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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.2 no.1 Lisboa jan. 2015

 

DIREITO PÚBLICO

O contexto particular dos contratos públicos do sector da defesa no mercado interno europeu

European Defense Procurement: A particular approach

Durval Tiago FerreiraI

ICentro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) Avenida 25 de Abril, nº 50 4760 - 101 Vila Nova de Famalicão - Portugal. e-mail: durvaltiagoferreira@hotmail.com

 

 

RESUMO

O presente artigo refere-se ao papel preponderante que os contratos públicos no sector da defesa assumem na prossecução do mercado interno europeu, evidenciando o conjunto de especificidades que os caracterizam, resultantes da própria natureza dos bens militares e dos serviços que lhe estão conexos. Estas particularidades do sector da defesa têm sido reconhecidas desde a fundação da Comunidade, através de um regime derrogatório consagrado no Tratado, a que corresponde, na actualidade, o art.º 346 do TFUE. Faz ainda uma breve referência ao regime previsto para estes contratos nas novas directivas relativas à contratação pública, aprovadas no início do presente ano. E conclui-se que, fruto da resistência dos Estados-Membros em abrirem mão de um dos seus mais poderosos instrumentos de soberania, as instâncias europeias têm ainda um longo caminho pela frente na consolidação de um verdadeiro mercado comum no sector da defesa.

Palavras-chave: contratos públicos, sector da defesa, mercado interno, soberania, Estados-Membros.

 

ABSTRACT

This article refers the important role that public procurement in the defense sector plays in the European internal market, indicating the set of special features, resulting from the nature of military goods and services related to it. These particularities have been recognized since the founding of the Community through a derogation enshrined in the Treaty, to which it corresponds, at present, the art.º 346 TFEU. Besides, this article still makes a brief reference to the arrangements for these contracts in the new directives on public procurement, approved this year. And the conclusion is that, due to the resistance of Member States in order to give up one of their most powerful instruments of sovereignty, the European institutions have a long road ahead in consolidating a genuine common market in defense sector.

Keywords : public procurement, defense sector, internal market, sovereignty, Member-States

 

Sumário: 1. Introdução 2. O âmbito de aplicação do art.º 346 do TFUE 3. Os contratos do sector da defesa e as novas directivas relativas à contratação pública 4. Conclusões

 

 

1. Introdução

Os contratos públicos no sector da defesa, embora assumam um papel preponderante na prossecução do mercado interno europeu, contém um sem número de especificidades que resultam da própria natureza dos bens militares e dos serviços conexos 2.

Estas particularidades do sector da defesa têm sido reconhecidas desde a fundação da Comunidade, através de um regime derrogatório consagrado no Tratado, a que corresponde, actualmente, o art.º 346 do TFUE.

Não são especificidades tão só de ordem económica ou tecnológica, mas contendem também com as políticas de segurança e defesa de cada um dos Estados-Membros.

Desde logo, há a destacar, neste sub-mercado, o papel preponderante que assumem os Estados. As condições de exploração das indústrias de armamento têm em conta considerações de ordem política, estratégica e de segurança 3.

Na verdade, são os Estados, enquanto clientes únicos, que determinam a procura dos produtos em função das necessidades militares ligadas aos respectivos objectivos estratégicos, definindo assim a dimensão dos mercados. Esta circunstância particular implica que os Estados, enquanto reguladores, controlem o comércio de armamento através das licenças de exportação necessárias às indústrias, nomeadamente para fornecer equipamento no interior da União, e da concessão de autorizações para apresentação de propostas. Este controlo estatal estende-se ainda às reestruturações industriais e inclusive aos diversos accionistas.

Por um lado, a manutenção de uma capacidade industrial de defesa exclusivamente nacional será certamente mais favorável, como resposta aos interesses estratégicos ou às situações de operações militares de urgência.

Por outro, a complexidade dos programas de aquisição de armamento pressupõe que o seu volume de produção seja limitado e que os riscos de fracasso comercial só compensem se existir o conforto de um apoio estatal; ainda para mais quando o ciclo de vida destes produtos é consideravelmente longo 4. Ora, os Estados querem manter as suas capacidades industriais e tecnológicas adequadas durante a totalidade desse período e manter igualmente relações fiáveis com os respectivos fornecedores.

Num segundo aspecto que particulariza este tipo de contratos, temos a fragmentação dos mercados europeus, que conduz à duplicação desnecessária de capacidades, organizações e despesas. As despesas dos Estados-Membros no sector da defesa constituem uma parte importante das respectivas despesas públicas, dos quais um quinto é consagrado às aquisições de equipamento militar (dividido por aquisições, investigação e desenvolvimento). Contudo, a cooperação e a concorrência a nível europeu continuam a ser excepção, com mais de 80% dos investimentos em equipamento de defesa a serem gastos a nível nacional 5. Na verdade, para os Estados, a política de armamento não pertence ao campo de actuação da Comunidade e não entra nos domínios clássicos da economia europeia. Em consequência, a celebração da maioria dos contratos da defesa esteve (e está) sujeita unicamente às regras nacionais, no pressuposto de que a defesa é o coração da soberania nacional 6. Esta situação conduzirá, a médio prazo, à perda de competências críticas e de autonomia numa área fundamental como é a da defesa 7.

A par da fragmentação dos mercados, temos a crise da despesa pública e a consequente diminuição dos orçamentos da defesa. Entre 2001 e 2010, as despesas de defesa da EU diminuíram de 251 mil milhões de euros, para 194 mil milhões de euros. Só no que toca à I&D (investigação e desenvolvimento), a diminuição verificada entre os anos de 2005 e 2010 foi de 14% nos orçamentos europeus, por contraponto ao que valor que é gasto pelos EUA e que representa 7 vezes o valor europeu! E a acrescer às constantes reduções orçamentais, temos um aumento de custos, provocado pela crescente complexidade tecnológica e pela redução dos volumes de produção, devidos à reorganização e à redução das forças armadas europeias desde o final da guerra fria.

Tal não significa, porém, que a indústria da defesa não continue a desempenhar um papel crucial na economia europeia. Com um volume de negócios, em 2012, de 96 mil milhões de euros, este sector gera inovação e assenta em engenharia e tecnologias avançadas. A sua investigação de ponta produz efeitos indirectos noutras áreas, como a electrónica, a indústria espacial e a avaliação civil, significando crescimento e milhares de empregos altamente qualificados 8.

Na verdade, e apesar dos cortes, os Estados-Membros gastaram (em 2011) mais com a defesa do que o conjunto da China, a Rússia e o Japão9. Pelo que os constrangimentos orçamentais devem ser compensados por um maior incremento de clusters, da especialização, da investigação e do aprovisionamento comuns, e ainda de uma abordagem mais eficaz entre os domínios militar e civil e de uma maior integração do mercado 10.

A base industrial e tecnológica de defesa (BITD) europeia constitui um elemento fundamental da capacidade da Europa para garantir a segurança dos seus cidadãos e proteger os seus valores e interesses.

Daí que os responsáveis políticos europeus tenham vindo a repensar, nos últimos anos, o papel do sector da defesa no seio da União, conscientes que a Europa deve ser capaz de assumir as suas responsabilidades pela sua própria segurança, pela paz internacional e pela estabilidade em geral.

Assim, em 2003, a Comissão Europeia, na sua Comunicação “Para uma política comunitária em matéria de equipamento de defesa”, adoptada em 11 de Março de 2003,

(2004/213/CE) declara ser sua prioridade a construção progressiva de um mercado europeu de equipamento de defesa mais transparente e aberto. E na sequência desse desiderato, são apresentados sucessivos documentos. Desde logo, o Livro Verde sobre “Contratos Públicos no Sector da Defesa”, de 23/09/04, COM (2004) 608 final; a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu relativa aos “resultados da consulta lançada pelo Livro Verde”, de 6/12/05, COM (2005) 626; a Comunicação Interpretativa da Comissão, de 7/12/06, relativa à “aplicação do art.º 296 do Tratado no âmbito dos contratos públicos do sector da defesa” e a Comunicação da Comissão (COM) 764, final, ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 5/12/07, intitulada “Uma estratégia para uma indústria da defesa europeia mais forte e mais competitiva”. Atenta a sua complexidade e sensibilidade, estes contratos não foram incluídos nas Directivas de 2004 e publicaram-se as Directivas 2009/81/CE, de 13/07, sobre defesa e aprovisionamento e 2009/43/CE, de 6/05, sobre transferências, que constituem a pedra angular do mercado europeu de defesa. Da transposição destas Directivas para o ordenamento jurídico nacional, resultaram a Resolução de Conselho de Ministros n.º 35/2010, relativa à Base Tecnológica e Industrial de Defesa e os Decreto-Lei n.º 104/11 e 105/11; ambos de 6 de Outubro, que vieram aprovar o regime da contratação pública nos domínios da defesa e da segurança, transpondo a Directiva n.º 2009/81/CE.

Mais recentemente, e com vista ao aprofundamento do mercado interno de defesa e segurança, foi apresentada a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, “Para Um Sector da Defesa e da Segurança mais competitivo e eficiente”, Bruxelas, 24/07/13, COM (2013) 542 final.

Em conclusão, e apesar das particularidades que caracterizam os contratos do sector da defesa que obrigam a um constante trabalho das instâncias europeias, pode afirmar-se que, com a transposição da Directiva 2009/81 a todos os Estados-Membros, está constituída a coluna vertebral da regulação de um mercado europeu da defesa.

2. O âmbito de aplicação do art.º 346 do TFUE

Nos termos da legislação comunitária, os contratos no sector da defesa subordinam-se às regras do mercado interno. A Directiva 2004/18/CE é aplicável aos contratos públicos celebrados por entidades adjudicantes no domínio da defesa, sob reserva do disposto no art.º 296.º do Tratado (art.º 10.º da Directiva).

Assim, os Estados-Membros podem fazer uso desta isenção para a adjudicação deste tipo de contratos, desde que estejam preenchidas as condições definidas no Tratado, segundo a interpretação que lhes confere o Tribunal de Justiça 11.

Enquanto que o n.º 1, alínea a) deste artigo não se refere especificamente à defesa, já a alínea b) abarca os processos de aquisição de equipamento militar.

O recurso a esta derrogação é restringido, em primeira mão, pelo próprio Tratado, atento o propósito de alcançar um justo equilíbrio entre os interesses dos Estados-Membros nos domínios da defesa e segurança e os objectivos fundamentais da Comunidade.

Mas também o TJUE tem defendido que qualquer derrogação às regras do Tratado deve ser objecto de interpretação restritiva 12. Por exemplo, na decisão proferida no Processo C-414/97, Comissão/Espanha, os artigos que prevêem tais derrogações « dizem respeito a determinadas hipóteses excepcionais. Devido ao seu carácter limitado, estas disposições não podem ser objecto de interpretação extensiva » 13.

Estas circunstâncias revelam o carácter restrito e rigoroso que subjaz aos regimes excepcionais da contratação pública, não só, diga-se, no âmbito dos contratos do sector da defesa 14.

Os Estados podem tomar as medidas que entenderem por necessárias à protecção dos seus interesses de segurança essenciais. Contudo, e embora não se deixe de reconhecer que os Estados gozam de uma significativa discricionariedade, (não há uma soberania partilhada), ela não é absoluta, porquanto « o Estado deve apresentar a prova de que essas isenções não ultrapassam os limites das referidas hipóteses determinadas e demonstrar que as isenções são necessárias à protecção dos interesses essenciais da sua segurança » 15.

Por outro lado, a protecção dos interesses de segurança essenciais do Estado é o único objectivo que justifica a isenção prevista no art.º 346 do TFUE. Outros interesses, de ordem industriais ou económicos, ainda que relacionados com a produção ou comércio de armas, não podem justificar, por si só, essa isenção 16.

Além do mais, estes interesses devem ser contextualizados numa perspectiva europeia. A criação de um mercado comum da defesa é um propósito europeu, reforçado pela PESC (política externa e de segurança comum) e pela PESD (política europeia de segurança e defesa) e obriga aos Estados a terem em conta a concorrência inter-europeia quando ponderam pela inutilização das regras da contratação pública, neste caso, aos contratos no sector da defesa.

Acresce que o art.º 346 não contende com os interesses de segurança em geral, mas com a protecção dos interesses de segurança essenciais. Mais uma vez vem à tona o carácter excepcional desta derrogação e se insiste que a natureza militar específica do equipamento da lista definida na Decisão 255/58 do Conselho, não é suficiente para, per si, afastar o conjunto das regras aplicáveis aos contratos públicos.

Outrossim, os Estados devem ter presente que esta derrogação se aplica apenas em casos bem delimitados e que as isenções não ultrapassem os limites desses casos 17. Essa avaliação casuística exige que as entidades adjudicantes determinem: a) qual o interesse essencial em jogo; b) qual a conexão entre esse interesse e a decisão de adjudicação; c) porque se justifica, para proteger o interesse de segurança, a não aplicação da directiva relativa aos contratos públicos. Os Estados-Membros têm a obrigação, por força do Tratado, de comunicar à Comissão todas as medidas de auxílio estatal, incluindo os auxílios ao sector exclusivamente militar. Desta forma, quando a Comissão abre um processo de investigação sobre um Estado-Membro, estando em causa a celebração de um contrato desta natureza, é sobre esse Estado que recai o ónus de provar que a aplicação do regime geral de contratação iria comprometer os interesses essenciais da sua segurança, não se aceitando referências genéricas à situação geográfica e política, à história e aos compromissos assumidos no quadro de alianças.

O art.º 346 dispõe ainda que as medidas tomadas ao seu abrigo não devem alterar as condições de concorrência no mercado comum no que diz respeito aos produtos não destinados a fins especificamente militares 18.

O n.º 2 do art.º 346 refere uma lista, fixada em 15 de Abril de 1958, pela Decisão 255/58, do Conselho, na qual estão descriminados os equipamentos militares cujo processo de aquisição pode valer-se do regime previsto no n.º 1, alínea b) do mesmo artigo 19. Segundo o TJUE, a excepção prevista nesta disposição não se destina a ser aplicado a actividades relativas a produtos diferentes dos produtos militares aí identificados 20.

Em redor desta lista, importa salientar, ainda que de forma breve, alguns aspectos. Desde logo, há que ter em conta a evolução tecnológica dos seus produtos e da política de contratos públicos. A lista é minimamente genérica, de maneira a englobar a evolução recente e futura. E pode também abranger os contratos públicos de serviços e empreitadas, directamente relacionados com os produtos incluídos, e ainda outros procedimentos mais recentes, desde que se encontrem preenchidos os pressupostos de aplicação deste regime excepcional.

Em segundo lugar, esta lista indica apenas equipamentos de natureza e finalidade puramente militares. Somente as aquisições de equipamento concebido, desenvolvido e produzido para fins especificamente militares podem ser objecto desta isenção 21. Já se os equipamentos demonstrarem uma natureza dual, então não há lugar à aplicação desta excepção prevista na alínea b) do art.º 346. Esta dupla finalidade só é admissível para efeitos de aplicação da alínea a) desse artigo 22.

Em terceiro lugar, a Decisão do Conselho que apresenta a lista dispõe que estes equipamentos podem, em tese, ser objecto da excepção às regras da contratação. Mas não é uma aplicação automática: o equipamento incluído só pode ser objecto de isenção se, e apenas se, estiverem preenchidas as condições de aplicabilidade do art.º 346 23.

3. Os contratos do sector da defesa e as novas directivas relativas à contratação pública

No que concerne às novas directivas, a primeira, relativa aos contratos públicos, que revoga a Directiva 2004/18/CE, (2014/24/EU), a segunda relativa aos denominados “sectores especiais”, que revoga a Directiva 2004/17/CE, (2014/25/EU) e a terceira, relativa aos contratos de concessão (2014/23/EU); todas de 26 de Fevereiro e 2014/25/UE, pode afirmar-se que os contratos públicos no domínio da defesa são alvo de um destaque inédito face aos anteriores diplomas.

Na verdade, enquanto que nas directivas de 2004 se previa tão só uma reserva de aplicação atento o disposto no então art.º 296 do Tratado, nos textos actuais, quer quanto aos sectores clássicos, quer quanto aos sectores especiais, são vários os preceitos que se referem a contratos com este objecto.

Assim, quanto ao âmbito de aplicação, o n.º 3 do art.º 1.º da Directiva 2014/24/UE refere que a aplicação da presente directiva está sujeita ao disposto no art.º 346 do TFUE e o art.º 15.º determina que a directiva se aplica aos contratos públicos no domínio da defesa, com três excepções: i) contratos abrangidos pela Directiva 2009/81/CE; ii) contratos não abrangidos pela Directiva 2009/81/CE, por força dos seus art.º s 8.º, 12.º e 13.º. iii) contratos que envolvam interesses essenciais de segurança cuja confidencialidade não possa ser garantida; iii) contratos que, de acordo com o art.º 346, n.º 1, alínea a) do TFUE, a aplicar-se a directiva, obrigariam um Estado-Membro a fornecer informação cuja divulgação considere contrária aos interesses essenciais da sua própria segurança.

Já quanto aos procedimentos a recorrer na formação de contratos mistos, dispõe o art.º 16.º, n.º 2, que se for possível identificar de forma separada cada uma das partes, a entidade adjudicante pode optar por adjudicar contratos distintos ou um contrato único. Optando pela formação de contratos distintos para as partes distintas, o regime jurídico a aplicar depende das características de cada uma das partes.

Se a opção for pela adjudicação de um único contrato, aplicam-se os seguintes critérios para determinar o regime aplicável:

a) Se a parte do contrato for abrangida pelo art.º 346.º do TFUE, o contrato pode ser adjudicado sem aplicação da directiva, desde que essa adjudicação de um contrato único se justifique por razões objectivas.

b) Caso parte do contrato seja abrangida pela Directiva 2009/81/CE, então o contrato pode ser adjudicado nos termos dessa directiva, desde que a adjudicação se justifique por razões objectivas.

Se não for possível identificar separadamente as diferentes partes do contrato de forma objectiva, então o contrato pode ser adjudicado sem aplicação da directiva se contiver elementos do art.º 346 do TFUE. Se não, a adjudicação será feita nos termos da Directiva 2009/81/CE.

Por último, o art.º 17.º excepciona da aplicação do respectivo diploma os contratos públicos que envolvam aspectos de defesa e segurança e que a autoridade adjudicante seja obrigada a adjudicar ou organizar nos termos de procedimentos diferentes dos previstos na presente directiva, estabelecidos por: i) acordos ou convénios internacionais; ii) acordos ou convénios relativos ao estacionamento de tropas e que envolva empresas de um Estado-Membro ou de um país terceiro ou, finalmente, iii) uma organização internacional 24.

4. Conclusões

Em conclusão, e reconhecendo-se o esforço por parte da União Europeia, o que é certo é que a contratação pública, nesta matéria, ainda é non man`s land!

O citado Pacote de Defesa Europeu, que culminou com a publicação da Directiva 2009/43, não vem suprir essa «terra de ninguém», considerando o número de excepções ainda em vigor; somando ainda as resultantes do comércio internacional, nomeadamente ao nível do Acordo OMC e do ACP 25.

E a par das excepções determinadas directamente pela Lei, reforçadas no texto das recentes directivas de 2014, temos ainda as compras entre Estados, a contratação in house, as compras no âmbito de regras de organizações internacionais (por exemplo, ao nível da NATO), os programas cooperativos (helicópteros NH-90 e o Eurofighter) e os programas sharing and pooling.

Se juntarmos a estes factos, a resistência dos Estados em abrirem mão de um dos seus mais poderosos instrumentos de soberania, podemos concluir que as instâncias europeias ainda têm um longo caminho a percorrer na consolidação de um verdadeiro mercado comum no sector da defesa.

 

1 Advogado, Mestre e Doutorando em direito da contratação pública. Investigador do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU), Membro da Rede de Direito Ibero-americana de Contratação Pública (REDICOP) e da Procurement Law Academic Net Work.
2 Cfr. monique liebert-champagne, “Les Marchés Publics de la Défense sont-ils spécifiques?”, Les Marchés Publics de Défense, Défense Nationale et Sécurité Collective, 2008. Esta autora refere-se ao difícil equilíbrio entre o interesse comercial do mercado concorrencial e as prorrogativas de soberania dos Estados; dando vários exemplos, como a importância do sigilo na fase de formação do contrato; ou ainda os poderes do contraente público na fase de execução do contrato, que são consideravelmente mais amplos do que aqueles que são reconhecidos à entidade adjudicante, no âmbito da execução de um contrato público de outra natureza que não militar.
3 “La règlementation des marchés publics d´armement doit donc être vue dans un cadre économique, stratégique et politique”, Pyramides, Revue du Centre d'études et de recherches en administration publique, 21/2012 : “L'armée en reforme, Évolutions récentes du droit européen des marchés publics de Défense”, Baudouin Heuninckx, p. 139-172
4 O período entre a manifestação da necessidade operacional e o fim de vida de um sistema pode chegar aos 50 anos!
5 “Il est incontestable que nombre de fournisseurs de la defense sont, en France ou en Europe, en position de monopole, qu´il s´agisse de matériels comme les blindés, les navires, les avions de chasse, les missiles (… ) Enfin, certains types de prestations qui font l`objet de marches peuvent être assurés par dês enterprises étrangères, notamment européenes, mais les services de la Défense sont de fait réticents à leur ouvrir le marché domestique”; thierry kirat et denis bayon, Les Marchés Publics de la Défense, Bruylant, 2006.
6 Expressão de martin trybus, in European Union Law and Defence Integration, Hart Publishing, 2005.Conforme refere, a defesa encontra-se no cerne da soberania nacional. A defesa do país foi essencial na criação da maior parte dos Estados europeus, sendo, na maior parte dos casos, a razão da sua criação. Sem soberania sobre a sua defesa nacional e segurança, muitos governos jamais se considerariam verdadeiramente soberanos. Na senda de victor rodrigues viana, existem três esferas constituintes de uma entidade nacional moderna: a esfera de soberania (política externa, defesa nacional, segurança interna, protecção civil, justiça e informações), a esfera social e a esfera económica. Nenhuma estratégia nacional pode dispensar uma visão estratégica que as integre de forma equilibrada. In Políticas Públicas para a Reforma de Estado, Almedina, 2013.
7 Numa perspectiva crítica, sven Biscop, The European Security Strategy: Now Do It, in Europe: a Time For Strategy, Royal Institute of International Relations, Egmont Papers 27, 2009: “One thing is clear: the EU can only have an impact if it acts as one. The EU should abandon its usual stance of “divide and rule”, i.e. Europe divides itself, and Russia or China or others rule. Europe must resolutely choose to act as one united pole in a multi-polar world, including on matters of foreign policy, security and defence. Only such a Europe will be relevant to the US and the world”. Por contraponto, e numa perspectiva mais optimista, há quem assinale que a política de segurança e defesa europeia evoluiu de uma forma notável na última década. ignacio horcada rubio, in “Seguridad Europea y Globalización: Papel de la Unión Europea en la Protección de los Bienes Públicos Globales”, La nueva política de seguridad de la Unión Europea, Granada, 2012, Coord. de javier roldán barbero.
8 O sector da defesa na Europa emprega directamente cerca de 400.000 pessoas e gera postos de trabalho indirectos que chegam aos 960.000 (dados constantes na Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, Para Um Sector da Defesa e da Segurança mais competitivo e eficiente, Bruxelas, 24/07/13, COM (2013) 542 final. Trata-se de um sector essencial para que a União Europeia se mantenha como um pólo líder mundial no fabrico e inovação e, por isso, as acções que visam o reforço da competitividade da indústria da defesa constituem uma parte significativa da estratégia Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo.
9 Uma parte considerável dos gastos em defesa é efectuado por cinco Estados-Membros: França, Reino Unido, Alemanha, Itália e Suécia.
10 Sobre uma perspectiva geral acerca dos gastos dos diferentes países na área da defesa, inclusive Portugal,, vide marco capitão ferreira e sandro ferreira mendonça, in Janus, 2013.
11 Sobre este assunto, o recente Acórdão do TJUE que se pronuncia sobre a aquisição, pelo Estado português, de dois navios patrulha oceânicos para o controlo e a vigilância de espaços marítimos nacionais e para o combate à poluição marítima. A opção pelo ajuste directo (aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo S.A.) veio a merecer a censura do Tribunal e, em consequência, a não atribuição da comparticipação financeira inicialmente prevista pela Comissão Europeia para este tipo de investimentos. Processo T-509/09, Tribunal Geral (Primeira Secção), 18 de Junho de 2013.
12 Acórdãos de 4 de Outubro de 1991, Processo C-367/89, Richardt e Les Acessoires Scientifiques; de 3 de Maio de 1994, Processo C-328/92, Comissão/Espanha e de 28 de Março de 1995, Processo C-324/93, Evans Medical e Macfarlan Smith.
13 Acordão de 16 de Setembro de 1999, Processo C-414/97, Comissão/Espanha e Acórdão de 15 de Maio de 1996, Processo C-222/84, Johnston. No mesmo sentido, o Acórdão Comissão/Portugal, Processo C-38/06, de 4 de Março de 2010; o Acórdão Fiockhi Munizioni, Processo T-26/01, de 30 de Setembro de 2003, no qual o Tribunal clarifica que a mera exportação não pode ser considerado um interesse essencial à segurança. E ainda o Acórdão Sirdar, Processo C-273/97, de 26 de Outubro de 1997, “Não devem ser alargados os efeitos do art.º 296 para além do estritamente necessário”. Com idêntica conclusão, o Acórdão Comissão/Grécia, Processo C-120/94R, de 29 de Junho de 1994. E, por fim, o Acórdão Augusta, Processo C-337/05, de 8 de Abril de 2008, a propósito da aquisição pelo Estado Italiano de helicópteros com capacidade militar e civil, que por isso, o respectivo processo de aquisição foi excluído do âmbito de aplicação do art.º 296 do Tratado.
14 Vejam-se as decisões do Conselho de Estado Francês, com o n.º 460, de 22 de Agosto de 2002; n.º 461, de 29 de Agosto de 2002 e n.º 473, de 26 de Junho de 2003. Na decisão proferida em 5 de Abril de 2006, o Conselho de Estado aborda a articulação entre o Código dos Contratos Públicos francês e o Decreto respeitante ao sector da defesa, considerando que as regras dos mercados públicos entram no campo de aplicação dos contratos de defesa, com excepção daqueles que o Decreto revoga de forma expressa. Implicitamente, este órgão considerou que os mercados da defesa são sindicáveis através dos meios de recurso do direito comum. A derrogação dos princípios constitucionais só pode ser feita por objectivos de interesse geral ou por respeito a outros princípios constitucionais. Os fundamentos constitucionais dos direitos dos mercados públicos da defesa são os mesmos dos mercados públicos clássicos.
15 Processo C-414/97, Comissão/Espanha.
16 Por exemplo, o art.º 346 não abrange as contrapartidas indirectas de natureza civil, que não servem interesses de segurança específicos, mas sim interesses económicos gerais, mesmo que estejam relacionadas com os contratos públicos no sector da defesa isentos do regime geral da contratação. Recorde-se que contrapartidas são as compensações que muitos governos exigem dos fornecedores estrangeiros de material de defesa como condição para a compra de equipamento militar. Podem respeitar a um leque variado de actividades: as directas estão intimamente ligadas ao objecto do contrato; as indirectas não o estão e podem ser de natureza militar ou civil.
17 Acórdão Comissão/Espanha, Processo C-414/97.
18 Poderá ser o caso das contrapartidas, em particular as indirectas de natureza civil. Os Estados devem garantir que as medidas de contrapartida relacionadas com contratos no sector da defesa abrangidos pelo n.º 1, alínea b), do art.º 346 respeitam esta disposição.
19 Esta lista só veio a ser divulgada em 2001, por resposta à interpelação do Eurodeputado bart staes, ao Conselho, (pergunta escrita E-1324/01, de 4 de Maio de 2001).
20 Acórdão de 30 de Setembro de 2003, Processo T-26/01, Fiocchi Munizioni/Comissão. Neste sentido, também as Conclusões do Advogado-Geral, jacobs, de 8 de Maio de 1991, Processo C-367/89, Richardt e Les Accessoires Scientifiques.
21 Processo T-26/01, Fiocchi Munizioni/Comissão.
22 Em oposição à alínea b), a alínea a) do art.º 346 pode abranger a aquisição de bens para fins de segurança civis. E estes contratos podem igualmente justificar uma isenção das regras comunitárias, ao abrigo do art.º 14 da Directiva 2004/18/CE, desde que se cumpram as condições exigíveis. Sobre equipamentos que revestem esta natureza dual, cfr. o Processo T-509/09, Tribunal Geral (Primeira Secção), 18 de Junho de 2013, que opôs a Comissão Europeia ao Estado Português.
23 Vidé a resposta do Conselho à Eurodeputada marijke van hemeldonck (1985) 0574/F, de 3 de Outubro de 1985 e o Acórdão de 13 de Julho de 2000, Processo C-423/98, Albore.
24 Estas disposições têm correspondência na directiva relativa à concessões, nos art.º s 20.º e 21.º (contratos mistos) e 23.º (concessões que abrangem as actividades que envolvem aspectos de defesa ou segurança). E na directiva relativa aos denominados “sectores especiais”, nos art.º s 24.º (âmbito de aplicação), 25.º (procedimentos de contratação mistos), 26.º (procedimentos de contratação que abrangem várias actividades e envolvem aspectos de defesa ou segurança) e 27.º (contratos cuja adjudicação ou organização se reja por regras internacionais).
25 Sobre esta matéria, pedro infante da mota, O Sistema GATT – OMC – Introdução Histórica e Princípios Fundamentais, Almedina, 2005, e, do mesmo autor, A Função Jurisdicional no Sistema GATT/OMC, Almedina, 2013.