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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.3 no.1 Lisboa Apr. 2016

 

DESTAQUE

As dimensões esquecidas das medidas de resolução bancária

The forgotten aspects of bank resolution mechanisms

 

Nuno GaroupaI

ITexas A&M University School of Law & Católica Global School of Law. e-mail: nunogaroupa@tamu.edu

 

RESUMO

Usando a resolução do Banco Espírito Santo como exemplo, propõe-se uma curta reflexão sobre as dimensões jurídicas, regulatórias e políticas das medidas de resolução bancária. Conclui-se que uma medida de resolução bancária que ignore estas dimensões reduz conside-ravelmente a eficácia da mesma, contribuindo para aumentar os custos económicos de con-texto.

Palavras chave: litigância, custo de contexto, resolução bancária, regulação

Sumário: 1. Introdução 2. O Exemplo do BES 2.1 Génese da medida de resolução 2.2 O papel do regulador e o contexto político 2.3 A resolução e o seu ambiente jurídico 3. Conclusão

 

ABSTRACT

Using the resolution applied to Banco Espírito Santo as an example, we suggest a short con-sideration of legal, regulatory and political aspects in relation to banking failure. We conclude that if the legal, regulatory and political dimensions are ignored, banking resolutions could increase transaction costs more generally than otherwise.

Key words: litigation, transaction costs, banking resolution, regulation

 

 

1. Introdução

Desde o início da crise de 2007 que o problema bancário tem sido objeto de grande reflexão académica e intensa discussão política 1 De meados dos anos 80 até 2007 vigoraram genericamente duas ideias fundamentais relativamente ao mundo da banca.2 Primeiro, a regulação existente do setor bancário impedia o risco sistémico, isto é, estavam acauteladas operações e situações bancárias que pusessem em risco a solvência do mercado bancário como um todo e, por consequência, dos mercados financeiros e da própria economia. Afinal a necessidade de boa regulação bancária remontava à experiência da crise de 1929. Esta ensinou-nos, entre outras coisas, que o mercado bancário exige um conjunto de regras impostas e vigiadas pelo Estado para evitar uma crise financeira e económica de dimensões catastróficas. Segundo, uma vez que a regulação bancária garantia a minimização do risco sistémico, a falência de qualquer banco seria, na sua essência, semelhante à falência de qualquer empresa que, em virtude das suas ineficiências internas, sucumbe perante as empresas concorrentes. Na verdade, a falência de qualquer banco deveria mesmo ser acarinhada, quando não estimulada, na leitura feita pelos partidários da destruição criativa. Segundo estes, os bancos maus desaparecem e os bancos bons emergem numa versão Schumpeteriana dos mercados bancários.

A crise de 2007 deixou patente que ambas as premissas estavam fundamentalmente erradas.3 A falência da Lehman Brothers, um banco de investimento de dimensão multinacional, no outono de 2008, veio abrir uma brecha importante naquilo que era o credo comum prevalecente até então. A estatização de outros gigantes do mercado de empréstimos pessoais e hipotecas nos Estados Unidos (Fannie Mae, Freddie Mac) e o pacote de medidas de ajuda governamental ao setor financeiro aprovado pelo Congresso americano no final de 2008 eliminaram definitivamente os velhos dogmas sobre a regulação bancária.4

No final de 2008 estava pois clarificado que a regulação bancária então existente não acautelava o risco sistémico. As razões para isso dividiram opiniões então e dividem académicos e políticos até hoje. Para uns, a regulação existente antes de 2007 era insuficiente e ineficaz, falando-se de uma progressiva desregulação desde o consenso de Washington nos anos 80 (o consenso de Washington refere-se ao pacote de medidas económicas sugerido pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Departamento do Tesouro dos Estados Unidos que, entre outras, preconizava políticas de privatização e liberalização de mercados). Para estes, foi pois a falta de regulação que originou a crise do subprime, assim como a crise financeira, e depois a crise da divida soberana. Para outros, a justificação era precisamente a contrária, isto é, a excessiva regulação operada nos anos 90 inevitavelmente gerou captura do regulador pelos regulados e subordinação das regras do livre mercado ao interesse privado dos regulados incumbentes. Noutra palavras, foi o excesso de regulação e a sua captura por interesses privados que gerou a sequência de crise, a saber, subprime, mercados financeiros, dívidas soberanas.5

A primeira explicação defende a falha de mercado por insuficiência regulatória; a segunda explicação sugere uma falha de governo alimentada por um mercado excessivamente condicionado.6 Evidentemente que diferentes visões sobre o papel da regulação na crise de 2007 justificam políticas ou remédios diferentes. Para aqueles que identificam a crise com a falta de regulação, a solução evidentemente passa por mais regulação. Já aqueles que viram no excesso de regulação a causa da crise, o remédio seria desregular e disciplinar os reguladores para mitigar a possibilidade de captura.

Na Europa, tendo prevalecido de forma preponderante a primeira corrente de opinião, logo no final da década, procurou-se reforçar através da maior integração a regulação do mercado bancário europeu muitas vezes com exigências que eventualmente deram origem a novos problemas financeiros e bancários. Foi um processo lento, quer no seu enquadramento legal, quer na concretização de uma união bancária europeia. Paralelamente, ao longo dos últimos cinco anos, procurou-se aumentar o poder dos reguladores bancários e adotar um conjunto de práticas que evitem a captura por interesses particulares, nomeadamente os regulados.

Ao mesmo tempo, uma vez observado que a regulação bancária anterior a 2007 não acautelava de forma significativa e eficaz o risco sistémico, percebeu-se também que alguns bancos são demasiado importantes para falir (too big to fail). De alguma forma, quer o regulador, quer o próprio governo, tornam-se prisioneiros dos grandes bancos, que desta forma podem assumir riscos excessivos, uma vez que sabem que as perdas são socializadas com o fim de evitar a contaminação sistémica de uma possível falência a toda a economia (aquilo que é um típico exemplo de risco moral). Alargaram-se assim os programas de assistência bancária nos Estados Unidos e na Europa, todos eles com base em financiamento estatal e pesando pois no erário público.

Passado o primeiro susto, e aparentemente acalmada a crise das dívidas soberanas, iniciou-se na Europa uma longa reflexão sobre possíveis medidas de resolução bancária que pudessem, no futuro, desenvolver um novo sistema de resgate a bancos que não dependesse excessivamente dos dinheiros públicos. Isto é, um mecanismo que libertasse de alguma forma o erário público da chantagem dos bancos aparentemente demasiado importantes para falir. Assim chegamos à Diretiva 2014/59/UE que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de bancos e outras empresas de investimentos. 7

Os acontecimentos ocorridos no verão de 2014 em Portugal testaram as regras subjacentes à Diretiva 2014/59/UE em termos da sua viabilidade e aplicabilidade. A premência dos vários aspetos financeiros e de natureza mais técnica terá provavelmente afetado a consideração dos aspetos políticos, regulatórios e jurídicos da medida de resolução bancária. A consequência é um conjunto de custos de contexto que, neste momento, são ainda dificilmente quantificáveis.8 Na verdade, o possível fracasso da medida de resolução dever-se-á mais a esses aspetos políticos, regulatórios e jurídicos, isto é, aos custos de contexto, do que a questões intrinsecamente técnicas.

A curta discussão deste artigo insere-se na tese de que a utilidade e efetividade da legislação não pode ser avaliada sem atender a aspetos externos à própria formalidade da lei. Os aspetos políticos, regulatórios e jurídicos são essenciais para explicar a necessidade e a capacidade da medida de resolução bancária produzir os resultados pretendidos. Propõe-se pois que futuras medidas de resolução bancária combinem as preocupações de natureza técnica com os custos de contexto.

Este curto artigo prossegue com a discussão dos aspetos políticos, regulatórios e jurídicos na seção II. A seção III conclui o artigo.

2. O Exemplo do BES

2.1 Génese da medida de resolução

O colapso do Grupo Espírito Santo que culminou na medida de resolução anunciada ao país pelo regulador numa inédita conferência de imprensa em agosto de 2014 já foi bem explicada a uma audiência internacional académica por Coutinho dos Santos e Garoupa. 9 Muitas questões estão ainda hoje, quase dois anos depois, por responder. Que razões explicam que os persistentes rumores e notícias de problemas no grupo Espírito Santo bem antes de 2014 tenham sido sistematicamente ignorados pelas autoridades? O crescimento do conglomerado Espírito Santo, com interesses na banca, nos seguros, nas telecomunicações, no turismo, no imobiliário e muitos outros setores não preocupou os vários reguladores durante mais de uma década. A internacionalização desse mesmo conglomerado em mercados com reconhecidas e graves deficiências regulatórias como Angola não levantou nenhuma dúvida em Portugal. O papel do Banco de Portugal como supervisor, que sempre negou as debilidades do Banco Espírito Santo até ao último momento, é de difícil compreensão à luz dos acontecimentos posteriores. 10 A decisão do BES de recusar o financiamento disponibilizado ao sector no contexto do memorando de entendimento, já no período complicado posterior a 2011, também não é entendível no quadro desses acontecimentos. 11 A emissão de novas ações em maio de 2014, uns meros três meses antes da resolução, com informação oficial positiva dos reguladores (Banco de Portugal e CMVM) carece de uma clara justificação racional. 12

É neste complicado e pouco transparente cenário que nasce a resolução bancária anunciada ao país em agosto de 2014 e que, de alguma forma, testa em Portugal o mecanismo criado pela Diretiva 2014/59/UE. Contra todas as boas práticas de prudência regulatória, transparência e rigor, a solução para o colapso do conglomerado Espírito Santo não envolveu um período de reflexão e maturação do regulador que resultasse numa medida ponderada, tecnicamente experimentada, coerente e consistente. Bem pelo contrário. Foi um exercício jurídico e financeiro rápido, conjuntural e para atalhar a uma situação que se entendia não poder ser prolongada.

A decisão do Banco de Portugal supunha-se o ponto final de um longo de processo de sombras, equívocos e mal entendidos que evidentemente exigiam naquele momento particular uma resposta rápida. E escrevo supunha-se porque claramente não fechou esse processo complicado.

Da resolução nasceu o Novo Banco, criatura que quase dois anos depois ainda mantém a sua ligação umbilical ao Banco de Portugal o qual foi incapaz de encontrar um comprador para aquele.13 Uma resolução posterior, nos finais de 2015 (isto é, mais de 16 meses depois da resolução original), veio transferir obrigações do Novo Banco para o Banco Espírito Santo, agora banco mau, comprovando que a resolução original não resultou de um longo processo de reflexão.14 E, no entretanto, o Novo Banco mudou de administração ao final de seis semanas por divergências sobre o seu futuro (em setembro de 2014 15), sendo que a venda do banco, objetivo de curto prazo anunciado pelo regulador, manifesta e rotundamente falhou (a tentativa em setembro de 2015, nas vésperas de umas importantes eleições legislativas, foi completamente gorada 6).

Finalmente, como último ponto para enquadrar e contextualizar a medida de resolução, é importante notar explicitamente que, ao contrário do que seria natural num Estado regulatório de primeira qualidade17, as medidas de resolução bancária no contexto do Banco Espírito Santo foram tecnicamente o produto de uma solicitação externa continuada e reiterada a uma sociedade de advogados de Lisboa, exibindo uma vez mais a incapacidade jurídica interna do regulador.18 A este triste e lamentável panorama junta-se a confirmação de que as auditorias forenses são elas também o produto de semelhantes solicitações externas a auditoras nacionais ou multinacionais onde o Banco de Portugal tem um papel absolutamente marginal.19< A confiança generalizada e ilimitada no regime de contratação externa é uma peculiaridade do regulador português. 20 E, nesse sentido, nenhuma reestruturação interna foi operada no Banco de Portugal desde agosto de 2014 até hoje para ajustar o seu sistema de decisão às melhores práticas europeias (onde o recurso à contratação externa pondera evidentemente os ganhos de especialização contra os riscos de captura e manipulação). O regime de contratação externa numa matéria que se encontra no coração da função técnica essencial do regulador, prejudicando o princípio da decisão das matérias de maior gravidade e repercussão de forma isolada das pressões dos interesses privados, resulta numa contradição inevitável que não parece ofender as práticas regulatórias portuguesas.

A tese deste curto artigo é que uma medida de resolução bancária depende de duas dimensões importantes. Em primeiro lugar, da sua qualidade técnica, no sentido formal e literal, que corresponda à melhor solução para a deficiência bancária a suprir. Em segundo lugar, da credibilidade dessa mesma medida, de forma a reduzir os custos de contexto em que opera o mercado bancário e, mais genericamente, a economia. Evidentemente que a qualidade técnica importa para a credibilidade da medida de resolução bancária. Mas os aspetos regulatórios, políticos e jurídicos são determinantes para os custos de contexto e podem mesmo subverter a qualidade técnica da resolução. Uma boa medida de resolução bancária do ponto de vista técnico pode ser completamente ineficaz se os aspetos regulatórios, políticos e jurídicos a descredibilizarem. Uma menos boa medida de resolução bancária do ponto de vista técnico pode ser bem mais útil se os aspetos regulatórios, políticos e jurídicos a reforçarem na sua eficácia e eficiência.

2.2 O papel do regulador e o contexto político

Do ponto de vista regulatório, é imperativo que o regulador seja credível e possa merecer a confiança quer dos regulados, quer da opinião pública em geral. Ora, precisamente, o primeiro aspeto importante em torno do caso do Banco Espírito Santo foi a progressiva descredibilização do regulador em virtude de todo o processo que culminou na medida de resolução em agosto de 2014, descredibilização (justa ou injustamente) reforçada com as múltiplas e confusas decisões posteriores. Sabemos que a eficácia da medida de resolução exige um regulador credível, transparente e previsível. E, caso a própria medida de resolução contribua para a sua descredibilização, deve o regulador imediatamente encetar reformas internas que possam corrigir essa perceção a curtíssimo prazo. A importância da boa regulação bancária não se compadece com instituições sem uma excelente reputação. Ora, infelizmente, não só não houve qualquer vestígio de um processo interno que permitisse recredibilizar o regulador na sequência da primeira resolução do BES, como decisões posteriores (BANIF 21, nova resolução sobre o BES, ambas em dezembro de 2015) contribuíram para aumentar o espanto e a incompreensão jurídica e económica. A prioridade do regulador bancário deveria ter sido pois, logo após a polémica medida de resolução bancária, empreender uma ampla reforma interna que passasse pela implementação das melhores práticas internacionais, de uma cultura de transparência e prestação de contas e pelo abandono da prática de contratação externa para as questões jurídicas e de auditoria. Nada disso aconteceu; apenas uma mera redistribuição de pelouros22 reduzindo a credibilidade regulatória a meros estilos pessoais, situação que se prolonga até hoje mesmo após uma demissão crítica de um vice-governador já em março de 2016. 23

O sucesso de uma medida de resolução bancária depende também da dimensão política, isto é, da capacidade de convencer o país político de que se trata da melhor solução. No caso do Banco Espírito Santo, a Comissão Parlamentar de Inquérito foi sobejamente importante. 24 Ainda que as suas conclusões sejam temperadas pelas maiorias políticas de ocasião (evidentemente que a futura Comissão Parlamentar de Inquérito do BANIF será muito diferente da Comissão Parlamentar de Inquérito do BES pela simples razão das maiorias parlamentares serem de geometria diferente), a inconsequência regulatória e bancária dessas conclusões alimenta os vícios da descredibilização institucional.

A perceção de que a escolha de uma medida de resolução particular foi fundamentalmente política, e não técnica, devia preocupar imediatamente as autoridades bancárias. Uma convicção de que houve uma escolha política por razões de tática partidária em detrimento do bom governo prudencial retira credibilidade a uma medida de resolução bancária, mesmo que seja a medida correta tecnicamente. A mais leve suspeita de que a implementação de uma medida de resolução bancária obedece a calendários eleitorais tem que ser absolutamente eliminada por ação veemente do regulador. 25

Neste quadro, é indiscutível que a medida aplicada ao Banco Espírito Santo teve como pano de fundo a repercussão política do caso anterior do Banco Português de Negócios o qual ocorreu em novembro de 2008.26 Na altura, o governo do Partido Socialista decidiu nacionalizar esse banco sendo por isso amplamente criticado pela direita. 27 O custo suportado pelos contribuintes com o Banco Português de Negócios estima-se hoje em cerca de 3 mil milhões de euros, um número bastante diferente daquele que foi anunciado pelo regulador e pelo governo em 2008 (apenas 435 milhões, portanto estaremos em presença de um desvio superior a 500%).28

Não está em causa que custos políticos possam e devam ser equacionados quando uma medida de resolução bancária é considerada. A escolha pública é determinante enquanto variável relevante no processo. Mas a eficácia e credibilidade de uma medida deste tipo depende da capacidade de clarificar que as alternativas foram rejeitadas por serem economicamente mais custosas para o erário público. Infelizmente, no caso do Banco Espírito Santo, tanto o regulador como o governo insistiram na ausência de custos para o contribuinte como argumento (uma vez que o Fundo de Resolução é financiando pelo setor bancário e não pelo Estado).29 Sabemos que o argumento era obviamente falso desde o primeiro momento. No mínimo, o Fundo de Resolução introduz um custo de oportunidade uma vez que o imposto cobrado às instituições bancárias não pode ser utilizado para financiar qualquer outra despesa ou investimento; esse custo de oportunidade é tanto mais grave quando o país enfrenta uma situação orçamental delicada. Acresce a importância da Caixa Geral de Depósitos no fundo interbancário, sendo inevitável que o banco do Estado a seu tempo venha a ser capitalizado com dinheiros públicos, realidade que não podia deixar de ser já conhecida em agosto de 2014. 30 Existe ainda a séria possibilidade de o contribuinte ser chamado a pagar garantias oferecidas a futuros compradores do Novo Banco, aspeto que a medida de resolução deveria ter esclarecido antecipadamente.

A utilização de um argumento economicamente falso de uma forma tão grosseira retira credibilidade à própria medida de resolução. Mais uma vez a opção pela comunicação (política) fácil -- custo zero para o contribuinte -- em detrimento da comunicação rigorosa -- a medida de resolução reduz o custo para o contribuinte num determinado valor estimado pelo regulador -- prejudica uma boa regulação bancária. Se a derrapagem nos custos da resolução do Banco Português de Negócios ronda hoje já os 500% sobre o valor estimado na sua comunicação política inicial, no caso de Banco Espírito Santo essa derrapagem será bem superior pela simples razão de que o valor inicial era próximo de zero.

Importa pois que a medida de resolução bancária seja objetiva na sua própria valorização e que o enquadramento político reforce a transparência e credibilidade. A subestimação permanente ou comunicação de custos orçamentais obviamente falsos é sinónimo de uma medida de resolução bancária sem credibilidade.

2.3 A resolução e o seu ambiente jurídico

O terceiro aspeto a considerar é a questão jurídica, não no sentido da doutrina, da teoria ou do formalismo do direito bancário, mas da prática da aplicação da própria medida de resolução. É evidente que a medida de resolução aplicada ao Banco Espírito Santo supõe um grande desafio ao sistema de justiça. Neste caso concreto, na verdade, podemos dizer que é um ponto de encontro de uma série de constrangimentos complexos mas relevantes.

O sistema legal português é reconhecidamente ineficiente, lento e excessivamente complicado. Quase dois anos depois as repercussões penais do colapso do Grupo Espírito Santo são ainda uma grande incógnita de difícil antevisão. Sabemos que a prova em processo penal é complicada no caso português. Existem regras de prescrição altamente benevolentes por comparação internacional. Ao Ministério Público faltam recursos e capital humano para processos complexos como este caso Banco Espírito Santo mostra. Objetivamente este exemplo é um teste importante ao sistema de justiça português já de si bastante pouco apreciado e admirado.31

O emaranho de litigância civil é também antónimo da credibilidade da medida de resolução. As demandas, sendo um direito que assiste aos putativos lesados, criam incerteza jurídica e custos de contexto adicionais. É importante pois que qualquer medida de resolução seja desenhada para os minimizar, mas no caso do Banco Espírito Santo, parece que foi concebida para os alimentar e mesmo maximizar. Até ao momento já foram interpostas ações contra a gestão anterior a agosto de 2014 relativamente a todo o tipo de incumprimentos da lei societária, ações contra o Novo Banco e o Banco Espírito Santo, agora na versão banco mau, pela forma como foram divididos os ativos e os passivos (inclusivamente com possíveis garantias oferecidas pelo governo o que inevitavelmente supõe custos para o contribuinte a prazo), ações contra um conjunto de instituições por falhas regulatórias, de supervisão ou de auditoria, incluindo a subscrição pública de maio de 2014. Muitas destas ações têm dimensão internacional, estando em curso não só no contexto do sistema judicial português, mas também de tribunais americanos, suíços, luxemburgueses e outros.

A Diretiva 2014/59/UE aplica-se a realidades bem distintas, no sentido em que são muito diferentes os sistemas de justiça dos Estados-membros que podem determinar medidas de resolução bancária. Assim, cada medida em concreto insere-se necessariamente no contexto específico de um certo sistema de justiça e o desenho da medida não pode ser alheio à realidade da prática jurídica onde vai ser aplicada. Como bem mostra o caso do Banco Espírito Santo, se os custos de litigância são excessivos, induzem novos custos de contexto e podem mesmo determinar o fracasso de uma medida de resolução. Esta tem que ser considerada e analisada num ordenamento jurídico com uma prática pouco eficiente e pouco flexível como é reconhecidamente o caso português.

3. Conclusão

O caso Banco Espírito Santo é o bom exemplo do como uma medida de resolução bancária deve ponderar o seu contexto, nomeadamente o enquadramento político, regulatório e jurídico. A aplicação da Diretiva 2014/59/UE não é uma mera questão técnica ou formal. O conteúdo de uma medida de resolução bancária não se esgota na sua coerência técnica com a dita diretiva e não pode ser apreciado fora do enquadramento em que ela é executada. Em particular, o impacto da medida de resolução bancária nos custos de contexto não pode ser ignorado.

Sendo o caso em apreço um primeiro teste à Diretiva 2014/59/UE, é possível que as múltiplas falhas detetadas sejam elas próprias uma manifestação de uma estratégia futura que passe pela consideração e adequação deste vários aspetos. Importa contudo ressalvar que os aspetos políticos, regulatórios e jurídicos serão sempre determinantes no êxito da medida de resolução bancária.

A possível falha regulatória e o descrédito do regulador pela ausência de uma reforma credibilizadora imediata dificultam a medida de resolução bancária. Por sua vez, os custos de contexto ressentem-se pela incapacidade do regulador transmitir confiança e certeza aos mercados. Parece-me pois que uma medida de resolução bancária deve ser sempre acompanhada de um conjunto de iniciativas de índole reformadora, como forma de reforçar no mais breve espaço de tempo a sua capacidade e credibilização do regulador.

A medida de resolução bancária não pode ignorar os custos políticos e a comunicação da mesma. A excessiva preocupação com a transmissão da mensagem fácil traduzida na "medida sem custos para o erário público" ou um contexto político inconsequente acabam por descredibilizar a própria medida, dificultando pois a sua implementação de forma adequada e pertinente.

A aplicação da Diretiva 2014/59/UE não pode fazer-se fora do sistema jurídico onde ela terá que ser aplicada. A resolução bancária é naturalmente um gerador de litígios que criam incerteza jurídica e custos de contexto adicionais num sistema judicial já debilitado e fragilizado. Assim sendo, no caso português, dadas as deficiências institucionais bem conhecidas, qualquer medida de resolução bancária mal enquadrada arrisca a ser um problema sério que se prolonga no tempo e no espaço e esses custos acrescidos inevitavelmente recaem sobre o erário público.

Parece-me pois que o exemplo do Banco Espírito Santo comprova como uma medida de resolução bancária que não atende aos aspetos políticos, regulatórios e jurídicos termina sendo parte do problema, e não parte da solução que a boa e saudável regulação prudencial exige.

1 A título de exemplo, JON DANIELSSON (Editor), Post-Crisis Banking Regulation: Evolution of Economic Thinking as it Happened on Vox, Londres , 2015, disponível em http://voxeu.org/sites/default/files/file/Post_Crisis_Banking_Regulation_VoxEU.pdf
2 Veja-se VIRAL V.         [ Links ] ACHARYA et al., Market Failures and Regulatory Failures: Lessons from Past and Present Financial Crisis, ADBI Working Paper , 2011, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1757711
3 Veja-se, a título de exemplo, GERARD CAPRIO JR, Financial Regulation after the Crisis: How Did We Get Here, and How do We Get Out,SSRN Working Paper, 2013, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2350564
4 Veja-se KENNETH W. DAM, The Subprime Crisis and Financial Regulation: International and Comparative Perspectives, Chicago Journal of International Law, 10, 2010, pp. 581ss.         [ Links ]
5 Sobre as diferentes teorias de regulação e falha de regulação, veja-se a título de revisão geral, JOHAN DEN HERTOG, Review of Economic Theories of Regulation, Utrecht School of Economics Working Paper, 2010, disponível em http://dspace.library.uu.nl/bitstream/handle/1874/309815/10_18.pdf
6 Veja-se STIJN CLAESSENS/LAURA KODRES, The Regulatory Responses to the Global Financial Crisis: Some Uncomfortable Questions,IMF Working Paper, 2014, disponível em https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2014/wp1446.pdf. Mais recentemente, veja-se esta reflexão disponível em http://www.telegraph.co.uk/finance/economics/12152860/This-crisis-has-been-caused-by-arrogant-central-banks.html.         [ Links ]
7 Aprovada em maio de 2014 mas tornando-se obrigatória apenas mais tarde, isto é, depois da crise do Banco Espírito Santo em Portugal.
8 Nesta reflexão entendo por “custos de contexto” aquilo que em inglês se designa por transaction costs. Sobre essa matéria ver PAUL MILGROM/JOHN ROBERTS, Economics, Organization and Management, Englewood Cliffs, New Jersey, 1992.         [ Links ]
9 MÁRIO COUTINHO DOS SANTOS/NUNO GAROUPA, A Tale of Three Banks: The Good, the Bad and the Ugly?, Cayman Financial Review, 2015, disponível em http://www.compasscayman.com/cfr/2015/04/22/A-tale-of-three-banks--The-good,-the-bad-and-the-ugly-/
10 Sobre o papel do regulador bancário em Portugal, ver MÁRIO COUTINHO DOS SANTOS, Banking Supervision and Regulation in the Euro Area: The Case of Portugal, in Banking in Portugal, Londres, 2016, pp. 39ss.         [ Links ]
11 Ver http://www.dinheirovivo.pt/economia/bcp-e-bpi-admitem-recurso-a-linha-da-troika-bes-nao/
12 A esse propósito ver http://www.jornaldenegocios.pt/mercados/detalhe/aumento_de_capital_do_bes_continua_a_ser_analisado_pela_cmvm.html
13 Ver http://dinheirodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=218091
14 Ver https://www.bportugal.pt/pt-PT/OBancoeoEurosistema/ComunicadoseNotasdeInformacao/Paginas/combp20151229-2.aspx
15 Ver http://observador.pt/2014/09/13/os-motivos-da-saida-de-vitor-bento/
16 Ver http://observador.pt/2015/09/15/venda-rapida-do-novo-banco-falhou-vitor-bento-tinha-razao/
17 Uso “Estado regulatório de primeira qualidade” como tradução livre de first-best regulation, isto é, a regulação que minimiza os custos impostos pela falha de mercado (que justifica a regulação) somados aos custos impostos pela falha de governo (essencialmente captura). Ver discussão por MICHAEL E. LEVINE/JENNIFER L. FORRENCE, Regulatory Capture, Public Interest, and the Public Agenda: Toward a Synthesis, Journal of Law, Economics & Organization, 6, 1990, 167ss.         [ Links ]
18 Ver http://observador.pt/2015/02/23/resolucao-do-bes-e-novo-banco-banco-de-portugal-paga-tres-milhoes-a-assessores-juridicos/
19 Ver http://economico.sapo.pt/noticias/um-relatorio-de-auditoria-que-nao-audita_200603.html
20 Ver https://www.bportugal.pt/pt-PT/OBancoeoEurosistema/Esclarecimentospublicos/Paginas/Contratosadjudica%C3%A7%C3%B5es.aspx
21 Ver https://www.bportugal.pt/pt-PT/OBancoeoEurosistema/ComunicadoseNotasdeInformacao/Paginas/combp20151220.aspx
22 Ver http://observador.pt/2014/09/09/ja-sao-conhecidos-os-pelouros-dos-novos-administradores-banco-de-portugal/
23 Ver http://observador.pt/2016/03/07/antonio-varela-pede-saida-da-supervisao-do-banco-portugal/
24 Ver http://observador.pt/topico/comissao-de-inquerito-ao-bes/
25 Ver http://www.dn.pt/dinheiro/interior/banif-a-ultima-gota-na-chuva-de-criticas-a-carlos-costa-4953403.html
26 Ver http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=789818
27 Inicialmente o PSD concordou com a nacionalização, http://www.jn.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=1037507 . Contudo, já em 2009 e em vésperas de eleições, mostrou profunda discordância, http://visao.sapo.pt/actualidade/economia/psd-considera-nacionalizacao-do-bpn-um-erro-historico=f497052
28 Ver http://www.dinheirovivo.pt/banca/bpn-e-banif-ainda-podem-custar-mais-43-mil-milhoes/
29 Ver, entre outros, http://expresso.sapo.pt/politica/maria-luis-admite-sim-o-novo-banco-pode-ter-custos-para-os-contribuintes=f892777 ; http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/banca___financas/detalhe/passos_esclarece_contribuintes_nao_pagam_bes_directamente_podem_e_pagar_indirectamente.html ; http://expresso.sapo.pt/economia/2015-09-01-Maria-Luis-e-o-Novo-Banco-Digo-o-que-sempre-disse-contribuintes-nao-serao-chamados-a-cobrir-prejuizo ; http://expresso.sapo.pt/legislativas2015/2015-09-30-Bruxelas-divulga-documento-que-contradiz-o-Governo-contribuintes-podem-ter-de-pagar-perdas-do-Novo-Banco
30 Ver http://www.tsf.pt/portugal/politica/interior/passos-coelho-admite-cenario-de-recapitalizacao-da-cgd-por-causa-do-bes-4265401.html
31 Ver https://www.publico.pt/portugal/noticia/o-caso-bes-o-teste-de-stress-a-justica-portuguesa-1667022