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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.2 no.2 Lisboa jul. 2015

 

DIREITO PÚBLICO

O Tribunal Unificado de Patentes: alguns problemas do acesso a medicamentos em Portugal1

The Unified Patent Court: some problems about access to medicines in Portugal

 

Aquilino Paulo AntunesI

IFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: aquilino.paulo.antunes@gmail.com

 

RESUMO

A entrada em vigor, sem reservas relativamente a Portugal, do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, tem implicações desvantajosas para o acesso a medicamentos a custos comportáveis e para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Palavras-chave: patentes, TRIPS, Tribunal Unificado, Lei n.º 62/2011, arbitragem necessária.

 

ABSTRACT

The entry into force unreservedly for Portugal, of the Agreement on the Unified Patent Court has unfavorable implications for access to medicines at affordable costs and the sustainability of the National Health Service.

Keywords: patents, TRIPS, Unified Court, Law No. 62/2011, compulsory arbitration.

 

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve descrição do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes; 2.1. Objectivos; 2.2. Principais traços do regime; 3. Dos aspectos prejudiciais para o acesso a medicamentos; 3.1. Considerações introdutórias; 3.2. A rigidificação das liberdades de conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS; 3.3. Consequências, para o acesso a medicamentos, da aplicação do TUP em Portugal; 3.4. O retrocesso relativamente ao actual regime de composição de litígios com medicamentos e direitos de exclusivo, vigente em Portugal; 4. Conclusões

 

 

1. Introdução

Foi assinado, em 19 de Fevereiro de 2013, por 25 Estados membros da União Europeia, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes (TUP). O Acordo relativo ao TUP só entra em vigor após a sua ratificação por, pelo menos, 13 Estados Membros Contratantes, nos quais deverão incluir-se a Alemanha, a França e o Reino Unido.

O mesmo Acordo, além de atribuir competência exclusiva ao TUP para julgar processos de litígios relacionados com patentes europeias e patentes europeias de efeito unitário, bem como as regras de processo da tramitação dessas acções, consagra também alguns aspectos de direito material referentes às mesmas patentes e certificados complementares de protecção (CCP).

Tal como se demonstra neste trabalho o Acordo relativo ao TUP apresenta implicações desvantajosas para o acesso a medicamentos a custos comportáveis e para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Estas implicações resultam, por um lado, da consagração no Acordo de algumas regras de direito material que limitam a liberdade de conformação legislativa por parte dos Estados Membros Contratantes em matéria de patentes e CCP e dos direitos pelos mesmos conferidos e, por outro, do facto de serem estabelecidas a competência exclusiva do TUP e regras processuais próprias, com a consequente postergação do tribunal arbitral necessário e das regras processuais previstos na Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, para os casos abrangidos pelo mesmo Acordo.

Está neste momento em curso o processo de ratificação pelo Estado português do Acordo em causa. A final, pronunciar-nos-emos desfavoravelmente a essa ratificação sem reserva, na medida em que as desvantagens para acesso a medicamentos, advenientes da aplicação do Acordo, superam as vantagens dela resultantes, atenta a relevância em Portugal das patentes farmacêuticas no mercado total das patentes europeias e nas patentes europeias de efeito unitário 3.

Para a eventualidade de a ratificação pelo Estado português ser concluída sem a adopção de uma reserva que ressalve a aplicação do Acordo às patentes farmacêuticas, o mais provável é que, uma vez mais, se retroceda no acesso dos medicamentos genéricos ao mercado, com os consequentes custos para os utentes e para a sustentabilidade do SNS.

 

2. Breve descrição do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes

Passamos, de seguida, a uma breve descrição do Acordo relativo ao TUP. Este é um acordo de direito internacional outorgado por 25 dos 28 Estados membros da União Europeia; não o outorgaram a Espanha, a Polónia e a Croácia.

Como se referiu, o citado Acordo só entra em vigor após a sua ratificação por, pelo menos, 13 Estados Membros Contratantes, nos quais deverão incluir-se a Alemanha, a França e o Reino Unido, decorrendo neste momento esse processo de ratificação. Actualmente, a ratificação foi apenas formalizada por 6 Estados Membros Contratantes, entre os quais a França. A Assembleia da República aprovou em 10 de Abril de 2015 o decreto para ratificação, estando em curso o respectivo procedimento, sendo que o parecer emitido pela Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas é totalmente omisso quanto ao impacto do Acordo ratificando no que respeita aos litígios com patentes farmacêuticas. De resto, o referido parecer centra-se na questão da existência ou não de pedidos de patentes abrangidas pelo Acordo, olvidando outros impactos, como o que estamos a analisar.

Interligadas com a entrada em vigor do Acordo relativo ao TUP, estão ainda alguns regulamentos da União Europeia, como sejam:

a) O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial;

b) O Regulamento (UE) n.º 1257/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho
de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da proteção unitária de patentes;

c) O Regulamento (UE) n.º 1260/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho
de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da proteção unitária de patentes no que diz respeito ao regime de tradução aplicável.

De seguida, enunciaremos os objectivos visados pelo Acordo relativo ao TUP, bem como os principais traços do regime pelo mesmo consagrado, nas vertentes de direito substantivo e de direito adjectivo, na parte que interessa para a presente análise4.

 

2.1. Objectivos

Tal como decorre dos considerandos do Acordo, o mesmo tem por objectivos: (i) melhorar o respeito pelas patentes; (ii) melhorar a defesa contra reivindicações infundadas e patentes que deveriam ser extintas; e (iii) aumentar a segurança jurídica. O referidos objectivos seriam atingidos através da criação do Tribunal Unificado de Patentes, destinado a compor litígios relacionados com a violação e a validade das patentes.

Os problemas que com esta medida pretende resolver-se são: (i) as dificuldades decorrentes da actual necessidade de recurso aos vários tribunais nacionais para discussão da violação ou validade das patentes, como sejam os custos, a divergência de decisões e a incerteza jurídica; (ii) a prática da escolha do tribunal mais conveniente aos interesses do demandante, baseada na vantagem decorrente das divergências de interpretação do direito harmonizado e do direito processual, bem como na maior ou menor celeridade processual dos tribunais, consoante o demandante pretenda uma mais célere ou mais demorada decisão do pleito, ou nos montantes indemnizatórios fixados nas várias ordens jurídicas.

 

2.2. Principais traços do regime

Vejamos agora os principais traços do regime definido no Acordo relativo ao TUP, relevantes para a apreciação que nos propomos fazer.

No quadro do direito substantivo, o artigo 25.º do Acordo relativo ao TUP, prevê que as patentes europeias de efeito unitário previstas no Regulamento (UE) n.º 1257/2012 “conferem ao seu titular o direito de impedir a terceiros que não tenham o seu consentimento o fabrico (...) e a utilização do produto objeto da patente, bem como (...) a sua detenção em depósito para esses fins” e também “a oferta (...) ou a detenção em depósito para esses fins, de produtos obtidos diretamente pelo processo objeto da patente” cfr. alíneas a) e c). No fundo, os indicados preceitos proíbem a armazenagem do produto na vigência da patente ou do certificado complementar de protecção.

Por seu turno, as alíneas b), d) e e) do artigo 27.º do mesmo Acordo, estabelecem que “os direitos conferidos pela patente não abrangem os atos praticados para fins experimentais relacionados com o objeto da invenção patenteada; os atos praticados unicamente a fim de efetuar os estudos, testes e ensaios previstos (...) no artigo 10.º, n.º 6, da Diretiva 2001/83/CE no que diz respeito a qualquer patente que abranja o produto” na acepção desta Diretiva; “a preparação ocasional de medicamentos em farmácias, para casos individuais, mediante receita médica, ou atos relativos a medicamentos assim preparados”. Os citados preceitos consagram excepções aos direitos conferidos pelas patentes, quando se trate de actividade experimental, quando se trate dos ensaios pré-clínicos, clínicos e toxicológicos necessários à obtenção de uma autorização de introdução no mercado de um medicamento ou quando se trate da preparação de medicamentos manipulados – preparados oficinais ou fórmulas magistrais – por parte de uma farmácia.

O artigo 29.º do Acordo relativo ao TUP estabelece que “os direitos conferidos pela patente europeia não são extensivos aos atos respeitantes ao produto coberto por essa patente após a colocação desse produto no mercado da União pelo titular da patente ou com o seu consentimento ...”. Trata-se do esgotamento, de âmbito regional, dos direitos conferidos pela patente europeia5.

Por último, o artigo 30.º do Acordo relativo ao TUP estabelece que “os certificados complementares de proteção conferem os mesmos direitos que os conferidos pelas patentes e são sujeitos às mesmas limitações e obrigações”. No essencial, este artigo reproduz o estabelecido no artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009, relativo ao certificado complementar de protecção para os medicamentos.

No quadro do direito adjectivo, o Acordo relativo ao TUP consagra no n.º 1 do seu artigo 32.º a competência exclusiva do mesmo Tribunal para um conjunto de acções relacionadas com patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e certificados complementares de protecção, como sejam as que assentem em violação ou ameaça de violação; as de simples apreciação negativa; os procedimentos cautelares; as de extinção de patentes e de declaração de nulidade dos certificados, bem como os pedidos reconvencionais; de responsabilidade civil por violação ou por protecção provisória, etc. O n.º 2 do mesmo artigo consagra, em termos meramente residuais, a competência dos tribunais nacionais para julgarem as acções “que não sejam da competência exclusiva do Tribunal”.

Além disso, o Acordo relativo ao TUP prevê, na sua Parte III (artigos 40.º e seguintes), as disposições de organização do Tribunal e de tramitação processual. Isto é, o Acordo prevê o processo próprio a observar pelo Tribunal na tramitação das acções e procedimentos perante ele intentados.

 

3. Dos aspectos prejudiciais para o acesso a medicamentos

Como demonstraremos de seguida, o Acordo relativo ao TUP apresenta, no seu âmbito de aplicação, aspectos que são prejudiciais para o acesso a medicamentos a custos comportáveis, em Portugal.

Antes de mais, recorde-se, de um modo muito simplista, que a matéria dos direitos de propriedade industrial relativos a medicamentos, para além de diversos instrumentos específicos, como sejam as Convenções da União de Paris e da Patente Europeia, encontra-se essencialmente consagrada nos seguintes instrumentos, que agora enunciamos por se tornarem relevantes para a presente apreciação: o Acordo ADPIC/TRIPS6; a Declaração de Doha de 14 de Novembro de 2001 relativa ao Acordo TRIPS e à Saúde Pública 7; o Regulamento (CE) n.º 469/2009, relativo aos certificados complementares de protecção de medicamentos, e o Código da Propriedade Industrial.

Recorde-se igualmente que uma parte significativa dos litígios relacionados com medicamentos e direitos de propriedade industrial respeitam a patentes europeias.

 

3.1. Considerações introdutórias

Os preceitos acima indicados do Acordo relativo ao TUP são, sob o ponto de vista do acesso a medicamentos a custos comportáveis, susceptíveis de críticas. Em primeiro lugar, porque procedem à rigidificação das liberdades de conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS.

Em segundo lugar, porque, nalguns casos, conduzem a um retrocesso do regime que actualmente vigora na União Europeia e em Portugal, no que respeita ao regime da obtenção das autorizações administrativas – de introdução no mercado, de autorização de preço de venda ao público e de comparticipação pelo Estado – por recriar condições aptas ao bloqueio, pelos titulares de direitos de propriedade industrial, da obtenção dessas autorizações.

Em terceiro lugar, porque, no que respeita às patentes europeias e patentes europeias de efeito unitário, contendem com o regime de composição de litígios instituído em Portugal com a Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, que tem estado a permitir a obtenção de decisões com o valor de sentença de mérito produzidas num curto espaço de tempo.

De seguida, veremos estes aspectos com maior detalhe.

 

3.2. A rigidificação das liberdades de conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS

O Tratado que criou a Organização Mundial do Comércio (Tratado da OMC), celebrado em Marraquexe na sequência do Uruguay Round e em vigor em Portugal desde 1 de Janeiro de 1995, tem por objectivo, entre outros, reforçar os direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio 8.

Do Anexo IC ao Tratado da OMC consta o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (Acordo ADPIC/TRIPS), que consagra as normas de reforço dos mencionados direitos de propriedade intelectual.

Posteriormente, no âmbito da Agenda de Doha para o Desenvolvimento, também sob a égide da Organização Mundial de Comércio, foi proferida a declaração ministerial de 14 de Novembro de 2001, contendo a declaração sobre o Acordo ADPIC/TRIPS e a Saúde Pública. A mesma declaração (Declaração de Doha) preconiza, no essencial, que os outorgantes do Tratado explorem as margens de flexibilidade admitidas pelo mencionado Acordo, com o objectivo de garantirem o acesso a medicamentos9.

Temos para nós que a Declaração de Doha configura um verdadeiro princípio interpretativo das disposições do Acordo ADPIC/TRIPS, que, por isso, deve ser tido em conta pelos respectivos contratantes e que, por isso, deve permitir que as disposições do Acordo sejam interpretadas e aplicadas no sentido mais favorável ao acesso a medicamentos10. De resto, a Declaração de Doha foi aprovada por unanimidade de todos os Membros da OMC, pelo que, apesar de não observado o disposto no n.º 2 do artigo IX do Tratado da OMC, vale como importante elemento interpretativo do Acordo ADPIC/TRIPS, o qual é, deste modo, moldado pela vontade dos seus subscritores.

Existe quem restrinja o alcance da Declaração de Doha apenas às importações paralelas, às licenças compulsórias e à moratória da aplicação do Acordo para os países em desenvolvimento11. Porém, e ntendemos que esse alcance não se confina apenas a estas, antes se alargando também a outras matérias em que pelo Acordo ADPIC/TRIPS seja concedida aos Membros uma determinada margem ou liberdade de conformação legislativa12.

Adiante, referir-nos-emos indistintamente às flexibilidades como às demais liberdades de conformação admitidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS apenas como liberdades de conformação.

Com interesse para a presente análise e de entre as liberdades de conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS destaca-se, desde logo, o disposto no seu artigo 6.º, que prevê o esgotamento do direito para efeitos de importações paralelas.

Depois, o artigo 30.º do Acordo ADPIC/TRIPS. Este preceito permite aos Membros a consagração de excepções ao regime ali previsto em matéria de patentes, sob as condições de essas excepções (i) não colidirem injustificavelmente com a exploração normal da patente e (ii) não prejudicarem injustificavelmente os legítimos interesses do titular da patente, ponderados os legítimos interesses de terceiros. Este artigo constitui o alicerce jurídico, por um lado, da excepção de uso experimental ou “Cláusula Bolar”, prevista na alínea c) do artigo 102.º do Código da Propriedade Industrial e no n.º 1 do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, respectivamente, e, por outro, das licenças compulsórias 13.

Por último, o artigo 28.º do Acordo ADPIC/TRIPS, sobre o âmbito da protecção conferida pela patente. Neste âmbito, destaca-se, em resumo, o direito que assiste ao titular da patente de impedir que qualquer terceiro, sem o seu consentimento, fabrique, utilize, ponha à venda, venda ou importe para qualquer destes efeitos o produto patenteado ou, tratando-se de patente de processo, o produto obtido directamente pelo processo patenteado. Este é um preceito que consagra a protecção mínima conferida pela patente e que admite a previsão de uma protecção mais ampla a nível nacional, conforme resulta do n.º 1 do artigo 1.º do Acordo ADPIC/TRIPS.

 

3.3. Consequências, para o acesso a medicamentos, da aplicação do TUP em Portugal

Como se demonstrará de seguida, o Acordo relativo ao TUP procede à rigidificação das mencionadas liberdades de conformação.

Desde logo, quanto às importações paralelas. Esta figura permite o acesso a medicamentos a custos comportáveis, porque um produto legalmente colocado em certo mercado pode, com o incentivo do diferencial entre os preços praticados nos dois locais, ser daí importado e colocado noutro mercado, desde que, tratando-se de medicamento, o produto já se encontre legalmente introduzido neste mercado14. Para tanto, é relevante a questão do esgotamento do direito, cujo âmbito pode, à luz do Acordo ADPIC/TRIPS, ser nacional, regional ou internacional, sendo este o mais favorável e o primeiro o menos favorável a este mecanismo15. Sob a perspectiva dos direitos conferidos pela patente, o mecanismo do esgotamento do direito afasta a possibilidade de objecções por parte do titular daqueles direitos. Sob o ponto de vista da protecção de outros interesses, como é o caso da saúde pública, o importador paralelo ainda tem de cumprir um conjunto de obrigações previstas na nossa lei (artigos 80.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, na sua redacção actual).

No nosso país, o regime do esgotamento do direito é regional, por força do direito da União Europeia, o que já constitui uma solução que não dá cabal cumprimento à Declaração de Doha, pois a União Europeia não explorou toda a liberdade de conformação que o Acordo ADPIC/TRIPS lhe permite. A situação será agora substancialmente agravada, caso o Acordo relativo ao TUP entre em vigor, pois haverá mais um instrumento de direito internacional a restringir o âmbito do esgotamento do direito ao território da União Europeia (cfr. artigo 29.º do Acordo relativo ao TUP).

Regista-se também um retrocesso por referência ao regime que actualmente vigora na União Europeia e em Portugal. Sob esta perspectiva, destaca-se, no que se refere aos direitos conferidos pela patente, a divergência entre o preceituado no artigo 28.º do Acordo ADPIC/TRIPS e no n.º 1 do artigo 101.º do Código da Propriedade Industrial.

O mesmo artigo 101.º confere ao titular da patente o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados.

Do cotejo do artigo 101.º com o artigo 28.º do Acordo ADPIC/TRIPS, resulta a existência no direito nacional de três elementos que não estão previstos neste Acordo: a armazenagem, a utilização e a posse do produto patenteado. Saliente-se que o artigo 28.º tem de ser lido, na parte que ora interessa, em conjugação com a alínea c) do artigo 102.º do mesmo Código, segundo a qual os direitos conferidos pela patente não abrangem os actos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo experiências para preparação dos processos administrativos necessários à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, não podendo, contudo, iniciar-se a exploração industrial ou comercial desses produtos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege.

Por isso, das três referidas inovações do direito nacional previstas no artigo 101.º, sobra apenas o problema da armazenagem, na medida em que a utilização e posse do medicamento para a preparação do procedimento administrativo tendente à autorização da colocação do medicamento no mercado tem sido considerada admitida pela alínea c) do artigo 102.º do Código da Propriedade Industrial.

Ora, quanto à armazenagem, é certo que o n.º 1 do artigo 1.º do Acordo ADPIC/TRIPS permite que os Estados contratantes alarguem o âmbito da protecção resultante do mesmo Acordo.

Não obstante, ao adoptar a redacção que consta do n.º 2 do artigo 101.º do Código, o legislador português ofendeu um princípio basilar em matéria de acesso aos medicamentos, que é o de que o concorrente produtor de um medicamento genérico deve poder ter tudo preparado para entrar no mercado no dia seguinte ao da extinção dos direitos de propriedade industrial incidentes sobre o medicamento. De facto, ao conferir ao titular da patente o direito de impedir a armazenagem do produto objecto de patente16, o legislador português parece ter contribuído para dificultar a vida a quem carece de dispor de um lote de medicamentos, devidamente produzido e armazenado para, no dia seguinte ao da extinção dos direitos de propriedade industrial, entrar no mercado.

Abre-se aqui um parêntesis para fazer notar que este princípio, que, como veremos, também resulta do Acordo ADPIC/TRIPS, foi reforçado com a entrada em vigor da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro. Esta lei esclarece que os procedimentos e as autorizações de introdução no mercado, autorização de preço de venda ao público de medicamentos e autorização de comparticipação, não são susceptíveis de violar direitos de propriedade industrial e, por isso, não podem ser revogadas, suspensas ou anuladas com fundamento na subsistência desses direitos. Com efeito, deste modo, veio permitir-se que o titular de um medicamento genérico pudesse, na vigência de uma patente ou de um certificado complementar de protecção, obter todas as autorizações que o habilitam a entrar no mercado.

A este propósito, importa salientar que, alguns anos antes, o órgão de composição de litígios e de interpretação do Acordo ADPIC/TRIPS, no caso Canadá/União Europeia, aceitou uma norma jurídica segundo a qual a empresa produtora de genéricos pode, na vigência da patente, obter a autorização de introdução no mercado, bem como produzir e aprovisionar as quantidades necessárias do seu medicamento, tendo em vista a obtenção daquela autorização, com o objectivo de entrar com o medicamento no mercado imediatamente após a extinção da patente. Tal decisão fundamentou-se no facto de se tratar de uma excepção limitada aos direitos de exclusivo, que não colide de modo injustificável com a exploração normal da patente e que não prejudica de firma injustificável os legítimos interesses do titular da patente, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros17.

O referido órgão entendeu também que uma outra norma jurídica, que visava permitir o fabrico e armazenagem, com intuito comercial, nos últimos seis meses de vigência da patente não constituía uma excepção limitada, pelo seu impacto nos direitos conferidos pela patente 18. O órgão de composição de litígios, embora admita que a prorrogação “de facto” dos direitos conferidos pela patente pode ser uma consequência dos direitos estabelecidos no artigo 28.º do Acordo, não exclui totalmente a possibilidade de fabrico e armazenagem antes da extinção da patente; apenas considera que o “limite” de seis meses previsto na norma canadiana não é suficiente para constituir uma excepção limitada aos direitos conferidos pela patente. Este facto deixa em aberto a possibilidade de se permitir o fabrico e armazenagem num horizonte temporalmente mais reduzido do que seis meses, por exemplo, no último mês de vigência da patente.

Parece, por isso, poder respigar-se desta decisão que, por um lado, a prorrogação “de facto” dos direitos conferidos pela patente não configura um interesse legítimo do respectivo titular.

Por outro lado, se a armazenagem, mesmo com intuitos comerciais, constituir uma excepção suficientemente limitada aos direitos conferidos pela patente, a mesma é conforme com o artigo 30.º do Acordo, visto que a prorrogação “de facto” da protecção conferida pela patente não constitui um direito legítimo do titular.

Este entendimento do órgão de composição de litígios, adoptado em 2000, deve ser lido à luz da Declaração de Doha a que vimos fazendo referência, em sentido ainda mais favorável ao acesso precoce ao mercado, tendo em conta o princípio da interpretação e aplicação favorável ao acesso a medicamentos e à protecção da saúde pública que resulta da mesma Declaração.

Com efeito, o artigo 30.º do Acordo ADPIC/TRIPS manda ter em conta os “legítimos interesses de terceiros” na ponderação da adequação da excepção nele prevista. Como tanto os interesses dos concorrentes que pretendem aceder ao mercado como os interesses dos cidadãos em aceder a medicamentos a custos comportáveis e dos Estados em garantir a sustentabilidade orçamental são legítimos – e, nalguns casos, constitucionalmente garantidos – parece claro que a autorização da armazenagem com a finalidade única de permitir o início da comercialização do genérico no dia seguinte ao da extinção da patente é compatível com o mesmo Acordo. Além disso, tal possibilidade constitui também um corolário lógico do princípio que preside à permissão da excepção regulatória. Recorde-se que esta excepção permite que seja também produzida, detida e armazenada a quantidade de medicamento necessária à obtenção da autorização administrativa de que depende comercialização.

Acresce que, como se referiu, o artigo 28.º do Acordo não confere expressamente ao titular da patente a faculdade de proibir a armazenagem – embora, como se salientou, o Acordo permita a sua consagração pelos Membros nos respectivos ordenamentos jurídicos, por via extensão admitida pelo n.º 1 do artigo 1.º. Ora, o facto de a proibição da armazenagem, não constar do elenco dos direitos conferidos pela patente tem de revestir também relevância interpretativa, no quadro do Acordo, no sentido de que esse não é o cerne da protecção conferida pela patente. Com efeito, à excepção da colocação à venda e da venda, os demais direitos previstos no artigo 28.º do Acordo destinam-se apenas a reduzir o risco de comercialização – este, sim, o facto susceptível de verdadeiramente violar os direitos de exclusivo conferidos pela patente.

Esta discrepância do direito nacional, que consiste na previsão da proibição da armazenagem como direito conferido pela patente, embora constitua, como se salientou, o exercício de uma faculdade permitida pelo Acordo no n.º 1 do seu artigo 1.º, é, naturalmente, contrária à orientação decorrente da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a saúde pública. É contrária, porque poderá ser interpretada em termos que dificultam o acesso a medicamentos e prorrogam de facto, que não de direito, os privilégios conferidos pela patente. A mesma prorrogação, tal como o próprio órgão de composição de litígios reconhece, não constitui interesse legítimo do titular da patente.

Ora, esta situação será agravada, se o Acordo relativo ao TUP vier a entrar em vigor. Com efeito, as alíneas a) e c) do artigo 25.º deste Acordo, conferem ao titular de uma patente europeia de efeito unitário o direito de impedir terceiros de, sem o seu consentimento, deterem em depósito o produto objecto da patente ou o produto obtido directamente pelo processo objecto da patente.

Numa tal hipótese, deixa de ser possível a armazenagem de genéricos de medicamentos protegidos por uma patente europeia de efeito unitário, facto que relança novamente a questão de saber se o titular do medicamento genérico pode, ou não, ter tudo pronto na vigência da patente, de modo a poder entrar no mercado no dia imediatamente após a extinção dessa patente.

Esta dúvida é ainda agravada pelo disposto na alínea b) do artigo 27.º do Acordo relativo ao TUP. Na realidade, o mesmo preceito refere que os direitos conferidos pela patente não abrangem os actos praticados unicamente com a finalidade de efectuar os estudos, testes e ensaios previstos no n.º 6 do artigo 10.º da Directiva n.º 2001/83/CE alterada.

O mesmo preceito nada diz quanto aos procedimentos e decisões administrativos necessários à autorização de introdução do medicamento genérico no mercado. Por isso, poderá suscitar-se a dúvida de saber se, ao nível da União Europeia, se entenderá esses procedimentos e decisões como estando englobados na excepção da citada alínea d) do artigo 27.º do Acordo relativo ao TUP.

Recorde-se que, aquando da adopção da Directiva n.º 2004/27/CE, que alterou a Directiva n.º 2001/83/CE, a Comissão e o Conselho da União Europeia aprovaram a Posição Comum, n.º 61/2003, onde esclarecem que a decisão de concessão de uma autorização de introdução no mercado e o procedimento a ela conducentes são meramente administrativos e, por isso, insusceptíveis de violar direitos de propriedade industrial.

Ora, atendendo a que esta doutrina não é, de uma qualquer forma, retomada no quadro da alínea d) do citado artigo 27.º do Acordo relativo ao TUP, a primeira questão que imediatamente se colocará é a de saber se, também aqui, a mesma doutrina deverá valer ou se, pelo contrário, a mesma deverá considerar-se derrogada pela redacção adoptada no mesmo Acordo.

Por conseguinte, parece estar a abrir-se caminho para um novo foco de litigância nesta matéria, que poderá prejudicar o acesso a medicamentos a custos comportáveis, por retardar a entrada dos genéricos no mercado e, simultaneamente, prejudicar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, conhecida como é a influência que os medicamentos genéricos têm na redução da despesa pública com medicamentos19.

 

3.4. O retrocesso relativamente ao actual regime de composição de litígios com medicamentos e direitos de exclusivo, vigente em Portugal

Por último, o Acordo relativo ao TUP constitui ainda um evidente retrocesso, por referência ao regime de composição de litígios relacionados com direitos de propriedade industrial, entre medicamentos de referência e medicamentos genéricos, vigente no nosso país.

a) A Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro20

Com efeito, a já referida Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, veio sujeitar estes litígios a arbitragem necessária, prevendo uma tramitação apta a conduzir a decisões de mérito céleres.

Esta lei surgiu com o objectivo de reduzir ou eliminar o bloqueio nos tribunais administrativos das decisões de autorização de introdução no mercado, preço de venda ao público e comparticipação, que vinha a registar-se à época.

Por isso, o legislador teve em conta diversos aspectos. Em primeiro lugar, ponderou que, se esse objectivo fosse alcançado – como efectivamente veio a ser – as empresas titulares de direitos de propriedade industrial teriam a sua posição afectada negativamente, porquanto passariam de uma situação em que já existia uma tutela, ou uma expectativa de tutela, favorável aos seus interesses no foro administrativo para uma situação em que a tutela teria de ser obtida junto do foro da propriedade intelectual, mediante um processo moroso e sob a forma ordinária, ainda que estivesse ao seu alcance o procedimento cautelar, que à época revestia morosidade significativa.

Em segundo lugar, o legislador considerou a estratégia de recurso aos tribunais administrativos, pelos titulares de direitos de propriedade industrial, não acompanhada de processos paralelos no foro da propriedade intelectual, onde se discutisse a existência de violação da patente. Esta estratégia indiciava que o recurso ao foro administrativo visava apenas o retardamento do acesso dos genéricos ao mercado e não a obtenção de uma decisão de mérito quanto à questão de fundo.

Em terceiro lugar, o legislador considerou que, enquanto os titulares dos direitos de propriedade industrial dispunham de duas vias de tutela cautelar – a do foro administrativo e a do foro da propriedade industrial – as empresas produtoras de genéricos não dispunham de qualquer mecanismo processual célere para forçar a obtenção de uma decisão que lhes “abrisse o caminho” para o mercado.

Por último, era inequívoco que, ao lado dos interesses das empresas de genéricos, estavam também o interesse do Estado na sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e os direitos à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como os direitos dos consumidores, constitucionalmente consagrados.

Para atingir os objectivos visados, poderia optar-se por um de três caminhos para composição destes litígios: (i) criar um procedimento cautelar; (ii) adoptar um processo especial no contencioso da propriedade intelectual; (iii) consagrar a arbitragem necessária como meio exclusivo 21.

A criação de uma via meramente cautelar era insuficiente, porque, na apreciação perfunctória da aparência do bom direito, os tribunais tenderiam a valorizar o título da patente em detrimento da apreciação de fundo quanto à validade da mesma patente. Também a criação de um processo especial foi considerada insatisfatória.

Porque na área dos direitos de propriedade intelectual a arbitragem necessária já era conhecida, noutros países e a nível nacional (n.º 4 do artigo 221.º do Código dos Direitos de Autor22), o legislador optou por este mecanismo.

Esta opção visou ainda criar condições de concorrência e de equilíbrio da distribuição do impacto pelos destinatários do novo regime jurídico, por um lado, evitando que acedessem ao mercado genéricos em violação de direitos de propriedade industrial e, por outro, permitindo que acedessem ao mercado aqueles que nenhuma violação cometessem.

A eficiência da solução escolhida seria tanto maior quanto a decisão de mérito fosse tomada em momento mais precoce relativamente à entrada do genérico no mercado. Por outras palavras, a empresa produtora do genérico não teria incentivo para aceder ao mercado e não incorreria nas despesas necessárias a esse acesso – tais como as decorrentes da produção de lotes de medicamentos, armazenagem, promoção dos produtos, etc. – se já houvesse uma decisão de primeira instância no sentido da existência de violação do direito de propriedade. Assim, evitar-se-iam prejuízos para essa empresa como também se evitariam os prejuízos, para as empresas titulares de direitos de propriedade industrial, decorrentes da concorrência dos genéricos ilegitimamente comercializados.

Nesta perspectiva, o processo foi gizado de modo a iniciar-se o mais cedo possível e ser dotado de celeridade que permita uma decisão de mérito no prazo médio de decisão pelo INFARMED-Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (INFARMED) dos pedidos de autorização de introdução no mercado dos medicamentos genéricos. Deste modo, criaram-se condições para que, à data da concessão dessa autorização, já se saiba, em regra, se o genérico em causa viola, ou não, direitos de propriedade industrial.

Com este procedimento, definem-se os direitos de propriedade industrial à partida e reduz-se a margem de incerteza quanto a esses direitos, pelo que tendem a ser menos atractivas as soluções contenciosas e passam a ser mais compensadoras as soluções negociadas, em que as partes procurem maximizar os seus benefícios e minimizar eventuais prejuízos.

Ao mesmo tempo, a solução legislativa reduziu a interligação entre o contencioso da propriedade industrial, por um lado, e os procedimentos administrativos de autorização de introdução no mercado, preço de venda ao público e comparticipação, por outro, de modo a evitar o patent linkage e a consequente captura de renda de monopólio decorrente do prolongamento artificial dos privilégios conferidos pelos direitos de propriedade industrial 23. Assim e embora o início da contagem do prazo de 30 dias para recurso à arbitragem esteja ligado a um facto que indicia o propósito de acesso ao mercado de um novo genérico, o certo é que, verificado esse facto, o processo arbitral, por um lado, e os aludidos procedimentos administrativos, por outro, seguem caminhos paralelos sem jamais voltarem a tocar-se 24.

A tramitação gizada pelo legislador é simples. O INFARMED publicita, na sua página electrónica, a existência de um pedido de autorização de introdução no mercado de um genérico, que inclui certas informações sobre o mesmo e sobre o medicamento de referência. Com esta publicitação, inicia-se um prazo de 30 dias para os titulares de eventuais direitos de propriedade industrial recorrerem à arbitragem necessária, decorrido o qual, caso não se verifique esse recurso, o genérico não pode ser impedido de aceder ao mercado. Nesta hipótese, nem sequer há litígio e fica precludido o direito de impedir a comercialização do medicamento genérico publicitado25.

A empresa produtora do genérico dispõe de igual prazo de 30 dias para contestar, contado da notificação para o efeito pelo tribunal arbitral 26. Não o fazendo no referido prazo, a mesma empresa não poderá legitimamente colocar o genérico no mercado.

As provas são indicadas pelas partes com os articulados (actualmente, este mecanismo já vigora também no processo civil) e a audiência de produção da prova a prestar oralmente deve ter lugar no prazo de 60 dias após a apresentação da contestação27.

Até à decisão arbitral, nada impede que o genérico aceda ao mercado (excepto a obrigação de respeitar direitos de propriedade industrial válidos e eficazes, se for o caso), visto que, como referido, se trata de processos paralelos. Ou seja, se o genérico já dispuser de autorização de introdução no mercado, a pendência do processo arbitral não o impede desse acesso, a menos que seja proferida decisão cautelar no âmbito do litígio 28.

A falta de contestação ou a decisão arbitral são notificadas às partes, ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial e ao INFARMED 29. Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação, com efeito meramente devolutivo, pelo que a decisão arbitral se mantém até que o tribunal de segunda instância se pronuncie em definitivo30.

Os casos omissos são resolvidos pelo regulamento do centro de arbitragem, institucionalizada ou não institucionalizada, e subsidiariamente pela lei da arbitragem voluntária.

A prática já demonstrou ser possível alcançar uma decisão arbitral com esta tramitação em cerca de seis meses. Tendo em conta que o prazo de concessão de uma autorização de introdução no mercado é de 210 dias, a decisão arbitral pode, em regra, ser proferida antes da concessão daquela autorização.

b) As implicações decorrentes do Acordo relativo ao TUP

Vejamos agora em que medida é que o Acordo relativo ao TUP poderá colocar em causa o regime de composição destes litígios vigente no nosso país, quando estejam em causa patentes europeias ou patentes europeias de efeito unitário.

Desde logo e como vimos supra na breve descrição que fizemos, o mesmo Acordo atribui ao TUP a competência exclusiva para dirimir os litígios relacionados com patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e certificados complementares de protecção, como sejam as que assentem em violação ou ameaça de violação; as de simples apreciação negativa; os procedimentos cautelares; as de extinção de patentes e de declaração de nulidade dos certificados, bem como os pedidos reconvencionais; de responsabilidade civil por violação ou por protecção provisória (cfr. n.º 1 do artigo 32.º do Acordo relativo ao TUP).

Por isso, o Acordo relativo ao TUP, por resultar de um instrumento de direito internacional, prevalece no ordenamento jurídico nacional sobre a lei ordinária, como é o caso da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro (cfr. n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa e n.º 2 do artigo 7.º do Código Civil). Pelo que a competência para a composição destes litígios deixa de ser competência do tribunal arbitral necessário para ser competência do TUP31. De resto, o facto de o artigo 35.º do Acordo relativo ao TUP prever a disponibilização pelo mesmo Tribunal de meios para mediação e arbitragem destes litígios, demonstra o carácter amplo e pleno da competência atribuída ao TUP e a clara intenção de banir qualquer outro meio de composição destes litígios.

Mas, muito mais grave do que a revogação da competência do tribunal arbitral necessário para a composição destes litígios, é o facto de o Acordo relativo ao TUP prever um processo próprio para a tramitação das acções e procedimentos perante ele intentados.

Isto significa que os titulares de direitos conferidos por patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e seus CCP, no caso de litígios relacionados com esses direitos que respeitem a medicamentos de referência e a medicamentos genéricos, deixam, por exemplo, de ter o prazo peremptório de 30 dias, após a publicação pelo INFARMED da apresentação de um pedido de autorização para um genérico, para recorrerem a uma via contenciosa de composição do litígio. Com o Acordo relativo ao TUP, poderão, em regra, fazê-lo no prazo de cinco anos após o conhecimento do facto violador (cfr. artigo 72.º do Acordo relativo ao TUP). Na verdade, não parece que o prazo de 30 dias previsto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, possa subsistir em vigor, dado que se trata de norma de carácter processual, directamente derrogada pelo processo definido no Acordo relativo ao TUP, e dado que a aplicação do direito nacional permitida pelo artigo 24.º do mesmo Acordo parece respeitar apenas a direito nacional substantivo e não adjectivo.

Assim, a possibilidade de obtenção de uma decisão de mérito com valor de sentença, sobre a existência de violação de patente europeia ou patente europeia de efeito unitário que protege um medicamento de referência, ainda antes da concessão pelo INFARMED de uma autorização de introdução no mercado para o genérico, deixará de ser possível.

Esta é uma situação menos eficiente do que a actualmente vigente em Portugal, na medida em que, na maioria dos casos, a decisão quanto à existência de violação da patente europeia, ou patente europeia de efeito unitário, ou seu CCP, será proferida muito tempo depois do início da comercialização do genérico. Isto significa que não se evitará que o titular deste medicamento incorra nos custos necessários à entrada no mercado e que o titular dessa patente sofra os prejuízos decorrentes da sua violação.

Além disso, não se evitará que os doentes comecem a ser tratados com um genérico que, no caso de posterior declaração de violação da patente, será retirado do mercado, pelo que esses doentes terão de alterar a sua medicação. Com a agravante de que o SNS terá de suportar maiores encargos com a aquisição do mesmo fármaco, se houver lugar à extinção do grupo homogéneo, conhecida como é a influência que os genéricos têm na redução dos custos para o Estado com a comparticipação de medicamentos, por, nomeadamente, darem lugar à aplicação do Sistema de Preços de Referência, passando essa comparticipação a incidir sobre um preços de referência e não sobre o preço de venda ao público32.

É, pois, inequívoco que a solução prevista no Acordo relativo ao TUP, se for aplicada sem reserva, constitui um retrocesso relativamente ao regime vigente em Portugal.

 

4. Conclusões

O Acordo relativo ao TUP tem aspectos negativos para o acesso a medicamentos a custos comportáveis e para a sustentabilidade do SNS, que decorrem da limitação da liberdade de conformação legislativa por parte dos Estados Membros Contratantes em matéria de patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e seus CCP e dos direitos pelos mesmos conferidos, bem como do facto da atribuição de competência exclusiva do TUP e do estabelecimento de regras processuais próprias, com a consequente postergação do tribunal arbitral necessário e das regras processuais previstos na Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.

Está neste momento em curso o processo de ratificação pelo Estado português do Acordo em causa, sendo nosso entendimento que a ratificação, a ter lugar, deveria ficar sujeita a reserva quanto às patentes farmacêuticas, atendendo a que as desvantagens para o acesso a medicamentos são superiores a eventuais vantagens resultantes da aplicação do Acordo no nosso país.

 

1 O presente trabalho corresponde, com adaptações de estilo, ao texto apresentado na obra de homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, da iniciativa da Associação Portuguesa de Direito Intelectual.
2 Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, Doutorando pela mesma Faculdade, Advogado. Endereço electrónico: aquilino.paulo.antunes@gmail.com.
3 Em sede de processo de ratificação pela Assembleia da República, igualmente se pronunciaram desfavoravelmente o Senhor Prof. Doutor Rui Medeiros, a Associação Portuguesa dos Consultores em Propriedade Intelectual, a Associação Internacional para a Proteção da Propriedade Intelectual e a Confederação Empresarial de Portugal.
4 Para maiores desenvolvimentos sobre o TUP, cfr. PEDRO SOUSA E SILVA, “O Tribunal Unificado de Patentes”, in Revista de Direito Intelectual, n.º 2014-I, 243-257, APDI, Coimbra, 2014.
5 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, cfr. AQUILINO PAULO ANTUNES, “O Acordo ADPIC/TRIPS no Direito Português: A Perspectiva do Acesso a Medicamentos e da Saúde Pública”, in Direito Industrial, VIII, APDI, Coimbra, 2012, pp. 161 e ss; PEDRO SOUSA E SILVA, Direito Comunitário e Propriedade Industrial: O Princípio do Esgotamento dos Direitos, Stvdia Iuridica, 17, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1996; PEDRO SOUSA E SILVA, O “Esgotamento” do Direito e as “Importações Paralelas”: Desenvolvimentos Recentes da Jurisprudência Comunitária e Nacional, Paper, 2000.
6 Cfr. infra n.º 3.2.
7 Cfr. infra n.º 3.2.
8 SUSAN K. SELL, Private power, public law: The globalization of intellectual property rights, Cambridge studies in international relations, Cambridge, UK, 2003, p. 7; AQUILINO PAULO ANTUNES, “O Acordo”, pp. 149 e ss.
9 Cfr. Parágrafos 4 e 5. A Declaração de Doha encontra-se disponível em: http://docsonline.wto.org/imrd/directdoc.asp?DDFDocuments/t/WT/Min01/DEC2.doc
10 Cfr. AQUILINO PAULO ANTUNES, “O Acordo”, pp. 152 e ss e, também neste sentido,CHRISTOPHE BELLMANN/ GRAHAM DUTFIELD/ RICARDO MELÉNDEZ-ORTIZ , Trading in knowledge: development perspectives on TRIPS, trade, and sustainability, London, UK, 2003, p. 151.
11 MEIR PEREZ PUGATCH, The International Political Economy of Intellectual Property Rights, UK, 2004, pp. 224 e ss; PEDRO INFANTE MOTA, O Sistema Gatt/OMC Introdução Histórica e Princípios Fundamentais, Coimbra, 2005, pp. 497-506.
12 AQUILINO PAULO ANTUNES, “O Acordo”, pp. 156 e ss.
13 AQUILINO PAULO ANTUNES, “O Acordo”, pp. 156 e ss; CAROLYN DEERE, The implementation game: The TRIPS agreement and the global politics of intellectual property reform in developing countries, Oxford, New York, 2009, pp. 80 e ss; FREDERICK M. ABBOTT/RUDOLPH V. VAN PUYMBROECK, Compulsory licensing for public health: A guide and model documents for implementation of the Doha Declaration paragraph 6 decision, World Bank working paper no. 61, Washington, D.C., 2005, pp. 9 e 22.
14 CAROLYN DEERE, The implementation, p. 75.
15 CAROLYN DEERE, The implementation, p. 75.
16 É certo que poderia fazer-se uma leitura mais fina do teor do preceito e considerar que o “produto objecto de patente” é apenas aquele sobre o qual incide a patente e não o produto genérico, pelo que o direito de impedir aqueles actos apenas diria respeito ao produto A e não ao seu genérico B, mas uma tal leitura – que apesar de tudo é legítima, na medida em que se trata de matéria de restrição de direitos dos concorrentes e, por isso, deve ser interpretada restritivamente – retiraria alcance prático ao que estamos a analisar.
17 Cfr. JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes: Estudos de Propriedade Industrial, Coimbra, 2008, pp. 99 e ss. Cfr. “WORLD TRADE ORGANIZATION, WT/DS114/R, 17 March 2000, (00-1012), CANADA – PATENT PROTECTION OF PHARMACEUTICAL PRODUCTS”, pp. 157 e ss, disponível em http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/7428d.doc
18 JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, Medicamentos, pp. 153 e ss.
19 Cfr. AQUILINO PAULO ANTUNES, “Alguns aspectos da autorização e do acesso ao mercado de medicamentos em Portugal”, in Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Ano 2, n.º 14 de 2013, pp., 16127 e ss e 16147 e ss.
20 Cfr., para maiores desenvolvimentos sobre o tema, AQUILINO PAULO ANTUNES, “Medicamentos e direitos de propriedade industrial: Análise da génese e aplicação da Lei n.º 62/2011”, in Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Ano 3, n.º 3 de 2014, pp. 1616 e ss; DÁRIO MOURA VICENTE, “O Regime Especial de Resolução de Conflitos em Matéria de Patentes (Lei n.º 62/2011)”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Volume IV, Outubro-Dezembro, 2012, pp. 971 e ss; JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, “A arbitrabilidade dos litígios e a dedução de providências cautelares por empresas de medicamentos de referência, na sequência da aprovação de medicamentos genéricos”, in Revista de Direito Intelectual, n.º 2014-I, 33-99, APDI, Coimbra, 2014, pp. 33 e ss. No que respeita a este último autor, importa salientar que, com o devido respeito, não se subscreve o entendimento de que, por força do Regulamento (CE) n.º 44/2001, existem algumas matérias subtraídas aos tribunais arbitrais. Com efeito, o argumento extraído do n.º 4 do artigo 22.º do Regulamento não parece adequado, porquanto nesse preceito apenas se trata de atribuir competência exclusiva aos tribunais do Estado membro em razão do território e não da natureza estadual ou arbitral dos tribunais desse Estado. Além disso, o mesmo argumento parece não ter considerado o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 13.02.2014, no processo C-555/13, Merck Canada Inc. vs. Accord Healthcare, Ltd, e Alter, S.A., que, nos parágrafos 15 e ss, reconhece o tribunal arbitral necessário consagrado pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, como órgão jurisdicional na aceção do artigo 267.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
21 Note-se que já há vários anos existe a possibilidade de recurso à arbitragem para composição destes litígios, mas a mesma, por ser voluntária, não tinha até então – pelo menos que se saiba – sido utilizada. Por isso, a solução, quanto a este aspecto, passaria por incentivar o recurso à arbitragem através da sua obrigatoriedade legal.
22 Cfr. DÁRIO MOURA VICENTE, “O Regime”, pp. 973 e ss; AQUILINO PAULO ANTUNES, “Medicamentos”, p. 1643.
23 Fernando Araújo, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios: O Problema Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra, 2008, pp. 199 e ss.
24 Cfr. Artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção republicada, por último, em anexo ao Decreto-Lei n.º 128/2013, de 5 de Setembro, e n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
25 No sentido da não preclusão do direito, DÁRIO MOURA VICENTE, “O Regime”, pp. 979 e ss; JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, “A arbitrabilidade”, p. 44. Nota-se, no entanto, que as posições deste autores parecem não ter em consideração que, tal como o produtor do genérico que não conteste a acção arbitral não pode iniciar a comercialização do medicamento na vigência dos direitos de propriedade industrial, também o titular destes direitos, caso não recorra à arbitragem necessária no prazo de caducidade de 30 dias, não pode impedir a comercialização do genérico com fundamento nos mesmos direitos. O que o legislador pretende é uma clarificação precoce da existência, ou não, de conflito relativamente ao medicamento genérico em causa, de modo a assegurar a solução mais eficiente (neste caso, a que menores custos traz às partes e à sociedade).
26 N.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
27 N.ºs 3 a 5 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
28 Sobre a admissibilidade de procedimentos cautelares em sede arbitral, cfr. JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, “A arbitrabilidade”, pp. 67 e ss.
29 N.º 6 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
30 N.º 7 do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
31 Julga-se que, face ao preceituado no n.º 2 do artigo 7.º do Código Civil e à redacção do n.º 1 do artigo 32.º do Acordo relativo ao TUP, é inequívoca a intenção de revogação do regime especial consagrado na Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
32 AQUILINO PAULO ANTUNES, “Alguns aspectos”, p. 16127 e ss e 16147 e ss.