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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.4 no.2 Lisboa nov. 2017

 

 

DESTAQUE

A relevação dos impedimentos no Código dos Contratos Públicos 

Self-cleaning under the Public Contracts Code

 

José Azevedo Moreira 1

CIDP - ICJP - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-014 Lisboa. E-mail: jgamoreira@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo incide sobre o regime da relevação de impedimentos no Código dos Contratos Públicos. Após algumas observações gerais sobre a introdução do conceito de self-cleaning no sistema português dos impedimentos, procura-se no artigo essencialmente fornecer algumas coordenadas para a determinação do sentido dos critérios de relevação previstos no novo artigo 55.º-A do CCP. É ainda comentada, de forma sumária, a opção legislativa por um modelo de apreciação descentralizada e casuística dos pedidos de relevação. 

Sumário: 1. Impedimentos e self-cleaning; 2. Self-cleaning no contexto legal português; 3. Breve referência ao n.º 1 do artigo 55.º-A; 4. O critério de relevação; 4.1. A formulação legal do critério; 4.2. As finalidades dos impedimentos; 4.3. O enunciado de medidas de self-cleaning; a) Ressarcimento de danos; b) Esclarecimento dos factos; c) Medidas técnicas, organizativas e de pessoal; 4.4. A gravidade da infração inabilitante; 5. Insusceptibilidade de relevação de sanções impeditivas; 6. Avaliação casuística; 7. Nota final. 

Palavras-chave:  Contratação pública; Código dos Contratos Públicos; Diretiva 2014/24/UE; Impedimentos; Motivos de exclusão; Relevação dos impedimentos; Self-cleaning

 

ABSTRACT

This article concerns the self-cleaning regime set forth in the Public Contracts Code. Following a few general remarks regarding the insertion of the self-cleaning concept in the Portuguese system of exclusions, the article aims essentially at providing some guidelines for the interpretation of the self-cleaning criteria set out in article 55-A of the PCC. The article also briefly addresses the legislative option for a system of decentralized case-by-case assessment of self-cleaning requests.

Summary: 1. Exclusion grounds and self-cleaning; 2. Self-cleaning within the Portuguese legal environment; 3. Brief reference to paragraph 1 of Article 55-A; 4. The self-cleaning criterion; 4.1. The wording of the criterion; 4.2. The purposes of exclusion; 4.3. The set of self-cleaning measures; a) Compensation for damages; b) Clarifying the facts; c) Technical, organisational and personnel measures; 4.4. The gravity of the offence leading to exclusion; 5. Restriction to self-cleaning when exclusion is determined by a sanction; 6. Case-by-case assessment; 7. Final remark.

Keywords: Public procurement; Public Contracts Code; Directive 2014/24/UE; Exclusion grounds; Self-cleaning. 

 

1. Impedimentos e self-cleaning 

Como sabemos, o Código dos Contratos Públicos enuncia um conjunto de impedimentos à participação nos procedimentos adjudicatórios 1,2

Trata-se de uma matéria fortemente conformada pelo direito da União Europeia. Como se compreende, aliás, com facilidade: ao afastar um interessado do procedimento adjudicatório, o impedimento interfere com o acesso a um determinado “mercado público” e, por conseguinte, com a mobilidade intracomunitária do operador impedido. Reconhecendo esta circunstância, o direito secundário da UE tem vindo a definir taxativamente as concretas situações que permitem a uma entidade adjudicante excluir um interessado do procedimento por razões ligadas à sua honestidade profissional, solvabilidade ou fiabilidade

Ora, estas causas de impedimento (“motivos de exclusão”, na terminologia da Diretiva 2014/24/UE) prendem-se em larga medida com a prática de determinados crimes ou ilícitos de natureza administrativa. Quer dizer, a condenação pela prática de um crime de corrupção, para citar um exemplo de “crime inabilitante”, obsta a que, durante certo período, o seu autor participe em procedimentos de contratação pública.

Neste contexto, formou-se nalguns ordenamentos jurídicos estrangeiros a ideia de que um interessado impedido deve poder participar no procedimento se demonstrar que adotou um conjunto de medidas aptas a afastar as preocupações que motivaram a consagração legal do impedimento que o atinge 3. Na doutrina internacional, o tema ganhou notoriedade sob a designação de self-cleaning dos operadores impedidos. 

No quadro legal europeu anterior à reforma de 2014, o assunto não merecia qualquer regulamentação. Não obstante, alguns autores entendiam que o direito europeu não se oporia a que os ordenamentos nacionais reconhecessem o self-cleaning 4. Por outro lado, algumas vozes davam mais um passo e colocavam a hipótese de o direito europeu primário, designadamente através do princípio da proporcionalidade, exigir mesmo que as medidas de self-cleaning fossem consideradas no âmbito de uma decisão que afastasse um interessado do procedimento adjudicatório 5

Com a citada reforma europeia de 2014, a questão passou a ser integrada pela disciplina legal europeia 6. No n.º 6 do artigo 57.º, a Diretiva 2014/24/UE determina que “qualquer operador económico que se encontre numa das situações […] pode fornecer provas de que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de uma importante causa de exclusão”, acrescentando que, “se essas provas forem consideradas suficientes, o operador económico em causa não é excluído do procedimento de contratação”. 

 

2. Self-cleaning no contexto legal português 

A introdução de um mecanismo de self-cleaning no sistema de impedimentos português suscita duas observações preliminares. 

Em primeiro lugar, importa assinalar que a possibilidade de a entidade adjudicante “relevar” um impedimento contrasta com a rigidez que caracteriza o sistema português de impedimentos à participação em procedimentos adjudicatórios. A deteção pela entidade adjudicante de uma das situações previstas no artigo 55.º do CCP conduzia sempre à exclusão do respetivo interessado. 

Note-se que o legislador português tem optado por não atribuir às entidades adjudicantes a flexibilidade consentida neste domínio pelo direito da UE. Como é sabido, desde a Diretiva 2004/18/CE, o direito europeu opera a partir de uma dicotomia entre os motivos de exclusão obrigatória e os motivos de exclusão facultativa. Quanto aos primeiros, a atual Diretiva 2014/24/UE estabelece que as entidades adjudicantes “devem excluir” 7 qualquer operador económico que se encontre numa das circunstâncias impeditivas. Ou seja, os Estados-Membros devem impor às suas entidades adjudicantes a exclusão dos operadores por eles atingidos. Diferentemente, no que se refere às exclusões de natureza facultativa, “as autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados Membros a excluir” 8. Quer dizer, neste segundo caso os Estado-Membros podem incorporar o impedimento no direito interno em termos facultativos ou em termos vinculativos para as suas entidades adjudicantes. 

Ora, quanto a este último aspeto, é de assinalar que aos fundamentos de exclusão facultativa acolhidos no CCP o legislador português fez corresponder um dever de afastar o interessado impedido do procedimento. A verificação de qualquer dos impedimentos enumerados no artigo 55.º do CCP – enunciado que integra também as exclusões facultativas na Diretiva – impõe à entidade adjudicante a exclusão do operador atingido 9

Neste sentido, a introdução do instrumento de self-cleaning produz, desde logo, um efeito atenuador da tradicional rigidez do sistema português. Se, até agora, as entidades adjudicantes não dispunham de qualquer liberdade quanto à decisão de excluir 10, a reforma do CCP veio prever a possibilidade de os efeitos impeditivos serem afastados. 

Posto isto, passemos à segunda observação preliminar. 

Da perspetiva da duração da inabilidade, o self-cleaning apresenta-se como uma cessação antecipada da situação jurídica de impedimento. Contudo, no caso da consagração no direito português, este mecanismo de antecipação é introduzido num contexto legal que suscita dúvidas relevantes sobre a duração ordinária das inabilidades. 

É certo que, nalguns segmentos, o artigo 55.º do CCP contém indicações claras sobre os limites do período de inabilidade: veja-se os casos dos impedimentos fundados na aplicação das sanções acessórias referidas na alínea f) do n.º 1 o artigo 55.º 11 (que operam “durante o período de inabilidade fixado na decisão condenatória”) e o impedimento fundado na aplicação das sanções previstas na alínea g) do citado preceito 12 (a aplicação deve ter ocorrido “há menos de dois anos”). 

Noutros casos, porém, é mais difícil identificar a extensão temporal do impedimento. 

Percorrendo o catálogo do artigo 55.º, n.º 1, verificamos que vários dos impedimentos associados à aplicação de uma sanção apenas operam enquanto não tiver ocorrido a “reabilitação” 13 do infrator. Ora, presumindo que o legislador terá empregado este conceito no seu sentido jurídico-penal, referindo-se, portanto, ao cancelamento do registo criminal 14, os impedimentos fundados na condenação pela prática de certos crimes [alíneas b) e h) do n.º 1 do artigo 55.º] operariam até ao momento em que, segundo a lei da identificação criminal 15, ocorre o citado cancelamento do registo. 

No entanto, é menos claro o sentido com que o legislador emprega o termo “reabilitação” na alínea c) do citado preceito. À semelhança do que sucede nos casos que acabámos de referir, o impedimento fundado na aplicação de uma sanção administrativa em matéria profissional opera apenas no caso de “entretanto não ocorrer a […] reabilitação” do respetivo destinatário. Neste caso, porém, o impedimento alicerça-se na aplicação de sanções de natureza administrativa que não são inscritas no registo criminal ou noutro registo equivalente. Por conseguinte, nestas situações torna-se mais difícil identificar a duração da situação de impedimento.

Regista-se, pois, conforme acima referido, que a antecipação da cessação da situação de impedimento, proporcionada pelo regime da sua relevação, nem sempre opera por referência a um quadro muito claro sobre a duração ordinária da situação de inabilidade.

 

3. Breve referência ao n.º 1 do artigo 55.º-A 

Nos termos do n.º 1 do artigo 55.º-A do CCP, “o disposto nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo anterior [ou seja, os impedimentos associados a dívidas relacionadas com impostos e contribuições para a segurança social] aplica-se sem prejuízo dos regimes de regularização de dívidas fiscais e dívidas à Segurança Social em vigor”. 

Não se apresenta com clareza o sentido e a utilidade desta intervenção legislativa. Na verdade, se a situação do interessado se qualifica como regularizada à luz de um regime de regularização de dívidas, não operam, pura e simplesmente, os impedimentos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 55.º, cuja previsão apenas abrange contribuintes que “não tenham a sua situação regularizada” 16

Por outro lado, sempre se afiguraria inadequada a inclusão desta norma no artigo 55.º-A do CCP, já que, em bom rigor, não estamos perante uma “relevação” de impedimentos. A norma não se refere ao afastamento de um impedimento operativo, mas antes à extensão do próprio âmbito de aplicação dos citados impedimentos.

 

4. O critério de relevação

4.1. A formulação legal do critério 

Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP, “o candidato ou concorrente que se encontre numa das situações referidas nas alíneas b), c), g), h) ou l) do n.º 1 do artigo anterior pode demonstrar que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua idoneidade para a execução do contrato e a não afetação dos interesses que justificam aqueles impedimentos, não obstante a existência abstrata de causa de exclusão” 17-18

O primeiro critério que norteia a decisão sobre a relevação do impedimento que atinge o interessado é, pois, o da sua idoneidade para a execução do contrato

Regista-se, antes de mais, que o legislador português – que, em geral, seguiu de perto o texto da Diretiva nesta matéria – optou por não acolher o vocábulo que descreve o critério no texto europeu, onde se exige que o operador demonstre a sua “fiabilidade” (provavelmente por inspiração no direito alemão, onde o conceito central nesta matéria é o da “Zuverlässigkeit”) 19

Importa, assim, concretizar o sentido com que o legislador emprega o conceito da idoneidade, cuja imprecisão abre várias possibilidades. Poderá referir-se, por exemplo, a uma exigência de fiabilidade ou competência na realização das prestações contatadas, pressupondo-se, nesta hipótese, que o impedimento serviria o propósito de mitigar o chamado performance risk do contrato. Por outro lado, poderíamos estar também perante uma exigência de honestidade ou aptidão moral colocada a quem procure unir-se contratualmente à Administração. Neste sentido, apenas seriam elegíveis como parceiros contratuais os denominados good corporate citizens 20

A esta luz, afigura-se que o preenchimento do conceito não dispensa a identificação da finalidade subjacente ao próprio impedimento a afastar. 

O mesmo se diga relativamente ao segundo critério enunciado no citado n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP. Apelando de forma mais nítida à determinação da finalidade da consagração legal do impedimento, exige-se “a não afetação dos interesses que justificam aqueles impedimentos”. 

O n.º 2 do artigo 55.º-A exige-nos, pois, a identificação das finalidades subjacentes aos impedimentos passíveis de relevação, para depois, num passo subsequente, avaliarmos se, à luz de um conjunto de medidas adotadas pelo interessado, se justifica a sua exclusão do procedimento. 

Deste modo, a citada norma legal reflete o juízo, pois, o juízo que se encontra na origem do instituto do self-cleaning: o reconhecimento de que, em certas circunstâncias, a exclusão do procedimento adjudicatório se mostra desproporcional. Ou seja, em função de uma “autolimpeza” levada a cabo pelo próprio interessado, a exclusão do procedimento pode revelar-se uma medida inidónea ou excessiva para atingir os objetivos subjacentes aos impedimentos. 

Importa, assim, identificar essas finalidades. 

 

4.2. As finalidades dos impedimentos 

Neste contexto, deve começar-se por distinguir os impedimentos a que no direito da UE correspondem motivos de exclusão obrigatória (previstos essencialmente no n.º 1 do artigo 57.º da Diretiva 2014/24/UE) daqueles a que corresponde uma exclusão meramente facultativa (estabelecidos, fundamentalmente, no n.º 4 do citado artigo). 

No que se refere aos impedimentos enquadráveis na primeira destas categorias – refletidos essencialmente na alínea h) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP – a Diretiva não só obriga os Estados Membros a transpô-los para os respetivos ordenamentos nacionais, como obriga ainda a que a exclusão seja internamente vinculativa para as entidades adjudicantes. Atendendo a esta imposição do direito da UE, que praticamente não deixa margem ao legislador nacional, julgamos ser no plano do ordenamento europeu, e não no do direito interno, que se deverá indagar das finalidades destes impedimentos.

Na Diretiva de 2014, o critério legal para apreciação das medidas de self-cleaning adotadas pelos concorrentes é o da “fiabilidade” do operador económico. O que inculca a ideia de que os motivos de exclusão se destinam a garantir a boa execução dos contratos e, por conseguinte, o bom cumprimento das tarefas administrativas servidas pela aquisição. 

Contudo, é duvidoso que este tipo de ponderações motive a ação legislativa da UE. A disciplina europeia da contratação pública atua na perspetiva da promoção do mercado comum, conforme resulta com clareza das bases jurídicas do direito primário em que se apoia a Diretiva 21. Sendo certo que a realização deste desiderato pode produzir efeitos benéficos no plano da qualidade da execução do contrato, já que tendencialmente conduz a uma ampliação da concorrência, tem sido anotado na doutrina que tais benefícios – que consubstanciam uma finalidade primária no direito nacional da contratação pública – não constituem, em rigor, uma finalidade da disciplina europeia 22-23

A circunstância de o catálogo dos crimes inabilitantes se relacionar com áreas de intervenção da UE 24 milita no sentido de que, mais do que à proteção da Administração, os impedimentos previstos na alínea h) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP se dirigem à prevenção dessa criminalidade 25. Neste sentido, os impedimentos em causa consubstanciam aparentemente um instrumento adicional de concretização das políticas subjacentes à criminalização das condutas em causa. 

Aliás, ainda a propósito da Diretiva 2004/18/CE, diploma que antecedeu a atual Diretiva 2014/24/UE, a Comissão Europeia pronunciou-se em sentido próximo, considerando que a “inibição de direitos” (disqualification), conceito que abarcaria os impedimentos, “tem um objectivo primordialmente preventivo”. Mais concretamente, “ao privar uma pessoa que foi condenada por uma infracção da possibilidade de exercer determinados direitos […] pretende-se sobretudo evitar a reincidência” 26

Posto isto, passemos aos impedimentos a que no direito europeu correspondem motivos de exclusão facultativa. Nestes casos, a eventual transposição de uma causa de exclusão facultativa, assim como os moldes concretos do seu acolhimento, envolvem também considerações do legislador nacional. 

Percorrendo o enunciado do n.º 1 do artigo 55.º do CCP, facilmente recolhemos a impressão de que as diversas causas de impedimento se fundam em preocupações também diferentes. Nalguns casos, como no da insolvência do interessado, a lei visa garantir a fiabilidade do parceiro contratual e a boa execução do contrato. Noutros, os impedimentos assentam em exigências impostas pelo princípio da concorrência e da igualdade de tratamento – nesta última categoria inscreve-se, por exemplo, o impedimento baseado em distorções concorrenciais resultantes da intervenção do interessado na preparação das peças do procedimento. 

Os impedimentos facultativos que aqui importa considerar – aqueles que são passíveis de relevação – são, por um lado, os que se fundam na aplicação de certas sanções administrativas e penais [os casos das alíneas b), c) e g) do n.º 1 do artigo 55.º] e, por outro, o impedimento fundado na execução deficiente de um contrato público anterior [alínea l) do referido preceito]. 

Quanto ao primeiro tipo de impedimentos, PEDRO COSTA GONÇALVES reconhece uma “exigência de moralidade e ética na contratação pública” e de “idoneidade profissional” 27-28, referindo-se MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, neste contexto, a uma “exigência de coerência e não-contradição” 29

Já no que se refere ao impedimento decorrente da execução deficiente de um contrato público anterior (bad past performance), afigura-se que a consagração legal da inabilidade assentará sobretudo em preocupações ligadas à garantia da fiabilidade e competência do parceiro contratual da Administração caucionando, em última instância, a boa execução da tarefa administrativa servida pelo contrato em questão. 

É, pois, por referência a este tipo de considerações que a entidade adjudicante terá de avaliar se, perante as medidas adotadas pelo interessado, se justifica afastá-lo do procedimento.

 

4.3. O enunciado de medidas de self-cleaning 

O artigo 55.º-A, n.º 2, apresenta-nos um conjunto exemplificativo de medidas aptas para fundamentar a relevação do impedimento. Este enunciado corresponde, de forma quase exata, às medidas previstas na Diretiva 30 e representa uma síntese das medidas que alguma jurisprudência estrangeira, sobretudo a alemã, tem vindo a reconhecer como principais ingredientes para uma “autolimpeza” eficaz. Com efeito, o citado acervo jurisprudencial constitui um elemento precioso na determinação do sentido e do alcance das medidas previstas na lei. 


    a) Ressarcimento de danos 

A alínea a) do n.º 2 do artigo 55.º-A refere-se a uma demonstração de que o interessado “ressarciu ou tomou medidas para ressarcir eventuais danos causados pela infração penal ou falta grave”. Seguindo de perto a Diretiva, o legislador convoca aqui uma ideia controversa na doutrina estrangeira: a de que o restabelecimento da idoneidade de um operador impedido reclama o ressarcimento dos danos provocados pelo ilícito inabilitante. 

Para os defensores de uma exigência neste sentido 31, ao ressarcir os danos provocados através do ilícito o interessado assumiria a responsabilidade pelos seus atos e manifestaria o seu arrependimento 32, demonstrando implicitamente que não admite a ocorrência de factos semelhantes no futuro 33. Como respaldo jurisprudencial deste entendimento, é frequentemente citada uma decisão do Landgericht de Berlim de 2006 que, apreciando as medidas de self-cleaning de um sujeito impedido, parece sustentar a sua insuficiência, inter alia, no facto de não ter havido lugar a qualquer compensação pelos danos ocorridos 34

Existem, contudo, veementes oposições a este entendimento. Segundo DREHER e HOFFMANN, por exemplo, a exigência seria insustentável na medida em que abrangeria também a satisfação de pretensões controvertidas. Em situações deste tipo, o não reconhecimento por parte do interessado das mencionadas pretensões não deverá repercutir-se negativamente no juízo de prognose sobre a sua fiabilidade 35. No sentido do abandono deste requisito já se pronunciou também o Oberlandesgericht de Munique, citando a este propósito justamente os referidos autores 36


    b) Esclarecimento dos factos 

A segunda medida referida no artigo 55.º-A do CCP consiste no “esclarecimento integral dos factos e circunstâncias por meio de colaboração ativa com as autoridades competentes”. 

A enunciação desta medida parte da ideia de que as iniciativas de self-cleaning devem ter como escopo evitar a reincidência na prática dos factos ilícitos inabilitantes. Considera-se, concretamente, que a identificação das ações mais adequadas para alcançar tal desiderato pressupõe, antes de mais, que o interessado procure apurar as particulares circunstâncias que rodearam a prática da infração 37

Neste contexto, a jurisprudência alemã tem atribuído importância à realização de auditorias externas e independentes às circunstâncias que rodearam a infração. Num caso paradigmático neste domínio, decidido em 2003, o Oberlandesgericht de Düsseldorf realçou o facto de, perante investigações relacionadas com um crime de corrupção, a empresa visada ter encomendado uma auditoria externa e ter partilhado o respetivo relatório com as autoridades encarregadas da investigação 38

A doutrina tem realçado que apenas está em causa a manifestação de um esforço sério 39 no sentido de apurar os factos corridos e não, naturalmente, qualquer exigência no sentido de que o interessado assuma a responsabilidade por todas as condutas ilícitas que lhe sejam imputadas 40. Por outro lado, não é necessário que as investigações promovidas pelo próprio interessado incidam sobre a eventual existência de outros ilícitos, até então desconhecidos 41, bastando que os seus esforços se concentrem nos factos fundantes do impedimento a afastar. 


    c) Medidas técnicas, organizativas e de pessoal 

Em terceiro lugar, o CCP faz referência à “adoção de medidas técnicas, organizativas e de pessoal suficientemente concretas e adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves”. 

Comecemos pelas chamadas medidas técnicas e organizativas. O tema relaciona-se com o domínio do compliance(ou corporate compliance), termo que designa, recorrendo às palavras de KUHLEN, as “medidas através das quais as empresas pretendem assegurar-se de que são cumpridas as regras que vigorem para elas e para o seu pessoal, que as infracções sejam descobertas e que eventualmente sejam punidas” 42. Aliás, aludindo justamente a esta relação, alguns autores alemães referem-se, neste contexto, a um “compliancede contratação pública” (Vergaberechts-Compliance) 43

As medidas em causa são de feição muito variada. 

Desde logo, é frequentemente sublinhada a importância de promover a formação dos funcionários em matérias relevantes neste contexto 44v.g. noções de direito penal e contraordenacional ou até mesmo do próprio direito da contratação pública. Ademais, exige-se que as empresas impedidas emitam um conjunto de normas internas prescrevendo certos padrões de conduta ou procedimentos de decisão 45 – o que atualmente já sucede com frequência, sobretudo nas empresas de maior dimensão, sob variadas designações: códigos de conduta, códigos de ética, programas de compliance, etc. 

Num plano organizacional, a eficácia da “autolimpeza” pode exigir a criação de certos departamentos na empresa (departamentos de compliance, instâncias de clearing46 e a designação de um compliance officer (ou compliance manager) responsável pela monotorização do cumprimento das normas relevantes legais e internas 47 ou de um provedor externo (ombudsman) que sirva como agente de contacto no caso de ocorrem de atos de corrupção 48

De resto, as medidas concretamente destinadas a evitar a prática de ilícitos (sobretudo, penais e contraordenacionais) podem também passar por uma disciplina mais exigente quanto ao modo como são tomadas decisões sensíveis, prescrevendo, por exemplo, uma dupla apreciação (four-eye-principle) 49. Outra medida apontada como apta para eliminar certos “nichos” de corrupção, potenciados pelo repetido contacto com os mesmos decisores administrativos, consistirá na criação de sistemas de rotação periódica dos funcionários por diferentes departamentos da empresa 50

Por fim, tem sido salientada também na doutrina a importância da existência de sistemas eficazes de proteção para denunciantes (whistleblowers) 51, destinados a evitar que as denúncias se projetem de forma negativa sobre a sua posição na empresa 52

Passemos às medidas de pessoal, frequentemente identificadas como “cerne” da reabilitação 53. O considerando 102 da Diretiva 2014/24/UE refere-se, a este respeito, à “rutura de todas as ligações com as pessoas ou organizações envolvidas na conduta ilícita”, aludindo assim à ideia de que o afastamento imediato dos funcionários infratores se apresenta como indispensável à restauração da idoneidade da empresa 54.  Na formulação da jurisprudência alemã, a empresa deve separar-se do autor do facto ilícito de forma “imediata e integral” 55

Note-se que, para além da extinção das relações laborais, alguma doutrina extrai da jurisprudência um consentimento relativamente a medidas menos gravosas, como a colocação dos funcionários responsáveis pelo ilícito em posições inferiores dentro da empresa 56-57-58-59

 

4.4. A gravidade da infração inabilitante 

Nos termos do n.º 3 do artigo 55.º-A do CCP, a decisão negativa (ou seja, de “não relevação”) pressupõe, para além da apreciação das medidas adotadas pelo interessado, a consideração da “gravidade e [d]as circunstâncias específicas da infração ou falta cometida”. A ideia de que a adequação das medidas reabilitadoras depende da gravidade do ilícito inabilitante encontra também raízes na jurisprudência e literatura alemã 60

Neste ponto, abrimos um breve parêntesis para anotar que o nosso legislador não acolheu um conjunto de outros fatores frequentemente apontados neste contexto.

Alguns tribunais alemães têm atendido, nomeadamente, à extensão do período decorrido entre a prática dos factos conducentes à situação de impedimento e o momento da apreciação da entidade adjudicante: quanto mais distante o ilícito se situa no tempo, menor seria o seu impacto no juízo sobre a idoneidade do interessado 61

Por outro lado, certos autores colocam a hipótese de ser considerada a ratio entre os casos de boa execução contratual e os casos de execução patológica. Assim, designadamente, poderia afigurar-se excessivo que um único comportamento desviante, enquanto caso isolado num universo centenas de execuções imaculadas, influísse determinantemente no juízo sobre a idoneidade do operador económico 62

Por fim, tem sido também assinalado que o grau de exigência na avaliação das medidas pode variar em função do concreto objeto contratual 63. Por exemplo, o Oberlandesgericht de Munique, em decisão do ano de 2006, considerou que um contrato para a realização de análises a vacas destinadas à deteção da encefalopatia espongiforme bovina (vulgo, doença das vacas loucas) reclamaria um parceiro contratual de particular fiabilidade, ou seja, de fiabilidade superior àquela que se exigiria para a celebração de um contrato público comum 64

 

5. Insusceptibilidade de relevação de sanções impeditivas

Como vimos, os impedimentos passíveis de relevação são sobretudo aqueles que têm como pressuposto a aplicação de sanções. 

Neste âmbito, o n.º 4 do artigo 55.º-A do CCP determina que “as sanções de proibição de participação em procedimentos de formação de contratos públicos que tenham sido aplicadas, ou consideradas válidas mediante decisão transitada em julgado, não são passíveis de relevação […]”. 

Esta insusceptibilidade de relevação refere-se, pois, a casos em que a situação jurídica de impedimento resulta diretamente do conteúdo da sanção aplicada. 

O texto normativo citado não é inteiramente claro quanto à natureza das sanções “aplicadas”. Considerando a posição da segunda vírgula, a referência a decisões transitadas em julgado – que aponta nitidamente no sentido da natureza judicial – parece designar apenas o suporte dos atos pelos quais as sanções são “aplicadas”, mas já não o suporte dos atos pelos quais as sanções são “consideradas válidas”. 

Importa contudo assinalar que, neste ponto, a Diretiva exige que a exclusão seja determinada por “decisão transitada em julgado”, acrescentando, na sua versão alemã, uma referência expressa à natureza judicial das decisões (“gerichtliche Entscheidungen”)65.

Assim, o que a Diretiva teve em vista foi obstar a que as entidades adjudicantes afastassem os efeitos decorrentes da aplicação de sanções como, designadamente, a pena acessória de “proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades”, prevista no Código Penal 66, a pena acessória de “privação temporária do direito de participar em arrematações ou concursos públicos de fornecimentos”, prevista no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (infrações antieconómicas e contra a saúde pública) 67, ou a pena acessória de “privação temporária do direito de participar em […] concursos de obras públicas, de fornecimento de bens ou serviços e de concessão, promovidos por entidades ou serviços públicos”, prevista na Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (regime geral das infrações tributárias) 68

 

6. Avaliação casuística

Como sabemos, o CCP consagra um sistema de apreciação “descentralizada” da existência de impedimentos. A avaliação é feita de forma casuística, procedimento a procedimento, pela respetiva entidade adjudicante. Neste quadro, o legislador sujeitou ao mesmo casuísmo a apreciação do mérito das medidas de self-cleaning. Quer dizer, da mesma forma que cada entidade adjudicante tem de apreciar separadamente a existência de um impedimento, o concorrente impedido terá de demonstrar, em cada procedimento, e perante cada entidade adjudicante, que possui idoneidade para executar o contrato em formação. 

Este não é, contudo, o único modelo concebível. 

Em certos ordenamentos jurídicos estrangeiros assiste-se, por exemplo, a pronúncias administrativas que extravasam o procedimento concreto, permitindo declarar um operador económico impedido de participar numa pluralidade de procedimentos de contratação pública. 

Quanto ao direito alemão, importa aludir à chamada Vergabesperre (ou Auftragssperre) que se consubstancia numa declaração da entidade adjudicante no sentido de que não contratará com um determinado operador económico durante certo período 69-70. Uma interdição deste tipo pode naturalmente ser pronunciada por ocasião de um procedimento pré-contratual concreto, mas pode também ocorrer fora deste contexto procedimental71. Por outro lado, este impedimento poderá também ser declarado conjuntamente por várias entidades adjudicantes (koordinierte Auftragssperre). 

No que se refere ao direito norte-americano, são de referir as figuras da suspension e do debarment previstas na Federal Acquisition Regulation (FAR). Uma vez pronunciada uma destas interdições, o agente económico em causa passa a ser identificado no chamado System for Award Management 72, operado pela General Services Administration, ficando incapacitado, durante um certo período, de participar no denominado Government contracting 73. O operador económico atingido por uma destas medidas fica, deste modo, afastado de uma pluralidade de procedimentos adjudicatórios. 

Os efeitos da reabilitação dos operadores “listados” acabam por partilhar desta amplitude. No âmbito da decisão sobre o debarment, marcadamente discricionária 74-75, impõe-se a consideração de um conjunto de aspetos legalmente enunciados (mitigating factors ou remedial measures), próximos, nalguns casos, das medidas reabilitadoras previstas na Diretiva e no CCP – designadamente, a existência de sistemas de controlo internos ou a investigação interna aos factos que estão na origem do impedimento 76. A conclusão pela suficiência das medidas adotadas inibe, assim, a pronuncia de uma interdição generalizada quanto à contratação com o Estado. 

Neste contexto, merece também uma breve referência o sistema sancionatório do Banco Mundial que, com vista a garantir a alocação dos fundos atribuídos aos seus fins, permite excluir dos benefícios concedidos por esta instituição os operadores que tenham praticado atos de fraude ou de corrupção relacionados com projetos por ela financiados. 

Refiram-se, em especial, duas das formas de interdição previstas nas World Bank Sanctions Procedures 77. A “modalidade base” de interdição consiste no denominado debarment with conditional release: a pessoa sancionada é impedida de beneficiar de qualquer contrato financiado pelo banco; porém, decorrido um período mínimo de interdição, pode libertar-se dessa condição mediante a adoção de um conjunto de medidas próximas das nossas medidas de self-cleaning, como, por exemplo, a criação e aperfeiçoamento de programas de integrity compliance ou a realocação ou ação disciplinar contra certos trabalhadores. Por outro lado, no caso do chamado conditional non-debarment, o acesso aos projetos do Grupo do Banco Mundial fica condicionado à adoção das referidas medidas. 

Além disso, à semelhança do que sucede nos EUA 78, a reabilitação dos operadores interditados é atendida também sob a forma de mitigating factors que poderão ser considerados na determinação do período de inabilidade 79

Verificamos, pois, que, contrariamente ao que sucede entre nós, nos citados sistemas estrangeiros a Administração pode afastar um determinado operador económico de uma pluralidade de procedimentos de contratação. Em muitos casos, estas decisões comportam uma ampla liberdade, sendo que o espectro mais alargado de procedimentos atingidos pela pronúncia reduz naturalmente o risco de contradição e incoerência na prática decisória sobre a idoneidade do mesmo operador. As decisões da entidade adjudicante sobre o mérito da “autolimpeza” dos interessados impedidos acabam por partilhar desta abrangência: concluindo pela reabilitação de um operador, este deixa de ser interditado para uma pluralidade de procedimentos. 

O direito português, ao invés, não prevê de forma generalizada mecanismos deste tipo80. Entre nós, a coerência da prática administrativa no afastamento dos interessados resulta essencialmente de uma conceção legal da decisão de exclusão como uma decisão administrativa marcadamente vinculada. 

Contudo, com a consagração da possibilidade de relevar os impedimentos, o CCP introduziu uma ampla liberdade de decisão nesta matéria – não no plano da verificação do impedimento, que se mantém vinculada, mas no plano, logicamente subsequente, da eventual relevação dessa inabilidade.

 

7. Nota final 

Nos sistemas que concedem às entidades adjudicantes discricionariedade na decisão de excluir, a ideia de self-cleaning surge de forma natural. No exercício do poder discricionário, importa avaliar se o afastamento do concorrente se apresenta como uma medida proporcional – ou seja, idónea e necessária – face às finalidades subjacentes ao impedimento. Nesta avaliação, a entidade adjudicante tem de considerar, evidentemente, as medidas que o interessado impedido adotou com vista à sua “autolimpeza”. 

Assim se explica que o direito português, em que o afastamento do impedido tradicionalmente corresponde a uma decisão vinculada, tenha ignorado a noção de self-cleaning. Entre nós, a lei não convidava a entidade adjudicante a formular qualquer juízo sobre a proporcionalidade de uma eventual exclusão, pelo que não havia lugar à consideração de quaisquer comportamentos “reabilitantes” pelo concorrente. A lei era concludente: à aplicação de certas sanções penais ou administrativas correspondia, inevitavelmente, um impedimento à contratação com a Administração. 

A consagração do regime da “relevação dos impedimentos” opera, pois, uma mudança profunda no nosso sistema. Contrariamente ao que sucedia até agora, a entidade adjudicante poderá ser forçada a avaliar se o afastamento do interessado do procedimento adjudicatório serve os propósitos subjacentes à consagração legal do impedimento que o atinge. 

Isoladamente considerada, esta inovação é de aplaudir: atendendo ao peso de uma decisão de exclusão, afigura-se que ao interessado deve ser consentida a possibilidade de impor à entidade adjudicante uma avaliação mais ampla sobre a necessidade e a adequação dessa medida no caso concreto. 

No entanto, a forma casuística e descentralizada como esta avaliação é levada a cabo pode comportar um conjunto de desvantagens: por um lado, um risco de incoerência na prática decisória da Administração; por outro, pode afetar a qualidade da decisão, já que, em casos mais complexos, a avaliação sobre o mérito das medidas de self-cleaning pode exigir elevados níveis de expertise

É certo que, em teoria, o modelo de avaliação casuística revela também algumas virtudes. Facilita, por exemplo, o ajustamento do grau de exigência na avaliação das medidas de self-cleaning a eventuais necessidades especiais impostas pelo concreto contrato a celebrar. Além disso, permite considerar, em cada momento, o peso relativo que a patologia inabilitante representa no universo da atividade do operador. 

Contudo, não se afigura que um sistema centralizado – a que a Diretiva não parece opor-se81 – sacrificasse necessariamente estas vantagens. Seria equacionável, designadamente, um sistema de debarment que admitisse decisões desviantes quando as exigências especiais do caso concreto assim o impusessem82

Terminando com uma brevíssima observação situada no plano da disciplina concreta introduzida no CCP, anota-se que o legislador se absteve de enquadrar a relevação dos impedimentos na tramitação dos procedimentos pré-contratuais. Estima-se que, no arranque da vigência deste novo regime, a citada omissão provocará algumas dúvidas quanto ao momento e ao modo como os interessados impedidos poderão apresentar à entidade adjudicante as suas medidas self-cleaning 83-84

 

NOTAS

1 À semelhança, aliás, do que tem sucedido com legislação pretérita no domínio da contratação pública: veja-se, p. ex., o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho (regime de realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços) ou o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março (regime de realização de despesas públicas com empreitadas de obras públicas e aquisição de serviços e bens, bem como o da contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição de bens móveis). 

2 Encontramos essa disciplina no artigo 55.º do CCP. 

3 É o caso Alemanha, onde a doutrina e a jurisprudência há muito reconhecem o instituto da Selbstreinigung (cf. HANS-JOACHIM PRIEß / MATTHIAS SIMONIS, 125, in HANS-PETER KULARTZ / ALEXANDER KUS / NORBERT PORTZ / HANS-JOACHIM PRIEß, Kommentar zum GWB-Vergaberecht, 4.ª ed., Werner Verlag, 2016, p. 638). Hoje em dia, a lei alemã dedica ao tema o 125 da Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen.  

4 Mais concretamente, discutia-se a questão de saber se essa faculdade existiria ao abrigo de uma possibilidade reconhecida aos Estados-Membros de, por razões imperiosas de interesse geral, derrogar algumas das causas de exclusão de transposição obrigatória para o direito interno. Neste contexto, cf., p. ex., HANS-JOACHIM PRIEß, Exclusio corruptoris? – Die gemeinschaftlichen Grenzen des Ausschlusses vom Vergabeverfahren wegen Korruptionsdelikten, Neue Zeitschrift für Baurecht und Vergaberecht (NZBau), 2009, p. 589 ou JAN PHILIPP WIMMER, Zuverlässigkeit im Vergaberecht (Verfahrensausschluss, Registereintrag und Selbstreinigung), Nomos, Baden-Baden, 2012, p. 87 ss.  

5 Conforme o autor destas linhas teve oportunidade de assinalar noutra ocasião (cf. Os “Motivos de Exclusão” na Diretiva 2014/24/UE, Revista de Contratos Públicos, n.º 13, 2016, p. 78, nota 104), assiste-se na literatura a diferentes abordagens do tema. O ponto de partida consiste, para vários autores, nas normas contidas no artigo 45.º, n.os 1 e 2 (segundos parágrafos), da anterior Diretiva 2004/18/CE, segundo as quais os Estados-Membros especificariam as condições de aplicação das causas de exclusão “na observância do direito comunitário”. A partir daqui, os caminhos separavam-se. Por vezes, a questão era avaliada no quadro das liberdades fundamentais do mercado comum. Neste contexto, a exigência de proporcionalidade apresenta-se como limite a uma medida restritiva das citadas liberdades (Schranken-Schranken). Outras vezes, a análise quedava-se fora do contexto das liberdades fundamentais. O principio da proporcionalidade era considerado antes como princípio autónomo do direito europeu primário sendo sublinhado que, segundo a jurisprudência do TJUE, nos citados Acórdãos Michaniki e Fabricom, a exclusão apenas se justificaria enquanto medida necessária à consecução das finalidades que motivam a consagração legal do impedimento (cf. respetivamente os Acórdão de 16 de dezembro de 2008, proferido no proc. C-213/07, e o Acórdão de 3 de março de 2005, proferido nos procs. C-21/03 e 34/03). Veja-se, sobre este tema, HANS-JOACHIM PRIEß, Exclusio corruptoris…, cit., p. 590 ss. ou SUE ARROWSMITH / HANS-JOACHIM PRIEß / PASCAL FRITON, Self-Cleaning – An Emerging Concept in EC Public Procurement Law?, in HERMANN PÜNDER / HANS-JOACHIM PRIEß / SUE ARROWSMITH, Self-Cleaning in Public Procurement Law, Carl Heymanns, Köln, 2009, p. 11 ss. JAN PHILIPP WIMMER apresenta ainda uma abordagem menos intuitiva, analisando o self-cleaning à luz das regras do direito primário no domínio do direito da concorrência (cf., ob. cit., p. 164 ss.). 

6 Como também assinalámos noutro local (cf. ob. cit., p. 82), o traço porventura mais marcante do novo regime dos “motivos de exclusão” na Diretiva 2014/24/UE refere-se aos limites colocados à operatividade dos impedimentos. Neste contexto, o legislador europeu mostra uma especial preocupação em assegurar a proporcionalidade da decisão de excluir, o que se revela, para além do reconhecimento do self-cleaning, p. ex., numa acrescida oposição a exclusões fundadas em infrações menores ou na previsão de limites máximos à duração da situação de inabilidade.  

7 Cf. primeiro parágrafo do n.º 1 do artigo 57.º da Diretiva 2014/24/UE. 

8 Cf. primeiro parágrafo do n.º 4 do artigo referido na nota anterior. 

9 Segundo o disposto no artigo 146.º, n.º 2, alínea c), do CCP, o júri deve propor a exclusão das propostas que sejam apresentadas por concorrentes relativamente aos quais a entidade adjudicante tenha conhecimento que se verifica alguma das situações previstas no artigo 55.º. No mesmo sentido dispõem ainda os artigos 122.º, n.º 2, 184.º, n.º 2, alínea c), do CCP. 

10 Inexistindo, é certo, uma discricionariedade de decisão, verifica-se contudo alguma margem de livre apreciação no plano do preenchimento de alguns conceitos que descrevem a situação geradora de impedimento – v.g. sanção administrativa relativa a “falta grave em matéria profissional” [alínea c) do mesmo preceito].  

11 Isto é, a “sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos prevista em legislação especial, nomeadamente nos regimes contraordenacionais em matéria laboral, de concorrência e de igualdade e não-discriminação, bem como da sanção prevista no artigo 460.º [do CCP]”. 

12 A norma refere-se à aplicação de “sanção administrativa ou judicial pela utilização ao seu serviço de mão-de-obra legalmente sujeita ao pagamento de impostos e contribuições para a segurança social, não declarada nos termos das normas que imponham essa obrigação, em Portugal ou no Estado de que sejam nacionais ou no qual se situe o seu estabelecimento principal”. 

13 Esta fórmula também foi utilizada pelo legislador português nos diplomas que precederam o CCP: cf. o artigo 55.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de março (regime jurídico das empreitadas de obras públicas), assim como o artigo 33.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho (regime da realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços) ou o artigo 17.º, alínea c), do diploma que antecedeu este último, isto é, do Decreto-Lei n.º 55/99, de 2 de março.  

14 Lei n.º 37/2015, de 5 de maio. 

15 O autor das presentes linhas teve oportunidade de abordar sumariamente este tema noutra ocasião (cf. ob. cit., pp. 74 a 76). Dando nota de uma “assimilação doutrinal da reabilitação ao cancelamento dos cadastros”, cf. ANTÓNIO MANUEL DE ALMEIDA COSTA, O Registo Criminal, Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento, Vol. XXVII, 1984, p. 426 ss. Na literatura mais recente, MARIA DO CÉU MALHADO também assinala uma “sinonímia legalmente consagrada” entre os conceitos de reabilitação e de cancelamento do registo (cf. Noções de Registo Criminal, Almedina, Coimbra, 2001, p. 321). Também JORGE FIGUEIREDO DIAS ensina que, na sua aceção jurídico-penal, a reabilitação representa “o mecanismo através do qual o ex-condenado é colocado na situação jurídica anterior à sentença” (cf. Direito Penal Português. II, 3.ª reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 653 s.).  

16 JOÃO AMARAL E ALMEIDA e PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ referem-se, neste contexto, a um preceito “absolutamente tautológico” – cf. Comentários ao Anteprojeto de Revisão do Código dos Contratos Públicos (agosto 2016), Regime da Contratação Pública, Sérvulo & Associados, p. 72 (disponível online). 

17 Neste contexto, não se afigura totalmente acertado o recurso ao termo “causa de exclusão”, o qual parece ter sido importado da Diretiva 2014/24/UE (artigo 57.º, n.º 6). De acordo com a terminologia do CCP, teria sido preferível o recurso ao termo “impedimento”. Abra-se um brevíssimo parêntesis para assinalar que, em bom rigor, nem mesmo no direito europeu o termo “causa de exclusão” é inteiramente coerente na medida em que a Diretiva de 2014 preferiu designar os impedimentos, na maioria dos casos, de “motivos de exclusão” [cf. artigos 56.º, n.º 2, primeiro parágrafo, 59.º, n.º 1, terceiro parágrafo, 60.º, n.os 1, primeiro parágrafo, e 6].  

18 Refira-se que, na redação do Anteprojeto de Revisão posto em consulta publica em 2016, esta norma não definia o espectro dos impedimentos passíveis de relevação. No entanto, o enunciado exemplificativo das medidas de self-cleaning já antecipava uma restrição do âmbito de incidência deste regime aos impedimentos fundados na aplicação de sanções, fazendo referência ao ressarcimento dos danos causados pela “infração penal ou falta grave”, à colaboração com as “autoridades responsáveis pelo inquérito” e à adoção de medidas adequadas para evitar “outras infrações penais ou faltas graves”. No mesmo sentido, cf. JOÃO AMARAL E ALMEIDA / PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, ob. cit., p. 72.  

19 Na disciplina das figuras da suspension e do debarment, no direito dos EUA, a que voltaremos adiante, o conceito central é o da “responsability” – cf. p. ex. 9.402(a) da Federal Acquisition Regulation: “Agencies shall solicit offers from, award contracts to, and consent to subcontracts with responsible contractors only. Debarment and suspension are discretionary actions that, taken in accordance with this subpart, are appropriate means to effectuate this policy. Em concretização deste princípio, veja-se depois 9.406-1(a), 9.406-2(a)(5), 9.406-2(c), 9.407-1(b)(2) ou 9.407-2(a)(9) e (c). 

20 Neste sentido, cf. CARLOS GÓMEZ-JARA DÍEZ, Autorregulación y responsabilidad penal de las personas jurídicas, ARA Editores, Lima, 2015, p. 210. 

21 Note-se que a Diretiva 2014/24/UE é emitida ao abrigo da competência geral de harmonização legislativa prevista no artigo 114.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nos termos do qual “o Parlamento Europeu e o Conselho […] adotam as medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros, que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno”.  

22 Neste sentido, cf. SUE ARROWSMITH, The law of public and utilities procurement (regulation in the EU and UK), Thomson Reuters, London, 2014, p. 172 ss., ou SARAH SCHOENMAEKERS, The EU Debarment Rules: Legal and Economic Rationale, Public Procurement Law Review (PPLR), 2016, p. 91.

23 Algumas vozes na doutrina têm recorrido a um argumento sistemático para sustentar que as finalidades subjacentes ao regime de impedimentos se confundem com as citadas finalidades primárias do próprio direito da contratação pública. Neste sentido, tem sido salientado que a Diretiva 2014/24/UE, à semelhança aliás do que sucedia na anterior Diretiva, prevê os impedimentos (“motivos de exclusão”) numa secção que se ocupa também da aptidão técnica e financeira dos concorrentes, assim como da titularidade das habilitações jurídicas exigidas para a atividade em questão. Com efeito, este conjunto de normas, referentes à denominada “seleção qualitativa”, destina-se a permitir o afastamento dos operadores que, por alguma destas razões, não se mostrem fiáveis para a execução contratual. Neste sentido, veja-se SUE ARROWSMITH / HANS-JOACHIM PRIEß / PASCAL FRITON, ob. cit., p. 18, JAN-PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 57 s. Ainda no mesmo sentido, embora não por via deste argumento sistemático, cf. MARTIN BURGI, Ausschluss und Vergabesperre als Rechtsfolgen von Unzuverlässigkeit, NZBau, 2014, p. 596. 

24 Como resulta, aliás, da enunciação dos atos por referência aos quais o artigo 57.º, n.º 1, da Diretiva 2014/24/UE, identifica os crimes inabilitantes.

25 Neste sentido, ainda no contexto da anterior Diretiva 2004/18/CE, veja-se SUE ARROWSMITH / HANS-JOACHIM PRIEß / PASCAL FRITON, ob. cit., p. 19.

26 Cf. Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu de 21 de fevereiro de 2006 – Inibição de direitos decorrente de condenações penais na União Europeia (COM/2006/0073 final).

27 Cf. Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Coimbra, 2015, p. 241. 

28 Para um exemplo da história da legislação portuguesa em matéria de contratação pública que revela já uma preocupação legislativa com a retidão do parceiro contratual ou dos seus colaboradores, veja-se o artigo 10.º das Clausulas e Condições Geraes de Empreitadas de Obras Publicas, aprovadas pelo Decreto de 9 de Maio de 1906: “o empreiteiro terá todo o cuidado na admissão dos seus empregados technicos e administrativos, devendo escolher individuos […] probos […]”.  

29 Cf. A formação dos contratos públicos – Uma concorrência ajustada ao interesse público, AAFDL, 2013, p. 862. 

30 Cf. artigo 57.º, n.º 6, segundo parágrafo, da Diretiva 2014/24/UE.

31 É o caso, p. ex., de HANS-JOACHIM PRIEß (cf. Warum die Schadenswiedergutmachung Teil der vergaberechtlichen Selbstreinigung ist und bleiben muss, NZBau 2012, p. 425 ss.) e de GERHARD DABRINGHAUSEN e KATJA FEDDER, [cf. Die Pflicht zur Herausgabe der Beute fordert die Reschtstreue. Eine Erwiderung auf Dreher/Hoffmann (Sachverhaltsaufklärung und Schadenswiedergutmachung bei der vergaberechtlichen Selbstreinigung, NZBau 2012, 265 ff.), Vergaberecht – Zeitschrift für das gesamte Vergaberecht (VergabeR), 2013, p. 20 ss.]. 

32 Cf. JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 175. 

33 Cf. HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, II. Germany, in HERMANN PÜNDER / HANS-JOACHIM PRIEß / SUE ARROWSMITH, ob. cit., p. 77.  

34 Cf. decisão de 22 de março de 2006 (23 O 118/04) (decisão publicada, p. ex., na NZBau, 2006, p. 397 ss.). 

35 MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung zur Wiedererlangung der kartellvergaberechtlichen Zuverlässigkeit und die vergaberechtliche Compliance – Teil 2, NZBau, 2014, p. 153 s. 

36 Cf. decisão de 22 de novembro de 2012 (Az. Verg 22/12), no parágrafo 57 (decisão publicada, nomeadamente, na NZBau, 2013, p. 261 ss.). 

37 Cf. HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, ob. cit., p. 77.

38 Cf. decisão de 9 de abril de 2003 (VII-Verg 66/02), no parágrafo 98 (decisão publicada, designadamente, na NZBau, 2003, p. 578 ss.). 

39 Salientando justamente a seriedade e eficácia que deve caracterizar as averiguações realizadas pelo interessado impedido, veja-se a citada decisão do Oberlandesgericht de Düsseldorf de 9 de abril de 2003.  

40 Cf. MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung zur Wiedererlangung der kartellvergaberechtlichen Zuverlässigkeit und die vergaberechtliche Compliance – Teil 1, NZBau, 2014, p. 71.  

41 Neste contexto, WIMMER cita o exemplo do escândalo de corrupção que envolveu a Siemens, A.G. em 2006. Confrontada com investigações de autoridades alemãs e norte-americanas [neste último caso, designadamente a Securities Exchange Commission (SEC) e o United States Department of Justice (DoJ)], a empresa procurou apurar se teriam ocorrido outros ilícitos, para além daqueles que estavam a ser investigados. O autor salienta que, enquanto este comportamento se mostra apto a conduzir a uma redução das sanções aplicadas, revela-se contudo exagerado para efeito de afastar um impedimento à participação em procedimentos de contratação pública na Alemanha. Cf. JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 175. 

42 Cf. Cuestiones fundamentales de Compliance y Derecho Penal, in LOTHAR KUHLEN / JUAN PABLO MONTIEL / ÍÑIGO ORTIZ DE URBINA GIMENO, Compliance y teoría del Derecho penal, Marcial Pons, Madrid, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo, 2013, p. 51.  

43 Veja-se, p. ex., MEINRAD DREHER/JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 1, cit., p. 150. 

44 Cf., nomeadamente, NICOLA OHRTMANN, Korruption im Vergaberecht – Konsequenzen und Prävention – Teil 2: Konsequenzen und Selbstreinigung, NZBau, 2007, p. 281; MEINRAD DREHER/JENS HOFFMANN, Korruption im Vergaberecht ... Teil 2..., cit., p. 151 .  

45 Cf. JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 190 s. 

46 A este propósito, veja-se a decisão do Oberlandesgericht de Brandenburgo, de 14 de dezembro de 2007 (Az. Verg W 21/07) (publicada, nomeadamente, na NZBau, 2008, p. 277 ss.), onde foi reconhecida a importância de a empresa em causa ter criado um departamento de “revisão/compliance”, assim com uma “instância de clearing destinada a analisar e questionar a estratégia […]” adotada pela empresa nos procedimentos pré-contratuais. 

47 NICOLA OHRTMANN, Korruption im Vergaberecht ... Teil 2..., cit., p. 281. 

48 HANS-JOACHIM PRIEß / ROLAND M. STEIN, Nicht nur sauber, sondern rein: Die Wiederherstellung der Zuverlässigkeit durch Selbstreinigung, NZBau, 2008, 231; HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, ob. cit., p. 79.  

49 HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, ob. cit., p. 79.  

50 NICOLA OHRTMANN salienta que medidas desta natureza comportam uma enorme perda de competência e conhecimento, razão pela qual a sua implementação enfrentaria, compreensivelmente, alguma resistência (cf. Korruption im Vergaberecht ... Teil 2..., cit., p. 281).  

51 MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 2, cit., p. 151; 

52 Considerando o estigma frequentemente associado à denúncia, esta proteção pode consistir, p. ex., na garantia de uma realocação dos denunciantes a outros departamentos da empresa – cf. HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, ob. cit., p. 80.  

53 Cf., p. ex., MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 1, cit., p. 72.  

54 Veja-se, a este respeito, a citada decisão do Oberlandesgericht de Brandenburgo, de 14 de dezembro de 2007, onde foi considerada a circunstância “de os colaboradores da empresa condenados, por decisão transitada em julgado, já não trabalharem para o grupo empresarial nem disporem de quaisquer possibilidades de influenciar os processos internos da empresa”.  

55 Cf. A decisão do Oberlandesgericht de Düsseldorf, de 28 de julho de 2005 (parágrafo 32). 

56 Cf. MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 1, cit., p. 72, citando a acima referida decisão do Oberlandesgericht de Düsseldorf, de 9 de abril de 2003. No caso subjacente a esta decisão, relativo à prática de atos de corrupção, a empresa em causa extinguiu as relações laborais com todos os colaboradores participantes nos factos e, além disso, celebrou acordos de revogação com todos os trabalhadores sobre os quais recaía a suspeita de que teriam conhecimento dos factos (v. parágrafo 42). 

57 Ainda no contexto das medidas menos gravosas, DREHER e HOFFMANN referem a criação das denominadas chinese walls, sendo p. ex. instalado um software que impeça os colaboradores de aceder a determinada informação. Reconhecendo que a medida não assegura uma prevenção geral, os autores consideram contudo que, na ausência de outras medidas de pessoal (v.g. redefinição das funções do trabalhador), a criação dos referidos mecanismos seria insuficiente – cf. Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 1, cit., p. 73.  

58 A questão adquire contornos mais delicados nos casos em que os responsáveis pelos factos inabilitantes detenham participações sociais da entidade impedida. Sobre o tema, pode ver-se na doutrina alemã, p. ex. JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 179 s. ou MEINRAD DREHER / JENS HOFFMANN, Die erfolgreiche Selbstreinigung ... – Teil 1, cit., p. 74 s. 

59 Refira-se ainda que, em comparação com as medidas previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP, a exigência relativa a medidas de pessoal é mais dificilmente aplicável aos casos em que o interessado impedido seja uma pessoa singular. Sobre o tema, veja-se JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 194 ss.  

60 Cf. JAN PHILIPP WIMMER, ob. cit., p. 199; HANS-JOACHIM PRIEß / HERMANN PÜNDER / ROLAND M. STEIN, ob. cit., p. 83.  

61 Cf., p. ex., a decisão do Kammergericht de Berlim de 13 de março de 2008 (2 Verg 18/07), publicada, designadamente, na NZBau 2008, p. 466. O tribunal sublinha que não carece necessariamente da idoneidade exigida para a realização de uma empreitada quem tenha subornado um adjudicante privado “em especial” quando esses factos tenham ocorrido “há anos”. 

62 Exemplificando esta questão de forma impressiva, PRIEß, PÜNDER e STEIN (cf. ob. cit., p. 85) fazem a seguinte comparação: numa empresa que emprega dois funcionários, um destes comete uma infração no primeiro contrato público que a empresa celebra; por outro lado, numa empresa com milhares de trabalhadores é cometida uma primeira infração depois de centenas de contratos terem sido executados de forma irrepreensível. Como é evidente, as preocupações em torno da fiabilidade dos parceiros contratuais colocam-se com uma intensidade totalmente distinta nestas duas hipóteses. 

63 Cf. NICOLA OHRTMANN, Korruption im Vergaberecht - Konsequenzen und Prävention, NZBau, 2007, p. 204. 

64 Cf. a decisão de 21.04.2006 (Verg 8/06): “Com razão, a entidade adjudicante, ao avaliar se a fiabilidade da autora está comprometida, empregou uma bitola muito rigorosa, capaz de afastar qualquer risco relacionado com a atividade em concurso. […] Esta bitola rigorosa justifica-se à luz do projeto concreto para o qual está a ser realizado o concurso. No caso presente, está em causa a realização de testes de BSE. Estes testes obrigatórios são atentamente seguidos pela população. Os testes constituem a base essencial para as medidas do Estado contra a propagação de uma epizootia e servem simultaneamente a prevenção contra a ocorrência da doença de Creutzfeldt-Jacob. Deste modo, não se dá apenas resposta à proteção dos consumidores num domínio particularmente sensível, como também se previne os receios do público relativamente a uma possível continuação da propagação da epizootia BSE. Para manter a confiança numa correta gestão, devem ser contratados concorrentes íntegros sob todos os aspetos”.  

65 Cf. artigo 57.º, n.º 6, quarto parágrafo, da Diretiva 2014/24/UE. 

66 A citada pena acessória encontra-se prevista no artigo 90.º-A do Código Penal. Sendo certo que a norma não se refere literalmente à contratação pública, é porém precisamente este o exemplo dado na doutrina penalista. Cf., p. ex., PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, referindo que “o tribunal pode decretar a proibição de celebração de contratos de compra e venda/empreitadas com entidades públicas”. [cf. Comentário do Código Penal (à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), 2.ª ed. atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2010, p. 318]. No mesmo sentido, JORGE DOS REIS BRAVO, afirma que as entidades visadas serão “presuntivamente de natureza publica, maxime o Estado e outras pessoas coletivas de direito público” (cf. Direito penal de entes colectivos. Ensaio sobre a punibilidade de pessoas colectivas e entidades equiparadas, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 241).  

67 Cf. artigo 8.º, alínea e) do referido diploma. 

68 Cf. artigo 16.º, alínea d), do referido diploma. 

69 A duração de uma interdição desta natureza tem, em regra, um período mínimo de seis meses e um período máximo de três anos – cf. CRISTOPH BRÜNING, Die ubiquitäre Zuverlässigkeitsprüfung im neuen Vergaberecht, NZBau, 2016, p. 725.         [ Links ] 

70 Desta figura distinguem-se os denominados “registos de adjudicação” (Vergaberegister) que consubstanciam bases de dados internas da Administração que se encontram à disposição das entidades adjudicantes no âmbito da avaliação da fiabilidade dos concorrentes nos seus procedimentos pré-contratuais. Exemplo paradigmático destas figuras constitui um sistema de registo previsto na lei de combate à corrupção do Estado (Land) da Renânia do Norte-Vestfália (Korruptionsbekämpfungsgesetz NRW). Muito embora a consulta deste tipo de registo chegue a ser obrigatório em certos casos, o seu teor não vincula a entidade adjudicante consulente. 

71 Cf. MARTIN BURGI, ob. cit., p. 599.

72 A propósito do anterior EPLS – Excluded Parties List System, RICHARD J. BEDNAR, ANGELA B. STYLES e JILL MCDOWELL dão-nos conta da relevância que esta lista assumia mesmo fora do âmbito da contratação pública, relatando que muitas empresas a consultavam antes de concluírem negócios privados (cf. III – United States, in HERMANN PÜNDER / HANS-JOACHIM PRIEß / SUE ARROWSMITH, ob. cit., p. 173).  

73 Cf. 9.405(a) da citada FAR: “Contractors debarred, suspended, or proposed for debarment are excluded from receiving contracts, and agencies shall not solicit offers from, award contracts to, or consent to subcontracts with these contractors, unless the agency head determines that there is a compelling reason for such action”. 

74 Cf. 9406-1(a) da FAR: “It is the debarring official’s responsibility to determine whether debarment is in the Government’s interest. The debarring official may, in the public interest, debar a contractor for any of the causes […]”. No mesmo sentido, veja-se o 9.406-2 e, relativamente à suspension, os 9.407-1(a) e 9.407-2(a), todos da referida FAR. Assinalando a discricionariedade resultante destas normas, cf. STEVEN A. SHAW / JADE C. TOTMAN, Suspension and Debarment Strengthening integrity in international defence contracting, Transparency International UK, 2015, p. 19 (disponível online). Os autores sublinham que a lei emprega o termo “may” (e não “must”) debar

75 Por outro lado, importa assinalar ainda que, além de causas inabilitantes de verificação objetiva, a lei contém a seguinte “catchall category” no 9.406-2(c): “The debarring official may debar […] A contractor or subcontractor based on any other cause of so serious or compelling a nature that it affects the present responsibility of the contractor or subcontractor”. No que se refere à suspension, veja-se a cláusula geral contida no 9.407-2(a)(9): “The suspending official may suspend a contractor suspected, upon adequate evidence, of […] Commission of any other offense indicating a lack of business integrity or business honesty that seriously and directly affects the present responsibility of a Government contractor or subcontractor”.  

76 O 9.406-1(a) da FAR dispõe do seguinte modo: “Before arriving at any debarment decision, the debarring official should consider factors such as the following: (1) Whether the contractor had effective standards of conduct and internal control systems in place at the time of the activity which constitutes cause for debarment or had adopted such procedures prior to any Government investigation of the activity cited as a cause for debarment. (2) Whether the contractor brought the activity cited as a cause for debarment to the attention of the appropriate Government agency in a timely manner. (3) Whether the contractor has fully investigated the circumstances surrounding the cause for debarment and, if so, made the result of the investigation available to the debarring official. (4) Whether the contractor cooperated fully with Government agencies during the investigation and any court or administrative action. (5) Whether the contractor has paid or has agreed to pay all criminal, civil, and administrative liability for the improper activity, including any investigative or administrative costs incurred by the Government, and has made or agreed to make full restitution. (6) Whether the contractor has taken appropriate disciplinary action against the individuals responsible for the activity which constitutes cause for debarment. (7) Whether the contractor has implemented or agreed to implement remedial measures, including any identified by the Government. (8) Whether the contractor has instituted or agreed to institute new or revised review and control procedures and ethics training programs. (9) Whether the contractor has had adequate time to eliminate the circumstances within the contractor’s organization that led to the cause for debarment. (10) Whether the contractor’s management recognizes and understands the seriousness of the misconduct giving rise to the cause for debarment and has implemented programs to prevent recurrence.” No que se refere à figura da suspension, veja-se o disposto no 9.407-1(a)(2) da FAR. 

77 Mais concretamente, a Section 9.01 (versão adotada em 15 de abril de 2012). 

78 Sublinhando esta semelhança, cf. SOPE WILLIAMS-ELEGBE, Fighting Corruption in Public Procurement: A Comparative Analysis of Disqualification Measures, Universidade de Nottingham, 2011, p. 157 s. (disponível online).         [ Links ] 

79 Cf. o ponto V das World Bank Sanctions Guidelines. Prevê-se, p. ex., uma redução que pode atingir 33% do período de debarment em caso de “cooperação com a investigação” (assistência substancial na investigação, investigações internas, assunção da culpa/responsabilidade, abstenção voluntária de participar em concursos financiados pelo banco na pendência de uma investigação) ou uma redução até 50% do referido período para situações de “ação corretiva voluntária” (cessação da conduta ilícita, ação interna contra os indivíduos responsáveis, criação ou aperfeiçoamento dos programas de compliance, restituição de fundos obtidos ilicitamente). 

80 Entre nós, uma pronúncia administrativa com este conteúdo apenas poderá ser emitida no contexto da aplicação de sanções. Por um lado, no plano contraordenacional, o artigo 460.º, n.º 1, do CCP, admite a aplicação de uma “[…] sanção de proibição de participar, como candidato, como concorrente ou como membro de agrupamento candidato ou concorrente, em qualquer procedimento adotado para a formação de contratos públicos […]”. Por outro, o artigo 464.º-A prevê a possibilidade de aplicação de uma sanção de “proibição de participação decorrente de incumprimento contratual”. 

81 No seu considerando 102, a Diretiva admite que a avaliação das medidas de self-cleaning seja confiada a “outras autoridades a nível central ou não central”. 

82 Veja-se, no direito dos EUA, o segment final do já citado 9.405(a) da FAR: “Contractors debarred, suspended, or proposed for debarment are excluded from receiving contracts, and agencies shall not solicit offers from, award contracts to, or consent to subcontracts with these contractors, unless the agency head determines that there is a compelling reason for such action”. 

83 Pense-se, p. ex., na articulação da possibilidade de formular um pedido tendente à relevação de um impedimento com o dever dos interessados de apresentar uma declaração no sentido da inexistência de impedimentos. Contrariamente ao modelo constante do Anexo I do CCP, o formulário do denominado Documento Europeu Único de Contratação Pública (DEUCP) – documento que, nos procedimentos com publicação de anúncio no JOUE, é apresentado como documento da proposta em substituição da declaração do Anexo I do CCP – contém campos especificamente destinados à descrição de eventuais “medidas para demonstrar a […] fiabilidade [do interessado], não obstante a existência de um motivo de exclusão relevante («limpeza automática»)” [cf. Regulamento de Execução (UE) 2016/7, de 5 de janeiro de 2016].

84 Note-se que o momento em que o interessado pretende formular uma pretensão deste tipo poderá variar em função da altura em que o interessado adquire consciência da sua situação de impedimento. Como é natural, o interessado apenas tomará a iniciativa de demonstrar a sua idoneidade se estiver ciente da sua inabilidade. Na maioria dos casos, o interessado impedido certamente conhecerá esta sua condição no momento em que apresenta da sua oferta. Contudo, existem casos em que a subsunção dos factos ao “tipo impeditivo” pode comportar alguma incerteza. Assim, pode não ser claro para um interessado se os factos subjacentes à aplicação de determinada sanção administrativa consubstanciam, na ótica da entidade adjudicante, uma “falta grave em matéria profissional”.