia-se: observância de ausência de actividade agrícola, florestal ou pecuária por um período superior a três anos consecutivos); ii) notificação desse recenseamento ao proprietário para cumprimento do direito de audiência prévia; iii) declaração de abandono pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas territorialmente competente, com notificação ao proprietário e comunicação às Finanças. Esta declaração constitui um acto administrativo, contenciosamente impugnável.

42 Possibilidade resultante da Lei 21/2006, de 23 de Junho, que alterou os n.ºs 9, 10 e 11 do artigo 121.º do Código do IMI.

43 Cfr. o artigo 112.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 do Código do IMI, na redacção dada pelas Leis 7-A/2016, de 30 de Março, e 64-B/2011, de 30 de Dezembro.

44 Cfr. o artigo 9.º do Projecto de lei 500/XII/2ª.

45 Tal solução encontra-se igualmente inscrita, por exemplo, em Constituições como a grega (artigo 18.º, n.º 6), a iraniana (artigo 45.º), a peruana (artigo 88.º), a zambiana (artigo 16.º, n.º 2, alínea 10ª), como vimos, a brasileira (artigo 184.º).

46 Consta do artigo 24.º, n.º 1, da Lei 78/2017 um regime de incentivo a quem cadastrar as suas propriedade até 31 de Dezembro de 2019, tornando gratuitos todos os actos registais necessários à inscrição dos prédios, através do Balcão Único Predial. O n.º 2 estabelece ainda que “A inscrição dos prédios rústicos omissos na matriz não dá lugar à aplicação de coimas, à instauração de processo de infração tributária ou à liquidação de impostos e juros devidos à data da regularização”. 

47 Recorde-se o Programa de Desenvolvimento Rural no Continente, inserido no Plano Portugal 2020 (PDR 2020), que contempla uma medida sobre Valorização da Produção Agrícola que incentiva especialmente os jovens agricultores — cfr. ver link.

48 Sobre estes Fundos, veja-se C. AMADO GOMES / R. SARAIVA / R. TAVARES LANCEIRO, “Compensação ecológica e pagamento por serviços ambientais: a propósito dos novos fundos municipais de sustentabilidade ambiental e urbanística”, in Ordenamento do território, urbanismo e  cidades: que rumo?, I, coord. de Fernanda Paula Oliveira, Coimbra, 2017, pp. 117 ss.

49 O artigo 35.º do DL 142/2008, de 24 de Julho (Regime jurídico de conservação da natureza e da biodiversidade, com última alteração pelo DL 252/2015, de 15 de Outubro) aponta para a possibilidade de firmar contratos entre o ICNF e entidades privadas no sentido do desenvolvimento de actividades de “conservação activa” das áreas protegidas. A utilização de instrumentos contratuais na promoção de valores de biodiversidade não é, assim, desconhecida. Duvidosa é, porém, a sua atractividade, uma vez que do diploma não resulta qualquer contrapartida para um proprietário que decida celebrar com o ICNF um contrato de promoção da qualidade ecológica dos seus terrenos em zonas classificadas.

50 Sobre o desdobramento dos deveres de gestão da terra agrícola conformemente à sua função ecológica, veja-se J.DELGADO DE MIGUEL, Derecho Agrario..., cit., pp. 93 ss.

51 O regime da reabilitação urbana admite mesmo, em casos de reabilitação sistemática, a venda forçada. Sobre este ponto, veja-se R. LANCEIRO, “Contributo para o estudo do regime da venda forçada no âmbito do regime jurídico da reabilitação urbana, in O Direito, 2010/5, pp. 1111 ss.

52 À semelhança do que sucede com as terras que integram redes primárias de gestão de combustível, nos termos do DL 124/2006 — artigos 13.º e 14.º.

53 A. KRELL, A relação entre protecção ambiental..., cit, p. 179