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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.2 no.1 Lisboa jan. 2015

 

DIREITO PÚBLICO

A Garantia do Existente no Direito do Urbanismo: uma tentativa de salvação

Guarantee of Existing in Planning Law: an attempt to salvation

 

Diogo CoelhoI

IFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: diogocoelho@fd.ulisboa.pt

 

 

RESUMO

O objectivo deste artigo é o de analisar o regime da Garantia do Existente no Direito do Urbanismo, nomeadamente, os deveres e direitos que o mesmo implica para a Administração Pública e para os particulares. Teve-se em especial conta as posições doutrinárias quanto à interpretação do mesmo, assim como as consequências nefastas que a interpretação da maioria da doutrina tem quanto ao respeito por certos princípios constitucionais. Como decorrência desta asserção, visou-se contribuir com uma leitura do instituto que não só o permita salvar da inconstitucionalidade, como dar-lhe uma verdadeira utilidade prática.

Palavras-chave: garantia do existente; direito do urbanismo; princípio da legalidade; tutela da confiança; princípios constitucionais.

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the Guarantee of Existing in Planning Law in particular the rights and responsibilities that it entails for the Public Administration and private individuals. We had a special account the doctrinal positions regarding the interpretation thereof as well as the disastrous consequences that the interpretation of the majority of the doctrine has as to compliance with certain constitutional principles. As a result of this assertion, aimed to contribute to a reading of the institute that not only allows saving of unconstitutionality, as give it a real practical use.

Key Words: guarantee of existing; planning law; legality principle; protection of legitimate expectations; constitutional principles.

 

Sumário: 1. Introdução; 2. Garantia do Existente: conceito e fundamentos; 3. Situações Vizinhas; 4. Garantia do Existente na Doutrina; 5. É a Garantia do Existente uma “garantia” dos princípios constitucionais? Como "garantir” a salvação deste preceito da inconstitucionalidade?

 

 

1. Introdução1

Propomo-nos neste artigo analisar o regime da garantia do existente no Direito do Urbanismo. Além do escasso labor doutrinário que este tema não merece, revela-se da maior importância a análise do seu regime e vicissitudes numa época em que muito se fala e escreve sobre requalificação urbana e melhoramento das infra-estruturas urbanísticas. Não obstante as indesmentíveis vantagens que tais políticas podem e têm que trazer, será que a forma como o nosso regime da garantia do existente tem vindo a ser entendido, é suficientemente capaz e apto a conseguir alcançar tais propósitos?

Numa outra perspectiva, até onde podem ir os particulares e, sobretudo, qual o mínimo a ser cumprido pelos particulares para que se justifique furtarem-se às novas exigências de requalificação urbana (em sentido próprio) ou às novas concepções daquilo que é o interesse público urbanístico vertido em cada plano que entra em vigor?

Será razoável admitir uma derrogação permanente dos novos planos sem atentar na concreta situação de cada particular e nas virtualidades da sua situação urbanística? Qual a correcta ponderação de interesses que este instituto reclama?

É com o intuito de responder a estas perguntas que nos propomos debruçar sobre a garantia do existente urbanística, cientes do escasso tratamento científico que a mesma tem merecido e da enorme importância e utilidade prática que este instituto tem na vida dos particulares e Administração Pública.

Para tal, iremos, em primeiro plano, prestar atenção à origem do conceito de garantia do existente e aos seus fundamentos e finalidades. Numa segunda parte do trabalho propomo-nos investigar como tem a doutrina tratado de outras situações em que existe um hiato temporal entre a actuação administrativa e a possível postergação de direitos e interesses dos particulares, e qual a fórmula que tem sido encontrada para proteger as posições destes. Num terceiro momento daremos conta das posições que a doutrina nacional tem defendido quanto a esta temática. Na quarta, e última, parte deste trabalho, explicitaremos a nossa posição sobre o tema que, salvo melhor doutrina, parece ser a única capaz de salvar o preceito da inconstitucionalidade e de dar verdadeira utilidade a este instituto, atentos todos os interesses em tensão.

2. Garantia do Existente: conceito e fundamentos

O instituto da garantia do existente tem o seu fundamento na garantia constitucional da propriedade privada, vertida no n.º1 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, e nos princípios da não retroactividade das disposições dos planos urbanísticos e da protecção da confiança, os quais estão ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático, plasmado nos artigos 2º e alínea b) do artigo 9º da Constituição da República Portuguesa2. O seu significado aparenta ser bastante simples. Como refere Alves Correia 3, é postulado do mesmo que o plano produza efeitos apenas para o futuro, pelo que deve respeitar as edificações existentes à data da sua entrada em vigor, desde que elas tenham sido realizadas legalmente. Numa outra formulação, poderíamos dizer que se trata da absorção pelo Direito do Urbanismo da doutrina da invalidade superveniente4. Desta forma, e foi este o sentido originário que lhe atribui o Tribunal Federal Alemão, um edifício, cuja legalidade material originária não seja contestada, não pode ser eliminado, sem indemnização, mesmo que esteja em contradição com as novas prescrições do plano5. Consiste este princípio, de uma outra perspectiva, num limite à discricionariedade da Administração na introdução de alterações e de revisão de planos, consubstanciando um limite à sua liberdade de conformação6. Visa-se, como realça João Miranda, «dar um passo importante na recuperação do património construído, já que, sem impor um sacrifício desproporcional aos proprietários, o regime proposto permite a realização de um conjunto de obras susceptíveis de melhorar as condições de segurança e salubridade das construções existentes» 7.

Não obstante esta aparente simplicidade, tem a doutrina operado uma distinção entre a sua vertente passiva e activa. Quanto à primeira estaria em causa a conservação da edificação e a manutenção da sua função anterior. Segundo Pedro Moniz Lopes esta vertente passiva seria expressão do brocardo tempus regit actum, nos termos do qual a validade do acto autorizativo é aferida à data da sua emissão, sendo manifestação do princípio geral ínsito no n.º2 do artigo 12º do Código Civil.8 A Administração encontra-se na obrigatoriedade de tolerar a existência das edificações que tenham sido construídas de harmonia com o direito anterior, mesmo que estas já não fossem susceptíveis de ser licenciadas se apreciadas à luz das normas jurídicas actualmente em vigor. No seguimento do pensamento de Cláudio Monteiro “o direito de construir reconhecido por um acto de licenciamento válido e eficaz incorpora-se definitivamente na esfera jurídica do respectivo titular e passa a gozar da protecção plena que é concedida ao direito de propriedade privada”9.Um elemento de enorme relevância nesta primeira vertente é a de que esta garantia deixa, em princípio, de existir se o edifício objecto de protecção desapareça enquanto entidade utilizável.

Já a garantia do existente activa tem sido entendida, tradicionalmente, como o fundamento para a obtenção de um direito à autorização para a realização de obras de reparação e de restauração, desde que permaneça intacta a identidade do edifício originário. Admite-se, ainda, um alargamento limitado da construção, desde que uma utilização adequada ao tempo e ajustada à sua função o exija10.

Recentemente tem sido admitido, pelo Tribunal Federal Alemão, uma garantia do existente funcional (ou excepcional) 11, que permite a adopção de medidas de alteração e de ampliação de edifícios, bem como a realização de certas alterações de utilização, desde que elas sejam indispensáveis para garantir a capacidade funcional entre as obras de alteração e a utilização dada ao edifício em causa. A doutrina tem entendido12 de forma restrita esta indissolúvel conexão funcional, de tal modo que apenas a admite quando, de forma contrária, a construção existente ficasse simplesmente sem objecto, se não fossem autorizadas as medidas de alargamento ou de modificação13.

Esta elaboração científica acabou por ser recebida pelo n.º1 e n.º2 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e no artigo 51º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana.14/15

Parece estar em causa, com esta base normativa, um regime de direito transitório material pois, como refere de forma acertada Pedro Moniz Lopes, “em lugar de impor a aplicação do plano antigo ou do plano novo, o legislador veio estabelecer uma regulamentação própria, não coincidente nem com o primeiro nem com o segundo”16/17/18. Repare-se que se se continuassem a aplicar as regras do plano antigo, o particular poderia fazer uso de todas as faculdades que lhe eram conferidas por este instrumento de planeamento (nomeadamente, obras de ampliação, obra de alteração, obras de demolição, etc.). Por outro lado, a aplicação imediata do regime do plano novo poderia vir a traduzir-se na necessidade de demolição das edificações se a nova disciplina de uso do solo assim o requeresse. Temos uma solução que visa a concordância prática entre o princípio tempus regit actum, emanado do princípio da tutela da confiança, e o princípio da prossecução do interesse público urbanístico.

Maria Lúcia Amaral realça que devem os cidadãos poder saber com o que contam19. Na medida em que a Constituição da República Portuguesa protege a confiança que os particulares legitimamente depositam no direito, as leis que o formam terão que ser, antes do mais, leis tendencialmente estáveis, sofrendo alterações por razões de interesse público que, no entanto, se devem manter sempre no campo do previsível, do calculável, do imaginável20. Parece que a pedra de toque está em indagar se os particulares deviam, ou podiam, contar com as mudanças patrimoniais decorrentes da alteração de regimes jurídicos21.

As transformações abruptas de regime, que não são esperadas nem esperáveis e que possam trazer prejuízos aos particulares, não deverão em princípio ter eficácia imediata. O legislador da lei nova terá que cuidar de oferecer um “trânsito suave”22 do direito antigo ao direito novo, de tal forma que os particulares possam (re)adequar as expectativas, projectos e disciplinas legais.

Não obstante o que foi dito, de crucial importância é averiguar da relevância da tutela da confiança no Direito Administrativo e, em especial, no Direito Urbanismo, tendo em conta que se encontra neste instituto a fundamentação dos regimes de direito transitório material que inspiraram a garantia do existente.

A doutrina tem-se dividido neste ponto. Por um lado, temos autores como João Baptista Machado que aceita que o Estado-legislador inspira confiança, devendo responder pelas expectativas criadas pelas leis que edita23. Também nesta linha, outros avançam que o princípio em causa corresponde a valores jurídico-sociais que, ainda que reportados à pessoa, nada têm de intrinsecamente privado, devendo também jogar a favor do particular a quem a Administração tenha criado convicções justificadas24. Por outro lado, autores existem que defendem, ao invés, que numa organização hierarquizada e impersonalizada não há praticamente contactos pessoais entre o órgão com competência para decidir, pela Administração, e aqueles com quem esta se relaciona juridicamente25. Além do mais, entendem que existindo, no Direito Administrativo, a indisponibilidade pessoal dos interesses públicos, o dever legal e funcional da sua prossecução actualizada e o princípio da legalidade a que a Administração se encontra vinculada, pouco espaço sobra para a relevância jus-publicista da tutela da confiança26. No ordenamento jurídico espanhol, alguns autores têm defendido o estabelecimento de normas urbanísticas sob reserva de revisão, uma vez que o cidadão se encontra obrigado a contar com modificações normativas frequentes em campos sociais especialmente expostos à mudança27

Cabe tomar posição. Não obstante termos noção de que a concepção de interesse público é de conteúdo variável, não sendo possível defini-lo de forma rígida e inflexível28 e sabendo, de forma ainda mais relevante para o tema sob análise, que, no direito do urbanismo, um dos traços singularizadores vem a ser a mutabilidade das suas regras, adquirindo ainda mais importância a prossecução actualizada do interesse público, parece que a melhor solução, aliás aquela que o nosso ordenamento urbanístico veio consagrar, é a de considerar existir uma solução dialéctica, seguindo, neste ponto a posição de João Miranda29. Repare-se que, ao nível dos planos, se pode invocar a existência de um dever de actualização constante, dada a necessidade de os instrumentos de planeamento acompanharem o dinamismo social, sob pena de se perder a sua efectividade. Contudo, o legislador revelou a preocupação de estabelecer limitações temporais ao fenómeno de mutabilidade dos planos, reconhecendo precisamente a existências de situações de confiança dos particulares. Desta forma, qualquer alteração dos planos tem de ponderar sempre o sacrifício que pode impor aos particulares à luz do princípio da proporcionalidade, de maneira a que se consiga garantir o equilíbrio entre os interesses em jogo30.

3. Situações Vizinhas

Interessa, agora, analisar algumas situações cuja lógica se pode considerar como estando próxima do instituto da garantia do existente, devido, sobretudo, ao impacto de situações temporais posteriores nas situações jurídicas de particulares constituídas em momento pretérito.

Desde logo, importa analisar a alínea b) do n.º1 do artigo 140º do Código de Procedimento administrativo que prescreve não serem revogáveis os actos constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos31. Não obstante estarmos perante um preceito de enorme garantia dos particulares, tem-se assistido a um movimento de precarização de actos válidos constitutivos de direitos desfavoráveis e contra a vontade do particular.

O primeiro autor a insurgir-se contra a “blindagem” dos actos constitutivos de direitos foi Vieira de Andrade. Repare-se que pode acontecer que por alteração da situação de facto ou por mudança fundamentada das concepções da Administração, o interesse público torne conveniente, ou até imperiosa, a revogação de um acto favorável32. Avança o autor que a solução legal protege indiscriminadamente o particular, sem atender aos méritos reais da sua confiança e pondo em risco a desejável flexibilidade na realização do interesse público a cabo da Administração. Também Pedro Gonçalves defende esta solução, com base no principio do interesse público actual verificável, sobretudo, no âmbito de uma alteração da situação de facto sobre que o acto incidiu, cujas exigências reais comparativamente se sobreponham ao interesse privado na manutenção do acto, reconhecendo-se ao interessado de boa-fé o direito a ser justamente ressarcido pelo dano de que a revogação seja causa adequada 33. Já Carla Amado Gomes aplica a estas situações a teoria da imprevisão, a versão administrativa da cláusula rebuc sic stantibus34. Há ainda quem invoque que as normas administrativas são dotadas de uma mutabilidade intrínseca que exige a sua permanente consideração de alteração, abrindo portas ao instituto da alteração das circunstâncias 35.

Também Pereira Coutinho admite esta possibilidade, se bem que em termos mais exigentes, de forma a não postergar a vertente da precedência de lei do princípio da legalidade36. Admite apenas quando tal competência de revisão esteja especificamente prevista ou em caso de aplicação do instituto do estado de necessidade, que imuniza a Administração do rigoroso cumprimento dos ditames do princípio da legalidade37.

Também nos parece mais aconselhável uma interpretação flexível deste artigo, com o propósito de averiguar da efectiva confiança investida pelos particulares numa determinada situação jurídica, só assim sendo possível ajuizar da necessidade da sua tutela, mas também porque assim o impõe o interesse público constantemente em mutação e a coerência e eficácia da mudança de orientação politica daqueles que ocupam o cargo cujas competências permitem uma definição mais próxima, actual e adequada daquelas que são as verdadeiras necessidades colectivas de cada momento. Não obstante, deve ser tida em conta a confiança real dos particulares. Contudo, esta deve relevar, parece-nos, não como barreira à intervenção administrativa, quando esta se revele necessária e superior ao prejuízo que advém da frustração da situação de confiança, mas sim como pressuposto e critério da indemnização que venha a ter lugar.

Um outro instituto que demonstra algumas afinidades com as situações aqui retratadas é o presente no n.º1 do artigo 48º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, a respeito da licença de loteamento cujas condições sejam prejudicadas pela superveniência de “instrumentos de planeamento territorial e outros instrumentos urbanísticos». Este preceito é de significativa importância para a temática em estudo na medida em que nos demonstra que o principio tempus regit actum não é um princípio geral no que diz respeito a actos administrativos a que corresponde significado permissivo, proibitivo ou prescritivo destinados a vigorar continuadamente no tempo.

Face a este preceito, Fernanda Paula Oliveira defende que a superveniência de novas normas de planeamento só implicará a alteração de licença de operação de loteamento anterior no caso de tal ser expressamente determinado no instrumento de planeamento superveniente 38. Por outro lado, Pereira Coutinho, adoptando uma posição kelseniana, considera que um acto administrativo apenas será válido e vigente na medida em que seja conforme com as normas de grau hierárquico superior, gerando-se uma situação de invalidade superveniente quando tal deixe de acontecer39. Conclui o autor que estando em vigor instrumentos de planeamento que não salvaguardem o existente, está a entidade administrativa vinculada, no âmbito do princípio da legalidade, a rever por sua iniciativa as licenças de loteamento em conformidade. Parece ser este o entendimento a adoptar, pois nenhum principio tempus regit actum obriga a encarar restritivamente a norma de competência do n.º1 do artigo 48º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, pois aquele princípio, no seu verdeiro alcance, impõe que tenha lugar a competência de revisão, a menos que o instrumento de planeamento superveniente salvaguarde expressamente o existente.

Também no domínio dos bens culturais se têm colocado problemas de índole semelhante40. Quando um particular apresenta um projecto de recuperação de um imóvel classificado, tendo em vista transforma-lo em instalações hoteleiras ou em outro tipo de instalações turísticas ou de prestação de serviços, cabe às entidades competentes para a avaliação do projecto ponderar o respeito pelos princípios fundamentais nesta matéria, como é disso exemplo, a preservação do valor intrínseco do bem, enquanto «testemunho de civilização» 41. Sendo que os projectos mais rentáveis e que interessam primariamente aos particulares são aqueles que implicam uma alteração do uso originário do bem, cabe colocar a questão de saber quais os limites a que essa alteração se encontra sujeita. Será preferível não nos afastarmos do seu uso originário e deixar os bens em ruína? Ou tem mais vantagens afastarmo-nos desse critério por completo e permitir qualquer utilização desses bens? O critério que tem sido encontrado pela doutrina42 é o da manutenção substancial do uso originário do bem em causa, exigindo que se aprecie se o projecto se afasta irremediavelmente do seu uso originário, de tal forma que comprometa, no futuro, o reconhecimento do testemunho de civilização que lhe confere o valor de bem cultural.

Da análise destas, por nós designadas, “situações vizinhas” pretendeu-se mostrar que a doutrina tende a dar maior relevo ao princípio da prossecução do interesse público actual, valorizando as alterações de circunstâncias que porventura ocorram, a mudança de concepção subjectiva daquilo que é o interesse público naquele concreto momento, sem contudo esquecer a confiança que se possa suscitar nos particulares. É necessário e imperioso, para mais no Direito do Urbanismo em que a realidade sobre a qual actua este direito se encontra em permanente mutação, ajuizar a legitima confiança dos particulares, não os tratando todos por igual. Aliás, o próprio princípio da igualdade a isso o impõe, na sua vertente de tratar de forma diferente o que é diferente, na medida da diferença. Repare-se que não podia ser de outra forma. Se o que se pretende são leis com efectividade, que tenha uma verdadeira força conformativa e efeito útil, só desta forma se torna possível cumprir tal desígnio e garantir uma maior coerência jurídica e, mesmo, politica.

4. Garantia do Existente na Doutrina

Na doutrina portuguesa a interpretação do instituto em estudo e dos requisitos exigíveis relativamente ao mesmo, têm sido entendidos de forma, tendencialmente, uniforme ou, pelo menos, atingem resultados praticamente idênticos.

Pedro Moniz Lopes, quanto à vertente passiva da garantia do existente (n.º1 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), entende, devido à relativa indeterminação do preceito, estarmos perante um princípio, razão pela qual determina uma obrigação prima facie de atender às normas vigentes à data da emissão da licença para a operação urbanística em causa43. Admite, contudo, que esse mesmo princípio possa vir a ser preterido, como o demonstra o n.º3 do citado artigo, admitindo-se a aplicação retroactiva de determinadas leis sectoriais, quando a mesma determine que a utilização dada a certas edificações licenciadas ao abrigo do direito anterior fique sujeita às novas disposições legais aplicáveis44. Contudo, como realça o autor, este regime apenas se aplica a situações excepcionais que têm de estar expressa e inequivocamente previstas na lei.

Quanto à vertente activa do instituto, refere Pedro Moniz Lopes que o mesmo visa, a um tempo, tutelar as expectativas dos proprietários das edificações existentes, possibilitando a realização de determinadas obras que, à medida que a idade da edificação vai avançando, assumem um carácter inevitável. Visa-se também, no seguimento do seu pensamento45, promover a recuperação do património construído, permitindo a realização de obras susceptíveis de melhorar as suas condições de segurança e salubridade, sem impor um sacrifício desproporcional aos proprietários.

Quantos aos fundamentos alternativos, considera o autor, com base numa lógica de ponderação alexyana, que sempre que uma obra permita uma melhoria da segurança e salubridade da edificação em maior grau do que determina o agravamento da desconformidade com o plano deve, em princípio, ser admitida. Em suma, devem as Câmaras Municipais admitir qualquer tipo de operação urbanística que, num saldo global, diminua a desconformidade com o parâmetro urbanístico constante do plano, admitindo como preenchido o requisito, desde que seja verificável uma reintegração parcial da legalidade urbanística 46.

Outros autores realçam que a conservação do edifício através da garantia do existente passiva, atenta a constante dinâmica de vida dos edifícios, seria um «presente envenenado»47, porquanto não permitiria a realização de obras inevitáveis ao longo do período de vida do edifício. Conclui Alves Correia que se apenas fosse contemplada a protecção passiva do edificado existente, a protecção da confiança dos particulares através do princípio tempus regit actum levaria inevitavelmente à contemplação da ruína, na medida em que estaria vedada ao particular a possibilidade de efectuar obras de reparação, restauração e reconstrução do edificado, por existirem desconformidades com o plano em vigor 48.

Parte da doutrina vai ainda mais longe. É o caso de Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes 49 que admitem mesmo as operações de ampliação, afastando a eventual proibição das mesmas que resultaria de um argumento a contratio da lei excepcional do n.º2 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação. Entendem que a formulação disjuntiva do n.º2 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e a circunstância de se poderem fundamentar numa melhoria das condições de segurança e salubridade da edificação, objectivo esse que é, na generalidade dos casos, impossível de obter com meras obras de reconstrução ou de alteração 50. Consideram não ser coerente a não admissão de obras de ampliação quando o preceito citado aceita a reconstrução de edifícios que não passam de meras ruínas. Ressalvam, contudo, não ser de aplicar o regime da protecção do existente sempre que a obra de reconstrução ocorra após uma demolição total51, pois, e este ponto parece-nos da maior importância, o regime especial previsto para edifícios existentes parte do pressuposto da impossibilidade fáctica de cumprir novas exigências, o que não sucederia no caso.

No domínio da reabilitação urbana, onde também foi consagrado este princípio, como anteriormente já se referiu, defende Suzana Tavares Silva um juízo de ponderação final a fim de apurar se as desconformidades devem ceder perante a melhoria das condições de segurança e salubridade do edificado. Daqui retirando que o princípio não se destina apenas a proteger o existente, abrangendo, também “situações de consolidação/reforço do existente” 52.

Por seu turno, também Cláudio Monteiro se manifesta como um adepto desta vertente (diríamos nós) “pró garantia absoluta” do existente. Desde logo, considera o autor que o princípio (na sua vertente passiva) não só abrange as edificações legalmente existentes, como também aquelas que, embora constituídas ilegalmente, põem sob a Administração o dever legal de as tolerar53. O autor defende da mesma forma que, agora já em relação à sua vertente activa, se uma edificação existente pode ser mantida pelo seu proprietário nas suas condições de utilização originária, mesmo que em desconformidade com as normas técnicas da construção e urbanísticas em vigor, por maioria de razão deve a mesma poder ser modernizada, desde que essa modernização não origine novas antinomias com aquelas normas ou agrave as já existentes 54. O que se pretende proteger, na concepção deste autor não é o edifício enquanto realidade física, mas sim o edifício enquanto bem jurídico objecto de direitos privados e enquanto elemento da paisagem e da composição urbana. O que importa averiguar é da sua identidade jurídica e urbanística, apesar da modificação das suas características físicas e da sua configuração interior. O edifício não desaparecia como bem jurídico e como elemento da paisagem ou da composição urbana pelo simples facto de se encontrar arruinado ou ser demolido, na medida em que seja possível, sem alteração da sua forma e substância originária, ser reconstruido e reposto em condições de ser utilizado de acordo com a sua função anterior. 55 Apenas estaríamos fora da protecção do existente quando as próprias ruínas já não forem reconhecíveis e do edifício originário não restar mais do que uma memória fotográfica ou documental56/ 57.

Já quanto ao artigo 51º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, que admite de forma expressa a ampliação, desde que inserida no âmbito de uma operação de reabilitação urbana, e que a mesma fique dispensada do cumprimento de normas legais e regulamentares supervenientes à construção originária desde que exista uma melhoria das condições de desempenho e segurança funcional, estrutural e construtiva da edificação ou a um juízo de proporcionalidade entre os prejuízos que a proibição de as realizar causaria ao interesse público, entende Cláudio Monteiro que não está plasmada no preceito uma protecção do existente, mas sim uma prerrogativa de discricionariedade derrogatória para dispensar o cumprimento das normas legais e regulamentares em questão 58.59

Também a Jurisprudência se tem vindo a mostrar favorável a esta ideia de considerar ser suficiente um mero “juízo de compensação ou ponderação”, com um aproximar mínimo ao parâmetro de legalidade, e, em alguns casos, admitindo mesmo a ampliação da edificação. Exemplo disso são os acórdãos: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13.03.200960, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01.03.200561, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 20.09.2012 62, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17.06.2010, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.10.200963 e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.07.200664.

Contudo, não obstante ser uma corrente minoritária, alguns autores têm colocado fortes questões e entraves ao princípio da garantia do existente, por motivos, contudo, diferenciados.

Desde logo, destaca-se Gonçalo Reino Pires, manifestamente adepto da ideia de que o objectivo da conformação do território é, geralmente, confirmar ou infirmar a compatibilidade entre a realidade urbanística e os interesses públicos com expressão territorial, com o intuito de prossecução de um correcto ordenamento do território65. Um argumento de grande impressividade e ilustratividade apresentado pelo autor é o de que, constituindo as escolhas urbanísticas um complexo interdependente em que cada uma se assume simultaneamente como causa e efeito de alguma ou algumas das demais, a conformação do território apenas se demonstra apta a desempenhar as suas funções caso seja, efectivamente, vinculativa, pelo menos no que concerne aos seus aspectos essenciais. Seguindo este raciocínio lógico, acaba por defender o autor que a prossecução ordenada de um correcto ordenamento do território não pode deixar de se pronunciar afirmativa ou negativamente, se necessário através da cumulação de uma indemnização aos particulares pelos danos causados, relativamente a determinadas realidades existentes no território objecto do procedimento de planeamento territorial. Caso contrário, a alteração do plano66 consubstanciaria uma realidade apenas parcialmente apta a prosseguir esse interesse, visto nem todas as escolhas tomadas pelas entidades urbanísticas virem a reflectir-se no “mundo dos factos”. Em conclusão de todo este raciocínio, deveria a Administração estabelecer a nova disciplina do plano de imediato e adoptar as restantes escolhas urbanísticas tomando aquela por ponto de referência, desde que tal seja razoável em termos indemnizatórios para os cofres da Administração.

Por outro lado, parte da doutrina esclarece que estamos para lá do princípio da protecção do existente quando o que se salvaguarda contra a aplicabilidade de normas supervenientes é mais do que a construção originária67. É o caso de Pereira Coutinho que considera, face ao artigo 51º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, que só não consubstancia uma excepção ao princípio geral de Direito Administrativo tempus regit actum, como também excepciona o princípio especial de Direito do Urbanismo da protecção do existente. Defende o autor que perante os n.ºs 2 e 3 do artigo 51º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação se cria uma situação de relativização do princípio da legalidade dificilmente aceitável, na medida em que os mesmos se referem a obras de ampliação e construção que visam a substituição de edifícios previamente existentes 68. Parece estar em causa permitir o não cumprimento das normas vigentes no âmbito de uma “análise custo-beneficio”, em nome de uma “suposta” vantagem decorrente do desrespeito por tais normas, nem sequer se exigindo que o desequilíbrio entre o sacrifício e a vantagem seja manifesta, indubitável. Para Pereira Coutinho estaríamos perante uma norma inconstitucional (em especial no confronto com o n.º2 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa), por violação do princípio da legalidade69.

5. É a Garantia do Existente uma “garantia” dos princípios constitucionais? Como "garantir” a salvação deste preceito da inconstitucionalidade?

Cabe tomar posição. Contudo parece aconselhável fazer algumas considerações prévias.

Não somos indiferentes aos problemas levantados, especialmente, por Paulo Otero quando ao défice de poder conformativo de que padece cada vez mais o princípio da legalidade70. Aliás, tal perda de força da legalidade enquanto padrão de conduta da Administração Pública denota-se, desde logo, quando passamos a analisar as derrogações administrativas. Como já foi acima referido, e no seguimento da doutrina do citado autor, se é indesmentível que a derrogação administrativa permite dar resposta a uma necessidade de adaptação administrativa da solução legal à realidade factual, evitando soluções únicas e rígidas na sua imperatividade, envolve, por outro lado, uma erosão da legalidade subjacente à actuação administrativa, permitindo a sua flexibilização pela Administração Pública, debilitando o poder conformativo do princípio da legalidade sobre o exercício da actividade administrativa71. Também João Miranda se revela apreensivo quanto a este instituto. Destaca o autor que, não obstante a sua idoneidade como meio de ultrapassar a excessiva rigidez dos instrumentos de planeamento e como forma de ajustá-los às novas circunstâncias, as mesmas vêm agudizar um dos principais problemas que enfrenta o sistema de planeamento territorial, o da perda de efectividade da disciplina do plano72, com o risco de levar à total perda de coerência interna do normativo do plano.

Os problemas não parecem quedar-se por aí. Se bem que possamos admitir, como é natural, a «textura aberta»73 das normas ou as suas «indeterminações significativas» 74, enquanto consequência da transformação do Estado em Estado-providência, não podemos esconder uma consequência de maior relevo que tal acarreta: a transfiguração material da legalidade. Passámos de um modelo de disciplina legislativa exaustiva, clara e precisa da realidade para um modelo normativo «aberto»75, que pondera todos os interesses presentes e se torna imprevisível na sua concreta aplicação. Podemos dizer, com Paulo Otero, que “a legalidade administrativa deixa de ser apenas aquilo que o legislador diz, segundo impunham os postulados teóricos do princípio da separação de poderes, podendo também ser aquilo que a Administração Pública ou os Tribunais entendem que o legislador diz ou que a lei permite que eles digam ser o Direito vinculativo da Administração Pública” 76. Como principal consequência, teremos um Direito Administrativo de base pretoriana, transformando-se a Administração Pública numa simples estrutura intermédia de aplicação em primeira instância do Direito num caso concreto que, num momento imediatamente subsequente, será objecto de impugnação judicial, conformando um modelo definidor do Direito que carece de legitimidade politico-democrática 77.

Em suma, como refere de forma magistral Paulo Otero, “a descoberta de qual seja o exacto padrão regulador da conduta administrativa pode bem tornar-se um milagre, que aliás tem a particularidade de se encontrar nas mãos da própria Administração Pública”, não passando a vinculação da Administração Pública à legalidade de uma “pura ficção, estando, portanto, o nosso ordenamento jurídico inserido num Estado de juridicidade simulado”78.

Quanto ao conceito de interesse público, repare-se que como esclarece Diogo Freitas do Amaral, o mesmo é dotado de um conteúdo variável, na medida em que o que ontem foi considerado conforme ao interesse público, pode hoje ser-lhe contrário79. Contudo, uma vez definido o interesse público (por lei, salvo autorização à Administração), a sua prossecução é obrigatória, uma vez que é essa mesma actividade que fundamenta a autonomização da Administração no quadro das funções do Estado e a razão de ser da existência de uma Administração em sentido orgânico.

Já quanto ao princípio da legalidade, verifica-se que é de especial interesse para o tema aqui tratado o princípio da reserva de lei, na sua vertente de reserva de densificação normativa. Como defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, aquela exprime a necessidade de o fundamento jurídico-normativo sobre o qual deve actuar a Administração Pública, possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar adequadamente a actuação administrativa em causa, para que se possa assegurar a previsibilidade e a mensurabilidade das actuações dos poderes públicos por parte dos cidadãos80. A questão que deve ser colocada, e à qual tentaremos responder nas nossas conclusões, é a seguinte: as normas que temos vindo a analisar permitem antecipar os aspectos fundamentais da actuação administrativa habilitada?81

Segundo nos parece, e com o devido respeito, a doutrina tem estado equivocada no concernente à análise deste instituto. Como postulado básico, aliás como já temos vindo a dar “pistas” ao longo do trabalho, denota-se, aquando do tratamento desta questão, um certo esquecimento por parte da doutrina maioritária da força, importância e relevância que o princípio de legalidade deve, e tem, de assumir em todas as temáticas jurídico-administrativas. E isto denota-se, desde logo, pela solução, quase uniforme, que a doutrina tem encontrado para “resolver o problema”: uma estrita e formal ponderação final entre princípios e a suficiência de uma mera melhoria no que toca à aproximação ao parâmetro conformador de toda a actividade administrativa (o princípio da legalidade). Além deste método que nos parece duvidoso e que coloca em causa a valia do princípio da legalidade, somos da opinião que aquando de tal ponderação, a doutrina maioritária tem esquecido, não só a averiguação do seu real e efectivo preenchimento, como também de incluir nesse raciocínio outros princípios constitucionalmente previstos, que não apenas o da tutela da confiança e o do interesse público. Cabe-nos, desta forma, a missão de tentar “salvar” o preceito da inconstitucionalidade, encontrando para ele uma interpretação que lhe confira real utilidade respeitando todos os postulados constitucionais.

Como tal, parece-nos que a tese que propugna pela ponderação final e pela mera restauração parcial (que pode até ser ínfima, desde que seja positiva) da legalidade, além de ser “vazia” de conteúdo operativo, na medida em que não permite apurar com certeza e fiabilidade a tal medida mínima suficiente para que se admita um determinado licenciamento, relativiza, em demasia, o princípio da legalidade. Repare-se que nem sequer é exigível uma manifesta discrepância no confronto dos bens em conflito, ficando por saber como se torna possível calcular (matematicamente) quando existe, ou não, “um pendor da balança” para um dos lados. Ou seja, parece ser frontalmente contra o princípio da legalidade que não seja exigível um manifesto valor global positivo, na linguagem dos autores que utilizam esta fórmula, ou, o que parece ser o mais acertado, que o valor positivo se meça, não em termos matemáticos e de “compensações”, mas sim consoante aquilo que seria efectivamente possível fazer. Estas asserções confirmam o enorme poder constituinte de que é dotada hoje a Administração Pública, com claras desvantagens ao nível da insegurança e previsibilidade jurídicas, confirmando a erosão do princípio da legalidade enquanto critério conformador da actuação Administrativa.

A inadmissibilidade de uma tal secundarização do princípio da legalidade e do interesse público actual que a Administração Pública verte nos planos e é obrigada a prosseguir advém ainda, de outras circunstâncias. Desde logo, não leva em devida conta que o interesse público visa proteger também, e em primeira medida, os particulares. Além disso, tal situação possibilita situações de fraude à lei e não atende à efectiva confiança, e legitimidade desta, criada nos concretos particulares, tratando-os de modo indiferenciado.

Passamos a explicar o nosso ponto de vista. Quando à vertente passiva, nada parece obstar à validade das asserções que têm sido feitas quanto ao valor da mesma. Parece plenamente justificado que um plano novo não tenha a força de “fazer tábua rasa” de todas as construções legalmente construídas ao abrigo do direito anterior. Justifica-se plenamente a tutela do direito de propriedade dos particulares, vertido no n.º 1 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, e da tutela da confiança dos particulares. Não seria razoável invalidar subsequentemente todas as construções erigidas de forma correcta ao abrigo do direito anterior, acarretando como eventual consequência a demolição das mesmas82.

No concernente à sua vertente activa deve, salvo melhor opinião, o n.º2 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação ser interpretado da seguinte forma: “A concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que se demonstre estar o titular efectivamente de boa- fé (subjectiva ética)83/ 84 …”. Desta forma ter-se-á por respeitado o fundamento do direito transitório material85 e que justifica a existência deste regime e não se criam situações como aquelas mencionadas por Marcelo Rebelo de Sousa, de aproveitamento de vantagens ilegítimas mediante a invocação conluiada de pretensas situações de frustração da confiança na adopção de condutas administrativas 86. Além disso, evita-se proteger, indiscriminadamente todos os particulares, sem atentar nos reais méritos da sua situação de confiança87. Ter-se-á, como tal, de provar que o particular ainda necessita de tempo para readequar as suas expectativas e projectos de vida e que existe uma impossibilidade fáctica de cumprimento das novas exigências do plano vigente. Repare-se que, seguindo este caminho, sai respeitado, também, o princípio da igualdade, na medida em que se pretende tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que demonstra ser diferente, na medida da diferença, principalmente face aos particulares cuja construção originária está já ao abrigo do direito novo.

Continuando a interpretação do preceito: “… desde que tais obras não originem ou agravem a desconformidade com as normas em vigor …”. Esta parte do preceito reporta-se, a nosso ver, às situações de garantia do existente funcional, pois são estas as situações de maior risco, na medida em que sem a referida operação urbanística, a garantia do existente passiva ficaria sem objecto, pois perderia a sua capacidade funcional. Com tal interpretação cumpre-se, desde logo, o preâmbulo do diploma, evitando a contemplação da ruína. Restringe-se, contudo, este fundamento às situações em que exista a mencionada indissolúvel conexão funcional, de forma a que o edifício em causa continue a “ser útil” e, desta forma, apto, de certa forma, a satisfazer o interesse público. No entanto, tal utilidade do edifício deve estar necessária e exclusivamente dependente da operação urbanística em causa, só assim se permitindo aplicar o critério da não desconformidade ou do seu agravamento, permitindo-se apenas nestas situações “beliscar” o princípio da legalidade. No entanto, ao contrário da restante doutrina88 que apenas inclui nesta vertente os edifícios industriais e similares, parece-nos ser de incluir, por maioria de razão, neste conceito, os edifícios habitacionais cuja funcionalidade se tenha por completo (ou quase totalmente) perdido, sendo exigível impreterivelmente tal operação para que se assegurem as condições mínimas, exigíveis constitucionalmente, para uma “habitação funcional”89. Adoptando uma posição “mais rígida” quanto ao conceito de necessidade, parece ser de adoptar um conceito mais amplo daquilo que é o edifício que corre o risco de ficar sem objecto/funcionalidade. Só nestas situações, como indica o nome, excepcionais, é que parece admissível o critério do primeiro fundamento alternativo de “não agravamento da desconformidade”, pois são aquelas situações em que o interesse público verdadeiramente exige esta possibilidade, de forma a não postergar a utilidade e a função social da propriedade 90/91. São também estas as situações em que o proprietário não se arroga de meros “caprichos”, pois tais operações são imperativamente necessárias, como se de um estado de necessidade administrativa “adaptado”92 se tratasse (n.º2 do artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo) e que necessita, para que o interesse público seja prosseguido, de não ser respeitado, no todo ou em parte, o quadro legal vigente. Só por não se tratarem de meros “caprichos” dos proprietários é que se permite a completa imunidade ao quadro normativo do novo plano. O reconhecimento deste primeiro fundamento como sendo uma situação de garantia do existente funcional/excepcional decorre também da harmonização sistemática com o preceituado no regime da reabilitação urbana (artigo 51º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana), não se encontrando razão suficiente para não se aceitar tal instituto noutras situações que não essas. Como foi referido anteriormente, foi esta a interpretação e para estas situações que o Tribunal Federal Alemão criou a figura da garantia do existente funcional: a sua necessidade para garantir a capacidade funcional e o critério do não agravamento. Em suma, só desta forma é respeitado o princípio da legalidade (n.º2 do artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo) e da proporcionalidade e igualdade, na valorização das diferenças na medida da diferença, face aos proprietários que requerem uma operação não por estrita necessidade aos olhos do interesse público, mas por mero “capricho”.

Por fim, a última parte do preceito: “… ou que tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação”. Contudo, parece-nos existir, aqui, um requisito implícito com o qual, e só com este, se torna possível o respeito pelo princípio da legalidade e da prossecução actualizada do interesse público, além de que é aquele que melhor exprime a vertente da necessidade, pois é o que permite a solução menos lesiva possível para os particulares e para o interesse público93. Tal requisito dever-se-á formular da seguinte forma: “na medida em que existe a maior conformação possível dessas, e das outras vertentes urbanísticas em causa, com os princípios e regras do novo plano e com a nova concepção de interesse público urbanístico”. Dessa forma, só poderá ser viabilizada a autorização para a operação na medida em que o proprietário consiga, dentro do facticamente possível, aproximar ao máximo as características da operação requerida, ao novo plano. Só desta forma se torna possível salvar este princípio da inconstitucionalidade por violação dos princípios já referidos. Aliás, esta é a solução que melhor se harmoniza com os mandatos de optimização característicos dos princípios que impõem que, na sua aplicação, sejam o mais possível conforme aos seus próprios postulados, até ao limite do respeito pelo princípio contraditório (neste caso, o principio da tutela da confiança e do da legalidade e interesse público actual).

Repare-se que com esta interpretação não oneramos em demasia o particular que requer uma determinada operação urbanística, pois o limite dos seus esforços é-lhe delimitado pelo facticamente possível, que constitui o fundamento deste instituto, e não se torna desproporcional exigir-lhe a reconstrução do seu património até àquilo que lhe é possível fazer e que os proprietários com construções que não estejam ao abrigo de tal instituto terão que fazer, mesmo que tal lhes seja facticamente impossível. Por esta via, sai respeitado o princípio da igualdade e o próprio preâmbulo e fundamento do instituto.

Se bem se atentar, não sendo estas situações dotadas de “necessidade extrema” (como o são as do primeiro fundamento), consubstanciam, muitas vezes, “meros caprichos”, sendo de árdua tarefa vislumbrar uma imposição de um sacrifício desproporcional pois, bem vistas as coisas, continua a encontrar-se numa posição de vantagem face a proprietários não abrangidos por tal instituto.

Exigindo-se a máxima conformidade possível com o novo plano, garante-se, dentro dos mandatos de optimização dos dois princípios, a solução mais justa e equilibrada, evitando-se situações de fraude à lei em que, por exemplo, os proprietários aumentariam na medida do por si considerado necessário as condições de segurança e salubridade, imunizando-os, como consequência de tal prática, do cumprimento dos restantes ditames legais, abrindo-se um campo para qualquer outra violação de outros valores consagrados no novo plano urbanístico. Sobretudo em situações em que desejando furtar-se às novas exigências da própria salubridade e segurança, aumentariam minimamente as mesmas e furtar-se-iam às demais imposições. A referência às condições de segurança e salubridade deve ser interpretado como a razão para que não seja exigível, ou se afigure como menos gravoso, o cumprimento integral do novo plano, sobretudo nas situações em que tal aumento vai para lá do legalmente exigido, compensando, desta forma, a falta de conformidade (na medida do impossível) quanto a outros factores.

Em suma, quanto a situações de menor importância social e jurídica, como são as que se enquadram neste artigo, não se deve conceder ao particular a prerrogativa de se imunizar ao novo plano. Relembre-se que estes têm o dever de conservar a coisa de que são proprietários 94 e, não existindo um perigo da sua inutilização funcional, só este modo de perspectivar o instituto permite respeitar os princípios da legalidade, interesse público actual, proporcionalidade, igualdade e, como se verificou, dar ao princípio da tutela da confiança a dimensão e operatividade que subjaz à sua verdadeira teleologia, respeitando-se, por último, os mandatos de optimização em que se substanciam os vários princípios em confronto. Salvo melhor opinião, só seguindo esta metodologia de interpretação do preceito se torna possível salvar a garantia do existente, quer dando-lhe o valor e funções que a mesma verdadeiramente reclama, quer imunizando-a de um juízo de inconstitucionalidade.

 

1 O presente texto corresponde, com algumas alterações, ao trabalho de oral de melhoria apresentado no dia 30 de Junho de 2014 na cadeira de Direito do Urbanismo, perante o Senhor Professor Doutor João Miranda, a quem cabe agradecer, não só pelos conhecimentos que me proporcionou adquirir, mas também, e sobretudo, pelo incentivo para a publicação. Não menos importante é o agradecimento, mais que merecido, pelas intensas discussões e criticas, sempre tão necessárias a qualquer tipo de tomada de posição jurídica, ao Gonçalo Bargado, Ricardo Neves e Ricardo Gonçalves.
2 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, 2ª edição, Almedina, 2004, p.496.         [ Links ]
3 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, pp. 496-497.         [ Links ]
4 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos? Uma análise normativa do destino da edificação consumada, Relatório Mestrado Faculdade Direito Universidade de Lisboa, ano lectivo de 2006/2007, policopiado, p. 25, nota 80.
5 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, pp. 497-498, nota 297.         [ Links ]
6 João Miranda, A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial A Alteração, a Revisão e a Suspensão dos Planos, Coimbra Editora, 2002, p. 333.         [ Links ]
7 João Miranda, A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial, p. 332, nota 732.         [ Links ]
8 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, pp. 26-27. Tem-se entendido que esta garantia passiva não se limita às edificações, devendo ser estendida às utilizações de terrenos que não se consubstanciem em construções, desde que sejam originariamente conformes ao Direito.
9 Cláudio Monteiro, O Domínio da Cidade: A Propriedade à Prova no Direito do Urbanismo, Tese de Doutoramento, Policopiado, 2010, p. 281.         [ Links ]
10 Contudo, já não será, em princípio, abrangida por este tipo de garantia a construção de um edifício equivalente, no caso de um prédio ter sido destruído na sua totalidade ou, em geral, uma ampliação da construção.
11 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p. 33.         [ Links ]
12 Entre outros, Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p.33-35;         [ Links ] e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, pp. 497-498, nota 297.         [ Links ]
13 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, pp.34-35. Entende o citado autor que esta nova concepção é emanação do principio da primazia da materialidade subjacente, a qual impõe uma concretização material das regras e princípios consagrados pelo legislador. Já ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, pp. 497-498, nota 297, considera que “negar esta protecção do existente excepcional equivaleria a negar totalmente a garantia do existente, consubstanciando a sua protecção nada mais do que um presente envenenado do legislador urbanístico aos proprietários”.
14 Também no artigo 117º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial se encontra uma certa manifestação do princípio da garantia do existente, na medida em que aí se estabelece que “não se suspendem os procedimentos de informação prévia, de comunicação prévia e de licenciamento, quando o pedido tenha por objecto obras de reconstrução ou de alteração em edificações existentes, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e salubridade da edificação”.
15 No ordenamento jurídico espanhol foi consagrado o regime de fuera de ordenación. Este regime permite que os edifícios construídos antes da entrada em vigor de um novo plano mantenham os seus usos, desde que não prejudiquem a execução desse mesmo plano (artigo 137º da Lei do Solo).
16 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p. 27.
17 João Baptista Machado, Sobre a Aplicação da Lei no Tempo do novo Código Civil, Coimbra, Livraria Almedina, p. 47 e pp. 56-57. Refere o autor que “deve-se ter em conta os interesses dos indivíduos na estabilidade da ordem jurídica, ou antes, na estabilidade das situações jurídicas, afim de lhes consentir a organização dos seus planos de vida e lhes evitar o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas. Mas a esse interesse contrapõem-se um outro: o interesse público na transformação da antiga ordem jurídica e na sua adaptação a novas necessidades e concepções sociais, mesmo à custa de posições jurídicas e de expectativas fundadas no antigo direito”.
18 Miguel Galvão Teles, “Inconstitucionalidade Pretérita”, in Nos Dez anos da Constituição, org. Jorge Miranda, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, pp. 278-281. Como menciona o autor, embora no âmbito do Direito Constitucional, a nova norma não pode recusar que a norma anterior vigorou, mesmo na situação desta ficar despida de efeito, essa vigência da norma anterior é uma vigência jurídica, da perspectiva do sistema normativo em que ambas se integram, e não mero facto histórico. Não obstante a “Constituição nova não poder apagar a história pode, contudo, julga-la, através de um juízo que defina a relevância do passado”. É precisamente neste ponto que entra o direito transitório material, que pretende demonstrar a importância do direito anterior e como essa importância se deve relacionar com o direito novo.
19 Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, pp. 621-623.
20 Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 1995, 6ª edição, p.372. O autor acrescenta ainda que “a Constituição da República Portuguesa protege o património particular porque o entende como um instrumento de realização de projectos de vida autonomamente definidos e responsavelmente cumpridos, sendo esta a ratio que justifica a norma do n.º1 do artigo 62º do mesmo diploma”.
21 Só quando tal se verifique é que terá inicio a aplicação do princípio da tutela da confiança, Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, p. 623.
22 Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pp. 623-624.         [ Links ]
23 João Baptista Machado, “Tutela da confiança e «venire contra factum proprium»”, in RLJ, n.º3725, 1984, pp. 229-230.         [ Links ]
24 António Menezes Cordeiro, Parecer inédito de Fevereiro de 1997, pp. 39 e ss.
25 Mário Esteves de Oliveira / Pedro Costa Gonçalves / Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, Almedina, 2010, p. 111.
26 Mário Esteves de Oliveira / Pedro Costa Gonçalves / Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, pp. 112-116. Referem ainda os autores que o n.º2 do artigo 6º/A do Código de Procedimento Administrativo ao prescrever que na aplicação do princípio da confiança «devem ponderar-se os valores fundamentais do direito … e em especial a confiança suscitada na contraparte» torna o princípio, em certa medida, dependente da sua confluência ou harmonização com os valores fundamentais do direito e os objectivos e fins da conduta em causa.
27 Parejo Alfonso, (Prólogo a Castillo Blanco) La protección de confianza en el Derecho Administrativo, Madrid, 1998, pp. 9-13.
28 Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2ª edição, Almedina, 2011, p. 45.
29 João Miranda, A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial, pp. 88-90.
30 João Miranda, A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial, pp. 88-90.
31 Atente-se que este preceito irá ser modificado no próximo Código de Procedimento Administrativo, estando previsto no seu Anteprojecto a livre revogabilidade de actos constitutivos de direitos mediante o pagamento de uma indemnização.
32 Vieira de Andrade, Revogação do Acto Administrativo, in Direito e Justiça, Vol. VI 1992, pp. 59-61. Advoga o autor que deve ser levada a cabo uma ponderação entre o interesse público e o privado, permitindo a revogação, em regra com indemnização, quando o interesse público seja especialmente forte e não houver razão para proteger a confiança do particular na manutenção da situação constituída.
33 Pedro Gonçalves, Revogação, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VII, 1996, pp. 316-318. Como argumentos adicionais, invoca a circunstância de existirem normas que atribuem poderes à Administração para expropriar ou requisitar bens imóveis dos administrados ou para rescindir unilateralmente os contratos administrativos por imperativo de interesse público, ainda para mais tendo em conta o princípio da equivalência funcional entre o acto e o contrato administrativo (n.º1 do artigo 179º do Código de Procedimento Administrativo). Por maioria de razão, os actos constitutivos de direitos, seriam susceptíveis de revogação.
34 Carla Amado Gomes, Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, Coimbra Editora, 2007, pp. 629-631 e 712-716.
35 Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, 2013, pp. 545-547.
36 Pereira Coutinho, Notas sobre a alteração de licença urbanística, ficheiro electrónico em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/LPPC1.pdf., p. 7.
37 Pereira Coutinho, Notas sobre a alteração de licença urbanística, pp. 10-12. Na concepção do autor, com a vantagem de se convocar um instituto com larga tradição e expressamente reconhecido pelo Código de Procedimento Administrativo no seu n.º2 do artigo 3º. Além de que apenas se permite aquela imunização quando em causa estiver «perigo ou ameaça actual ou iminente para um bem jurídico que apresente, no caso, um valor manifesta ou sensivelmente superior ao apresentado pelo bem consubstanciado na segurança jurídica». Garantindo-se, ainda, como refere o autor, “um controlo da legitimidade da intervenção baseado nos padrões da proporcionalidade, da imparcialidade e da igualdade, cujo cumprimento é igualmente indispensável à justificação do próprio estado de necessidade”.
38 Fernanda Paula Oliveira, Quem dá pode voltar a tirar …?Novas regras de ordenamento e direitos adquiridos – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativode 11 de Novembro de 2004, Processo n.º 873/03, in Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, I, 2004, pp. 158-163.
39 Pereira Coutinho, Notas sobre a alteração de licença urbanística, pp. 13-16. Como tal, e sendo este o princípio geral, considera o autor que não deve o ordenamento jurídico-administrativo furtar-se à lógica do ordenamento jurídico geral. O autor apresenta ainda como argumento a circunstância de a entidade responsável pelas soluções de planeamento não se dever entender legitimada a adoptar soluções «aparentes», “geradoras de uma integral desconformidade entre o que consta dos planos e o que releva do existente, ou seja, de total disparidade entre o Planning in Books e o Planning in Action”.
40 Suzana Tavares Silva, Da "Contemplação da Ruína" ao Património Sustentável. Contributo para uma Compreenção Adequada dos Bens Culturais, in RevCEDOUA, n.º 10, Ano V 2.02, p. 87.
41 Suzana Tavares Silva, Da "Contemplação da Ruína" ao Património Sustentável. Contributo para uma Compreenção Adequada dos Bens Culturais , p. 87.
42 Suzana Tavares Silva, Da "Contemplação da Ruína" ao Património Sustentável. Contributo para uma Compreenção Adequada dos Bens Culturais, pp. 87-88.
43 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p. 28.
44 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p. 28. O autor menciona, com tal propósito, o n.º3 do artigo 60º do RJUE: “A lei pode impor condições específicas para o exercício de certas actividades em edificações já afectas a tais actividades ao abrigo do direito anterior”. Este regime justifica-se, na concepção do autor, na medida em que tenha existido uma evolução em função da progressiva exigência de qualidade na prestação de serviços, assim como através do progresso científico das tecnologias utilizadas na actividade.
45 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, pp. 29-31. O autor critica, ainda, o sistema de concordância prática eleito pelo legislador, na medida em que ficaram consagrados fundamentos alternativos de licenciamento daquelas obras, fundamentos esses que podem ser, na prática, totalmente opostos. Deve-se ou não licenciar, pergunta o autor, uma obra de reconstrução que simultaneamente agrave a desconformidade da edificação sobre a qual incide com o plano actualmente em vigor e tenha como resultado uma franca melhoria das condições de segurança e de salubridade da mesma? Esta situação é, geralmente, geradora de grande incerteza para as respectivas Câmaras Municipais.
46 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, p. 30 e nota 105. O autor defende, por ultimo, que numa situação em que uma obra determine em igual grau o agravamento da desconformidade com o plano e a melhoria da segurança e salubridade do edifício, deverá o operador autárquico optar pelos valores da segurança e salubridade, permitindo, desta forma, o licenciamento, pois são os valores com maior defesa constitucional.
47 Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, 2006, p. 565.
48 Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo,2006, p. 565.
49 Castanheira Neves / Fernanda Paula Oliveira / Dulce Lopes, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado, 3ª edição, Almedina, 2012, pp. 462-466.
50 É invocado pelas autoras o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Março de 2005, no qual se estabeleceu que «o preceito não textualizou a possibilidade de obras de ampliação. Mas podem existir obras de ampliação, desde que não originem nem agravem a desconformidade com as normas em vigor. Não há razão que justifique tratamento diverso do tratamento das obras de alteração ou reconstrução, no sentido do n.º2 do artigo 60º. Uma interpretação adequada da lei deve levar-nos a concluir que o legislador disse menos do que queria.»
51 Castanheira Neves / Fernanda Paula Oliveira / Dulce Lopes, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado, pp. 462-466. Pelo menos nos casos em que a demolição não esteja compreendida num procedimento prévio direccionado para o efeito.
52 Suzana Tavares Silva, O Novo Regime da Reabilitação Urbana, Almedina, 2010, pp. 17-18.
53 Cláudio Monteiro, O Domínio da Cidade, p. 282 e nota 788. O autor dá como exemplo aquelas situações de obras realizadas ao abrigo de licenças inválidas que já não podem ser revogadas pela Administração ou impugnadas por terceiros.
54 Cláudio Monteiro, O Domínio da Cidade, p. 287. Acaba, o autor, por concluir que este instituto é também imposto pelo próprio princípio da proporcionalidade, pois torna-se manifestamente excessivo impedir uma melhoria do aproveitamento do bem pelo seu proprietário sem a contrapartida de um ganho real para o interesse público.
55 Quanto a esta posição de Cláudio Monteiro, importa ver que a mesma não é aceite no cerne da doutrina privatística. Exemplo disso mesmo é a interpretação restritiva levada a cabo por José Alberto Vieira da alínea d) do artigo 1476º do Código Civil, em Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pp. 439-441. Segundo o autor citado a destruição acarreta a perda da sua forma e substância e, consequentemente, faz cessar a sua existência física e jurídica, pois a perda ou destruição da coisa são encaradas como um facto extintivo de direitos reais. No mesmo sentido parece ir Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2003, p. 404. Em sentido contrário António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa: Lex, 1993, pp. 544-545. Este último autor distingue entre a destruição da coisa e a sua deterioração, sendo que apenas a própria destruição seria suficiente.
56 Aparentemente, a concepção do autor teria sido acolhida no acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, de 13 de Março de 2009, onde se considerou que não obstava à protecção o facto de o prédio em causa se encontrar em ruínas e que, actualmente, da construção originária apenas se mantivesse parte das paredes.
57 Cláudio Monteiro, Domínio da Cidade, pp. 288 e 294-295. Realça, todavia, que do n.º3 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação permite restrições a este regime geral, quando as circunstâncias da realidade almejada pelo plano assim o requeiram e desde que o disponha de forma expressa, além de implicar uma obrigação de indemnizar por tal consubstanciar «uma restrição significativa na sua utilização de efeitos equivalentes a uma expropriação», como prescreve o n.º2 do artigo 143º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.
58 Cláudio Monteiro, Domínio da Cidade, pp. 296-297. Em suma, não haveria um direito subjectivo público do proprietário àquela dispensa, antes existindo, ao que parece, uma mera expectativa legítima (um interesse legalmente protegido) de obter uma decisão fundamentada sobre aquela possibilidade
59 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2003, pp. 904-906. A derrogação administrativa pressupõe, como explicita este autor, que o estabelecido na estatuição de uma determinada norma possa ser afastado ou modificado através de decisão individual de um órgão administrativo. Como realça o autor, a habilitação legal da derrogação administrativa se, por um lado, permite dar resposta a uma necessidade de adaptação administrativa da solução legal à realidade factual, evitando soluções únicas e rígidas na sua imperatividade, envolve, por outro lado, uma “erosão da legalidade subjacente à actuação administrativa, permitindo a sua flexibilização pela Administração, debilitando o poder conformativo do princípio da legalidade sobre o exercício da actividade administrativa”.
60 Pesquisável em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/04348c533cd264cb80257586003b0403?OpenDocument .
61 Pesquisável em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/de6964a4031222d380256fc7003ab708?OpenDocument&ExpandSection=1 .
62 Pesquisável em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/d57e8196305b017e80257a830039406c?OpenDocument .
63 Pesquisável em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/0/679cdef0c4ac8a0080257666004c9b26?OpenDocument .
64 Pesquisável em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e74f3abaf02582bf802571c0004d04de?OpenDocument&ExpandSection=1 .
65 Gonçalo Reino Pires, A Classificação e a Qualificação do Solo por Planos Municipais de Ordenamento do Território, Parte I, Relatório de Mestrado, policopiado, pp. 242-244. O autor avança que a conformação do território desejada é uma conformação que se procura coerente, integrada, que, no fundo, funcione como um complexo de escolhas apto a dar resposta às necessidades do interesse público, carecendo de uma concretização conforme.
66 Gonçalo Reino Pires, A Classificação e a Qualificação do Solo por Planos Municipais de Ordenamento do Território, pp. 244-248.
67 Pereira Coutinho, Controlo de Operações Urbanísticas em Área de reabilitação Urbana, ficheiro electrónico em http://icjp.pt/sites/default/files/media/1122-2446.pdf, p. 8.
68 Pereira Coutinho, Controlo de Operações Urbanísticas em Área de reabilitação Urbana, pp. 8-9. Determina o preceito que tais obras podem ser dispensadas do cumprimento das normas supervenientes à construção originária quando se reúnam cumulativamente dois pressupostos. São eles o «da realização das obras resultar uma melhoria das condições de desempenho e segurança funcional, estrutural e construtiva da edificação e o sacrifício decorrente do cumprimento das normas supervenientes à construção originária ser superior face à vantagem daí resultante».
69 Pereira Coutinho, Controlo de Operações Urbanísticas em Área de reabilitação Urbana, p. 9. Correr-se-ia o risco de estarmos perante um verdadeiro «cavalo de Tróia», em cujo quadro o desrespeito pelas normas que vinculam a Administração passa a ser encarado como uma «vantagem» sopesável. Existiria, ainda segundo o autor, uma amplíssima margem de livre decisão, sendo que o decisor poderia ser, quer um órgão do Município, quer um órgão de uma empresa municipal, ao abrigo de uma possível delegação de poderes.
70 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, pp. 833 e ss.
71 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, pp. 904-905.
72 João Miranda, A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial, pp. 229-231. Aceitar de forma generalizada este instrumento, equivaleria, segundo o autor, a «descer perante tacticismos que põem em causa o carácter estratégico do plano». Além do deficiente controlo jurisdicional que daí adviria, pois estariam em causa decisões segundo critérios de oportunidade.
73 Herbert Hart, O Conceito de Direito, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 137 e ss.
74 Castanheira Neves, Metodologia Jurídica: Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993, pp. 110. O autor reforça que os enunciados das prescrições legais não manifestam sem mais, ou de uma forma evidente, uma significação. E não a manifestam porquanto na linguagem, como em geral em qualquer linguagem, se reconhecem vários tipos de indeterminações significativas, nomeadamente, as ambiguidades, vaguidades e porosidades.
75 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade,p. 162.
76 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade,p. 163. Aliás, com especial interesse para o tema aqui em investigação, refere o autor que uma das principais causas desta debilidade conformativa da legalidade está, precisamente, na “legalidade principiológica” que inunda o nosso sistema jurídico. Estando perante um Direito de princípios, e já não tanto de regras, remete-se para o aplicador administrativo do direito um poder suplementar de proceder a ponderações de interesses e de bens alicerçados em princípios constitucionais, saindo reforçado o activismo constitucional da Administração e debilitada a função da lei de servir de instrumento de certeza e segurança jurídica na actuação administrativa.
77 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade,pp. 168-169.
78 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade,pp. 1101-1102.
79 Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo,p. 45.
80 Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Gera: Actividade Administrativa, Tomo III, Dom Quixote, 2007, pp. 174-175.
81 Repare-se que Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Gera: Actividade Administrativa, pp. 176-177, não obstante admitirem uma transfiguração da legalidade, não adoptam um entendimento tao radical como o propugnado por Paulo Otero. Os autores entendem estas mudanças como “um ajustamento do princípio da legalidade no quadro do Estado de Direito democrático substancial zelador da relação entre a democracia e a primazia do papel politico e legislativo do Parlamento e da lei sobre a Administração”.
82 Não obstante não levantarmos problemas quanto a esta vertente do princípio da protecção/garantia do existente, importa não esquecer que esta vertente poderia ser algo relativizada se atendermos a um conceito de demolição mais “flexível”. Defendemos que existe um juízo de discricionariedade aquando da análise da susceptibilidade de determinada construção estar conforme com as exigências legais e regulamentares. Contudo, após esse juízo, caso se conclua pela inviabilidade da legalização, a ordem de demolição surge como um acto devido pela Administração, assim como a situação inversa. Todavia, entendemos que em nome do principio da proporcionalidade, o juízo de viabilidade a que se refere o n.º 2 do artigo 106º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação pode ter na base meros (mas com especial força) indícios de conformidade com potenciais normas, desde que tal juízo de prognose seja um juízo a curto prazo (sob pena de se colocar em crise o principio da legalidade urbanística) e dotado de uma especial certeza quanto à sua emanação e conteúdo perspectivado. Com esta interpretação saem especialmente reforçadas as vertentes do equilíbrio e razoabilidade, na medida em que o benefício que daí retiraria a Administração (que pouco seria na medida em que a situação fáctica estava de acordo com a concepção que a Administração impregnou nas normas que entrarão em vigor), não compensa o prejuízo que de tal operação resulta para o particular. Aliás, seria mesmo questionável que a solução se demonstrasse idónea à prossecução do próprio interesse público que, entretanto, sofreu uma mutação, pela diferente concepção subjectiva que a Administração adoptou acerca do mesmo. Ora, tendo em conta os fortes efeitos lesivos que podem decorrer de uma ordem de demolição, o poder discricionário que é conferido à Administração para se certificar da compatibilidade da obra com os parâmetros legais e regulamentares, por menor que seja essa discricionariedade, deve ser exercida com base numa efectiva ponderação de interesses, nomeadamente através de uma ponderação equitativa dos interesses dos particulares e apenas se deve concluir, segundo nos parece preferível, pela insusceptibilidade de legalização quando a construção em causa seja desconforme de forma grave e acentuada com o estabelecido legalmente, de tal forma que a gravidade de tal violação afecte de forma insustentável e irreversível o interesse público subjacente à norma em apreço e à globalidade do sistema jus-urbanístico. Não se vê nenhuma razão ponderosa para que não se aceitem margens de tolerância, de tal forma que desvios mínimos e irrelevantes não sejam valorados em desfavor dos interesses dos particulares. Em suma, apenas parece ser de admitir a demolição se a lesão do interesse público em causa somente for tutelado pela repristinação da situação de facto anterior e se a tutela daquele se considerar, no caso concreto, imprescindível, após a sua ponderação com os interesses privados susceptíveis de serem lesados. Sobre a demolição e num sentido não totalmente coincidente com o aqui proposto veja-se em especial Carla Amado Gomes, Embargos e Demolições: entre a vinculação e a discricionariedade, in Cadernos de Justiça Administrativa, Braga, n.º19, Janeiro-Fevereiro 2000, pp. 37-49; Cláudio Monteiro, O embargo e demolição de obras no Direito do Urbanismo, Relatório tese Mestrado, policopiado, 1995, pp. 119 e ss.; e Dulce Lopes, Medidas de tutela da legalidade urbanística, in RevCEDOUA, n.º14, ano VII, 2.04, pp. 93-114.
83 Que como já se teve oportunidade de referir, é bastante questionável, ainda nos dias de hoje, a sua valia como entrave ao princípio do interesse público e, daí a necessidade (mesmo admitindo em abstracto a sua importância) de averiguar se o concreto particular está investido de uma situação legítima de confiança.
84 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil I: Introdução, Fontes, Interpretação da Lei, Aplicação da Lei no Tempo, Doutrina Geral, 4ª edição reformulada e actualizada, Almedina, 2012, p. 966. Segundo o autor, uma concepção subjectiva ética impõem-se, desde logo, por via da juridicidade do sistema, na medida em que o Direito não associa consequências a puras causalidades como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência. Ao lidar com uma boa-fé subjectiva ética, o Direito está, de modo implícito, a incentivar o acatamento de deveres de cuidado e de diligência. Além do mais, uma concepção puramente psicológica de boa-fé equivaleria a premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente. Por fim, uma concepção subjectiva ética justifica-se pela própria praticabilidade do sistema. Não seria possível, nem desejável, provar o que se passa no espirito das pessoas. Apenas se pode demonstrar que alguém sabia ou devia saber.
85 Que, como se esclareceu, é o de evitar que mudanças abruptas de regime, não esperáveis nem calculáveis pelos particulares, tenham uma eficácia imediata.
86 Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral: Actividade Administrativa, pp. 221-222.
87 Vieira de Andrade, Revogação do Acto Administrativo, pp. 59-61.
88 Pedro Moniz Lopes, O existente tem direitos?, pp. 33-34; Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, pp. 498-499.
89 Repare-se que o Direito do Urbanismo tem sido entendido como uma garantia do direito fundamental à habitação, devendo caber ao Estado programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social. Como ficou explicito nos acórdãos n.ºs 130/92 e 131/92 do Tribunal Constitucional, está em causa o direito de todos os cidadãos “a uma morada decente, para si e para a sua família, uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade”. Uma das vias de alcançar este desígnio é, precisamente, a planificação urbanística, já que é através desta que se reservam terrenos destinados à implantação de habitações, incluindo habitações sociais.
90 Cláudio Monteiro, O Domínio da Cidade, pp. 79-84. Refere o autor que desde muito cedo está enraizada na comunidade jurídica a ideia de que a discricionariedade implícita no direito de propriedade não pode ser total, e que os comportamentos manifestados ao abrigo desse direito devem respeitar o escopo económico e social que presidiu à sua constituição, de forma a obter, por um lado, uma maior utilidade privada na sua utilização e fruição – função pessoal da propriedade – e, por outro, a satisfação de necessidades de toda a colectividade – função social da propriedade. Entendimento de tal forma crescente que se considera, nos dias de hoje, a função social da propriedade como fazendo parte do património constitucional comum do Estado Social de Direito. Como também realça Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do Legislador, pp 594-596, a função social é um elemento da estrutura do direito de propriedade privada que, conformado pelo legislador, por referência ao destino económico e social do bem que constitui o objecto do direito, incorpora os interesses da colectividade no seu próprio conteúdo. Essencial é encontrar, a cada instante, a síntese suficiente entre a utilidade social e a utilidade individual dos bens apropriados. Por seu turno, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 4ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 526, salienta que o princípio da função social resulta da inserção do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa num contexto mais vasto, em que se destacam a «construção de uma sociedade livre, justa e solidária», «a realização da democracia económica, social e cultural», a promoção da «igualdade real entre os portugueses», entre outros. Como tal, parece dever concluir-se que o direito de propriedade não confere ao seu titular, directa e imediatamente, o poder concreto de realizar no seu terreno as construções e edificações que bem entender, à margem da conformação do conteúdo do aproveitamento urbanístico do seu direito, que é feita no quadro do respectivo estatuto legal e constitucional. Por seu turno, Fernando Alves Correia vem dar-nos conta da doutrina da “vinculação social mais forte” a que estaria sujeita a propriedade dos solos, em relação à propriedade sobre outro tipo de bens, devido à sua importância fundamental para o desenvolvimento da sociedade no seu conjunto e para as necessidades das instituições de utilidade pública, em Direito do Urbanismo, 4ª edição, Vol. I, Almedina, 2008, pp. 817-818.
91 Repare-se que a Constituição Urbanística começou por ser configurada como estando funcionalizada à satisfação do direito fundamental à habitação. Neste sentido, Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, 2008, p. 526; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 834. Relembre-se, ainda, que “fazer cidade” é uma tarefa própria da Administração, não obstante em certas circunstâncias poder ser realizada por particulares. Contudo, a actividade deste é inteiramente subordinada ou dependente da iniciativa da Administração, com a qual aqueles apenas colaboram. Neste sentido, Cláudio Monteiro, Domínio da Cidade, p. 209-210. Como realça, por fim, este autor, o planeamento territorial, como corolário da função urbanística como função Estatal, é indispensável à satisfação do direito à habitação e ao ambiente. Parece ser de concluir que a Administração mantém o controlo e direcção do processo de urbanização, confinando o particular à execução da transformação física do território com subordinação ao “interesse geral”.
92 Paulo Otero Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, pp. 996-999. Como realça o autor, o estado de necessidade administrativa integra uma dimensão alternativa da legalidade administrativa, existindo circunstâncias de facto extraordinárias, que gerando uma necessidade de actuar urgente, envolvem a ameaça ou a continuação de uma efectiva situação de perigo ou de dano a valores, bens ou interesses públicos cuja essencialidade da tutela exige uma intervenção administrativa que só pode ser alcançada com preterição das regras que normalmente pautam a actividade da Administração Pública. Ora, parece ser este, exactamente, o caso retratado no corpo do texto.
93 Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral: Actividade Administrativa, p. 214.
94 É o que parece resultar do n.º1 do artigo 1405º e do n.º1 do 1411º do Código Civil, relativamente ao regime da compropriedade e do artigo 89º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação: “1- As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.”