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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.4 no.2 Lisboa nov. 2017

 

 

DIREITO PÚBLICO

Da construção de um novo paradigma de culpa do legislador e o correspondente critério de juízo: uma problematização no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente do exercício da função político-legislativa

Elaborating a new paradigm of fault of the legislative power and the correspondent criterion of judgment: a problematic analysis in the field of state liability for legislative activities 

 

Leong, Hong Cheng 1

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade – Cidade Universitária - 1649-014 Lisboa. E-mail: sociki124@hotmail.com

 

RESUMO

O presente trabalho visa refletir criticamente sobre o conceito e o critério de juízo de culpa introduzidos pela doutrina e adotados pela jurisprudência no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador. Na primeira parte, efetua-se uma abordagem introdutória dos problemas subjacentes e pretende-se indagar o papel de culpa na mencionada responsabilidade; em seguida, realiza-se uma argumentação crítica contra o atual paradigma de culpa do legislador quase consensualmente adotado na ordem jurídica portuguesa e ensaia-se construir um novo paradigma dogmaticamente mais rigoroso para o efeito; finalmente, investiga-se a repercussão metodológica da especialidade da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador no critério de juízo de culpa do legislador.

Sumário: 1. Introdução. 2. O conceito de culpa. 2.1. Considerações preliminares. 2.2. O paradigma da culpa de liberdade. 2.2.1. A liberdade de decisão versus a liberdade de conformação do legislador no problema de culpa do legislador. 2.2.2. Críticas. 2.3. Da construção de um novo paradigma: o paradigma da culpa de atitude. 3. O critério de juízo de culpa do legislador. 4. Reflexão final.

Palavras-chave: responsabilidade civil extracontratual do Estado; função legislativa; culpa do legislador

 

ABSTRACT

This paper aims to study critically the concept and the criterion for judgment of fault introduced by doctrine and adopted by the courts in the scope of state liability for legislative activities. Firstly, we intend to inquire the role of fault in this state liability; after that, we perform a critical argumentation against the present paradigm of fault of the legislative power almost consensually adopted under Portuguese Law and try to achieve the objective of elaborating a new paradigm which is (in our perspective) dogmatically more rigorous to this aim; finally, we investigate the methodological repercussion that the specialty of the state liability for legislative activities has upon the criterion for the judgment of the fault of the legislative power.

Summary: 1. Introduction. 2. The concept of fault. 2.1. Preliminary considerations. 2.2. The liberty-based paradigm of fault. 2.2.1. The liberty of decision versus the liberty of conformation of the legislative power in the scope of the problem of fault of the legislative power. 2.2.2. Critical comments against the liberty-based paradigm. 2.3. Elaboration of a new paradigm: the attitude-based paradigm of fault. 3. Criterion for the judgment of the fault of the legislative power. 4. Final consideration.

Keywords: State liability; legislative power; fault of the legislative power

 

1. Introdução

Os problemas da responsabilidade civil extracontratual do Estado no exercício da função político-legislativa têm sido muito debatidos na nossa doutrina. Desde a vigência da Constituição de 1976 até à aprovação da atual Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (doravante, RRCEE) – em que a nossa ordem jurídica, pela primeira vez na história do atual Estado de Direito material democrático, regula expressamente a responsabilidade do Estado por seus atos legislativos – a doutrina tinha contribuído imensamente para o enquadramento normativo e para a construção de um regime próprio para esta responsabilidade.2 

No entanto, depois da aprovação do mencionado RRCEE, a doutrina nem por isso fica mais descansada. Como a responsabilidade do Estado-legislador é uma zona extremamente sensível em que se colocam sempre em tensão a liberdade de conformação legislativa e o papel do tribunal enquanto guardião da juridicidade, é imprescindível encontrar soluções que conseguem alcançar um equilíbrio normativo para esta tensão (que não é nada fácil), sob pena de contender com os valores fundamentais do Estado de Direito material democrático. Aliás, como o legislador é ele próprio um interessado neste problema, o RRCEE, que é per se um ato legislativo, acarreta imensos problemas a nível da teorização, interpretação [a (in)admissibilidade da interpretação subjetiva, a necessidade da correção e adaptação, etc.], aplicação e eventualmente reforma e superação.

Ora, entre outros problemas pertinentes neste âmbito, o problema atinente a culpa do legislador, na nossa perspetiva, é o mais sensível no sentido referido. Sucintamente dito 3, a razão é que a culpa se consubstancia num lugar onde o tribunal realiza juízo de censura sobre as atividades legislativas. E conjugando com o carácter tradicionalmente subjetivo de culpa, o juízo de culpa constitui um momento que potencia a intervenção da função judicial no núcleo essencial das atividades legiferantes. 

Diante este desafio, a doutrina não se hesita em propor soluções adequadas e isso já dá lugar ao atual movimento da objetivação de culpa do legislador. Concordamos sem reserva com esta necessidade de objetivação. No entanto, a problematização já se esgotou? Acreditamos que não. Para além desta necessidade de objetivação, encontram-se ainda os problemas mais nucleares concernentes à (re)densificação do conceito e do conteúdo de culpa e ao respetivo critério de juízo. Todavia, atualmente, parece que estes problemas ainda não adquirem uma relevância dogmática autónoma no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, embora a doutrina tenha rejeitado consensualmente a aplicabilidade direta do conceito de culpa constante do artigo 487.º do Código Civil, a respetiva problematização fica estagnada numa lógica de objetivação-adaptação da ideia de culpa (importada do direito civil) ao carácter administrativo e constitucional da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador e à necessidade específica da garantia do funcionamento normal da função legislativa. Todavia, em nosso entender, a problematização subjacente deve ir para além da racionalidade de objetivação-adaptação. Com efeito, para assegurar a normatividade do regime da responsabilidade civil do Estado-legislador, é imprescindível uma autonomização material e metodológica (não radical mas nítida) da culpa do legislador face à culpa civil. 

Tendo sido inspirado sobretudo pela obra de Figueiredo Dias, Liberdade – Culpa – Direito Penal 4, acreditamos que, no terreno da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador, se justifica também a necessidade de encontrar um novo paradigma e o correspondente critério de juízo para a culpa do legislador, tendo em conta as especificidades desta responsabilidade. 

Isso constitui a razão de ser do presente artigo.

 

2. O conceito da culpa

2.1 Considerações preliminares

Antes de entrar na essência deste capítulo, afigura-nos imprescindível tecer algumas considerações, nem que sejam sucintas, sobre o papel de culpa na fundamentação da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador. Isto é revelante, uma vez que, na nossa ordem jurídica vigente, nem todas as doutrinas concordam com a tese da autonomia de culpa neste nicho da responsabilidade dos poderes públicos. Por isso, sendo a premissa da nossa indagação, é necessário tomarmos posição relativa a esta querela doutrinária.

De facto, a aludida discussão doutrinal não emerge apenas da divergência a propósito do sopesamento entre a proteção do funcionamento normal do Estado e a necessidade constitucionalmente imposta da proteção dos cidadãos face aos atos lesivos da autoridade (especialmente, o artigo 22.º da Constituição), mas também é potenciada sobretudo pela equivocidade que marca a norma do RRCEE que regula a responsabilidade do legislador. Com efeito, o legislador do RRCEE, quando consagrou o regime da responsabilidade do legislador no seu artigo 15.º – Ao contrário ao regime da responsabilidade do Estado no exercício da função administrativa e do regime da responsabilidade decorrente do exercício da função jurisdicional – não menciona expressamente a culpa. Donde, à luz desta comparação sistemática, é legítimo questionar se o legislador do RRCEE pretende, através da redação do citado artigo 15.º, consagrar um regime da responsabilidade subjetiva objetivada 5-6, ou de facto, o legislador não tem este propósito e pretende ficar com o regime geral da responsabilidade subjetiva.7

Por nossa parte, sem negar a pertinência e a relevância da doutrina que advoga a vigência de iure condito de um regime de presunção da culpa do legislador 8– que parte de uma racionalidade meritosa de conceder maior garantia aos cidadãos face aos atos antijurídicos e lesivos da autoridade, exaltando a necessidade e a tendência universal de objetivação do regime da responsabilidade do Estado 9 e sublimando a aquisição jurídico-civilizacional da primazia da Constituição sobre a Democracia 10 –, concordamos com a doutrina maioritária que defende a autonomia intencional e estrutural da culpa face à ilicitude 11 no regime positivado. 

Contudo, realçamos que, em nosso entender, este sistema da autonomia da culpa face à ilicitude (ou melhor, a inexistência da presunção de culpa do legislador) não reveste natureza transpositiva nem suprapositiva. Pelo contrário, trata-se apenas de uma opção política legítima do próprio legislador. Por outras palavras, parece-nos que a axiologia inalienável da própria responsabilidade civil do legislador – que apela sempre um equilíbrio entre a proteção dos cidadãos contra os atos antijurídicos e lesivos da autoridade e o funcionamento normal do Estado – não impõe a consagração de um regime geral de responsabilidade subjetiva para a responsabilidade do legislador. 

Para explicar a nossa posição, é necessário tecer antes uma nota breve sobre o nosso entendimento acerca do papel da liberdade de conformação do legislador no sopesamento dos valores envolvidos na modelação do regime da responsabilidade do legislador. Efetivamente, afigura-nos essencial salientar que a dita “liberdade” de conformação do legislador não é qualquer liberdade em sentido próprio – tendo em conta que o poder legislativo é sempre juridicamente vinculado e democraticamente legitimado 12, a expressão “liberdade” só pode ser entendida como “competência e legitimidade”. Destarte, a ideia da liberdade de conformação do legislador, em lugar de implicar qualquer sentido de arbitrariedade, está (rectius, deve estar) sempre axiologicamente cunhada por uma racionalidade indisponível de proteger, respeitar e realizar os direitos fundamentais dos cidadãos, o verdadeiro dono da soberania. Só que, sem prejuízo da inderrogabilidade dos direitos inerentes ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, a proteção dos direitos dos cidadãos não é absoluta num Estado de Direito democrático. Com efeito, sacrifícios são imprescindíveis para garantir a paz da comunidade estadual e o funcionamento normal do Estado, que visa tutelar interesses públicos, em lugar de uma simples soma de interesses particulares. Por outras palavras, se o exercício da liberdade de conformação do legislador deve ser sempre orientado pela finalidade protetora dos interesses dos cidadãos, também é verdade que este exercício teleologicamente predeterminado não deve ser absolutizado, sob pena de obstaculizar o funcionamento normal do Estado, que por sua vez, resultaria numa vulnerabilização dos direitos dos próprios cidadãos. Deste modo, é interessante verificar que, a propósito do exercício da liberdade de conformação do legislador, a proteção dos direitos dos cidadãos contra a autoridade e a proteção do funcionamento normal do Estado não são realmente dois polos opostos numa lógica puramente linear, mas sim duas teleologias aparentemente antigónias integradas num continuum axiológico. E como o Estado português encontra a sua soberania no povo, o equilíbrio a estabelecer dentro deste continuum não pode deixar de estar especialmente sensível à perspetiva do próprio povo sobre a sua relação com o Estado, e no âmbito do estudo da responsabilidade do legislador, a sua relação com o poder legislativo. Assim sendo, salvo o caso de consagração de um regime geral da responsabilidade objetiva do legislador (que representaria uma total revolução face ao paradigma de Estado de Direito democrático subjacente à Constituição portuguesa 13) e o de ressurreição de um regime geral de irresponsabilidade (que viola francamente, entre outros, o artigo 22.º da Constituição 14), o sistema jurídico português é basicamente flexível na matéria do regime da responsabilidade do Estado decorrente do exercício da função legislativa. Efetivamente, parece-nos totalmente legítimo que o legislador escolha, fundamentadamente, um regime não reconduzível ao regime tradicional da responsabilidade subjetiva, podendo, entre outros, consagrar uma cláusula da presunção de culpa do legislador.15

Assim sendo, julgamos que fica argumentativamente esclarecido que a nossa adesão à doutrina maioritária representa nada mais do que o respeito pela opção legítima do legislador no direito positivo 16. E opção legislativa esta que, como a doutrina maioritária tem patenteado 17, se manifesta no n.º 4 do artigo 15.º do RRCEE.

Efetivamente, esta norma faz a fundamentação e a extensão da responsabilidade do Estado por atos legislativos dependentes, designadamente, do “grau de clareza e precisão da norma violada, o tipo de inconstitucionalidade e o facto de terem sido adotadas ou omitidas diligências suscetíveis de evitar a situação de ilicitude” “atendendo às circunstâncias concretas de cada caso”. 

Embora o legislador do RRCEE não esclareça o enquadramento dogmático destas orientações normativas, é evidente que estas, consubstanciando-se num guia para o juiz elaborar um juízo de censura dirigido à conduta do legislador-lesante, não são dotadas de qualquer pretensão de contribuir para a densificação do critério de determinação da ilicitude, do dano nem do nexo de imputação. E sendo este juízo de censura condicionante da fundamentação (e o preenchimento) da responsabilidade do Estado por atos legislativos, que o legislador do RRCEE cuidadosamente não confunde com o conceito da ilicitude (que por sua vez está consagrado na parte final do n.º 1 do citado artigo 15.º18-19); dificilmente se pode negar que a culpa (que desempenha exatamente o papel do juízo de censura na responsabilidade civil) seja um pressuposto autónomo (não presumido pela ilicitude) na fundamentação da responsabilidade do legislativo de iure condito

Além disso, curiosamente, os índices exemplificados pelo legislador nacional no referido n.º 4 do artigo 15.º coincidem materialmente com os índices mobilizados constantemente na jurisprudência dos tribunais da União Europeia 20 em julgamento das ações da responsabilidade civil extracontratual contra a União e da responsabilidade civil extracontratual contra o Estado membro incumpridor do Direito da União Europeia para averiguar a (in)existência de uma “violação suficientemente caracterizada” do direito comunitário, ou nas palavras do mencionado Acórdão Artegodan GmbH v. Comissão, “uma irregularidade que, em circunstâncias análogas, uma administração normalmente prudente e diligente não teria cometido”21. Por outras palavras, os mesmos índices são utilizados pelos tribunais europeus para construir o padrão de “homem médio” (ou melhor, órgão médio), que é o padrão bem conhecido da apreciação em abstrato da culpa do lesante na responsabilidade civil 22. Portanto, acreditando em que esta coincidência de índices não é aleatória, sentimo-nos novamente convencidos a concluir pela adoção de um regime da responsabilidade subjetiva do legislador na nossa ordem jurídica de iure condito.

Ora, tendo confirmado o papel de culpa na responsabilidade do Estado-legislador enquanto um requisito sine qua non (embora com contornos especiais), é importante, em seguida, compreender o conceito de culpa nesta responsabilidade 23, investigando se é adequada a aplicação do conceito de culpa derivado da modificação-objetivação 24 da culpa civilística ou se é imprescindível construir um outro conceito de culpa próprio para essa responsabilidade. Prima facie, a problemática em apreço parece uma questão de natureza conceitualista, com poucos contributos para o mundo pragmático. Todavia, isto não é verdade e realçamos que esta problematização é de relevância não despicienda que não deve ser menosprezada na procura de um caminho metodologicamente mais correto para a resolução dos problemas da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador. Vejamos.

 

2.2 O paradigma da culpa de liberdade

Atualmente, quer na ordem jurídica portuguesa quer na ordem jurídica comunitária, uma boa parte de doutrinas e sobretudo as jurisprudências têm acolhido a tese de que a culpa do legislador se consubstancia num juízo de censura dirigida às ações ou omissões do legislador, verificando se este podia ou devia ter evitado a ilicitude dos seus atos25. Ora, ao basear a culpa do legislador neste juízo de “podia ou devia agir de outra maneira”, de facto, assume-se como pressuposto de culpa “a liberdade de legislar noutro sentido” – donde, uma vez que seja excluída em concreto esta liberdade (o que designamos por liberdade de decisão), o juízo de culpa já não se pode formar. Por outras palavras, neste paradigma, o prius da formação do juízo de culpa do legislador reside na liberdade de decisão deste

Todavia, esta liberdade de decisão nunca se pode confundir com a liberdade de conformação do legislador. Tratam-se de conceitos totalmente distintos, mesmo que ambos tenham conexões funcionais com a culpa.

 

2.2.1 A liberdade de decisão versus a liberdade de conformação do legislador no problema de culpa do legislador

2.2.1.1 A nível funcional

Por um lado, quando se associe à finalidade da proteção do funcionamento normal do Estado, a liberdade de conformação do legislador desempenha uma função negativa de limite, emergindo como um freio na otimização incessante do valor da garantia do direito indemnizatório dos cidadãos perante o Estado-legislador. Daí, obstaculiza-se a implantação de um regime geral da responsabilidade objetiva 26.

Por outro lado, realiza a função positiva de fundamentação, justificando a essencialidade do papel de culpa na garantia do funcionamento normal da função legislativa num Estado de Direito democrático. 

Contudo, o conteúdo desta função positiva não se esgota nesta função fundamentadora que representa nada mais do que “a outra face da mesma moeda” diante a função negativa. Com efeito, em nosso entender, a liberdade de conformação que a Constituição concede ao legislador ordinário na concretização do seu artigo 22 27-28.º  é uma competência mais que executiva que permite o legislador ordinário modelar o seu próprio regime da responsabilidade civil de acordo com as suas opções política dentro da margem permitida pela normatividade jurídica. Ou seja, a liberdade de conformação tem aqui uma função positiva de normativizar o conflito de interesses inerente a este cenário da confusão do autor com o destinatário de aplicação do mesmo regime. 

Consequentemente, ao cumprir as suas funções positivas, a liberdade de conformação contribuiu em duas fases na (re-)construção do regime da responsabilidade do Estado por atos legislativos. Na primeira fase, esta legitima derivadamente (da Constituição) a própria margem das opções juridicamente disponíveis ao legislador para modelar o seu próprio regime de responsabilidade civil. Na segunda fase, fundamenta a opção legislativa por um regime subjetivo (ou um regime subjetivo com culpa presumida) e daí se revela a essencialidade de culpa.

Já a liberdade de decisão tem um papel muito diferente no problema de culpa do legislador. Esta não serve para limitar outros valores em conflito nem para fundamentar e legitimar um regime subjetivo. O papel fulcral desta liberdade, no paradigma da culpa de liberdade, reside em conceitualizar a culpa, através do qual a doutrina tradicional tenta atribuir um certo suporte e conteúdo material à culpa. Por outras palavras, a liberdade de decisão serve como o pressuposto de culpa do legislador. Pressuposto este que, uma vez seja excluído, paralisa o juízo de culpa.

 

2.2.1.2 A nível de natureza

A liberdade de conformação tem como prius a teoria de “lei como conformação da constituição” na problemática das relações materiais entre a Constituição e as leis. Segundo Gomes Canotilho, esta liberdade consiste numa margem de que o legislador dispõe “para ponderar, valorar e comparar os fins dos preceitos constitucionais, proceder a escolhas e tomar decisões... Esta actividade de «ponderação», de «valoração» e de «escolha» implica que o legislador... desenvolve uma actividade política criadora, não subsumível a esquemas de «execução» ou «aplicação» de leis constitucionais” 29. Ora, de acordo com a linha de pensamento do autor, esta liberdade não é uma figura puramente política que se situa num universo transcendente da juridicidade. Pelo contrário, esta liberdade do legislador deriva da Constituição e é sempre vinculada pela Constituição quer negativamente quer positivamente 30. Portanto, a liberdade de conformação é uma figura verdadeiramente jurídica (mesmo que também tenha grande relevância para o domínio político e mereça um estudo autónomo da área política) que nunca se equivale à arbitrariedade. Uma vez que é sempre juridicamente vinculada, a liberdade de conformação não tem a capacidade de suportar o conceito de culpa enquanto um juízo de censura dirigido ao legislador que agiu ilicitamente, mas podia ou devia agir de outra maneira e lícita. Por outras palavras, a liberdade de conformação é sempre um poder vinculado, não ontológico, derivado da Constituição de escolher entre as opções lícitas, e não é um poder arbitrário de escolher entre decisões lícitas e decisões ilícitas. O abuso ou desvio da liberdade de conformação não constitui pois um problema direto de culpa mas sim de ilicitude.31

Entretanto, a liberdade de decisão do legislador é uma figura meta-jurídica, que consiste num poder-arbitrariedade “ontologicamente” inerente a qualquer centro volitivo. Ela visa assim manifestar o pensamento de que o legislador pode “ontologicamente” (não juridicamente) legislar como queira (de maneira lícita ou ilícita, com mérito ou sem mérito) – o problema de estabelecimento de limites, orientações e imposições para o uso desta liberdade, o problema de fiscalização e o problema das responsabilidades ficam pois tudo na esfera exterior desta liberdade de decisão (pensamento este semelhante ao de que os seres humanos têm andro-ontologicamente a liberdade-arbitrariedade de agir de acordo com a sua vontade. A função do Direito não é a redução desta liberdade, mas apenas a orientação do seu uso, fornecendo padrões de conduta cuja violação desencadeia responsabilidades jurídicas). 

Donde, dentro da problemática da responsabilidade do Estado por atos legislativos, na ótica do paradigma da culpa de liberdade, o uso desta liberdade em violação dos parâmetros de vinculação jurídica consubstancia-se num problema de ilicitude; enquanto a existência efetiva e concreta desta liberdade constitui o pressuposto de culpa do legislador.

 

2.2.2 Críticas

Tendo estudado o paradigma da culpa de liberdade na conceitualização material de culpa (a liberdade de decisão), chegamos ao ponto de refletir o mérito deste paradigma. 

Na nossa perspetiva, não negamos que o estudo da liberdade de decisão do legislador pode ser o ponto de partida inspiratório para esta indagação. No entanto, já não podemos concordar com a conceitualização material de culpa do legislador com base direta nesta liberdade-arbitrariedade. Resumimos as nossas críticas em seguintes pontos: (1) insustentabilidade político-sociológica, (2) insustentabilidade lógica, (3) insustentabilidade jurídica e (4) utilidade limitada:

(1) Insustentabilidade político-sociológica

Como esclarecemos, a liberdade de decisão do legislador é uma realidade meta-jurídica. O estudo detalhado desta pertence ao universo político-sociológico. Contudo, mesmo nestas áreas, ninguém pode claramente definir a extensão desta liberdade. Tal como Figueiredo Dias constata na ocasião de criticar o paradigma da culpa de vontade na problematização do conceito da culpa jurídico-penal, “a sociologia sabem estar impossibilitadas de responder à questão do livre-arbítrio quer no seu se, quer no seu quando, quer no seu quanto” 32. Além disso, para os políticos, não é pertinente e até ilegítimo afirmar que o legislador de um Estado de Direito democrático, cuja legitimidade se arreiga na soberania popular, possui uma liberdade-arbitrariedade de decisão perante o povo, o verdadeiro titular da soberania. Esta afirmação é insuportável na relação da confiança cidadãos-Estado num Estado democrático como Portugal.

(2) Insustentabilidade lógica:

Como se explicou, a liberdade de decisão é um conceito sociologicamente indeterminável e politicamente insuportável. Se fundasse o conteúdo de culpa do legislador numa realidade deste género, não só não poderia obter uma explicação material segura, cometeria ainda um erro lógico por pretender obter uma certeza (ainda que seja relativa) derivada de uma incerteza.

(3) Insustentabilidade jurídica:

Alinhamos no pensamento de que o Direito é um sistema autónomo, sempre aberto e não auto-suficiente 33. Donde, consideramos natural e mesmo necessária em certos momentos a explicação-fundamentação de decisões jurídicas através do recurso aos mundos meta-jurídicos. Esta técnica é corrente em todos os ramos do Direito: pense-se na explicação das obrigações naturais (cfr. o artigo 402.º do Código Civil) como deveres morais ou sociais juridicamente relevante 34, a tentativa da legitimação da Constituição segundo a sociologia do domínio 35, etc.

Por isso, não contestamos a tentativa per se da fundamentação do conceito de culpa do legislador numa realidade meta-jurídica. O que discordamos é a fundamentação numa realidade duvidosa de contorno inseguro. Como se sabe, a segurança jurídica é um valor essencial do Estado de Direito. Mesmo que não seja um valor absoluto e tenha uma importância reduzida em comparação com a experiência jurídica do século XIX, não podemos ignorá-la em qualquer tarefa de construção dogmática, sobretudo na tarefa de conceitualização que tem como fim, entre outros, a melhor garantia da segurança jurídica 36. Posto isso, é incompatível com o valor da segurança jurídica o paradigma da culpa de liberdade que consiste numa conceitualização com base nas realidades vagas de inteligibilidade incerta.

Além disso 37, tal como temos reiterado, o legislador, ao exercer a sua função legislativa, está (e deve estar) sempre e especialmente vinculado pelo princípio de constitucionalidade e pelo princípio da juridicidade entre outros determinantes heterónomos vinculativos. E vinculação esta que é tão forte – por constituir um dos pilares fundamentais do nosso Estado de Direito material –  que não é compatível com qualquer afirmação da existência de uma liberdade-arbitrariedade da decisão por parte do legislador, sem prejuízo da existência imprescindível de uma margem da liberdade de conformação dentro desta vinculação. Por outras palavras, não é sustentável defender que o legislador tem uma liberdade de legislar de maneira lícita ou ilícita. Este é sempre vinculado a legislar em conformidade com a normatividade jurídica vigente. Por conseguinte, é juridicamente contraditório afirmar por um lado que o legislador, num Estado de Direito material, deve atuar em conformidade, observando e dinamizando a normatividade jurídica; mas por outro lado que, o legislador tem uma liberdade-arbitrariedade congénita de legislar quer em conformidade quer contra o Direito – liberdade-arbitrariedade essa que é negada logo na implantação de um verdadeiro Estado de Direito material.

(4) Utilidade limitada:

Em geral, a definição de culpa enquanto um juízo de censura dirigida a quem praticou um ato ilícito quando podia e devia agir de outra maneira tem como mérito a inclusão coerente dos problemas de imputabilidade e de inexigibilidade na temática de culpa. Todavia, quando se deslocar esta noção de culpa para o regime da responsabilidade do Estado por atos legislativos, a sua utilidade encontra-se diminuída na censura das atividades legiferantes. 

Desde logo, não é concebível a figura de legislador inimputável. Não é razoável falar de um legislador incapacitado de entender e querer, que não podia (não seria capaz de) evitar a ilicitude num certo caso concreto. Mesmo que fosse praticamente aceitável que no início da formação de um novo parlamento ou um novo governo, a atividade legiferante não correria tão suave e eficientemente, nem por isso se pode aceitar aqui a ideia de legislador-menor irresponsável”. Ideia esta que não só não é compatível com os princípios do Estado de Direito, maxime o princípio da responsabilidade do Estado, mas também arruína toda a relação de confiança entre os cidadãos e o poder legislativo (relação esta que seja a raiz da legitimidade da própria função legislativa). Por outro lado, não é concebível um legislador irresponsável por razão da “anomalia ideológica”: um “legislador doente” contagiado, por exemplo, por uma certa ideologia inimiga à dignidade da pessoa humana não só não é irresponsável por seus atos, até deve assumir responsabilidade especialmente mais gravosa quer perante os seus cidadãos quer perante a ordem jurídica internacional. 

Portanto, podemos até constatar que a problemática de imputabilidade subjetiva não se coloca na responsabilidade do Estado-legislador. Donde, concordamos com Rui Medeiros ao afirmar que o problema da culpa resume-se, na prática, à questão de saber quando é que é exigível que o legislador conheça a inconstitucionalidade da lei38.

Deste modo, fica patenteada, a nível de culpa do legislador, a utilidade limitada do conceito de culpa defendido pelo paradigma da culpa de liberdade que visa, entre outros, captar nele o problema de imputabilidade e transformar a figura de imputabilidade do mundo psicológico numa figura jurídica.

 

2.3 Da construção de um novo paradigma: o paradigma da culpa de atitude

As críticas elaboradas contra o paradigma da culpa de liberdade justificam o nosso abandono desta teoria 39 e revelam ao mesmo tempo a necessidade de construir um novo paradigma para sustentar normativamente a culpa no problema da responsabilidade do Estado-legislador. 

Para não cair nos defeitos inerentes ao paradigma da culpa de liberdade, indubitavelmente, é imprescindível evitar qualquer tentativa de elevar a liberdade de decisão ao elemento constitutivo do substrato e conteúdo material de culpa do legislador. Assim, é preciso encontrar uma realidade, seja jurídica seja meta-jurídica, sociologicamente explicável, politicamente suportável, logicamente correta e juridicamente sustentável, capaz de satisfazer a tarefa de fundamentação e conceitualização material de culpa do legislador. 

Ora, para iniciar a busca deste novo paradigma, é necessário definir um ponto de partida. E como se trata de um problema específico da responsabilidade do Estado por atos legislativos, julgamos que uma abordagem da natureza e sentido da função legislativa40 será pertinente.

Muito resumidamente apresentando, desde a época do Direito Romano, a função legislativa já tem desempenhado um papel constitutivo na dinamização e construção-renovação do sistema jurídico. Embora inicialmente este papel da lei tenha tido uma importância relativamente humilde 41, com a codificação justinianeia do Corpus Iuris Civilis, o renascimento do Direito Romano movimentado pela Escola de Glosadores e depois pela Escola de Comentadores, o racionalismo, a divulgação da teoria da separação dos poderes de Locke e de Montesquieu, o Contrat Social de Rousseau, entre outros, como enzimas, a relevância da lei enquanto fonte do Direito, paulatinamente, conseguiu atingir o seu ápice na época do positivismo legalista em que a função legislativa se tornou no “poder supremo” entre os poderes de soberania do Estado e foi afirmado que toda e qualquer lei é Direito e não há Direito fora da lei. Depois, mesmo que o positivismo legalista fique superado, virando para uma página em que o poder legislativo já não se pode arrogar como o poder supremo do Estado e que o poder judicial por sua vez ganhe cada vez mais importância na construção do sistema jurídico (o que provoca o problema atual do ativismo judicial e da substituição do Estado de legalidade pelo Estado dos juízes), reserva-se à lei ainda uma zona significativa indisponível na tarefa da (re-)constituição do Direito e da própria experiência jurídica. 

Por isso, resumindo, legislar é sempre (uma maneira de) constituir Direito. Contudo, essa conclusão não traz grandes contribuições para o desafio em apreço. Porquanto fica por saber ainda a questão nuclear de “no fundo, o que significa legislar?”. 

Ora, esta questão pode ser desenvolvida sob diferentes perspetivas: material (i.e. em que se consubstancia a função legislativa?), formal (i.e. por que formas se pode concretizar a função legislativa?), orgânica (i.e. quais são os órgãos que têm a competência para legislar?) e procedimental (i.e. quais são os procedimentos previstos para realizar legitimamente a tarefa de feitura das leis?). E ao tentar encontrar um novo paradigma substancial de culpa do legislador, o que nos interesse mais será o significado de legislar numa perspetiva material. Vejamos42:

Tal como se referenciou, a existência da lei já tem uma longa história. A ideia da “lei” como padrão de conduta vinculativo divulgou-se já na época primordial mesmo que naquela altura, não se possa rigorosamente falar de uma “função” legislativa. É legítimo falar apenas de um “cargo” legislativo uma vez que não vigorava então uma ideia organizatória que correspondia ao moderno princípio da separação dos poderes, muito menos ao pós-moderno princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania43. Na fase primordial, a lei, e, em geral, o Direito, não encontrava a sua normatividade e vigência no poder-voluntas, mas na ordem ontológica e teológica44, carecendo da aspiração antropocêntrica. Portanto, naquela altura, a lei não era verdadeiramente um produto de vontade humana. O sentido de legislar não era nada senão a concretização e (re-)afirmação das ordens transcendentes. 

Este pensamento jurídico vigorou basicamente até à chegada do iluminismo. Nesta época, o homo novus iluminado começou a questionar a sua vinculação às ordens transcendentes (sobretudo a ordem teológica), que então era considerada como inquestionável. A compreensão da vida humana passou a ter uma referência secularizada45 e antropocêntrica. Daí, a lei e o Direito já não se equivalem a uma transcrição/transposição das leis divinas mas sim um produto da própria humanidade46. Assim, os homens saíram do Estado da Natureza para o Estado Civil. No entanto, para garantir que os homens fossem tão livres como no passado, era imprescindível uma nova organização e compreensão da “sociedade”. Para isso, sem prejuízo da relevância não despicienda dos contributos de outros grandes pensadores da época moderna (entre outros, Hobbes, Locke, Kant)47, deve-se destacar a construção do Contrat Social de Rousseau48 que, brevissimamente descrevendo, se consubstancia num acordo da vontade geral racional dos homens para a criação de um Estado Civil que visa estabelecer o modelo de convivência social, criando “uma vinculação das liberdades por afirmação das próprias liberdades” (sem intervenção da qualquer ordem transcendente) com o objetivo de gerir os interesses de cada “contraente”50-51. Neste contratualismo de Rousseau, como o poder legislativo deve ser o único órgão capaz de representar a volonté générale, só a lei pode ser o modo adequado e legítimo para constituir Direito. Desde então, legislar significa afirmar e assegurar a liberdade, tomar decisão em nome da volonté générale e fazer políticas da gestão dos interesses dos “contraentes”. A legislação ganhou assim um novo sentido e passou a imputar-se à vontade política do legislador na representação da vontade geral dos cidadãos. Todavia, este sentido de legislar não é suscetível de fundamentar a construção de qualquer novo paradigma de culpa dentro da problemática da responsabilidade do Estado-legislador, e até ilegitima qualquer tentativa de responsabilizar o Estado-legislador, uma vez que para esta filosofia, a lei não é um produto do Estado mas sim da sociedade e do povo 52.

No entanto, não podemos negar o contributo deste pensamento contratualista rousseauniano que cristaliza a luta do homo novus pela sua auto-compreensão liberal racionalizada e a consideração da lei como um instrumento racional de regulação dos interesses antropocêntricos de carácter político, programático e estratégico. Esta aquisição da cultura jurídico-legislativa, que tornou a legislação num lugar da politização do Direito, manteve-se intacto ainda que, na passagem do racionalismo para o positivismo legalista do século XIX, o sentido de legislar tenha sofrido uma alteração quase perversa ao passo de que a lei, em vez de afirmar a liberdade racional dos homens, se transformou num instrumento que visava legitimar a intervenção estadual nos valores essenciais da coletividade (i.e. a liberdade e a propriedade)53.

Mesmo no Estado de Direito contemporâneo, ainda que nem o pensamento rousseauniano nem o pensamento jurídico do século XIX se possam sustentar, não questionamos que a lei, que é o produto de uma função legislativa legitimada pelo povo, tem sempre uma fase de decisão com racionalidade político-estratégica (a fase de poder-voluntas; a fase de ratio legis). É sobretudo nesta fase decisória que se manifesta a função de ordenação político-social e reformadora, a função instituinte e planificadora-regulamentar e de certa maneira a função jurídica de integração (da imposição das soluções jurídicas pacificadoras ao pluralismo social) da lei54. Destarte, entre a tarefa de legislar e a política existe uma relação íntima55-56. Tão íntima que, segundo Carlos Cadilha57, justifica a opção legislativa da designação da responsabilidade em apreço por “responsabilidade no exercício da função político-legislativo” em vez de “responsabilidade no exercício da função legislativo58. Consequentemente, nesta fase, legislar é tomar posição nas regulações dos conflitos atuais ou potenciais de interesses59, declarar a atitude do Estado-legislador perante os problemas político-sociais com relevância jurídica e prescrever programas e resoluções pacificadoras60.

Todavia, num Estado de Direito, a lei não pode ficar somente com uma fase de decisão política. A legislação não pode andar desvinculada da juridicidade. Consequentemente, a lei tem de possuir outra dimensão que se traduz na assunção da validade predicativa da normatividade jurídica (a fase de fundamentação; a fase de ratio iuris). Por outras palavras, a tarefa de legislar não pode esgotar-se no decisionismo do legislador. Tem-se de invocar fundamentos jurídico-normativos (os princípios normativos61) para culminar-se num ato válido não arbitrário na vigência de um Estado de Direito material62-63. Assim sendo, conjugando as duas fases de experiência legislativa, podemos concluir que, num Estado de Direito contemporâneo, o sentido material de legislar é prescrever decisões teleologicamente cunhadas para os problemas político-sociais com relevância jurídica, declarando a atitude do poder legislativo-político diante as questões sociais juridicamente relevantes: decisões e atitudes essas que são sempre vinculadas pela normatividade jurídica vigente.

Agora, com base neste sentido material de legislar, podemos construir o novo paradigma de culpa do legislador: esta não se consubstancia num juízo sobre se “o legislador atuou ilicitamente mas podia e devia agir de outra maneira (lícita)”, tendo como pressuposto a liberdade-arbitrariedade de decisão do legislador; mas sim num juízo normativo sobre se o legislador, numa determinada decisão (ao legislar ou não legislar), manifestou objetivamente uma atitude desrespeitadora da normatividade jurídica vigente. Paradigma esse que sugerimos o nome de “paradigma da culpa de atitude”

Neste novo paradigma, não temos já o problema da insustentabilidade sociológico-política uma vez que por um lado, a relação entre a manifestação de atitude (objetivamente estudada) do poder político-legislativo (ou a manifestação de atitude dos partidos no parlamento em especial) por um lado, e a tendência ideológica e a necessidade da sociedade por outro lado, é sociologicamente explicável e bem estudada; por outro lado, a nível político, afirmar que “é possível que o poder político-legislativo, ao cumprir a sua função constitucionalmente legitimada de elaborar programas, estratégicas e resoluções pacificadoras para o pluralismo social, tomou decisões que, quando forem objetivamente compreendidas, revelam uma atitude desrespeitadora da normatividade jurídica vigente” não quebra a relação de confiança entre o Estado democrático e os cidadãos, dado que diferentemente do paradigma da culpa de liberdade de decisão, rejeitamos aqui a liberdade-arbitrariedade com base na qual o legislador encontraria subjetivamente livre de tomar decisões ilícitas. Com efeito, o paradigma da culpa de atitude até ajuda fortalecer a confiança dos cidadãos no Estado-legislador uma vez que, ao incluir a vinculação normativa do legislador ao Direito no conceito de culpa, redensifica a primazia da juridicidade face à política.

Além disso, não é contagiado pelo defeito da insustentabilidade lógica uma vez que baseamos agora o conceito e o conteúdo de culpa numa realidade objetivamente compreensível, certa e explicável.

Ademais, este paradigma tem a vantagem de captar no conceito de culpa do legislador o dever do legislador de fundamentar os seus atos em conformidade com a normatividade jurídica vigente, assinalando o momento da validade de atos legislativos e redensificando os valores do Estado de Direito material. A culpa do legislador assim adquire um conceito que consegue inserir coerentemente no pensamento jurídico contemporâneo que compreende o Direito como validade – realiza-se daí uma verdadeira normativização do conceito de culpa. 

Além do mais, ao basear a culpa na atitude do legislador objetivamente compreendida (i.e. revelada na própria ação ou omissão legislativa), fica cumprida a reclamação doutrinal da maior objetivação do conceito de culpa e simultaneamente facilita uma maior transparência da sindicabilidade de atos legislativos. 

Last but not least, este paradigma tem a utilidade técnica de permitir melhor perspetivar a graduação de culpa com base no próprio conceito normativo de culpa64, porquanto será mais fácil e coerente compreender e explicar o grau de culpa com referência à severidade de uma atitude reprovável objetivamente manifestada, do que com referência a diferentes níveis em que o legislador “podia e devia agir de outra maneira lícita” (duvidamos a conveniência e até a viabilidade desta nivelação artificial).

 

3. O critério de juízo de culpa do legislador

Associado ao problema do conceito e do conteúdo normativo de culpa do legislador é o problema do seu critério de juízo. Estes dois problemas são interdependentes porquanto por um lado, o critério de juízo é essencial para “vitalizar” o conteúdo material da culpa; por outro lado, um correto conceito de culpa é fundamental para normativizar a referência de tal juízo.

Na nossa ordem jurídica, de iure condito, como vimos, o legislador é equívoco na regulação do problema de culpa na responsabilidade do Estado por atos legislativos. Destarte, a exploração deste problema deve-se fundamentalmente aos empenhos de doutrina que, em geral, localiza a regulação do problema de culpa no n.º 4 do artigo 15º do RRCEE. 

Nesta norma, em matéria do critério de juízo de culpa, o legislador recorre a um sistema de índices exemplifativos (evidenciado pela palavra “designadamente”) para, segundo o nosso paradigma, averiguar se o legislador, da sua ação ou omissão legislativa, revelou objetivamente uma atitude desrespeitadora da normatividade jurídica vigente. Resultado desta averiguação que, segundo a doutrina maioritária, se obtém através do método de “legislador médio” – isto é, nas palavras conclusivas de Vieira de Andrade65, a culpa “averiguar-se, para o cumprimento do disposto no artigo 15.º, n.º 4, se o autor da lesão agiu com diligência inferior ao que é normalmente exigível em termos de a conduta danosa lhe dever ser imputada a título de culpa – sendo possível, para o efeito o recurso, por analogia com o disposto no n.º 1 do artigo 10.º, à figura do legislador médio diligente e às circunstâncias do caso, assente num critério de razoabilidade”. Ou na ótica do nosso paradigma da culpa da atitude, um método de comparar a atitude do legislador manifestada objetivamente in casu decidendo com a atitude (também objetivamente estudada) de um “legislador médio” colocado nas mesmas circunstâncias concretas.

Este método comparativo resulta de uma “imitação”66 ou “inspiração” do critério de juízo de culpa consagrado na responsabilidade do direito civil (o n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil). Prima facie, quer esta “imitação” quer o aludido sistema de índices parece pacífico. Contudo, na nossa perspetiva, a busca de um critério sustentável do juízo de culpa do legislador não se deve resultar da tal “imitação” e do tal sistema de índices. 

A este propósito, analisaremos: (1) a legitimidade da autonormação constitutiva do legislador; (2) armadilhas metodológicas; e (3) existe um paralelismo entre o “legislador médio” e o “homem médio”?

(1) A legitimidade da autonormação constitutiva do legislador

Antes da vigência do RRCEE, numa época em que ainda não havia qualquer intervenção concretizadora legislativa do artigo 22.º da Constituição (o qual, recordando, para a doutrina maioritária, consagra o princípio da responsabilidade do Estado por atos praticados pelas suas funções, incluindo a função legislativa), o problema central na responsabilidade do Estado-legislador consiste sobretudo no estudo da exequibilidade imediata do citado preceito constitucional. Contudo, com a entrada em vigor do RRCEE, que se consubstancia numa concretização legislativa inovadora do princípio constitucional da responsabilidade do Estado no exercício da função político-legislativa (e não só), o problema da exequibilidade imediata do artigo 22.º da Constituição fica ultrapassado67. O fulcro da problematização dogmática desloca-se para a interpretação das normas do RRCEE e a interrogação da pertinência da sistematização e materialização deste. Mas antes de entrarmos neste novo plano de problematização, a nosso ver, urge-se resolver ex ante um problema preliminar, que é a legitimidade da autonormação criativa do legislador nesta matéria68, seja em global seja em particular (para a presente investigação, a nível do critério de juízo de culpa do legislador). 

A um nível muito geral, não duvidamos que o poder legislativo ordinário tem toda a legitimidade e o poder-dever derivado da Constituição de tornar exequíveis os comandos e as garantias constitucionais não imediatamente exequíveis, e esclarecer e pormenorizar os preceitos constitucionais dotados da exequibilidade imediata, sempre em conformidade com as orientações e vinculações dos princípios constitucionais. Todavia, ao tratar da matéria da responsabilidade do Estado-legislador, que é um campo sensível e sempre uma zona de tensão entre a função legislativa e a função jurisdicional, já é necessário questionar especialmente “até que latitude e minuciosidade é legítimo o legislador ordinário prescrever a si o regime da sua própria responsabilidade, ou seja, qual é a amplitude da liberdade de conformação de que o legislador goza nesta autolimitação69”. Ora, este problema torna-se ainda mais “ardente” mormente a nível de culpa uma vez que, por um lado, não obstante a constante tentativa de objetivação do conceito e do conteúdo de culpa do legislador, é inevitável que a culpa interioriza uma certa dose subjetiva ineliminável, cujo tratamento tem de ser muito cuidadoso sob pena de abrir margem à intervenção do poder judicial na liberdade de conformação do legislador70. Por outro lado, o legislador, ao prescrever (ao juiz) um critério de juízo da sua própria culpa, provoca ainda o problema meta-jurídico da credibilidade política deste critério, e além do mais, o problema jurídico da suspeita restrição desproporcional e injustificada da sua responsabilidade mediante limitar prescritivamente o âmbito de cognição e de juízo (da juridicidade) do juiz. 

Cremos que foi por causa disso que logo na proposta da Lei n.º 56/X72, se optou já pelo atual sistema de índices não taxativos (o n.º 4 do artigo 15., RRCEE), que tem o mérito de tornar mais objetivo o critério e simultaneamente não restringir excessivamente o juízo jurisdicional (dado que não é obrigado mobilizar os índices pré-sugeridos). E de facto, o mérito desta técnica legislativa em mitigar os limites normativos objetivos da lei73 já é de reconhecimento pacífico e é mobilizada constantemente na tarefa legiferante (v.g. o n.º 2 do artigo 140.º do Código de Trabalho, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal).

Contudo, na nossa perspetiva, apesar destes méritos e a compatibilidade desta técnica legislativa com o princípio da separação dos poderes e o princípio da responsabilidade do Estado, a consagração pelo próprio legislador deste sistema de índices para a avaliação da sua própria culpa não é muito recomendável a nível meta-jurídico de credibilidade política. O que, no entanto, não significa que para nós, o legislador deveria ficar em total silêncio, entregando um “cheque em branco” ao poder jurisdicional. Porquanto, repetimos, isso não só potencia uma ingerência eventual do poder judicial na liberdade de conformação do legislador violadora do princípio da separação dos poderes, mas também gera uma incerteza e insegurança jurídica excessiva e perniciosa, pondo em causa o princípio da clareza. Posto isso, ao procurar um critério idóneo, temos de atuar muito meticulosamente como se estivéssemos num jogo de trave de equilíbrio, uma vez que um pequeníssimo passo a mais ou menos já poderia conduzir-nos a resultados jurídica e/ou politicamente censuráveis. Ou seja, ao prescrever o critério para a sua culpa, o legislador somente tem uma margem muito limitada da liberdade de conformação: ele por um lado não pode prescrevê-lo de modo muito detalhado, sob pena de implicar eventualmente restrições desproporcionais da sua responsabilidade, violando o artigo 22.º da Constituição; por outro lado, também não pode abster-se inteiramente de proporcionar um quadro geral deste critério, sob pena de violar o princípio da clareza e potenciar o risco da intervenção eventual do poder judicial no núcleo essencial das atividades legiferantes violadora do princípio da separação dos poderes. Aliás, entre outros, nesta tarefa da autonormação, tem de ponderar, com especial atenção, o determinante heterónomo da credibilidade política74.

É precisamente por causa da consideração menosprezada deste último determinante, objetivamente manifestada neste sistema dos índices, que nos leva a sentir a necessidade de encontrar um critério alternativo mais (ou melhor, ainda mais) idóneo para o juízo da culpa do legislador. 

Ora, tendo em conta os enunciados determinantes-princípios jurídicos e determinantes-fatores meta-jurídicos, na nossa perspetiva, o legislador pode, em vez de fornecer orientações suas através de exemplificar os fatores que serão considerados pelo decisor judicativo na avaliação da sua culpa, reafirmar a natureza juridicamente vinculativa da sua atividade e o seu dever de respeitar a Constituição (cujo cumprimento será objetivamente avaliado), mediante consagrar uma cláusula geral no sentido de que “o tribunal, ao realizar o juízo de culpa do legislador, deve ser guiado exclusivamente pela racionalidade de averiguar a atitude que o legislador objetivamente manifestou em cumprimento do seu dever de vincular-se aos princípios normativos vigentes na ordem jurídica, nunca podendo intervir no juízo político do legislador”75. Assim, o legislador já pode abster-se de fornecer suas próprias orientações – atuação agitante do problema de credibilidade política – e deixar o papel orientador à própria normatividade jurídica vigente, em que a doutrina assume um papel essencial adjuvante.

(2) Armadilhas metodológicas

Outro problema do atual critério de juízo de culpa do legislador tem a ver com o próprio método de “legislador médio”. Mas antes de começar a correspondente abordagem, queríamos salientar que o que se trata neste ponto é um mero risco provocado por mor da semelhança prima facie verificada a nível metodológico entre o critério de “legislador médio” e o critério de “homem médio” da responsabilidade civil geral. Para alguém, isto pode ser até uma mera armadilha ficta uma vez que a doutrina já tem salientado a especialidade da culpa do legislador perante a culpa civil. No entanto, como juristas conscientes, não podemos ignorá-la (mesmo que seja apenas um risco latente) e devemos chamar atenção a esta armadilha, cumprindo a tarefa esclarecedora e, de certa maneira, preventiva da doutrina. Vejamos:

O dito método de “legislador médio” consiste, na ótica do nosso paradigma da culpa de atitude, num método de comparação da atitude do legislador manifestada objetivamente em caso concreto com a atitude objetivamente revelada da ação ou omissão de um legislador mediamente prudente colocado no mesmo circunstancialismo. Por isso, uma das operações imprescindíveis neste método é a construção de um padrão de legislador médio – que cabe ao juiz sem prejuízo do papel complementar e densificador da doutrina. Todavia, nesta zona sensível da tensão entre a função legislativa e a função jurisdicional, qual é o grau do contributo ativo que o juiz pode realizar na operação de concretização desta figura? Antes de tomar posição perante este problema, urge-se explorar os métodos prováveis em abstrato (independentemente da sua validade) que o juiz pode mobilizar na concretização do dito padrão de “legislador médio”:

Para realizar esta operação, o juiz há-de resolver a seguinte pergunta: “qual seria a atitude-padrão objetivamente manifestada da ação ou omissão de um legislador mediamente prudente e diligente perante as mesmas circunstâncias concretas do caso sub iudice?”. Mas como se resolve? Esta segunda questão abre-nos a página para a análise dos métodos que o juiz pode eventualmente encontrar na resolução da primeira pergunta.

i) Método de mobilização direta do padrão completo pré-estabelecido pelo legislador:

Como o nome próprio deste método evidencia, a validade deste método pressupõe a existência de um padrão completo de legislador médio pré-construído pelo próprio legislador. De acordo com a nossa posição tomada, este padrão será contaminado pelos defeitos da falta de credibilidade política e da eventual violação do princípio constitucional da responsabilidade caso se consubstancie numa restrição desproporcional e injustificada da responsabilidade do Estado-legislador. Por isso, não podemos deixar de rejeitar o recurso a este método na concretização da figura de “legislador médio”76

ii) Método hermenêutico-lex:

Neste método, o juiz, atendendo às circunstâncias concretas do caso, vai realizar a concretização do padrão de legislador médio através da interpretação das normas-critérios vigentes, extraindo daí orientações normativas. Trata-se de um método viável e válido mas duvidamos se estamos ainda dentro do quadro deste método quando interpretarmos normas-critérios que não fornecem (como não devem fornecer) diretamente um padrão completo, mas implicam indiretamente certas orientações normativas para a operação da concretização da figura de legislador médio. Com efeito, quando o juiz ficar orientado por uma norma que remete diretamente para certos princípios normativos ou transcreve uma certa versão de um princípio (norma-princípio), ou quando o juiz tentar encontrar o(s) princípio(s) fundamentador(es) (a ratio iuis) de uma norma ou de um conjunto das normas para assim extrair orientações do próprio sistema jurídico, o que se interesse para o juiz já não é a norma-critério per se mas sim os princípios jurídicos por detrás, pelo que o método hermenêutico-lex desempenha aqui só um papel mediador não diretamente relevante para a operação da concretização da figura de legislador médio. O que estará realmente em causa e com relevância determinante é o método referencial-princípios normativos (v. infra).

iii) Método substitutivo:

Este método implica que o juiz terá de sub-rogar-se ficticiamente no papel do legislador e “repetir” postumamente aquele ato legislativo sub iudice perante o mesmo circunstancialismo, mas tentando agora cumprir as exigências jurídicas violadas (pelo legislador em concreto) segundo um critério de razoabilidade e consciência jurídica (não política). Ou seja, aqui, ao materializar a figura de legislador médio, o juiz fará a seguinte pergunta: “o que faria em termos exclusivamente jurídico se eu fosse um legislador mediamente prudente colocado nas mesmas circunstâncias concretas?”. 

Em nosso entender, este método não é aceitável por três razões. Primus, este método não se coaduna com o sugerido paradigma da culpa de atitude do legislador, uma vez que é originalmente pensado como uma maneira de comparar a decisão concreta do legislador sub iudice com a decisão ficta elaborada pelo juiz a quo “como se fosse um legislador mediamente prudente” para assim observar se existe no caso uma liberdade de decisão efetiva através da qual o legislador em concreto “podia ou deveria agir de uma maneira lícita”. É também inadaptável ao paradigma da culpa de atitude já que não é metodologicamente conveniente (até inviável) o juiz elaborar em primeiro subjetivamente uma decisão ficta na lógica de “se eu fosse um legislador mediamente prudente” e depois tentar objectivamente retirar desta decisão a manifestação de certa atitude. 

Secundus, este método contende com a acentuada necessidade da objetivação do critério de culpa porquanto a decisão ficta instrumental elaborada pelo juiz na lógica de “se eu fosse um legislador mediamente prudente” tem sempre uma matriz subjetivista, que radica na voluntas (a dimensão decisória). Estes traços subjetivistas são inelimináveis ainda que sejam minimizáveis pelo critério de razoabilidade e consciência jurídica. Por outras palavras, ao realizar o juízo de culpa do legislador mediante a construção a priori de uma decisão ficta instrumental, está-se a contraditoriamente introduzir elementos subjetivos a algo que se visa constantemente objetivar. 

Tertius, como Pires de Lima e Antunes Varela77 afirmam ao analisar o n.º 3 do artigo 10.º do Código Civil – que normativiza este método substitutivo de “o juiz como se fosse o legislador” –, este método “tem, teoricamente, o inconveniente de permitir disparidades de interpretações, já que diferem, necessariamente, os critérios de razoabilidade de homem para homem”. Por isso, este método implica sempre uma ineliminável subjetividade judicativa e limitações do princípio da segurança jurídica, pelo que se existir alternativas mais sustentáveis, justificará em regra o seu abandono.

Por fim, achamos importante acrescentar que este método não provoca um verdadeiro problema da inconstitucionalidade pela violação do artigo 111.º da Constituição, uma vez que na nossa ordem jurídica constitucional, o que se vigora é o princípio da separação e interdependência dos órgãos da soberania e não o velho princípio da separação dos poderes78 pelo que a função jurisdicional tem a legitimidade constitucional de julgar as atividades da função legislativa e também da função administrativa desde que seja um juízo exclusivo de juridicidade. Aliás, não olvide que este método substitutivo de “o juiz como se fosse o legislador” é recorrido aqui apenas para a realização de uma operação meramente instrumental, não sendo dotado de qualquer intencionalidade de incumbir a juiz o exercício (a usurpação) da função legislativa.79 

iv) Método remissivo para a doutrina e a experiência jurídica:

Neste método, o juiz, em vez de buscar nas leis padrão pré-estabelecido ou orientações derivadas ou sub-rogar ficticiamente no papel do legislador, recorre ao padrão flexível densificado pela doutrina e/ou ao padrão sedimentado na experiência jurídica sem ignorar o circunstancialismo do caso. É um método válido e tem o mérito de atender aos contributos da doutrina e da experiência jurídica enquanto estratos constitutivos do próprio sistema jurídico A única reserva que fazemos aqui deriva da nossa dúvida sobre a (in)existência de uma ideia de “legislador médio” sedimentada na nossa cultura político-social juridicamente relevante (v. infra).

v) Método referencial-princípios normativos:

Como se refere ocasionalmente na introdução do método hermenéutico-lex, este método consiste-se na mobilização pelo juiz dos princípios normativos vigentes no ordenamento jurídico como referência das orientações a seguir na concretização da figura de “legislador médio”. Trata-se de um método juridicamente admissível e tem como mérito fazer ressonância com a ideia da imprescindibilidade do momento de validade nas atividades legislativas, dado que como Castanheira Neves80 ensina, “os princípio normativos, enquanto fundamentos do sistema jurídico, beneficiam de uma presunção da validade e vinculam-nos enquanto validade”. Além disso, a natureza maleável dos próprios princípios normativos facilita a composição das diferentes orientações impostas por cada um dos princípios relevantes para o caso concreto, evitando (ou, pelo menos, minimizando) assim impasses normativas dentro de um mesmo padrão.

Fechando agora esta abordagem dos métodos que o juiz, em abstrato, pode encontrar na materialização da figura de “legislador médio”, podemos já voltar à nossa problematização inicial: “nesta zona sensível da tensão entre a função legislativa e a função jurisdicional, qual é o grau da contribuição até o qual o juiz pode realizar na operação da materialização desta figura?”. Eis a nossa resposta: ainda que o grau da contribuição em si não seja quantificável, podemos torná-lo relativamente inteligível através da comparação desta com a contribuição do juiz na materialização da figura de “homem médio” na responsabilidade civil geral. 

Como defendemos, os métodos verdadeiramente válidos na materialização da figura de “legislador médio” são somente o método remissivo para a doutrina e o método referencial-princípios normativos, pelo que o papel do juiz aqui fica reduzido em regra à concretização e aplicação das orientações extraídas dos princípios normativos e complementarmente, ao recurso crítico-reflexivo do padrão densificado pela doutrina, atendendo às circunstâncias do caso concreto. Pelo contrário, o papel do juiz na materialização da figura de “homem médio” é mais contributivo ao passo de que, além de continuar a ser viáveis e válidos estes métodos, o método hermenéutico-lex adquire autonomia perante o método referencial-princípios normativos (uma vez que tendo saído do problema da responsabilidade do Estado-legislador – que é caracterizado por consubstanciar-se numa zona sensível de tensão entre a função legislativa e função jurisprudencial – é pacífico, quer a nível jurídico quer a nível de credibilidade político, o legislador prescrever normas que direta ou indiretamente fornecem orientações para o juízo jurisdicional da culpa de um particular), e já é válido e viável o método substitutivo (dado que, independentemente do problema da sustentabilidade do paradigma da culpa de liberdade na matéria da responsabilidade civil, não se verifica aqui a exigência da objetivação especialmente acentuada do critério de culpa, que como se refere, seria comprometida pelo método substitutivo; aliás, em bom rigor, não se trata aqui de um método substitutivo porque não se necessita já da ficção de “o juiz como se fosse um homem médio” – o juiz é e deve ser [no mínimo] um homem mediamente prudente e diligente na nossa comunidade).

Destarte, os métodos juridicamente válidos disponíveis para o juiz na materialização da figura de “legislador médio” são mais limitados do que os disponíveis na materialização da figura de “homem médio” na responsabilidade civil geral. Portanto, sentimo-nos a necessidade de chamar atenção à esta diferença a nível metodológico – os juízes não devem cair nesta latente armadilha metodológica escamoteada pela coincidência aparente enganadora entre as operações e os métodos implicados no critério de “legislador médio” e os implicados no critério de “homem médio”, sob pena de pôr em xeque as exigências especiais (mormente, a acentuada objetivação) do regime da responsabilidade do Estado-legislador a nível de culpa.

(3) Existe um paralelismo entre o “legislador médio” e o “homem médio”?

O termo de “legislador médio” vem da importação doutrinal81 do conceito de “homem médio” da responsabilidade civil geral para o terreno da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador. Mas esta importação é correta? Será pertinente falar de “legislador médio” para designar o padrão comparativo-referência do juízo de culpa do legislador tal como se fala de “homem médio” na responsabilidade civil geral? O “legislador médio” e o “homem médio” são paralelos? Vejamos:

O critério de “homem médio” ou “bonus pater familias82 é consagrado no artigo 487.º do Código Civil. Trata-se de um conceito da ordem social e moral recrutado pela ordem jurídica sobretudo para o efeito da realização do juízo de culpa. Emerge como um padrão em que se cristalizaram as exigências razoavelmente dirigidas pela comunidade aos seus membros, tendo em conta as civilizações vigentes na generalidade dos membros da comunidade, para garantir efetivamente uma convivência pacífica e segura dentro da comunidade. Por isso, é um padrão/ um conceito sedimentado na nossa cultura social-moral, consensualmente admitido pelos membros da comunidade83, e é dotado de uma vigência mais ou menos constante numa determinada comunidade (a duração desta vigência depende da evolução das ideologias e dos paradigmas da própria comunidade). Ou seja, é uma aquisição cultural atualizável no tempo de cada civilização humana, derivada da base comum das diferentes ideologias vigentes na comunidade, temperada por um senso da razoabilidade e do respeito pela dignidade humana.

Já em relação ao conceito de “legislador médio”, desde logo, verifica-se que isto não é um padrão com vigência constante no tempo – trata-se de um padrão muito instável e evanescente uma vez que a atividade legiferante e as exigências dirigias a esta atividade são muito sensíveis (muito mais sensíveis do que as ideologias e os paradigmas gerais vigentes numa certa comunidade) face às mudanças verificadas no paradigma do Direito e do Estado84 (v.g. do Estado Liberal ao Estado Social e deste ao Estado Regulador) e na conjuntura social, política e económico-financeira (quer interna quer internacional), pelo que perante paradigmas e conjunturas diferentes, de uma mesma ação (e quiçá, mais obviamente de uma mesma omissão) já se pode manifestar objetivamente atitudes do legislador muito diferentes em cumprimento do seu dever geral do respeito pela normatividade jurídica vigente. Por conseguinte, sendo este chamado “padrão” de “legislador médio” tão efémero, duvidamos se ainda se pode falar de um verdadeiro padrão.

Por outro lado, diferentemente do conceito de “homem médio” que é um conceito da raiz social e moral, o conceito de “legislador médio” é um conceito (uma ficção) puramente jurídica que não tem correspondência na ordem político-social. Isto porque nesta última, as exigências dirigidas às atividades legiferantes, em bom rigor, não contribuem para a construção de um padrão de legislador mediamente diligente, mas sim para a cultivação de um legislador ideal mais que mediamente diligente. Aliás, o “legislador médio”, diferente do “homem médio” não tem uma dimensão ético-social. Na nossa perspetiva, o chamado “legislador médio” é de facto um padrão puramente jurídico que tem por base as orientações extraídas dos valores e princípios normativos vigentes na ordem jurídica.

Posto isso, para nós, o conceito de “legislador médio” e o de “homem médio” não são paralelos. São conceitos que têm natureza diferente e com raiz distinta, pelo que os juristas, ao trabalhar com o conceito de “legislador médio”, devem ficar com um pensamento livre do tradicional conceito de “homem médio”. Só assim é que é possível compreender devidamente a essência do critério de juízo de culpa do legislador, que, por seu turno, é fundamental para uma correta aplicação do regime da responsabilidade do Estado decorrente do exercício da função legislativa.

Assim, epilogando, reafirmamos que:

(a) O atual sistema de índices consagrado no atual n.º 4 do artigo 15.ºdo RRECC merece indubitavelmente do mérito a nível jurídico. Todavia, tendo em conta que se trata aqui de um ato da autonormação do legislador do regime da sua própria responsabilidade, julgamos que esta técnica legislativa já não é tão satisfatória a nível da credibilidade política.

(b) o conceito de “legislador médio” e o de “homem médio” não são paralelos. Para evitar a eventual confusão conceitual e as trapalhadas metodológicas, deve-se sempre prestar atenção à diferença substancial e metodológica entre estes dois padrões para assim assegurar uma correta e adequada aplicação, a nível de culpa, do regime da responsabilidade do Estado decorrente do exercício da função legislativa. Destarte, preferimos tratar o padrão (ou melhor, a referência) comparativa a recorrer no juízo de culpa do legislador por “padrão objetivo da atitude do legislador em conformidade com a normatividade jurídica vigente, com atenção a circunstancialismo concreto” (repete-se, manifestação de atitude essa que é objetivamente analisada em caso concreto), em vez do tradicional “padrão do legislador médio colocado nas mesmas circunstâncias concretas”.

 

4. Reflexão final

O regime legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador, como qualquer produto humano, é naturalmente imperfeito. Por isso, não se estranha que vários defeitos têm sido destacados pela doutrina. 

Contudo, uma coisa é defeito congénito e outra coisa é defeito artificial. Para evitar este último, é necessário, antes de tudo, ter sempre em consideração que, apesar da conveniência de refletir o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador a partir da teoria geral da responsabilidade civil, aproveitando as aquisições jurídicas abundantes disponíveis quer na responsabilidade civil do direito privado quer na responsabilidade civil do Estado-Administração85, esta reflexão só pode realizar-se como o ponto de partida de compreensão e reconstrução do regime da responsabilidade civil do Estado-legislador. Com efeito, como vimos, este regime é dotado de uma singularidade normativa sem analogia perfeita noutros terrenos da responsabilidade civil. E particularidade esta que só não afeta os traços aplicativos do regime, mas também penetra no próprio método racional de compreensão dialética deste. 

E de facto, mesmo que nos concentremos apenas na culpa na presente indagação, a mesma racionalidade de não confusão do regime da responsabilidade civil do Estado-legislador com os demais regimes de responsabilidade civil é extensível a todos os requisitos de fundamentação daquela responsabilidade. Efetivamente, só a partir do momento em que todos estes requisitos constitutivos ficam cunhados pela especificidade teleológica e axiológica que caracteriza o regime da responsabilidade civil do Estado-legislador é que a normatividade deste pode ser assegurada.

 

NOTAS

1 Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

2 Entre outros, GOMES  CANOTILHO , O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1974,         [ Links ] passim ; RUI  MEDEIROS , Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos,  Coimbra, 1992,         [ Links ] passim ; MARIA  LÚCIA  AMARAL , Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador , Coimbra, 1998,         [ Links ] passim ; DIOGO  FREITAS DE  AMARAL / RUI  MEDEIROS , Pareceres: Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas – o caso Aquaparque, Revista de Direito e de Estudos Sociais,  n.º 3 e 4, 2000, pp. 299-383.

3 Esta zona sensível e a respetiva problematização serão desenvolvidas ao longo do presente artigo.

4 FIGUEIREDO  DIAS , Liberdade – Culpa – Direito Penal,  Coimbra, 1995, passim.

5 Um regime no qual a culpa se mantém como um requisito da fundamentação da responsabilidade, mas perde, entretanto, autonomia face à ilicitude uma vez que basta a prova de ilicitude para automaticamente concluir pela existência de culpa. Ou seja, a culpa tem a sua relevância enquanto pressuposto a se  relativizada e não necessita da prova direta. A culpa afirma-se, ou melhor, presume-se desde que seja a ilicitude provada.

6 Devemos prestar atenção a que embora o regime atual da responsabilidade civil extracontratual em geral seja ainda marcadamente subjetiva, tem sido sofrido já certa objetivação, maxime  através da introdução do critério da apreciação da culpa em abstrato. Este é evidente, entre outros, na responsabilidade do Estado no exercício da função administrativa quando se faça referência a “um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor” no n.º 1 do artigo 10.º do RRCEE. Mais sobre a apreciação da culpa em abstrato, v.  ANTUNES  VARELA , Das Obrigações em Geral , I, Coimbra, 2013, pp. 574 ss.         [ Links ].

7 A hipótese da responsabilidade objetiva é rejeitada liminarmente por causa da sua manifesta inconstitucionalidade material provocada pela supressão desproporcional da liberdade de conformação do legislador, que põe em causa francamente o funcionamento normal dos poderes públicos. Consulte, inter alia,  o Acórdão do TCASul de 2012/12/06, proc. 08131/11 e o Acórdão do TCASul de 2013/11/21, proc. 07577/11 que destacam a ilegitimidade da responsabilidade objetiva do legislador. Os Acórdãos citados são pesquisáv el em http://www.dgsi.pt.

8 Nesta posição, MÁRIO  AROSO DE  ALMEIDA , A responsabilidade do legislador no âmbito do artigo 15.º do novo regime introduzido pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Julgar,  n.º 5, Lisboa, 2008, p. 45. Numa posição mitigada, que defende a relevância secundária da culpa na fundamentação da responsabilidade do legislador, mas sem que advogue uma presunção da culpa pela ilicitude, v . DIOGO FREITAS DE  AMARAL / RUI  MEDEIROS , Pareceres, pp. 350 e 374         [ Links ]

9 Cfr. EWA  BAGIŃSKA , State liability in a comparative perspective, Boletim da Fauldade de Direito da Universidade de Coimbra,  Coimbra, 2005, pp. 851-864, especialmente, pp. 856-861.

10 Repare que a responsabilidade do Estado por atos legislativos se trata de uma conquista do pensamento jurídico do século XX e da compreensão moderna da separação dos poderes. Tivemos uma longa história da irresponsabilidade do Estado por atos legislativos. Sobre a evolução de irresponsabilidade para responsabilidade, v.  VIEIRA DE  ANDRADE , A responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função legislativa, Revista de Legislação e de Jurisprudência,  n.º 3980, Coimbra, 2013, pp. 286-289.

11 Contudo, salientamos que, em nosso entender, esta autonomia não implica que a culpa e a ilicitude constituem dois nichos dogmáticos estanques. Com efeito, louvando-se na teoria de “sistema móvel” da responsabilidade civil de JANSEN  (v . NILS  JANSEN , Die Struktur des Haftungsrechts, Tubingen, 2003, pp. 594 ss. maxime,  p. 598 apud  MAFALDA  MIRANDA  BARBOSA , Do Nexo de Causalidade ao Nexo de Imputação, Contributo para a Compreensão da Natureza Binária e Personalística do Requisito Causal ao Nível da Responsabilidade Civil Extracontratual,  Cascais, 2013, pp. 990-991, nota 2121), defendemos que todos os pressupostos da fundamentação da responsabilidade civil são interdependentes. Por isso, não ignoramos que o contorno da ilicitude de um concreto ato legislativo pode influenciar o juízo de culpa do legislador.

12 Com efeito, como GOMES  CANOTILHO  ensina, a liberdade de conformação do legislador é vinculada negativa e positivamente pelas determinantes autónomas e heterónomas. Cfr. GOMES CANOTILHO , Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador,  Coimbra, 2001, pp. 246 ss..

13 Com efeito, muito sucintamente dito, num Estado democrático que funciona ao abrigo do princípio da maioria, é impossível existir uma decisão político-legislativa que não põe em causa os interesses de alguns cidadãos, provocando-lhes eventualmente prejuízos. Se o regime geral fosse no sentido de reparar ou indemnizar cada um destes prejuízos, o princípio da maioria acabaria por se tornar, na prática, em nada mais do que uma “letra-morta”.

14 Como GOMES  CANOTILHO  defende, “[a] possível exigência de um regime legal da responsabilidade por facto das leis significa não que o legislador possa afastar os deveres de ressarcibilidade e indemnizabilidade que incumbem ao Estado mas que deve concretizar e conformar esse regime através da lei”. Cfr. GOMES  CANOTILHO , Direito Constitucional e Teoria da Constituição , Coimbra, 2014,  p. 510. Segundo MARIA  LÚCIA  AMARAL , a vinculação imprescindível do legislador à Constituição no exercício da sua liberdade de conformação faz com que o problema da responsabilidade do Estado-legislador é necessariamente um problema de direito constitucional. Cfr. MARIA  LÚCIA AMARAL , Responsabilidade do Estado,  pp. 164 ss.; idem,  Responsabilidade do Estado-Legislador: Reflexões em torno de uma reforma, Themis , nº 4, Lisboa, 2002, pp. 8-9.

15 Assim sendo, salvo todo o respeito devido, não concordamos com RUI  MEDEIROS , que, dando relevância à dimensão de governação do poder legislativo e suspeitando que a facilidade da fundamentação da responsabilidade do legislador possa criar um efeito inibidor do exercício normal da função legislativa, concluiu pela rejeição da “adopção, à margem da lei, de um conceito de culpa tão lato que, na prática, se confunda com a própria ilicitude” . Cfr. RUI  MEDEIROS , Ensaio,  pp. 13, 175 e 181-184. Todavia, como se referiu, quando o Autor elaborou o parecer de Aquaparque  em coautoria com FREITAS DE  AMARAL , já passou a defender que a culpa, na matéria da responsabilidade do Estado por omissões legislativas, tem uma “relevância secundária ”, v . DIOGO  FREITAS DE  AMARAL / RUI MEDEIROS , Pareceres, pp. 350 e 374.

16 Por isso, estamos abertos à adoção de um regime subjetivo agravado com presunção de culpa de iure condendo.  Aliás, na eventual reforma, o legislador (ou melhor, um legislador leal) deve averiguar se o atual regime subjetivo da sua própria responsabilidade civil é suficiente para proteger os cidadãos. Com efeito, fatores determinantes de natureza variável como a desconfiança dos cidadãos face ao Estado-legislador, o funcionamento distorcido da democracia subjetiva, o fenómeno do fracasso do governo, e o facto de que o atual regime já limita a responsabilidade do Estado-legislador em vários momentos [no caso da mera culpa (o n.º 4 do artigo 15.º do RRCEE), ao nível de dano (não só indemnizáveis os danos anormais – a 1ª parte dos n.º 1 e 3 do artigo 15.º do RRCEE) e no caso especial previsto no n.º 6 do artigo 15.º do RRCEE], não podem deixar de criar dúvidas sobre o mérito da manutenção do atual regime.

17 Neste sentido, JORGE  PEREIRA DA  SILVA , Artigo 15.º, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas , Lisboa, 2013, p. 401; CADILHA , CARLOS , Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado,  Coimbra, 2011, pp. 345-346; VIEIRA DE  ANDRADE , A responsabilidade civil..., p. 299; TIAGO  FREITAS / AFONSO  BRÁS , Artigo 15.º, in O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência, Lisboa, 2017, pp. 763-767.

18 A separação entre ilicitude e culpa tem sido já uma construção doutrinal adquirida pela ordem jurídica portuguesa a partir do Código Civil de 1966 na matéria da responsabilidade civil, ao contrário do sistema francês em que a ilicitude é um componente da faute . Para um estudo sintético sobre o sistema francês da responsabilidade civil extracontratual, v.  SUZANNE  GALAND -CARVAL , Fault under French Law, in Unification of Tort Law: Fault,  Haia, 2005, p. 89.

19 A ilicitude dos atos legislativos é um problema delicado para cuja investigação o presente trabalho não será o sítio oportuno. Sobre isso, consulte RUI  MEDEIROS , Ensaio,  pp. 165 ss.; JORGE PEREIRA DA  SILVA , Artigo 15.º, pp. 389 ss.; DIOGO  FREITAS DE  AMARAL / RUI  MEDEIROS , Pareceres, pp. 345 ss.; CARLOS  CADILHA , Regime,  pp. 328-331; MARIA  LÚCIA  AMARAL , Responsabilidade do Estado, pp. 688 ss.; idem,  Responsabilidade do Estado-Legislador..., pp. 12-19, e Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função política e legislativa, Cadernos de Justiça Administrativa,  nº 40, 2003, pp. 42-43.

20 V. , inter alia,  o Acórdão de 05/03/1996, Brasserie du Pêcheur SA e Factortame , processos apensos C-46/93 e C-48/93 (que, de facto, é o acórdão-mãe a partir do qual se formou este entendimento jurisprudencial); o Acórdão 30/09/2003, Gerhard Köbler v. Republik Österreich , processo C-224/01; o Acórdão de 12/12/2006, Test Claimants in the FII Group Litigation v. Commissioners of Inland Revenueo,  processo C-446/04; o Acórdão de 03/03/2010, Artegodan GmbH v. Comissão , processo T‑ 429/05; o Acórdão de 03/09/2014, processo C‑ 318/13 (reenvio prejudicial); e o Acórdão de 28/07/2016, Milena Tomášová v. Slovenská republika , processo C-168/15. Consulte também as conclusões da Advogada-Geral JULIANE  KOKOTT , apresentadas em 15/05/2014 a propósito do processo C-318/13. Todos são pesquisáveis em http://eur-lex.europa.eu.

21 Citando deste Acórdão, “[e]m matéria de responsabilidade extracontratual da Comunidade, quando a instituição em causa dispõe de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção ao direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada. Contudo, não há nenhum nexo automático entre, por um lado, a inexistência de poder de apreciação por parte da instituição em causa e, por outro, a qualificação da infracção como violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. Embora tenha carácter determinante, o alcance do poder de apreciação da instituição comunitária em causa não constitui um critério exclusivo. Só a verificação de uma irregularidade que, em circunstâncias análogas, uma administração normalmente prudente e diligente não teria cometido permite que se constitua a responsabilidade da Comunidade.  Por conseguinte, cabe ao tribunal comunitário, após ter determinado, primeiro, se a instituição dispunha de uma margem de apreciação, considerar em seguida a complexidade da situação a regular, as dificuldades de aplicação ou de interpretação dos textos, o grau de clareza e de precisão da regra violada e o carácter doloso ou indesculpável do erro de direito cometido” (sublinhado nosso).

22 Por isso, salvo todo o respeito, não concordamos com MARIA  JOSÉ  RANGEL DE  MESQUITA , que defende que “a «violação suficientemente caracterizada do Direito Comunitário»... não pressupõe necessariamente a culpa ”. Cfr. MARIA  JOSÉ  RANGEL DE  MESQUITA , Responsabilidade por incumprimento do Direito da União Europeia imputável à função legislativa, Cadernos de Justiça Administrativa,  nº 72, 2008, p. 13. Tal como o citado Acórdão Artegodan GmbH v. Comissão  afirmou, o preenchimento do requisito de “violação suficientemente caracterizada do Direito Comunitário” depende de um juízo de censura. Este juízo de censura, num ponto de vista substantivo, não será nada mais do que a culpa, ainda que com contorno ajustado ao Direito da União Europeia. Além do mais, o Acórdão (Acórdão Haim ) citado pela Senhora Doutora parece reafirmar lateralmente a nossa posição. A citação é a seguinte, “o TJ afirma ainda que «a obrigação de reparar os prejuízos causados aos particulares não pode ficar subordinada a uma condição extraída do conceito de culpa que vai além da violação suficientemente caracterizada»”  (ibidem,  nota 16). Ora, o que o Tribunal nos ensina neste Acórdão é que, a responsabilidade depende da culpa, só que este juízo de culpa não pode ir além da violação suficientemente caracterizada . Ou seja, a culpa é um requisito essencial da responsabilidade mesmo que possua um conceito adaptado ao Direito da União Europeia e às características da própria responsabilidade em apreço. Não devemos olvidar que a culpa é um conceito indeterminado atualizável com maleabilidade perante a dialética de estabilização/superação do próprio sistema jurídico. Nota: o Acórdão Artegodan GmbH v. Comissão  é sobre a responsabilidade da própria União Europeia enquanto o texto citado de MARIA  JOSÉ  RANGEL DE  MESQUITA  é sobre a responsabilidade do Estado perante os particulares por incumprimento do Direito da União Europeia. Mesmo que sejam sobre responsabilidades diferentes, o requisito de “violação suficientemente caracterizada do Direito Comunitário” é idêntico.

23 Partimos por isso do pressuposto de que um conceito de culpa do legislador é imprescindível para o funcionamento prático do regime da responsabilidade civil do legislador. Todavia, este pressuposto não é dogmaticamente inquestionável, sobretudo tendo em conta que existem ordenamentos jurídicos, como o a ordem jurídica inglesa, que funcionam apenas com os conceitos de negligência e dolo – como categorias separadas – sem recurso a um conceito unitário de culpa. Cfr. ROGERS , W.V. HORTON , Fault under English Law, in Unification of Tort Law: Fault,  Haia, 2005, p. 69. No entanto, mesmo assim, através de uma reflexão ponderada, afigura-nos um conceito unitário de culpa ainda indispensável para o funcionamento do regime da responsabilidade do legislador apesar da dificuldade implicada na sua construção. Com efeito, primus,  a análise do pressuposto da responsabilidade torna-se mais conveniente quando tivermos um conceito de culpa em que se unificam o dolo e a negligência. Assim, na determinação da (ir)responsabilidade do Estado-legislador, não temos de fazer um duplo trabalho de averiguar em separado a existência do dolo do legislador e a existência da negligência – repara que neste método, só podemos concluir pela irresponsabilidade do Estado do legislador se tivermos um duplo negativo (não doloso e não negligente). Este duplo negativo é imprescindível uma vez que não se pode aceitar a tese de que basta verificar a inexistência de negligência para concluir pela irresponsabilidade. Porquanto ainda que uma conduta negligente seja menos reprovável do que uma conduta dolosa, o conteúdo de negligência não é uma parte do conteúdo de dolo nem os requisitos de um ato negligente são pré-requisitos de um ato doloso. Dolo e negligência são categorias autónomas pelo que são errados o argumento lógico a maiori ad minus  de “se houver dolo, há negligência” e o argumento lógico a minori ad maius  de “se não houver negligência, não há dolo”. Secundus,  quer a culpa em geral quer a culpa do legislador em especial são conceitos funcionais sedimentados na nossa cultura jurídica. Não se encontram razões específicas que justificam a insustentabilidade do conceito de culpa na ordem jurídica vigente. Por isso, a desnecessária retirada do conceito de culpa só gerará, pelo menos no tempo atual, problemas da incerteza na ordem jurídica. Em nosso entender, o fundamental é a constante revisão e reflexão do paradigma de culpa de acordo com os princípios fundamentais da ordem jurídica e os princípios caracterizadores de cada ramo de direito em que o problema se colocará. Tertius , no sistema jurídico português, todos os ramos de direito trabalham com o conceito de culpa. Consequentemente, a revogação do conceito da culpa apenas na área da responsabilidade do Estado-legislador provocará inevitavelmente o problema da incoerência sistemática. Inconveniência esta que não parece ser proporcionalmente compensado por quaisquer vantagens eventuais relevantes.

24 Cfr. MIRANDA , JORGE , Manual de Direito Constitucional,  IV, Coimbra, 2012, p. 395. Esta afirmação tem toda a razão, mas queríamos salientar que em bom rigor, não apenas o conceito da culpa do legislador, mas também o correspondente critério de juízo precisa da tal objetivação. V. infra.

25 Na ordem jurídica nacional, este conceito de culpa é sugerido por RUI  MEDEIROS  logo na sua dissertação de mestrado (v.  RUI  MEDEIROS , Ensaio , p.188) e tem sido constantemente mobilizado pela jurisprudência nacional: a título exemplificativo, o Acórdão do TCASul, de 2013/11/21, proc. 07577/11 em que se lê: “ [o] legislador actuará com culpa quando podia e devia ter evitado a acção ou omissão ilícita, por lhe ser possível face às circunstâncias existentes, ter aprovado os actos normativos necessários e adequados a evitar aquela violação dos direitos e interesses dos particulares” ; e o Acórdão do TCASul, de 2013/09/12, proc. 05791/09 em que é afirmado que “[a]o não legislar no sentido de estabelecer também para os trabalhadores do Estado o direito ao subsídio de desemprego, quando face às circunstâncias o podia ter feito, assim evitando a violação dos direitos e interesses dos particulares, o Estado actuou ilicitamente e de forma culposa”.  Acórdãos pesquisáveis em http://www.dgsi.pt. Pelo contrário, JORGE  PEREIRA DA  SILVA  defende que “...o legislador deve beneficiar de uma tolerância muito reduzida em matéria de atos (ou omissões) de natureza ilícita... Não basta, pois, dizer que existe culpa do legislador quando este podia e devia ter evitado a emanação de uma lei ilícita (ou quando podia e devia ter preenchido uma omissão inconstitucional). Salvo circunstâncias particulares que justifiquem a sua conduta, e que possam em parte desculpar a sua falta, o legislador pode efectivamente e deve efectivamente não emitir leis inconstitucionais, ilegais ou desconformes com os respectivos padrões externos de eficácia, tal como pode corrigir e remover com brevidade da ordem jurídica as leis afetadas por tais problema (e assim como lhe é possível dar cumprimento atempado às imposições constitucionais que lhe são dirigidas)”. Cfr. JORGE  PEREIRA DA  SILVA , Artigo 15.º, pp. 401-402). Ao nosso ver, trate-se de um protesto com mérito contra o paradigma tradicional da culpa de liberdade. Contudo, depois desta argumentação, o Autor não desenvolveu mais. Assim justifica efetivamente a nossa observação logo no início de que para as doutrinas nacionais, o problema do conceito e do critério de culpa do legislador não tem relevância autónoma.

26 Nota-se que em Portugal, onde existe uma constituição escrita e vigora o princípio de soberania popular, é a liberdade de conformação legislativa (quando associada ao valor de funcionamento normal do Estado) que restringe a expansão do regime da responsabilidade do legislador; no Reino Unido, em que não há uma constituição escrita e vigora uma ideia de soberania diferente, é a parliamentary sovereignty  que, na medida em que obsta ao judicial review  dos atos legislativos, restringe (rectius , tolhe) o desenvolvimento de uma ideia geral da responsabilidade do legislador – recorde que como BLACKSTONE  afirmou, “[the parliament]can, in short, do everything that is not naturally impossible; and therefore some have not scrupled to call it´s power, by a figure rather too bold, the omnipotence of parliament” . Cfr. WILLIAM  BLAKSTONE , Commentaries on the Laws of England (1765-1769),  Book I, Chapter II, London, p. 160.

27 A doutrina maioritária fundamenta a responsabilidade do Estado-legislador (por facto ilícito) nesta norma. Cfr. RUI  MEDEIROS , Ensaio,  pp. 85-88; DIOGO  FREITAS DE  AMARAL / RUI  MEDEIROS , Pareceres, pp. 306-320; CARLOS  CADILHA , Regime,  p. 296; VIEIRA DE  ANDRADE , Os Direitos Fundamentais,  p. 353; JORGE  PEREIRA DA  SILVA , Artigo 15.º,  p. 379; GOMES  CANOTILHO , Direito Constitucional,  p. 510; GOMES  CANOTILHO / VITAL  MOREIRA , Constituição da República Portuguesa – Anotada,  I, Coimbra, 2014, p. 430; JORGE  MIRANDA  / RUI  MEDEIROS , Constituição Portuguesa Anotada,  I,  Coimbra, 2010, pp. 473-474; JORGE  MIRANDA , Manual , IV, pp. 387, 388-391. Contra, MARIA  LÚCIA  AMARAL , Responsabilidade do Estado,  pp. 419 ss. e 710.

28 Esta norma constitucional tem sido alvo de discussão doutrinal especialmente sobre se ela abrange apenas a responsabilidade por atos ilícitos ou também a responsabilidade por atos lícitos. O presente trabalho não é o lugar oportuno para desenvolver este tema. Por isso, deixe-nos remeter para as obras com dedicações específicas, designadamente, RUI  MEDEIROS , Ensaio,  pp. 88 ss.; VIEIRA DE ANDRADE , Os Direitos Fundamentais , p. 353; PEDRO  MACHETE , Artigo 16.º, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas,  Lisboa, 2013, pp. 447 ss.; GOMES  CANOTILHO / VITAL  MOREIRA , Constituição,  pp. 431-432; JORGE  MIRANDA  / RUI MEDEIROS , Constituição,  pp. 475-476; JORGE  MIRANDA , Manual,  IV, p. 392.

29 Cfr. GOMES  CANOTILHO , Constituição Dirigente , pp. 216-218.

30 Cfr. ibidem,  pp. 241 ss..

31 Sobre o problema dos vícios do exercício da liberdade de conformação, ibidem,  pp. 257-266.

32 Cfr. FIGUEIREDO  DIAS , Direito Penal, Parte Geral,  I, Coimbra, 2011, p. 517. Mais sobre este argumento, idem, Liberdade,  pp. 21-54 (maxime , pp. 21-37).

33 Cfr.. CASTANHEIRA  NEVES , Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos) , Coimbra, 1971-1972, pp. 124 ss.

34 Cfr. ANTUNES  VARELA , Das Obrigações,  pp. 738 ss..

35 Cfr. GOMES  CANOTILHO , Constituição Dirigente,  pp. 14 ss..

36 Recorde que com a superação das Jurisprudência dos conceitos, a tarefa de conceitualização já não pode ser considerada como um meio para obter a autossuficiência do sistema jurídico. A conceitualização agora só serve para conseguir uma maior segurança jurídica (que não será um valor absoluto e nunca poderá ser o fim último do Direito) e auxiliar as operações pragmáticas. Cfr. CASTANHEIRA  NEVES , «Método jurídico», in Digesta,  II, Coimbra, 2011, pp. 301-308; idem , «O pensamento jurídico (Metodologia)», in Curso de Introdução ao Estudo do Direito , Coimbra, 1971-72, pp. 409 ss.; PINTO  BRONZE , Lições da Introdução ao Direito , Coimbra, 2010, pp. 776-790.

37 Recorde também a argumentação de JORGE  PEREIRA DA  SILVA  que citámos supra.

38 Cfr. RUI  MEDEIROS , Ensaio,  p.188. Deve-se prestar atenção a que o autor, ao falar aqui da inconstitucionalidade, de facto, está a referir à ilicitude. Veja a p.166 da obra citada, em que é esclarecido que “[a]o longo deste trabalho, equiparamos frequentemente a ilicitude à inconstitucionalidade. Fazemo-lo, no entanto, apenas para simplificar a linguagem...”.

39 O abandono do paradigma da culpa de liberdade acontece igualmente no Direito Penal, defendido sobretudo por FIGUEIREDO  DIAS , Direito Penal,  pp. 514 ss. e idem, Liberdade,  pp. 21 ss..

40 Mobilizando a classificação sugerida por CASTANHEIRA  NEVES , o problema do sentido da função legislativa será um problema intencional ou interno, enquanto o problema da responsabilidade da função legislativa será um problema estatutário (que se integra nos problemas estruturais ou externos). Cfr. CASTANHEIRA  NEVES , Entre o «legislador», a «sociedade» e o «juiz» ou entre «sistema», «função» e «problema» – os modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,  Coimbra, 1998, pp. 5-6. Mesmo que se tratem dos problemas situados em diferentes patamares, eles são interligados. A abordagem do problema interno é sempre necessária para uma melhor compreensão e resolução do problema externo.

41 Nota-se que no Direito Romano, que é um sistema jurídico marcadamente do pragmatismo, as fontes principais eram o costume e a jurisprudência. Cfr. SANTOS  JUSTO , Breviário de Direito Privado Romano , Coimbra, 2010, pp. 29-35; sobre o pensamento jurídico romano, v.  PINTO  BRONZE , Lições,  pp. 312-313. Enquanto no Direito português medieval, pelo menos até ao meado do século XIII, o sistema jurídico tinha uma base consuetudinária, possuindo a lei uma importância muito limitada. Cfr. MÁRIO JÚLIO DE  ALMEIDA  COSTA , História do Direito Português , Coimbra, 2012, p. 215; também BLANCO DE MORAIS , As Leis Reforçadas. As Leis Reforçadas pelo Procedimento no âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativos,  Coimbra, 1998, pp. 26-30; JORGE  MIRANDA , Manual de Direito Constitucional,  V, Coimbra, 2011, p. 137.

42 Tendo em conta o limite de alcance do presente texto, o que se tece na parte seguinte não pode deixar de ser uma abordagem resumidíssima. Para um estudo pormenorizado sobre a evolução do sentido de legislar na história da civilização humana, consulte, inter alia , MARCELO  REBELO DE  SOUSA , A lei no Estado contemporâneo, Caderno de Ciência e Legislação,  n.º 11, Lisboa, 1994, pp. 5 ss.; BLANCO DE  MORAIS , As Leis Reforçadas,  pp. 23 ss., maxime , o Capítulo II e o Capítulo III; MANUEL AFONSO  VAZ , Lei e Reserva da Lei. A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976,  Porto, 1996, maxime , pp. 75 ss.; JORGE  MIRANDA , Lei, Estado de Direito, e qualidade das leis. Brevíssima nota, Caderno de Ciência e Legislação,  n.º 50, Lisboa, 2009, pp. 91-93; idem, Manual,  V, pp. 135-142; e a grande lista de bibliografia constante destas obras.

43 Sobre a diferença entre o princípio da separação dos poderes e o princípio da separação e interdependência entre os órgãos de soberania plasmado no artigoº 111.º da Constituição Portuguesa, v. inter alia,  GOMES  CANOTILHO / VITAL  MOREIRA , Constituição da República Portuguesa – Anotada,  vol. II, Coimbra, 2014, anotação ao artigo 111.º.

44 Cfr..  PINTO  BRONZE , Lições , p. 317.

45 No início deste movimento da secularização, o homem moderno não negou o seu diálogo com Deus. Contudo, mormente catalisada pelo individualismo e a hipertrofia do jusracionalismo, esta secularização culminou-se no secularismo em que o homem se distanciou completamente de Deus, libertando totalmente de qualquer ordem teológica e afirmando que só os homens próprios são responsáveis pela sua história.

46 Cfr. PINTO  BRONZE , Lições , p. 318.

47 Sobre estes pensamentos, consulte maxime  MANUEL  AFONSO  VAZ , Lei,  pp. 86 ss..

48 O reconhecimento da relevância incomparável ao contratualismo de ROUSSEAU  justifica-se não só pela sua grande divulgação na época, mas também pela sua influência na filosofia de Estado e de Direito hoje em dia. Com efeito, mesmo que a teoria per se  já fique superada ou obsoleta nos Estados contemporâneos, na nossa perspetiva, a sua essência, que se culmina no teorema do consenso social, ainda permanece como a pedra angular do Estado de Direito democrático. Sobre a revivência contemporânea do teorema do consenso social, não se pode deixar de referir: JOHN  RAWLS , A Theory of Justice,  Cambridge, Massachusetts, 1971, passim.

49 Ibidem,  p. 332.

50 Cfr. JEAN - JACQUES  ROUSSEAU , Du Contrat Social,  Paris, 1762, Livro I, Capítulo VI e Livro II, Capítulo I.

51 Diferentemente, para HOBBES , mesmo no Estado da natureza, os seres humanos já eram homens de interesse. Eles lutaram entre si a fim de ter acesso à fruição do mundo. Por isso, para Hobbes, o Estado da natureza é um Estado de Guerra. Para os homens saírem do Estado da natureza e entrar no Estado Civil, Hobbes defende a necessidade de constituir um common power , um Leviathan,  através de um pacto de todos os homens com todos os homens através do qual cada um concede os seus poderes a um homem, um poder capaz de reduzir as vontades de todos a uma vontade unânime. Cfr. THOMAS HOBBES , Leviathan,  Londres, 1651,  Parte II, Capítulo XVII.

52 Mais sobre esta irresponsabilidade do Estado por actos legislativos, v . VIEIRA DE  ANDRADE , A responsabilidade civil..., pp. 286-289.

53 Cfr.  ROGÉRIO  SOARES , Sentido, limites..., pp. 436-438.

54 A categorização das funções da lei enunciada em texto corresponde à sugerida por CASTANHEIRA NEVES . Mais sobre as funções da lei, v.  CASTANHEIRA  NEVES , Curso , pp.108 ss. Para um conhecimento em geral das outras teses da categorização das funções da lei, v. idem , Fontes do Direito, contributo para a revisão do seu problema, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz,  II, Coimbra, 1982, p. 257, nota 2.

55 Esta relação íntima justifica-se não só porque a lei tem sempre um conteúdo político, mas também porque mesmo a decisão de legislar em si, enquanto o “arranque” do procedimento legiferante, possui sempre uma vertente política. Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA , A decisão de legislar, in A Feitura das Leis, II, Lisboa, 1986, pp. 24-31; idem, A decisão de legislar, Caderno de Ciência de Legislação, n.º 1, Lisboa, 1991, pp. 16-20.

56 Destarte, segundo MANUEL  AFONSO  VAZ , é na natureza política que a função legislativa encontra a sua normatividade e a sua autonomia intencional face à função administrativa – a reserva da função legislativa. Cfr. MANUEL  AFONSO  VAZ , Lei,  pp. 499-504. Contudo, numa posição oposta, PEDRO FERNÁNDEZ  SÁNCHEZ  defende que em Portugal, tendo em conta a cumulação das funções política-legislativa-executiva no Governo e que a própria constituição recusou inconstitucionalizar os atos administrativos sob a forma da lei, a politicidade perda a sua função definidora do conteúdo  de atos legislativos. Como efeito, segundo o autor, sendo constitucionalmente legítimo o Governo praticar atos administrativos com recurso à forma de lei, a politicidade de atos legislativos neste caso reside unicamente  na opção do Governo de atribuir a forma de lei a um ato não inovador (daí, sem conteúdo político) como meio de “armar” este ato com os “atributos ativos e passivos” inerentes a quaisquer atos legislativos em sentido formal. Cfr. PEDRO  FERNÁNDEZ  SÁNCHEZ , Lei e Sentença. Separação dos Poderes Legislativo e Judicial na Constituição Portuguesa,  II, Lisboa, 2017, pp. 422-427.

57 Cfr. CARLOS  CADILHA , Regime,  pp. 300-301.

58 Por detrás desta opção legislativa da expressão “função político-legislativo ”, encontra-se o problema complexo de saber 1) se o legislador quer introduzir, além de uma responsabilidade no exercício da função legislativa, também uma responsabilidade do Estado no exercício da função política e 2) se a introdução desta responsabilidade por atos políticos é constitucional. Sobre a compreensão doutrinal neste problema, v.  CARLOS  CADILHA , Regime,  pp. 299-307; JORGE  PEREIRA DA SILVA , Artigo 15.º, pp. 386-387; e MARIA  LÚCIA  AMARAL , Responsabilidade por danos..., pp. 39-41.

59 Não se ignora que como JOÃO  CAUPERS  afirma, esta necessidade de regulação legislativa pode ser determinada por um conjunto de razões de natureza muito variável – razões jurídicas, políticas, substanciais e oportunísticas segundo a terminologia do autor. Cfr. JOÃO  CAUPERS , Dos porquês aos para quês das leis: existirá uma verdadeira racionalidade legislativa, Caderno de Ciência de Legislação, n.º 50, Lisboa, 2009, maxime , pp. 80-81. 

60 Em sentido próximo, JORGE  MIRANDA , Funções, Órgãos e Actos do Estado,  Lisboa, 1990, p. 176.

61 Cfr. CASTANHEIRA  NEVES , Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais,  Coimbra, 2013, p. 188.

62 Sobre este momento de validade enquanto um limite da experiência legislativa, v.  CASTANHEIRA NEVES , Curso,  pp. 117 ss..

63 Por isso, a lei não tem só telo  mas também arché.  Cfr. PINTO  BRONZE , Lições,  p. 652.

64 Recorde que segundo o n.º 4 do artigo 15.ºdo RRCEE, esta graduação da culpa tem com importância a determinação da extensão da responsabilidade e, portanto, a quantia da indemnização.

65 Cfr. VIEIRA DE  ANDRADE , A responsabilidade civil...,  p. 299.

66 Não é uma imitação pura porque se trata de um critério mais objetivado.

67Cfr. VIEIRA DE  ANDRADE , A responsabilidade civil...,  p. 290.

68 Esse problema também foi colocado expressamente por MARIA  LÚCIA  AMARAL  no seu artigo «Responsabilidade do Estado-Legislador: reflexões em torno de uma reforma» ao interrogar “como pode a lei obrigar-se a si mesma a compensar os prejuízos que, no futuro, ela própria causará? Como pode ser verdadeira e segura limitação aquela que um poder a si próprio se oferece?”.  Cfr. ob. cit.,  p. 9. Diante esta problematização, segundo a tese da autora, para assegurar a especificidade da responsabilidade do Estado-legislador (que, como vimos, para a autora se trata eminentemente de uma matéria do direito constitucional), todas as soluções previstas no regime (legal), incluindo os seus fundamentos, critérios e limites, devem derivar-se de uma interpretação rigorosa da Constituição. Porquanto só assim se consegue fazer valer a vinculação do legislador ao princípio da constitucionalidade. Destarte, para a autora, deve ser rejeitada qualquer tentativa de transplantar a “teoria geral” da responsabilidade dos poderes públicos decorrente do exercício da função administrativa (que a doutrina vem construindo a partir do artigo 22.º da Constituição) para o terreno da responsabilidade do legislador. Ou seja, para garantir a normatividade da autonormação legislativa em apreço, é necessário constitucionalizá-lo em lugar de administrativá-lo. Cfr. MARIA  LÚCIA , AMARAL , Responsabilidade do Estado, maxime , pp. 141-218.

69 Que é sempre igualmente uma hétero-limitação, por exemplo, da função jurisdicional na medida em que mesmo que o juiz já não seja “a mera boca da lei”, as leis são uma das referências de fundamentação das decisões judicativas e trazem consigo o valor de garantia (pense-se v.g.  no princípio da tipicidade) que o juiz não pode (arbitrariamente) ultrapassar ao dinamizar a sua função de realização do direito em concreto.

70 Mas graças às contribuições doutrinais que reduzem esta subjetividade ao mínimo, o problema da intervenção potencialmente ilegítima da função jurisdicional, através do carácter subjetivo de culpa, no núcleo essencial da função legislativa fica em regra resolvido.

71 Por outras palavras, não é qualquer restrição da responsabilidade é violadora do princípio constitucional da responsabilidade do artigo 22.º da Constituição. Tudo será ponderado pelo crivo do princípio da proporcionalidade, tendo em conta a garantia do funcionamento normal do Estado e a necessidade da tutela dos cidadãos perante as autoridades.

72 Versão eletrónica: http://aca-m.org/pontosnegros/doc/Proposta_de_Lei_56-X.pdf

73 Sobre os limites da lei, v.  CASTANHEIRA  NEVES , Curso,  pp. 111-118.

74 Este fator é sobretudo importante numa conjuntura em que se verifica uma acentuada desconfiança dos cidadãos perante a política e o Estado-legislador.

75 Assim, os princípios normativos, além de ter relevância a nível da determinação da ilicitude, ocupam papel essencial a nível do juízo da culpa do legislador. Todavia, é importante frisar que isso não significa uma mitigação da fronteira entre a ilicitude e a culpa  – a ilicitude continua a referir-se ao próprio ato legislativo (ou omissão legislativa) em apreço; enquanto a culpa, para nós, continua a referir-se à atitude do legislador objetivamente manifestada no caso concreto. Além disso, os princípios normativos, no patamar da ilicitude, têm como função a determinação  do carácter lícito/ilícito de uma ação/omissão legislativa; enquanto no patamar da culpa, tem como função a orientação e limite  do respetivo juízo levado a cabo pelo juiz.

76 Ainda que estes defeitos possam ser supridos se não se tratar de um padrão completo pré-estabelecido pelo legislador ordinário, mas sim pelo legislador constituinte, o “limite de alcance” da normação constitucional leva a que esse padrão pretendido seja sempre abstrato, que reclama, quase inevitavelmente, a concretização do próprio legislador ordinário. Aliás, a concretização detalhada (ainda que parcial) do próprio regime da responsabilidade do Estado-legislador no próprio texto da constituição parece-nos uma técnica de mérito muito duvidoso. Com efeito, para além do problema teórico da descaracterização do conteúdo da constituição enquanto a carta fundamental da sociedade, provocam-se preocupações práticas como a inalterabilidade deste regime através de uma reforma legislativa ordinária – efetivamente, com a incorporação do próprio regime da responsabilidade do Estado-legislador no texto da constituição, ele beneficiaria da mesma proteção rígida das normas constitucionais, implicando que ele não pode ser alterado senão através da revisão constitucional.

77 PIRES DE  LIMA / ANTUNES  VARELA , Código Civil Anotado,  I, Coimbra, 2011, p. 59 (anotação ao artigo 10.º).

78 Remete-se para a nota 42.

79 Recorde que a racionalidade subjacente a este método substitutivo está cristalizada no n.º 3 do artigo 10.º do Código Civil que a recorre como um meio de realização da operação de “integração das lacunas de lei”. Apesar de tantas críticas dirigidas pela doutrina contra a parte geral do Código Civil em que se insere este artigo, a verdade é que nunca o Tribunal Constitucional tem declarada a desconformidade deste artigo (rectius,  o método substitutivo) com o princípio da separação dos poderes.

80 Cfr. CASTANHEIRA  NEVES , Curso,  pp. 124-130.

81 Recorde que o legislador do RRCEE não menciona expressamente o critério de “legislador médio”.

82 De acordo com PIRES DE  LIMA /ANTUNES  VARELA , no nosso Código Civil, “a referência expressa ao bom pai de família acentua mais a nota ética e deontológica do bom cidadão (do bonus cives ) do que o critério puramente estatístico do homem médio”. Cfr. PIRES DE  LIMA /ANTUNES  VARELA , Código Civil Anotado,  p. 489.

83 Todavia, dado ao atual pluralismo cultural e moral, este consenso entrou já em crise.

84 ecorde, inter alia , o estudo sintético de MARCELO  REBELO DE  SOUSA , A lei no Estado contemporâneo,  pp. 5 ss..

85 Recorde a tese de MARIA  LÚCIA  AMARAL , que tem devidamente assinalado a impertinência da inclusão irrefletida do regime da responsabilidade civil do Estado-legislador numa “teoria geral” da responsabilidade civil dos poderes públicos. Cfr. MARIA  LÚCIA  AMARAL , Responsabilidade do Estado, maxime,  pp. 141 ss..