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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.4 no.2 Lisboa nov. 2017

 

 

DIREITO PÚBLICO

A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas inconstitucionais e a incógnita em torno dessa responsabilidade no caso de omissões legislativas ilegais: O caso das leis reforçadas 

The non-contractual civil liability of the State Legislator for unconstitutional legislative omissions and the uncertainty surrounding this responsibility in the case of illegal legislative omissions: The case of the enhanced laws 

 

Ana Raquel Coxo

Doutoranda em Direito Público | Bolseira da FCT  - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra  - Pátio da Universidade, 3004-528 Coimbra . E-mail: raquelcoxo@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo questiona a conformidade constitucional do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no que respeita à exclusão do dever de indemnizar do Estado-Legislador pelos danos causados por omissões legislativas ilegais, isto é, decorrentes do incumprimento de deveres de legislar provindos de leis de valor reforçado. Após a exegese dos requisitos de que depende a restrição de direitos fundamentais à luz do artigo 18.º da Constituição, concluir-se pela inconstitucionalidade de tal preceito da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, por violação do núcleo essencial do direito à reparação dos danos provados pelas funções estaduais, consagrado no artigo 22.º da Constituição. Ante a aplicação directa e auto-exequibilidade deste normativo, com facilidade se ultrapassaria tal inconstitucionalidade, não fora – a também inconstitucional – omissão legislativa quanto ao regime processual de controlo da ilegalidade por omissão e da responsabilidade civil do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais.

Sumário: 1. A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador: introdução e enquadramento normativo. 2. A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas inconstitucionais: breve revisitação dos pressupostos de que depende a sua efectivação à luz dos n.os 3 e 5 da Lei n.º 67/2007, de  31 de Dezembro 3. As omissões legislativas ilegais 3.1. As leis de valor reforçado e o desvalor da ilegalidade 3.2 A exclusão (legislativa) da responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais 3.3 O artigo 22.º da Constituição e o seu carácter directamente aplicável e auto-exequível 3.4 O n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro e a violação inconstitucional do núcleo essencial do direito fundamental à reparação dos danos decorrentes de omissões praticadas no exercício da função legislativa 3.5 A incógnita em torno da responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais. 4. Conclusões

Palavras-chave: Responsabilidade civil extracontratual do Estado | Função legislativa | Omissão legislativa | Omissões legislativas ilegais | Leis reforçadas

 

ABSTRACT

This article questions the constitutional compliance of article 15, paragraph 3, of Law no. 67/2007, of December 31st, regarding the exclusion of the obligation to indemnify the legislator-state from damages caused by illegal legislative omissions, that is to say, arising from the non-fulfilment of the duties of legislation deriving from enhanced laws. Following the exegesis of the requirements on which the restriction of fundamental rights depends, under article 18 of the Constitution, this provision of Law no. 67/2007, of December 31st, is declared unconstitutional, for violation of the essential core of the Right to reparation for the damages provoked by the state functions, enhanced in article 22 of the Constitution. Given the direct application and self-enforceability of this regulation, such unconstitutionality would have been exceeded, so it would not have been unconstitutional - a legislative omission regarding the procedural regime of control of illegality by omission and civil liability of the legislator for illegal legislative omissions.

Summary: 1. Non-contractual civil liability of the legislator: introduction and normative framework. 2. The non-contractual civil liability of the legislator for unconstitutional legislative omissions: a brief review of the assumptions on which its effectiveness depends in light of paragraphs 3 and 5, of Law 67/2017, of December 31st3. The illegal legislative omissions. 3.1. Enhanced laws and illegality. 3.2. The (legislative) exclusion of the state-legislator's non-contractual civil liability for illegal legislative omissions. 3.3. The article 22 of the Constitution and its direct application and self-enforceability. 3.4 The article 15, paragraph 3, of Law no. 67/2007, of December 31st, and the unconstitutional violation of the essential core of the Right to reparation for the damages provoked by omissions in the exercise of the legislative function. 3.5. The uncertainties surrounding the non-contractual civil liability of the state-legislator for illegal legislative omissions. 4. Conclusions. 

Keywords: Non-contractual civil liability of the State | Legislative function | Legislative omission | Illegal legislative omissions | Enhanced Laws 

 

1. A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador: introdução e enquadramento normativo 

O tema da responsabilidade civil extracontratual do Estado tem sido alvo do olhar atento e do labor contínuo da doutrina portuguesa, o que se denota pela vasta bibliogafia publicada sobre o assunto, mas também pelas numerosas conferências e colóquios organizados para discussão do mesmo. Por outro lado, também a jurisprudência tem sido  chamada a apreciar, a cada passo, acções de responsabilidade civil desta natureza, avolumando-se, portanto, os arestos sobre a matéria. 

Cremos, ainda assim, que sobra terreno fértil para explorar e daí que nos proponhamos a discorrer mais um pouco sobre tão abordado tema, voltando a nossa atenção para a problemática que se desenha em torno das omissões legislativa ilegais e das dificuldades – essencialmente processuais - que se levantam perante a conclusão de que tais omissões não podem deixar, à luz da Constituição, de acarretar, para o Estado-Legislador, um dever de indemnizar os danos (anormais) perpetrados, à semelhança do que sucede com as omissões legislativas inconstitucionais. 

Isto posto e de forma sucinta, o instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado encontra consagração constitucional no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por “CRP”) e consagração legislativa na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. Em tese, todo o leque de funções estaduais se encontra abrangido por tal instituto, desde a função administrativa, à função jurisdicional, à função político-legislativa. Todavia, a conformação constitucional, legal e até jurisprudencial dos pressupostos de que depende a efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado delimita as hipóteses em que se imputará, no caso concreto, ao Estado um dever de indemnizar o lesado. 

Centrando-nos, agora, na responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, o artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro confere-lhe tratamento normativo: os n.os 1 e 2 respeitam à responsabilidade por acção e os n.os 3 e 5 à responsabilidade por omissão; o n.º 4 contempla um conjunto de critérios em função dos quais deve ser apreciada a existência e a extensão dessas responsabilidades (v.g., grau de clareza e precisão da norma violada); e o n.º 6 consagra uma cláusula de não reparação integral dos danos em virtude do número de lesados. Ora, como já referimos, o âmbito do nosso estudo circunscreve-se à responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador decorrente de omissões legislativas e, em particular, de omissões legislativas ilegais.

 

2. A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas inconstitucionais: breve revisitação dos pressupostos de que depende a sua efectivação à luz dos n.os 3 e 5 da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro 

De acordo com preceituado n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, “o Estado e as regiões autónomas são também civilmente responsáveis pelos danos anormais que, para os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, resultem da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais”. Com efeito, os pressupostos de que depende o sucesso de uma acção de responsabilidade civil do Estado-Legislador por omissão de providências legislativas necessárias a tornar exequíveis normas constitucionais coincidem, com as devidas adaptações e especificidades, com os pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil, a saber: (i) omissão, (ii) ilicitude (objectiva e subjectiva), (iii) culpa, (iv) dano (dano anormal) e (v) nexo de causalidade. 

Quanto ao primeiro requisito (omissão), uma omissão legislativa inconstitucional pressupõe a inobservância, por parte do Legislador, de um dever de legislar constitucionalmente prescrito em normas não exequíveis por si mesmas. Neste âmbito, parece colher consenso1 a fórmula de J. J. GOMES CANOTILHO para definir o que se entende por omissão legislativa, de acordo com a qual “o Legislador não «faz» algo que positivamente lhe era imposto pela constituição. Não se trata, pois, apenas de um simples negativo «não fazer»; trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado”.2 Nesta senda, a presença de uma omissão legislativa inconstitucional depende da inobservância, por parte do Legislador, de um dever de legislar que lhe é imposto pela Constituição. Não está aqui em causa um conceito naturalístico, mas antes jurídico, de omissão, porquanto não basta a mera ausência de normação num determinado campo, sendo, na realidade, necessário um alheamento (total ou parcial) perante uma injunção de legislar, numa situação em que o Legislador obrigado podia tê-la cumprido mas não o fez. Donde, recai sobre a conduta omissiva um juízo de censura e daí que a preterição do dever de legislar não se tome como um comportamento neutro, mas antes como um comportamento que desencadeia consequências de diversa ordem.3 

Relativamente ao segundo requisito (ilicitude), exige-se a conjugação das vertentes objectiva – incumprimento de um dever de legislar que resulta de uma norma constitucional não exequível por si mesma – e subjectiva – violação de direitos (fundamentais e outros) ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, onde se incluem as legítimas expectativas.4 Relativamente ao requisito da ilicitude objectiva - que, nos termos do n.º 5 do artigo 15.º do diploma em exame, depende da prévia verificação da inconstitucionalidade por omissão por parte do Tribunal Constitucional – importar tecer algumas considerações adicionais. Ou seja, a ilicitude da omissão, enquanto constatação do incumprimento de um dever de legislar emanado por normas constitucionais não exequíveis por si próprias, não pode ser declarada por uma qualquer instância jurisdicional portuguesa, remetendo-se para o Tribunal Constitucional a competência exclusiva para esse efeito. Ora, a introdução, operada pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, de um tal pressuposto – “necessário”, mas “insuficiente de per si5 para o êxito de uma acção desta natureza – tem dado origem a uma acesa discussão na doutrina, dividindo opiniões. Neste contexto, parte da doutrina (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, JORGE PEREIRA DA SILVA e JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS) questiona a constitucionalidade do referido normativo, porquanto não tendo os cidadãos legitimidade processual activa para requerer a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão – que, ao abrigo do artigo 283.º da CRP, está confinada ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça e, com fundamento na violação de direitos das regiões autónomas, aos presidentes das respectivas Assembleias Legislativas – a previsão do aludido pressuposto redunda numa violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais (cfr. artigo 20.º da CRP) e numa restrição injustificada do direito fundamental à reparação dos danos (cfr. artigo 17.º, n.º 3 do artigo 18.º e artigo 22.º. da CRP), concluindo, assim, os Autores citados pela inconstitucionalidade material do preceito.6 Por sua vez, TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO VAZ entendem que o n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro não padece de inconstitucionalidade, com base nas seguintes premissas: por um lado, a Constituição não prevê um sistema de fiscalização concreta e difusa de omissões constitucionais e daí que somente o Tribunal Constitucional se possa debruçar sobre as mesmas e, por outro, a consideração de tal possibilidade redundaria na “transformação das ações de responsabilidade num sucedâneo de amparo”, com “elevados riscos de ativismo judicial” e com “um significativo impacto na sustentabilidade das finanças públicas”.7 Em sentido próximo já se havia pronunciado JOÃO TIAGO SILVEIRA, para quem a sensibilidade do juízo de inconstitucionalidade por omissão justifica a competência exclusiva do Tribunal Constitucional para se debruçar sobre esta matéria e a consequente necessidade de recurso de constitucionalidade no âmbito das acções de responsabilidade civil por omissão do Estado-Legislador.8 

No que confere ao terceiro requisito (culpa), tomado numa acepção objectiva e não psicológica e no sentido de que o Legislador podia e devia ter emitido as normas omissas, devem ser ali relevados factores de gradação da censura imputada ao comportamento do Legislador obrigado relacionados com as “circunstâncias concretas de cada caso”, tais como o “grau de clareza e precisão da norma violada” (se o texto da norma constitucional for vago e impreciso, haverá lugar a uma graduação da culpa diferente daquelas hipóteses em que a letra da Constituição é mais clara e perceptível), as “diligências susceptíveis de evitar a situação de ilicitude” (v.g., procedimento legislativo em curso, trabalhos preparatórios, debates parlamentares) e outros factores como a inércia do Legislador subsequente à declaração de inconstitucionalidade por omissão ou à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral por parte do Tribunal Constitucional e ainda a ocorrência de eventuais causas de exclusão da culpa (v.g., veto político do Presidente da República seguido da não confirmação parlamentar do diploma; declaração de inconstitucionalidade na sequência de um pedido de fiscalização preventiva; demissão do Governo e imediata caducidade das propostas de lei). 

Quanto ao quarto requisito (dano) e à semelhança da responsabilidade por acção, exige-se a presença de um dano anormal, isto é, de um sacrifício que ultrapasse os custos próprios da vida em sociedade e que, pela sua gravidade, mereça a tutela do direito. 

Por último, o nexo de causalidade em matéria de responsabilidade por omissão do Estado-Legislador pressupõe uma relação de causa-efeito entre a omissão legislativa e os danos causados, de tal forma que se as normas omitidas estivessem em vigor, o dano (anormal) não se teria produzido. Note-se, porém, que, na maioria dos casos, a simples emissão de legislação não é suficiente para evitar a produção de danos, uma vez que a sua cabal execução e aplicação está dependente de outras actividades públicas, mormente da actividade administrativa. Todavia, a consideração da causalidade indirecta permite que se dê por verificado o requisito do nexo de causalidade, na medida em que, em circunstâncias normais, as leis vigentes são objecto de aplicação aos casos concretos.9 

 

3. As omissões legislativas ilegais 

3.1 As leis de valor reforçado e o desvalor da ilegalidade 

A razão de ser das omissões legislativas ilegais baseia-se em duas premissas: em primeiro lugar, assenta no princípio da constitucionalidade, uma vez que a plurimodalidade dos actos legislativos e as relações estabelecidas entre eles resultam directamente da Constituição e, em segundo lugar, apoia-se na força específica de lei (na acepção de CARLOS BLANCO DE MORAIS10), isto é, no facto de que na relação com actos legais da mesma categoria normativa (no caso, leis ordinárias), determinadas leis (no caso, as leis de valor reforçado) gozam de capacidade derrogatória de outras normas legais que lhes sejam desconformes, ainda que estas sejam posteriores, conduzindo, assim, à sua invalidade.11 Com efeito, as leis reforçadas12, embora inseridas no domínio da legislação ordinária, dispõem de um estatuto de superioridade – derivada do seu procedimento agravado ou do atributo da parametricidade directiva - face a outras leis, também elas ordinárias. 

Neste contexto, para que se verifique uma “omissão ilegal” é necessário descortinar qual a fonte do correspondente dever de legislar. Neste particular, fazemos nossas as palavras de JORGE PEREIRA DA SILVA, porquanto «no que toca às omissões legislativas, essas fontes têm de “vir de cima”, de normas hierárquica ou funcionalmente superiores, podendo apenas buscar-se no campo do direito supra-legislativo, que é constituído pelas normas constitucionais, mas também pelas normas de Direito Internacional e Comunitário e, de certa forma, pelas leis de valor reforçado».13 Reitere-se: as leis de valor reforçado constituem uma fonte do dever de legislar. 

Por outro lado, para que se verifique uma situação de omissão ilegal da emissão de actos legislativos é necessária uma tríade de elementos: (i) inércia (total ou parcial) da entidade sobre que impende o dever de legislar; (ii) violação de um dever de legislar que tenha assento numa lei de valor reforçado; e (iii) não ocorrência de uma causa legítima de não produção legislativa, pois não se pode ignorar que o referido dever de legislar só poderá ser cumprido se se encontrarem reunidas as condições para o efeito, sobretudo as de natureza económica.14 Deste modo, a imputação de um juízo de censura sobre uma conduta omissiva do Legislador depende, não apenas da vigência de um dever de legislar que não foi observado, mas também da efectiva viabilidade de cumprimento desse dever, dado que a dimensão fáctica e a concreta envolvente socioeconómica são fulcrais nesta matéria.15 

À luz do exposto, as leis de valor reforçado constituem uma fonte do dever de legislar, cujo incumprimento, para além de dar lugar ao desvalor jurídico da ilegalidade por omissão, deverá, a nosso ver, acarretar responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador, pese embora as dificuldades a que se fará alusão mais à frente.

 

3.2 A exclusão (legislativa) da responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais 

Do cotejo do n.º 1 (responsabilidade por acção) e do n.º 3 (responsabilidade por omissão) do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro ressalta à evidência um constrangimento do segundo às “omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais”, ao passo que o primeiro se amplia a “actos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado”. Ou seja, a responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissão está confinada ao desvalor da inconstitucionalidade16, ao passo que, nas hipóteses de responsabilidade por acção, os parâmetros normativos são bem mais abrangentes, incluindo, para além da Constituição, o Direito Internacional, o Direito da União Europeia e as leis reforçadas. Por outras palavras, o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas exclui a responsabilidade por omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas de diplomas legais de valor reforçado, diferentemente do que sucede quanto à responsabilidade por acção. Neste contexto, impõe-se relembrar que na redacção da Proposta de Lei n.º 56/X, o n.º 3 do artigo 15.º contemplava o inciso “normas contidas em acto legislativo de valor reforçado”, o qual não vingou na redacção final do diploma. Ou seja, o Estado-Legislador auto-excluiu a possibilidade de lhe serem assacadas responsabilidades num contexto como o referido.17-18-19-20 Nas impressivas palavras de JORGE PEREIRA DA SILVA, “em termos práticos, a função legislativa é a única das funções estaduais em que não há verdadeiramente responsabilidade por omissão”.21 No entanto, não podemos assumir esta conclusão sem antes ponderarmos um pouco mais sobre o assunto, o que faremos no ponto que se segue.

 

3.3 O artigo 22.º da Constituição e o seu carácter directamente aplicável e auto-exequível

Como vimos, a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro parece ter a pretensão de excluir a tutela indemnizatória no caso de omissões legislativas derivadas da inobservância de deveres de legislar ínsitos em legislação de valor reforçado, pelo que nos questionamos, neste momento, sobre a possibilidade de, não obstante o referido, se poder lançar mão directamente do artigo 22.º da CRP, ultrapassando, assim, a “restrição” perpetrada por aquele diploma. 

Antes de se avançar na análise prometida, cumpre referir que o carácter directamente aplicável e auto-exequível do artigo 22.º da CRP foi largamente debatido pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas, encontrando-se, por ora, pacificada a questão.22 Por outro lado, a doutrina foi-se também alinhando no sentido de reconhecer naquele preceito constitucional a presença de um direito fundamental à reparação dos danos causados por acções ou omissões dos poderes públicos23, de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias.24 Por outro lado ainda, a doutrina e a jurisprudência concordam que o artigo 22.º da CRP abrange a responsabilidade por actos da função legislativa.25 

Importa também mencionar que, no quadro normativo anterior à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (no seio do qual a responsabilidade civil extrancontratual do Estado-Legislador contava apenas com a previsão constitucional do artigo 22.º), alguma doutrina fazia incluir no conceito de ilicitude, relevante para efeitos de responsabilidade civil do Estado-Legislador ao abrigo do disposto no artigo 22.º da CRP, a violação, por omissão, de leis de valor reforçado, hipótese que o Legislador excluiu naquele diploma.26 O mesmo entendimento era seguido pela jurisprudência que, a par das normas constitucionais, internacionais e comunitárias, colocava as leis de valor reforçado como pressuposto da “responsabilização indemnizatória do Estado por omissão legislativa”.27 De igual forma era entendida, pela doutrina e pela jurisprudência, a violação, por omissão, do dever de protecção de direitos fundamentais.28 

Em síntese, o tópico que nos ocupará de seguida consiste em perceber se - tendo presente que (i) o artigo 22.º da CRP é uma norma directamente aplicável que “pode ser aplicada tanto contra a lei, como na ausência de lei, cabendo em tais casos ao intérprete-aplicador a fixação dos critérios de decisão no caso concreto, à luz do quadro normativo constitucional e legal vigente”29 e que (ii) assiste ao Legislador ordinário uma liberdade (limitada) de conformação do direito à reparação dos danos, nomeadamente no que confere ao traçado dos seus pressupostos -, a exclusão das leis de valor reforçado do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, enquanto parâmetro normativo integrante do requisito da ilicitude objectiva, é ou não admissível à luz da Constituição. Ou seja, a questão redunda em alcançar se estamos ou não perante uma restrição inconstitucional do direito fundamental (de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias e, portanto, sujeito ao regime do artigo 18.º da CRP por força do artigo 17.º da mesma Lei Fundamental) à reparação dos danos decorrentes de omissões legislativas ilegais derivadas do incumprimento de deveres de legislar contemplados em leis de valor reforçado. Se a resposta se afigurar positiva, abre-se caminho para a invocação directa do artigo 22.º da CRP, na parte respeitante aos “prejuízos para outrem”30, para efeitos de efectivação da responsabilidade civil do Estado-Legislador pelos prejuízos causados por tais omissões. Caso contrário, concluir-se-á que a dita exclusão consubstancia uma opção legítima e constitucionalmente fundada do Legislador ordinário, não sendo passível de censura.

 

3.4 O n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro e a violação inconstitucional do núcleo essencial do direito fundamental à reparação dos danos decorrentes de omissões praticadas no exercício da função legislativa 

O raciocínio que se pretende desenvolver assenta na teoria da restrição dos direitos fundamentais. Deixando de parte uma exposição pormenorizada dos principais dissensos doutrinários sobre a matéria, procuraremos abordar a problemática da – para já eventual - restrição do direito fundamental de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias à reparação dos danos decorrentes de omissões normativas31 ilegais do Estado-Legislador a partir de uma exegese enxuta dos seguintes requisitos que brotam dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP: (i) autorização expressa da Constituição; (ii) observância do princípio da proporcionalidade, (iii) tendo em vista a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos; (iv) exigência de lei formal, dotada de generalidade e abstracção; (v) proibição de efeito retroactivo; e (vi) impedimento de se diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional em causa.32 

Como alerta a doutrina da especialidade, há um pressuposto prévio ao exame dos requisitos próprios das leis restritivas de Direitos, Liberdades e Garantias que consiste na “delimitação do respectivo âmbito de protecção constitucional”.33 Trata-se, por conseguinte, de perceber se o direito à reparação dos danos, previsto no artigo 22.º da CRP, “inclui, não inclui ou exclui em termos absolutos as várias situações, formas ou modos pensáveis do exercício do direito”.34 Circunscrevendo o objecto da nossa análise à responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente de omissões normativas ilegais, entendemos que a mesma abarca a ressarcibilidade dos danos causados pela omissão de providências legislativas necessárias para dar cumprimento a deveres de legislar postos por leis de valor reforçado. Com efeito, os indicadores que apontam nesse sentido são variados. Do ponto de vista do ordenamento jurídico-constitucional, os preceitos jus-fundamentais que apoiam a consideração, para os efeitos em estudo, das omissões legislativas inconstitucionais são igualmente idóneos a enquadrar as omissões legislativas ilegais, porquanto os princípios do Estado de Direito, da constitucionalidade e legalidade da acção do Estado e da igualdade (cfr., respectivamente, artigos 2.º, 3.º e 13.º da CRP) constituem o pano de fundo da actividade do Legislador, quer actue por referência directa à Constituição, quer por referência a normas legais que, nos termos daquela, desempenham um papel de supra-ordenação ou parametricidade face a outras normas de cariz legislativo. Por outro lado, a função reparadora congénita do instituto da responsabilidade civil em geral, implica que, uma vez reunidos os pressupostos cumulativos gerais (acção/omissão, ilicitude, culpa, dano, nexo de causalidade) – independentemente da sua concreta configuração (ao encargo da liberdade conformadora do Legislador) – não se possa aceitar a exclusão do dever de indemnizar. Ao referido, acrescem dois argumentos, já abordados: primeiro, em momento anterior à vigência da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, a doutrina e a jurisprudência contemplavam as leis de valor reforçado no âmbito dos parâmetros normativos cuja inobservância, por acção ou omissão, poderia redundar em responsabilidade do Legislador, interpretando dessa forma o artigo 22.º da CRP; segundo, a Proposta de Lei n.º 56/X compreendia, no n.º 3 do artigo 15.º, as “omissões de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis (…) normas contidas em acto legislativo de valor reforçado”, o que também indicia que o próprio Legislador, em dada altura, as tomou em consideração. Assim sendo, o âmbito de protecção do direito à reparação dos danos causados pelo Estado compreende a sua responsabilização pelos danos causados na sequência de omissões legislativas que ofendam leis de valor reforçado. Vejamos, de seguida, se, para além de integrarem o âmbito de protecção do artigo 22.º da CRP, também fazem parte do seu “conteúdo juridicamente garantido”35, tendo presente que “a restrição procede à compressão legal do âmbito de protecção (potencial) do direito até se alcançar o seu conteúdo efectivamente garantido”.36 

Isto posto, quanto ao primeiro requisito dos supra elencados, concluir-se-á aprioristicamente que não resulta, de forma expressa da Constituição, a possibilidade de limitar o direito à reparação dos danos decorrentes de omissões legislativas às omissões legislativas inconstitucionais, deixando, portanto, de fora as omissões legislativas ilegais, isto é, aquelas que redundam do incumprimento de um dever de legislar emanado de uma lei de valor reforçado. Contudo, a doutrina reúne-se no sentido de ultrapassar este critério, uma vez que a sua interpretação literal conduziria a resultados indesejados, circunscrevendo a um núcleo muito curto de matérias as possibilidades de restrição legal de direitos fundamentais (v.g. n.º 2 do artigo 34.º e n.º 4 do artigo 46.º da CRP). Assim, no caso em apreço, como em tantos outros, equaciona-se a presença de uma “restrição não expressamente autorizada pela Constituição”37 imprescindível para a compatibilização com outros bens com assento constitucional (que veremos adiante a propósito do terceiro requisito). 

Passemos agora ao segundo requisito, nos termos do qual as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Com efeito, o crivo do princípio da proporcionalidade em sentido amplo implica que a restrição perpetrada pela lei cumpra os sub-princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, a ponto de a restrição poder ser tida como idónea à salvaguarda de outros bens de cariz constitucional, constituindo o único meio para o efeito (porquanto não se vislumbram outros meios menos restritivos para alcançar os fins visados), o qual, por sua vez, tem que se revelar a “justa medida” entre o direito objecto de restrição e o bem constitucional que se pretende proteger com aquela. Porém, o requisito consubstanciado no princípio da proporcionalidade tem que ser lido em conjunção com o terceiro requisito, posto que representa o fiel da balança entre dois (ou mais) bens constitucionais que se pretendem compatibilizar. Aqui chegados, coloca-se a questão de saber quais são os outros direitos, interesses ou bens constitucionalmente protegidos a salvaguardar. Para o efeito, socorremo-nos da «Mensagem do Presidente da República à Assembleia da República referente ao diploma que “Aprova o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas”»38, datada de 24 de Agosto de 2007, da qual se passam a citar os trechos que relevam para a análise que vimos a realizar: «4. (…) uma alteração desta magnitude implica, naturalmente, um acréscimo significativo das despesas do Estado, em montantes que não é possível quantificar ou prever, e irá ter, por certo, um impacto muito profundo ao nível do funcionamento dos tribunais (…). 11. (…). Não parece, também, ser aceitável a consagração de um instituto de responsabilidade civil extracontratual fundado na omissão de providências legislativas necessárias para dar exequibilidade a actos de valor reforçado (artigo 15.º, n.º 3). Esse instituto jurídico resulta na criação de um sistema implícito e subliminar de “fiscalização difusa da ilegalidade por omissão” para efeitos da constituição do Estado em responsabilidade civil, o qual merece reparo, na medida em que: a) Cria situações de grande incerteza jurídica ao disseminar pelos tribunais comuns o poder de verificar uma situação omissiva de legislação complementar de lei reforçada, com base em pressupostos incertos e sem a existência de institutos existentes céleres de uniformização jurisprudencial, instituindo, deste modo, um sistema potenciador de desarmonia de julgados, situações de desigualdade entre particulares e insegurança jurídica; b) Dispensa, sem fundamento legal, a intervenção do Tribunal Constitucional (…); c) Não define os requisitos geradores de ilicitude decorrente da omissão de providências que confiram exequibilidade a leis de valor reforçado, daí resultando uma larga margem de casuísmo e incerteza que deprecia a liberdade conformadora do Legislador (…)». Da leitura da Mensagem do Presidente da República, na sequência da qual a Assembleia da República alterou o seu projecto de lei e retirou da redacção final do diploma a menção às omissões legislativas decorrentes de deveres de legislar impostos por leis de valor reforçado, resulta que a mencionada supressão ocorreu por força de uma tríade de razões: (i) contenção do esforço fiscal dos contribuintes e salvaguarda do equilíbrio orçamental; (ii) regular funcionamento da Justiça; e (iii) certeza e segurança jurídicas. Vejamos, agora, se as razões invocadas consubstanciam bens ou interesses constitucionalmente protegidos e se a “restrição” do direito à reparação dos danos, previsto no artigo 22.º da CRP, em nome da salvaguarda daqueles bens ou interesses supera as exigências do princípio da proporcionalidade. 

Relativamente à contenção do esforço fiscal dos contribuintes e à salvaguarda do equilíbrio orçamental, os mesmos têm poiso constitucional, respectivamente, na primeira parte do n.º 1 do artigo 103.º e no n.º 4 do artigo 105.º, ambos da CRP39. Se, por um lado, o objectivo financeiro do sistema fiscal é a obtenção de receitas para financiar as despesas públicas e, por outro, no quadro do Orçamento do Estado, as receitas previstas não devem ser inferiores às despesas orçamentadas, a necessidade de obtenção de receitas – sobretudo através da cobrança de impostos – varia na mesma razão do incremento das despesas. Assim sendo, o alargamento das hipóteses de responsabilização do Estado e o consequente aumento das despesas públicas associadas ao pagamento das respectivas indemnizações conduzirá, à partida, ao agravamento da carga fiscal dos contribuintes, por forma a não colocar em causa a regra do equilíbrio orçamental. 

Quanto ao argumento do regular funcionamento da Justiça, assente no facto de que a ampliação das situações que podem conduzir à imputação de um dever de indemnizar ao Estado levará a um cenário próximo do colapso do sistema judiciário, devido ao afluxo de acções judiciais, não encontra, no nosso entendimento, assento constitucional. Pelo contrário: o direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da CRP, convoca uma dimensão prestativa que impõe ao Estado a implementação de um rede de tribunais, dotada dos meios materiais e humanos suficientes para fazer face às necessidades dos cidadãos cujos direitos ou interesses legalmente protegidos carecem de tutela jurisdicional.40 

Por último, os valores da certeza e da segurança jurídicas gozam de acolhimento constitucional no âmbito do princípio do Estado de Direito, ínsito no artigo 2.º da CRP. Dos caracteres definidores do princípio da segurança jurídica – certeza, compreensibilidade, razoabilidade, determinabilidade, estabilidade e previsibilidade41 - e tal como alertou o Presidente da República, na sua Mensagem de 24 de Agosto de 2007, a consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado derivada de omissões legislativas ilegais, violadoras de leis de valor reforçado, correria o risco de postergar as exigências da certeza (condições de aplicação) e da determinabilidade (fixação, precisa e suficiente, dos comportamentos dos destinatários), dada a ausência, no ordenamento jurídico português, de um sistema de fiscalização da ilegalidade por omissão e, naturalmente, da ausência de um regime de articulação entre os poderes cognitivos dos tribunais e o papel do Tribunal Constitucional, para além de que a fórmula apresentada no anteprojecto se revelava dúbia quanto ao preenchimento do conceito de “ilicitude” para estes efeitos. 

Em face do exposto e tendo em vista a aplicação do princípio da proporcionalidade, concluímos que se encontram em ponderação os seguintes direitos, bens ou interesses constitucionalmente protegidos: de um lado, o direito à reparação dos danos decorrentes de omissões legislativas ilegais (cuja ilegalidade deriva da inobservância de leis de valor reforçado), previsto no artigo 22.º da CRP e elevado pela doutrina à categoria dos direitos fundamentais de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias; e, do outro lado, a contenção do esforço fiscal dos contribuintes e a salvaguarda do equilíbrio orçamental, consagrados na primeira parte do n.º 1 do artigo 103.º e no n.º 4 do artigo 105.º da CRP, e o princípio da segurança jurídica tido como um corolário do Estado de Direito, assente no artigo 2.º da Constituição. Note-se, antes de mais, que as restrições de direitos (Liberdades e Garantias) autorizadas pela parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP não contemplam apenas a salvaguarda de outros direitos, mas também de “simples” interesses constitucionalmente protegidos. Ou seja, o bem em nome do qual opera a restrição não tem que ser um direito fundamental, podendo ser outro(s) bem(ns) tutelado(s) pela Constituição. Trata-se do caso vertente. 

Neste contexto, há que proceder ao “teste do princípio da proporcionalidade”. Assim, no que confere ao sub-princípio da adequação, onde está em causa uma “relação de adequação medida-fim42, concluímos que a exclusão das omissões ilegais do campo das condutas (negativas) susceptíveis de gerar responsabilidade civil do Estado-Legislador constitui uma medida apropriada/idónea para atingir o fim da contenção do esforço fiscal dos contribuintes e da salvaguarda do equilíbrio orçamental, bem como da certeza e segurança jurídicas, na medida em que: primo, um menor volume de despesas públicas (extraído da não constituição do Estado no dever de indemnizar por força dos danos causados por omissões legislativas ilegais) implica um menor volume de receitas a obter pelo Estado através, sobretudo, da cobrança de impostos e, secondo, a não previsão da ressarcibilidade dos danos causados por omissões legislativas ilegais num quadro jurídico-legislativo que não contempla (ainda) um regime de fiscalização da ilegalidade por omissão, nem tão-pouco a forma de articular os poderes dos tribunais com as funções próprias do Tribunal Constitucional, revela-se capaz de evitar o comprometimento do princípio da segurança jurídica. Verifica-se, portanto, um “grau sensível de capacidade do meio (…) no sentido de alcançar o fim proposto”.43 Quanto ao sub-princípio da necessidade, importa perceber se a medida escolhida é a menos gravosa em comparação com outras medidas hipoteticamente elegíveis. Veja-se que no confronto com a responsabilidade por acção (que cobre, à partida, todo o ordenamento jurídico: internacional, supra nacional, constitucional e infra-constitucional), a responsabilidade por omissão confina-se às omissões legislativas inconstitucionais, isto é, às omissões de providências legislativas necessárias para dar exequibilidade a normas constitucionais que dela careçam. Destarte – e deixando de lado a questão das omissões perpetradas em violação do Direito da União Europeia e do Direito Internacional – foram sacrificadas as omissões cuja ilicitude emana do desrespeito de normas infra-constitucionais (mas posicionadas numa relação de supra-ordenação/parametricidade perante outras normas legais), pelo que se conclui, neste particular, que a restrição impendeu sobre aquelas omissões cuja relação com a Constituição é meramente indirecta, garantindo-se a reparação dos danos decorrentes de omissões legislativas inconstitucionais, isto é, que se encontram numa relação de tensão directa e imediata com o texto constitucional. Por outro lado, importa realçar que a ablação ocorreu relativamente à franja mais cinzenta das omissões legislativas (quer do ponto de vista substantivo, quer sobretudo do ponto de vista processual), e daí que entre umas e outras a desresponsabilização do Estado quanto às omissões legislativas ilegais se revele o meio menos oneroso para alcançar os fins visados.44 Por fim, também concedemos no cumprimento do sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que as vantagens - contenção do esforço fiscal dos contribuintes/salvaguarda do equilíbrio orçamental e certeza e segurança jurídicas – superam os sacrifícios – supressão da responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por omissões legislativas decorrentes da não observância de deveres de legislar impostos por diplomas legais de valor reforçado.45 Cremos, portanto, que foi alcançada a “justa medida” entre os bens em ponderação e entre os meios e os fins. 

Retomando, agora, os demais requisitos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP, damos por verificados, sem mais delongas, a exigência de lei formal, dotada de generalidade e abstracção - visto que a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro consubstancia um diploma legislativo emitido pela Assembleia da República, tendo, em concreto, o seu artigo 15.º uma pretensão de aplicação a um conjunto indeterminado e indeterminável de destinatários e de situações da vida -, bem como a eficácia ex nunc da mencionada lei.

Já o sexto e último requisito proibição de diminuição da extensão e alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional em causa – tomará um pouco mais da nossa atenção. Neste ponto, está em causa delimitar a extensão e alcance do conteúdo essencial do direito consagrado no artigo 22.º da CRP e, em face dessa delimitação, perceber se a ablação operada pelo n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no sentido de excluir a reparação dos danos decorrentes de omissões legislativas ilegais, atinge ou não esse núcleo essencial e, consequentemente, se se encontra verificado ou não o último requisito de que depende a restrição de direitos à luz da Constituição. 

A discussão doutrinal em torno da delimitação do núcleo essencial dos direitos é demorada e foge aos objectivos do presente estudo46, pelo que nos voltamos directamente para o cerne da questão: o escopo do direito à reparação dos danos, presente no artigo 22.º da CRP, é – passando a redundância – a reparação, ressarcimento ou indemnização dos prejuízos decorrentes da postura do Legislador que permanece inerte diante dos deveres de legislar que lhe são dirigidos por leis de valor reforçado. Ou seja, o direito fundamental em análise visa impedir que os lesados suportem as perdas causadas pela inércia ilícita e culposa do Legislador, assegurando-lhes, ainda que com limitações, o direito a serem indemnizados, ressarcidos ou reparados pelos danos sofridos. Com efeito, ao excluir a responsabilização do Estado-Legislador pelos danos causados na sequência de omissões legislativas ilegais, o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro procedeu à “amputação de faculdades que a priori estariam compreendidas no (…) âmbito de protecção” do artigo 22.º da CRP, como vimos acima. Cumpre agora perceber se as faculdades amputadas estão compreendidas no núcleo essencial do direito à reparação dos danos e se, por conseguinte, estamos perante uma restrição inconstitucional de direitos fundamentais: tendemos para uma resposta positiva. 

Com efeito, se o núcleo essencial do direito à reparação dos danos causados por acções ou omissões praticadas no exercício das funções estaduais e por causa desse exercício é a própria reparação dos danos47, a exclusão da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos prejuízos causados por omissões de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas contidas em acto legislativo de valor reforçado, operada pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, implica a afectação daquele conteúdo essencial, porquanto admite a não reparação de danos causados por omissões praticadas no exercício da função legislativa. Por outras palavras, o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro ofende o núcleo essencial do direito fundamental, plasmado no artigo 22.º da CRP, ao suprimir a possibilidade de reparação dos danos causados por uma concreta forma de exercício de uma das funções estaduais: a actividade legislativa de emanação das normas necessárias a tornar exequíveis diplomas legais de valor reforçado. Consequentemente, concluímos pela inconstitucionalidade desta restrição ao direito fundamental em análise, uma vez que a mesma não preenche o requisito imposto pela parte final do n.º 3 do artigo 18.º da CRP. Clarificando: embora o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro esteja inserido numa lei formal, de carácter geral e abstracto, com eficácia para o futuro e que se revela apto, de acordo com o princípio da proporcionalidade, a salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos (contenção do esforço fiscal dos contribuintes/salvaguarda do equilíbrio orçamental e certeza e segurança jurídicas), o referido normativo, ao banir a constituição do dever de indemnizar por força dos danos causados por omissões normativas cuja ilicitude objectiva resulta do incumprimento de ordens de legislar provindas de leis de valor reforçado, afecta o conteúdo essencial do direito à reparação dos danos causados por omissões ilícitas e culposas perpetradas pela função legislativa, mutilando uma das dimensões que, no nosso entendimento, faz parte do escopo ou núcleo essencial do direito ínsito no artigo 22.º da CRP.48 

Mas, antes de rematarmos o assunto, não podemos deixar de nos pronunciar sobre o seguinte: estamos convencidos de que o tópico que nos ocupa consubstancia uma restrição de direitos fundamentais e não uma mera conformação legal. A distância que separa as duas figuras reside no facto de a restrição envolver a amputação de uma das faculdades que, à partida, se encontraria compreendida no âmbito de protecção do direito, ocorrendo, dessa forma, uma redução do seu conteúdo. Acresce que a mencionada redução de conteúdo não é livre, dependendo a sua constitucionalidade da observância dos requisitos do artigo 18.º da CRP. Por sua vez, a conformação legal dá resposta à necessidade de conferir um regime jurídico que propicie a efectividade prática de um direito, assente numa norma constitucional exequível por si mesma e directamente aplicável (tal como sucede com o artigo 22.º da CRP).49 Descendo ao caso concreto, a doutrina assevera a ampla margem de conformação de que o Legislador ordinário dispõe na definição dos requisitos de que depende a responsabilidade civil por danos causados por actos ou omissões do Estado-Legislador, no que tange, nomeadamente, à ilicitude, à culpa e aos danos.50 Nesta perspectiva, poder-se-ia, em tese, entender que o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro traduz o livre e legítimo exercício da liberdade de conformação do Legislador ordinário que optou por circunscrever o requisito da ilicitude objectiva à omissão das providências necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais, excluindo, assim, daquele requisito a omissão das providências necessárias para dar exequibilidade a normas legais de valor reforçado. Contudo, não podemos aceitar que assim seja, por duas ordens de razões. 

Por um lado, relativamente à responsabilidade decorrente de actos ou omissões praticados no quadro da função legislativa, acompanhamos a posição de JORGE PEREIRA DA SILVA que, chamando à atenção para a natureza primária da função legislativa por contraposição à natureza secundária das demais funções do Estado (e daí que a leitura do artigo 22.º da CRP tenha que ser realizada de forma fragmentada), afirma que “remeter em termos imperativos para o Legislador ordinário a fixação dos pressupostos e do alcance da sua própria responsabilidade geraria uma situação paradoxal, em que o ente responsável poderia legitimamente estabelecer, de forma genérica ou caso a caso, a medida da sua própria obrigação, ficando inclusive autorizado, se assim desejasse, a isentar-se por completo dessa mesma obrigação. (…) Consequentemente, os pressupostos da responsabilidade civil do Legislador – bem como a extensão da própria obrigação de indemnizar – hão de estar sempre suficientemente definidos ao nível das opções constitucionais, sendo complementados quando necessário pelas traves mestradas do instituto da responsabilidade civil e, naturalmente, concretizados pela jurisprudência”.51 Neste contexto, impõe-se procurar – rectius interpretar – no texto constitucional as pistas que nos conduzam ao preenchimento do conceito de ilicitude objectiva relevante para os efeitos pretendidos. Desde logo, há que ter presente que a categoria das leis de valor reforçado, a relação entre “lei ordinária-Constituição” e “lei ordinária-lei ordinária de valor reforçado” e os vícios derivados do desrespeito das primeiras face às segundas, respectivamente inconstitucionalidade e ilegalidade, resultam da Lei Fundamental, em especial dos n.os 2 e 3 do artigo 3.º, do n.º 3 do artigo 112.º, do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 280.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 281.º. Destarte, o Legislador constitucional equacionou e previu duas modalidades de ilicitude enquanto desvalor jurídico imputável às normas legais: (i) a inconstitucionalidade, derivada da afronta directa de uma norma legal perante a Constituição, e (ii) a ilegalidade, decorrente da violação, por uma norma legal, de outra norma – também ela legal - inserida numa lei de valor reforçado (independentemente de esta funcionar como norma interposta ou como norma pressuposta).52 Ademais, os princípios da constitucionalidade e da legalidade da actuação estadual cobrem os actos positivos e os actos negativos, isto é, as acções e as omissões.53 Concluímos, portanto, que, no que tange ao requisito da ilicitude objectiva, é possível extrair, por interpretação dos preceitos constitucionais, que a mesma inclui a inconstitucionalidade e a ilegalidade. Nessa medida, a exclusão das hipóteses de ilegalidade por omissão, por parte do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, corresponde à supressão de uma das dimensões da ilicitude objectiva, reconhecida pela Constituição e, como tal, relevante para efeitos de interpretação do seu artigo 22.º. 

Por outro lado, e na sequência do que se vem referindo, parecem não restar dúvidas de que estamos na presença de uma restrição de direitos e não do mero exercício da liberdade conformadora do Legislador ordinário, isto porque o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro elimina do âmbito da “ilicitude objectiva” a parte respeitante à ilegalidade por omissão em caso de inobservância de um dever de legislar emanado por uma norma legal de valor reforçado. E, na senda do explanado supra, essa restrição é inconstitucional por afectar o conteúdo essencial do direito à reparação dos danos causados no exercício e por causa do exercício de uma das diferentes funções estaduais, no caso da função legislativa.

 

3.5 A incógnita em torno da responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais.

Tendo presente tudo quanto se acabou de referir e conjugando as premissas da (i) inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, na medida em que – em desconformidade com a Constituição – exclui do conceito de ilicitude objectiva as hipóteses de ilegalidade por omissão, por força da não emissão das providências legislativas necessárias a tornar exequíveis actos legais de valor reforçado e da (ii) aplicabilidade directa e auto-exequibilidade do artigo 22.º da CRP, mormente no que tange à responsabilidade civil extracontratual por actos e omissões da função legislativa, impõe-se retirar a seguinte ilação: em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por danos causados na sequência de omissões ilegais, cuja ilegalidade deriva do não cumprimento de deveres de legislar ínsitos em leis de valor reforçado, a “função reparadora” do instituto da responsabilidade civil tem que ser, neste caso, accionada através da invocação directa, em juízo, da norma do artigo 22.º da CRP. Seguindo, mais uma vez, o trilho de JORGE PEREIRA DA SILVA, “várias das soluções que o Legislador de 2007 protagonizou no sentido de elevar a fasquia da sua própria responsabilidade não devem, tanto quanto possível, ser tomadas literalmente, como normas de exclusão definitiva de responsabilidade, mas apenas como normas de exclusão de uma obrigação de indemnizar ao abrigo do regime da presente lei [Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro]”.54 Todavia, a operacionalização deste tipo de responsabilidade é ainda uma incógnita, não tanto do ponto de vista do seu regime substantivo, mas sobretudo do ponto de vista do seu regime processual. Na realidade, o ordenamento jurídico português não contempla um regime jurídico de fiscalização ou controlo da ilegalidade por omissão, diferentemente do que sucede com o controlo da inconstitucionalidade por omissão (cfr. artigo 283.º da CRP) e do controlo da ilegalidade por omissão de normas administrativas (cfr. artigo 77.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, doravante designado por “CPTA”).55 É difícil desenhar, a partir do tecido processual de que dispomos, uma solução que permita o controlo da ilegalidade por omissão pelos tribunais (difusa? sucessiva?), a necessária coordenação com o papel do Tribunal Constitucional – cuja lei reguladora não prevê nada nesse sentido - e o passo seguinte consubstanciado no pedido de responsabilidade civil. Merecem, pois, acolhimento as dúvidas e angústias espelhadas, a este propósito, na «Mensagem do Presidente da República à Assembleia da República referente ao diploma que “Aprova o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas”», acima citada. Mas, sob pena de denegação de justiça e perante um caso concreto, os tribunais ver-se-ão forçados a encontrar um mecanismo que permita, por um lado, declarar a ilegalidade por omissão de providências necessárias a tornar exequíveis leis de valor reforçado, e, por outro, a condenação do Estado-Legislador pelos danos causados por aquela omissão. 

Perante o exposto, subsiste um último ponto a comentar: assumindo que “para a lei ordinária o artigo 22.º [da CRP] deixa apenas o acessório, como sucede com a tarefa de definir os tribunais competentes para conhecer as acções de responsabilidade civil por ação ou omissão do Legislador e de estabelecer as vias e as regras processuais aplicáveis”56, então o Legislador ordinário encontra-se em falta com este regime relativamente à situação em apreço, o que redunda, no fundo, numa inconstitucionalidade por omissão quanto ao regime processual de controlo da ilegalidade por omissão e da responsabilidade civil do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais, nos termos referidos.57 

 

4. Conclusões 

  1. As leis de valor reforçado gozam de assento constitucional no n.º 3 do artigo 112.º da CRP e somam o atributo da “força geral de lei” ao predicado da “força específica de lei”. 
  2. A “força específica de lei” confere às leis de valor reforçado a capacidade de derrogarem normas legais posteriores que perante elas sejam desconformes, gerando, assim, a invalidade destas últimas. 
  3. Tal invalidade pode resultar de um comportamento activo ou passivo do Legislador. Neste último caso, verificar-se-á uma omissão legislativa ilegal sempre que o Legislador permaneça inerente perante um dever de legislar emanado por uma lei reforçada. 
  4. Do cotejo do n.º 1 com o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro resulta que o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas exclui a responsabilidade por omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas de diplomas legais de valor reforçado, diferentemente do que sucede quanto à responsabilidade por acção. 
  5. O artigo 22.º da CRP positiva um direito fundamental à reparação dos danos causados no exercício das diferentes funções estaduais, em cujo âmbito de protecção se inclui a ressarcibilidade dos danos perpetrados na sequência de omissões legislativas que ofendam leis de valor reforçado. 
  6. Ao excluir a responsabilização do Estado-Legislador pelos danos causados na sequência de omissões legislativas ilegais, o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro procedeu à amputação de faculdades que à priori estariam compreendidas no núcleo essencial do direito consagrado no artigo 22.º da CRP. 
  7. Dada a preterição do requisito imposto pela parte final do n.º 3 do artigo 18.º da CRP, atinente à restrição de direitos fundamentais, concluir-se pela inconstitucionalidade material do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. 
  8. Consequentemente, em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador por danos causados na sequência de omissões ilegais, cuja ilegalidade deriva do não cumprimento de deveres de legislar ínsitos em leis de valor reforçado, a “função reparadora” do instituto da responsabilidade civil tem que ser, neste caso, accionada através da invocação directa, em juízo, da norma do artigo 22.º da CRP. 
  9. Todavia, a operacionalização deste tipo de responsabilidade é ainda uma incógnita, não tanto do ponto de vista do seu regime substantivo, mas sobretudo do ponto de vista do seu regime processual. 
  10. Uma vez que o ordenamento jurídico português não contempla um regime jurídico de fiscalização ou controlo da ilegalidade por omissão constata-se uma inconstitucionalidade por omissão quanto ao regime processual de controlo da ilegalidade por omissão e da responsabilidade civil do Estado-Legislador por omissões legislativas ilegais. 

 

NOTAS

1 À margem do que se acaba de dizer, a verdade é que a matéria das omissões legislativas inconstitucionais é bastante controversa na doutrina. Com relevância para o presente estudo, há, pelo menos, três querelas doutrinárias a assinalar: (i) quanto à natureza das normas que fundamentam o dever de legislar; (ii) quanto à origem do dever de legislar; e (iii) quanto à amplitude da acção de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 283.º da CRP. Em termos muito resumidos, quanto ao primeiro ponto, J. J. Gomes Canotilho, seguido de perto por José Carlos Vieira de Andrade, distingue, dentro das normas constitucionais impositivas, aquelas que o são em sentido amplo – também apelidadas de normas definidoras de fins e tarefas do Estado (vulgo normas programáticas) – e aquelas que o são em sentido estrito – também apelidadas de imposições constitucionais -: ao passo que as primeiras enformam directivas permanentes e abstractas (v.g., colectivização dos meios de produção), as segundas veiculam ordens ou instruções permanentes e concretas (v.g., realização da reforma agrária). Com efeito, para o Autor somente se pode falar em omissões legislativas inconstitucionais no caso de não observância das imposições constitucionais, por serem aquelas que sustentam um dever específico de legislar. Já as normas definidoras de fins e tarefas do Estado suportam um mero dever geral de legislar insusceptível de gerar uma inconstitucionalidade por omissão, porquanto não subsiste um direito geral à emanação de normas. O Autor admite, porém, que o não cumprimento das prescrições das normas definidoras de fins e tarefas do Estado dá origem a uma situação constitucional imperfeita que pode vir a redundar numa inconstitucionalidade por omissão em caso de inércia reiterada dos poderes públicos. Jorge Pereira da Silva apoia esta conclusão, defendendo que as normas-fim suportam um dever geral de produção legislativa, cujo incumprimento provoca uma censura que não ultrapassa os limites da esfera política, enquanto que as normas que suportam um dever específico de legislar fundamentam uma censura no plano jurídico. Noutra perspectiva, para Jorge Miranda, acompanhado por Carlos Blanco de Morais, Raquel Alexandra Brígida Castro e Tiago Fidalgo de Freitas/Afonso Brás, o problema das omissões legislativas inconstitucionais coloca-se relativamente a todas as normas constitucionais não exequíveis por si mesmas, incluindo, portanto, as normas programáticas. Carlos Alberto Fernandes Cadilha admite igualmente que as normas programáticas possam constituir fundamento de uma omissão constitucionalmente relevante “apenas quando o Legislador tenha deixado de actuar perante os condicionalismos económicos e sociais de que depende a sua efectivação”. Por sua vez, o Tribunal Constitucional apoia-se essencialmente na tese de J. J. Gomes Canotilho e coloca o assento tónico no incumprimento de “uma concreta e específica imposição legiferante, constante de uma norma com um grau de precisão suficientemente densificado”, cujo sentido e alcance estão de tal forma definidos que não deixam qualquer “margem de liberdade ao Legislador quanto à sua própria decisão de intervir”. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, Coimbra Editora, 1994, pp. 329-353; IDEM, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, pp. 1171-1173 e 1033-1038; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Artigos 108º a 296º, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2010, pp. 987 e 990; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª Ed., Almedina, 2016, pp. 365-370 e, em sentido próximo a estes últimos, cfr. MANUEL AFONSO VAZ, O enquadramento jurídico-constitucional dos «Direitos Económicos, Sociais e Culturais», Juris et de Jure, Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Edição da Universidade Católica Portuguesa (Porto), 1998, pp. 447-448; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade por Omissão, Universidade Católica Editora, 2003, pp. 22-23. Em sentido divergente, conforme referido, cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2005, pp. 293, 305-306 e 308-309; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Organização do Poder Político, Garantia e Revisão da Constituição, Disposições finais e transitórias, Artigos 202º a 296º, Coimbra Editora, 2007, pp. 878-879; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª Ed. Coimbra Editora, 2011, pp. 531-532; RAQUEL ALEXANDRA BRÍZIDA CASTRO, As Omissões Normativas Inconstitucionais no Direito Constitucional Português, Almedina, 2012, p. 100. TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º - Responsabilidade no exercício da função político-legislativa, in O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à luz da Jurisprudência, coordenação de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, AAFDL Editora, 2017, p. 776; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 2011, p. 340, nota 616; BRAVO SERRA et al, A omissão legislativa na jurisprudência constitucional, in Relatório Português para o XIVº Congresso da Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, 2008, disponível em http://www.confeuconstco.org/reports/rep-xiv/report_Portuguese%20_po.pdf, pp. 45-46. No que respeita ao segundo ponto, há quem entenda que o dever de legislar, cuja inobservância é susceptível de gerar uma omissão legislativa inconstitucional, tem que assentar numa “disposição-norma” (Carlos Blanco de Morais, José Carlos Vieira de Andrade), havendo quem defesa, porém, que o referido dever de legislar pode também ancorar-se num “princípio-norma” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Carlos Alberto Fernandes Cadilha e, a partir de 2005, Jorge Miranda) ou ainda, em termos eclécticos, quem preconize que os princípios constitucionais não estão aptos a gerar omissões legislativas inconstitucionais, dada a sua correlação com os deveres gerais de legislar, sem prejuízo de, em determinadas circunstâncias, carregarem, em si, “de forma inequívoca, os contornos da solução que o Legislador deverá produzir para a situação ou situações em apreço”, aproximando-se assim de um dever específico de legislar (Jorge Pereira da Silva). Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça, II, pp. 532-533; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, pp. 267-368; J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente, pp. 323-324 e 329-357; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, II, p. 991; JORGE MIRANDA, Manual, VI, pp. 305-306; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, p. 340, nota 616; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Organização Económica, Organização do Poder Político, Artigos 80º a 201º, Coimbra Editora, 2006, p. 878; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 25-28. Por último, questiona-se a doutrina sobre as chamadas “omissões legislativas de segundo grau”, isto é, sobre se o artigo 283.º da CRP cobre as situações de carência de um diploma de desenvolvimento de uma lei de bases ou de uma lei-quadro, por exemplo. Actualmente, a doutrina parece alinhar-se no sentido de que se a falta do diploma de desenvolvimento implicar, por si só, a não exequibilidade de uma norma constitucional não auto-suficiente, então tal omissão será abrangida pelo artigo 283.º da CRP. Pelo contrário, se a omissão do diploma de desenvolvimento assentar unicamente num dever de legislar emanado pela lei de bases ou pela lei-quadro, tal situação já não se encontra abrangida no processo de inconstitucionalidade por omissão. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, II, p. 990; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 89 e 153-156; JORGE MIRANDA, Manual, VI, p. 313; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, III, p. 875. Para além das questões que sucintamente se acabam de tratar, a inconstitucionalidade por omissão convoca outras controvérsias, nomeadamente no que respeita às normas “implícitas resultantes das omissões legislativas”, às chamadas “inconstitucionalidades omissivas por acção” - o que se traduz, no fundo, num conjunto de hipóteses de cruzamento entre as inconstitucionalidades por omissão e por acção - e à possibilidade de fiscalização concreta e difusa da inconstitucionalidade por omissão. Para uma resenha sobre todas estas questões, ver JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever; IDEM, Deveres do Estado de Protecção de Direitos Fundamentais, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 674-681; e BRAVO SERRA et al, A omissão. 

2 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente, pp. 331.         [ Links ] Ver, no mesmo sentido, JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 11-12;         [ Links ] RAQUEL ALEXANDRA BRÍZIDA CASTRO, As Omissões, pp. 86-87.         [ Links ] 

3 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente, pp. 331; IDEM, Direito, p. 1033; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, II, pp. 987; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 11-12; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, pp. 338-344 e 354-357; RAQUEL ALEXANDRA BRÍZIDA CASTRO, As Omissões, pp. 86-87. 

4 Aludindo à tutela das legítimas expectativas em sede de acções de responsabilidade civil por omissões legislativas, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.09.2003 (Proc. n.º 03B1944), de 14.01.2010 (Proc. n.º 2452/03.8TBBCL.G1.S1) e de 02.06.2011 (Proc. n.º 680/03.5 TVLSB.L1), todos pesquisáveis em http://www.dgsi.pt; recusando, porém, um “conteúdo activo” ao princípio da tutela da confiança, no sentido de dar origem a um dever de legislar, cfr. MARIA LÚCIA AMARAL, Dever de legislar e dever de indemnizar. A propósito do caso “Aquaparque do Restelo”, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, N.º 2, 2000, pp. 92-98. 

5 Cfr. TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, p. 780.

6 Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, A responsabilidade do Legislador no âmbito do artigo 15.º do novo regime introduzido pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Julgar, n.º 5, 2008, pp. 46-47; JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º - Responsabilidade no exercício da função político-legislativa, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, 2013, pp. 416-417; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Introdução Geral, Preâmbulo, Artigos 1º a 79º, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p. 481; IDEM, Constituição, III, pp. 867-869. Antes da entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Jorge Miranda, Freitas do Amaral/Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva já se posicionavam no sentido de que os tribunais poderiam apreciar e declarar a existência de uma inconstitucionalidade por omissão no âmbito de uma acção de responsabilidade civil do Estado-Legislador. Cfr. JORGE MIRANDA, Manual, VI, pp. 316-317; DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas – o caso Aquaparque, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XLI, n.os 3 e 4, Agosto-Dezembro 2000, pp. 354-355; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 337-338. Chamando à atenção para os “sérios problemas de compatibilização” do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, cfr. MARIA LUÍSA DUARTE, O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e o Direito da União Europeia – breve relato de um (des)encontro anunciado com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, in O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à luz da Jurisprudência, coordenação de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, AAFDL Editora, 2017, pp. 83-84 e ainda JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, p. 338. 

7 Cfr. TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, pp. 781-782. No quadro normativo anterior à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, perfilhavam este entendimento João Caupers e Paulo Otero, citados em JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, p. 337, nota 963. 

8 Cfr. JOÃO TIAGO SILVEIRA, A reforma da responsabilidade civil extracontratual do Estado, in Revista Jurídica da AAFDL, n.º 26, pp. 92-93.         [ Links ] 

9 Cfr., por tudo, JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 15.º, pp. 412-415; IDEM, Dever, pp. 328-335; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, pp. 331-333, 338-353; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, pp. 776-780. Quanto ao requisito da culpa, ver ainda JORGE MIRANDA, Manual, IV, pp. 356-357. 

10 Para Carlos Blanco de Morais, a força específica de lei “permite a um acto legislativo, suspender, alterar ou revogar outro acto da mesma natureza, bem como resistir à sua própria afectação por certas normas legais supervenientes”, não sendo, porém, uma característica transversal a toda e qualquer lei. Diferentemente, a força geral de lei constitui uma característica comum a todos os actos de cariz legislativo e traduz a “capacidade operativa atribuída pela Constituição ao acto legislativo que é directamente determinada pelo seu valor hierárquico próprio. Nessa qualidade, ela traduz uma potência jurídica que é exclusiva da lei, e que lhe permite, revogar suspender ou condicionar a validade dos actos normativos das demais funções do Estado, sem que o contrário possa acontecer”. Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, As leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos, Coimbra Editora, 1998, pp. 129-130 e 146. 

11 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis, pp. 145-151 e 352-366; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 696-701. 

12 A Revisão Constitucional de 1989 introduziu, no texto constitucional português, uma referência expressa às leis de valor reforçado, indo, assim, ao encontro da doutrina que se vinha desenvolvendo sobre a matéria, desde a versão originária da Constituição. Actualmente, o n.º 3 do artigo 112.º da CRP dispõe que “têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas”. Na linha de pensamento de Carlos Blanco de Morais, resultam do citado artigo dois grupos de leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento especial e as leis paramétricas de tipo directivo, sendo certo que existem leis duplamente reforçadas, na medida em que congregam as características de ambos os grupos (leis duplamente reforçadas). No primeiro caso, estamos perante leis da Assembleia da República, cujo procedimento de elaboração e aprovação obedece a uma tramitação permanente e agravada, nos termos da Constituição. Assim sucederá, por exemplo, com as leis orgânicas, a lei-quadro das privatizações e os estatutos jurídico-administrativos das Regiões Autónomas. A sua principal característica reside, por um lado, na capacidade derrogatória de leis ordinárias e, por outro, na resistência à derrogação por partes destas últimas. Ou seja, as leis reforçadas pelo procedimento podem revogar leis ordinárias anteriores e não podem ser revogadas por disposições legislativas ordinárias posteriores. Por sua vez, as leis paramétricas-directivas assumem-se como um critério de parametricidade geral, na medida em que transportam uma exigência de conformidade ou compatibilidade por outras leis. Esta tipologia de leis reforçadas pressupõe uma prioridade cronológica da “lei sujeito” em relação à “lei objecto” e daí que, embora a “lei objecto” não possa derrogar a “lei sujeito”, a “lei sujeito” não possui a capacidade de derrogar a “lei objecto” que, à partida, lhe é posterior. Na prática, a compatibilidade entre uma e outra é assegurada pela alteração da “lei sujeito” em conformidade com o conteúdo que se pretende conferir à “lei objecto” que lhe sucederá. A lei de enquadramento orçamental constitui um exemplo típico de uma lei paramétrica directiva em relação à lei do orçamento (cfr. n.º 1 do artigo 106.º da CRP). Acresce que ambas as tipologias de leis reforçadas comungam do regime de fiscalização da constitucionalidade, concreta sucessiva (cfr. alínea a) do n.º 2 do artigo 280.º da CRP) e abstracta (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 281.º da CRP), porquanto a desconformidade de outras leis que as devam respeitar redunda em ilegalidade ou inconstitucionalidade indirecta. Sobre o tema ver, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 781-785; IDEM, A lei do orçamento na teoria da Lei, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, BFDUC, 1979, pp. 558-559; JORGE MIRANDA, Manual, V, pp. 353-375; CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis, pp. 663-673; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, II, pp. 60-61; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, II, pp. 270-275. Ver também, com grande desenvolvimento sobre a matéria, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2010, de 14.04.2010 (Proc. n.º 732/07), pesquisável em http://www.tribunalconstitucional.pt.

13 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, p. 15. Em sentido idêntico, cfr. MIGUEL BETTENCOURT DA CÂMARA, A Acção de Responsabilidade Civil por omissão legislativa e a norma do n.º 5 do art. 15.º da Lei 67/2007, Alguns efeitos substantivos e processuais, Coimbra Editora, 2011, pp. 69-70. 

14 Cfr., neste sentido, embora referindo-se a omissões legislativas inconstitucionais, JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 11-12. 

15 Dando realce às “condições de facto”, cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Constituição, 6.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 295. 

16 Chamando à atenção para os “sérios problemas de compatibilização” do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, cfr. MARIA LUÍSA DUARTE, O regime, pp. 83-84; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, p. 338. 

17 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 15.º…”, Ob. cit., pp. 410-411; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime…, Ob. cit., pp. 342-344. Ver, ainda, com muito interesse JOÃO TIAGO SILVEIRA, “A reforma …”, Ob. cit., pp. 91-95. 

18 Antes da publicação da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alguma doutrina fazia incluir no conceito de ilicitude, relevante para efeitos de responsabilidade civil do Estado-Legislador ao abrigo do disposto no artigo 22.º da CRP, a violação, por omissão, de leis de valor reforçado, hipótese que o Legislador excluiu naquele diploma. Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, pp. 346 e 353; RUI MEDEIROS, A responsabilidade civil pelo ilícito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.º 48 051, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 27, Maio/Junho de 2001, p. 26; IDEM, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Almedina, 1992, pp. 166 e 174. 

19 Para além da exclusão da responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas por omissão de providências legislativas necessárias a dar exequibilidade a leis de valor reforçado, o n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro coloca igualmente a salvo da responsabilidade do Estado-Legislador as omissões em matéria de deveres de protecção de direitos fundamentais, de correcção ou adequação da legislação em vigor, de reposição da igualdade violada e de emanação de normas de organização, procedimento e processo. Mário Aroso de Almeida, acompanhado por Jorge Pereira da Silva, entende que, em matéria de protecção de direitos fundamentais e em caso de incumprimento evidente dos respectivos deveres, tais situações devem considerar-se abrangidas pelo artigo 22.º da CRP, podendo, nessa medida, o Estado-Legislador ser responsabilizado ainda que as hipóteses em causa não estejam abrangidas expressamente pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, A responsabilidade, p. 47; JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, pp. 410-412; IDEM, Deveres, p. 695; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, p. 776. 

20 Não podemos deixar de assinalar que, ao longo do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, são perceptíveis outros pontos que levantam dúvidas na doutrina como seja a “restrição” da ressarcibilidade dos danos aos danos anormais. Neste particular, Dinamene Santos advoga que, “sendo o artigo 22.º CRP um Direito, Liberdade e Garantia, e consagrando o artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, na lei ordinária, os parâmetros já definidos pelo preceito constitucional, não a pode restringir, pelo que consideramos que a noção de danos plasmada no artigo 15.º da Lei n.º 67/2007 não pode ter a pretensão de reduzir o campo de aplicação firmado pelo artigo 22.º CRP, compreendendo-se quer os danos gerais (lucros cessantes, danos emergentes, patrimoniais e não patrimoniais) como os danos anormais ou especiais”. Cfr. DINAMENE SANTOS, Inconstitucionalidade e responsabilidade por actos legislativos – o novo regime introduzido pelo artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, O Direito, Ano 141, 2009, IV, p. 962. Relativamente aos problemas suscitados no confronto com o Direito da União Europeia, ver TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, p. 760 e bibliografia aí citada. 

21 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, p. 384. 

22 Cfr., entre outros, J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, p. 429; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 480; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, p. 356; DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, p. 310; RUI MEDEIROS, A responsabilidade, pp. 20-22; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 310-313; IDEM, Artigo 15.º, pp. 381-382; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, p. 296; JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei n.º 67/2007 e a Constituição da República Portuguesa – o recorte normativo da ordem constitucional de responsabilidade civil extracontratual do Estado e a jurisprudência constitucional, in O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à luz da Jurisprudência, coordenação de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, AAFDL Editora, 2017, pp. 35-42; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, pp. 742. Quanto à jurisprudência, limitamo-nos a referir o paradigmático aresto do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o “Caso Aquaparque” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.05.2002 (Processo n.º 0035211), pesquisável em http://www.dgsi.pt.

23 Cfr., entre outros, J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, pp. 428-429; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 477; JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei, p. 35-42 e 60-65 e jurisprudência citada. 

24 Cfr., entre outros, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 480; JORGE MIRANDA, Manual, IV, p. 356; DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, p. 305; JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, p. 382; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, pp. 742-743. 

25 Cfr., entre outros, J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, p. 430; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 474; JORGE MIRANDA, Manual, IV, p. 349; DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, pp. 304 e 307; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, p. 293; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, p. 296; JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei, p. 48; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, p. 742. Neste ponto, Maria Lúcia C. A. Amaral Pinto Correia segue isolada, defendendo que a função legislativa se deve considerar excluída do artigo 22.º da CRP. Cfr. MARIA LÚCIA C. A. AMARAL PINTO CORREIA, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, pp. 700-709. Para uma crítica desta posição, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, pp. 314-320; RUI MEDEIROS, A responsabilidade, pp. 22-23; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 294-298. 

26 Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, pp. 346 e 353; RUI MEDEIROS, A responsabilidade, p. 26; IDEM, Ensaio, pp. 166 e 174. 

27 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2010 (Proc. n.º 2452/03.8TBBCL.G1.S1). No mesmo sentido, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02.06.2011 (Proc. n.º 680/03.5 TVLSB.L1) e de 25.09.2003 (Proc. n.º 03B1944), todos pesquisáveis em http://www.dgsi.pt.

28 Cfr., quando à doutrina, DIOGO FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade, pp. 356-365; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 37-57 e 329-331. Cfr., quanto à jurisprudência, o paradigmático acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.05.2002 (Proc. n.º 0035211), pesquisável em http://www.dgsi.pt.

29 Cfr. JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei, pp. 42-43. 

30 Para Jorge Pereira da Silva, o inciso final do artigo 22.º da CRP – “prejuízo para outrem” – carrega a virtualidade de abrir o instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado a outras modalidades de ilicitude, para além das consideradas pelo Legislador ordinário, em qualquer uma das funções estaduais. Para o efeito exemplifica, com a violação, pelo Legislador ordinário, de direitos ínsitos em Convenções Internacionais vigentes na ordem jurídica portuguesa, direitos conferidos por instrumentos de Direito da União Europeia (ordinário ou derivado) e direitos consagrados em leis de valor reforçado. Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 321-323.

31 No contexto do presente artigo, quando nos referimos a omissões “normativas” ilegais, estamos a referir-nos à omissão de normas legais e não de qualquer outro tipo de normas (v.g., normas administrativas). 

32 Cfr., por tudo e sem pretensões de exaustividade, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 266-273 e 448-461; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, pp. 389-396; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, pp. 363-404; JORGE MIRANDA, Manual, IV, pp. 366-383; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, pp. 263-306. 

33 Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, p. 265. 

34 Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, p. 265. 

35 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 448-450. 

36 Cfr. JORGE MIRANcDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 346. 

37 Para uma resenha sobre as principais posições da Doutrina a este respeito, bem como dos arestos do Tribunal Constitucional, ver JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, pp. 366-372; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, pp. 277-281. 

38 Consultável em http://anibalcavacosilva.arquivo.presidencia.pt/?idc=10&idi=8736.

39 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, pp. 1088-1089 e 1110-1111.  

40 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, p. 408. 

41 Cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 103. Ver ainda J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 257-258. 

42 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, p. 270. 

43 Cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 373. 

44 No que tange à contenção do esforço fiscal dos contribuintes e à salvaguarda do equilíbrio orçamental, poderá aventar-se que o Legislador implementou outras medidas restritivas ao longo do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro como sejam a consideração apenas dos danos anormais – e não de todos e quaisquer danos -, a extensão variável da responsabilidade em função das circunstâncias previstas no n.º 4 e ainda a possibilidade de, nos termos do n.º 6, fixação equitativa da indemnização em montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos. Cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime, pp. 357-359; JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, pp. 383-384; TIAGO FIDALGO DE FREITAS/AFONSO BRÁS, Artigo 15.º, pp. 758-760 e 784-785; DINAMENE SANTOS, Inconstitucionalidade, pp. 962-963 e 972. 

45 Note-se que a condenação do Estado em circunstâncias como as referidas, depende igualmente da verificação dos demais requisitos da responsabilidade extracontratual, cuja ocorrência e prova – sobretudo do requisito dos danos, da ilicitude subjectiva e da culpa – se revela excepcional ou muito difícil, pelo que só em casos extremos haveria lugar à constituição do Estado num dever de indemnizar. 

46 Sobre as teorias absolutas e relativas, objectivas e subjectivas, e resenha constitucional sobre o ponto, cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, pp. 395-404; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, pp. 282-284. 

47 Referindo e sublinhado a “função reparadora” inerente ao conteúdo do direito plasmado no artigo 22.º da CRP, cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 472; JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei, p. 32; quanto à jurisprudência, ver os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 236/2004, de 13 de Abril de 2004, 5/05, de 5 de Janeiro de 2005 e 154/2007, de 2 de Março de 2007, todos pesquisáveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.

48 Note-se, porém, que o facto de havermos concluído que a restrição operada pelo n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro superou o crivo do princípio da proporcionalidade, não prejudica – como acabámos de constatar – que o referido preceito ofenda o núcleo essencial do direito previsto no artigo 22.º da CRP. Entendemos, portanto, que não há uma relação de dependência directa entre os dois requisitos, nem tão-pouco que o requisito da salvaguarda do conteúdo essencial se confunda ou reduza à apreciação do princípio da proporcionalidade. Sobre o ponto, ver J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, p. 460; J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, p. 395; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, pp. 396-397; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, p. 283. 

49 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 1263-1264; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, p. 348; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos, pp. 213-214 e 216-219. 

50 Cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição, I, pp. 480-481 e 485; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, pp. 429, 430 e 437-438; JORGE SILVA SAMPAIO, A Lei, pp. 38-40 e 59. 

51 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, pp. 380, 381 e 382. 

52 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 922-928; JORGE MIRANDA, Manual, VI, pp. 22-33; CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis, pp. 874-875; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo I, Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra Editora, 2002, pp. 391-394. 

53 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito, pp. 918-919; J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, I, p. 217; JORGE MIRANDA, Manual, VI, pp. 10-11; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça, I, pp. 136-137. 

54 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, p. 382. Desta forma, o Autor considera que o n.º 3 – contrariamente ao que sucede com o n.º 5 – do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro está a salvo da inconstitucionalidade. Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Deveres, p. 695. 

55 De acordo com o artigo 283.º da CRP, “o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais”. Por sua vez, o artigo 77.º, n.º 1 do CPTA preceitua que o Tribunal Administrativo competente aprecia e verifica “a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação”. Em face do exposto, a ordem jurídica portuguesa contempla dois meios de tutela processual contra omissões normativas: um relacionado com a omissão de normas legais necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais e outro relacionado com a omissão de normas regulamentares necessárias para tornar exequíveis normas legais. Ou seja, no primeiro caso, está em causa a relação entre normas legais e normas constitucionais e, no segundo, entre normas regulamentares e normas legais. Todavia, na hipótese que nos cumpre agora tratar, o que está em causa é a omissão de normas legais ordinárias infra-ordenadas necessárias para tornar exequíveis normas legais ordinárias supra-ordenadas ou de valor reforçado. Com efeito, tal situação não é subsumível nem ao artigo 283.º da CRP, nem ao artigo 77.º do CPTA, o que nos leva a concluir que não existe, no ordenamento jurídico português, um mecanismo processual autónomo de declaração da ilegalidade por omissão nos termos referidos. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, II, pp. 990-991; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça, I, pp. 403-404. Note-se que a declaração de ilegalidade por omissão a que nos referimos não tem necessariamente que ver com as omissões normativas que todo e qualquer tribunal está apto a detectar e cuja constatação dá origem à aplicação dos cânones hermenêuticos de suprimento de lacunas. Nos casos em análise, a omissão normativa revela-se inconstitucional ou ilegal por força da violação de um dever específico de legislar posto pela Constituição ou por leis de valor reforçado. Já os casos anteriores reportam-se, quanto muito, ao (in)cumprimento de um dever geral de criação legislativa. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente, pp. 331-332; JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever, pp. 22-28. 

56 Cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 15.º, p. 382. 

57 A este propósito, não podemos deixar de balançar as nossas conclusões com os alertas de Jorge Miranda para o facto de que talvez a ordem jurídica não deva mesmo possuir meios para reagir perante omissões da função legislativa, “por virtude de outros princípios que prevaleçam sobre o da irradicação das omissões”, nomeadamente o da separação dos poderes. Cfr. JORGE MIRANDA, Manual, VI, p. 296.