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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.1 no.3 Lisboa dez. 2014

 

DESTAQUE

Os direitos sociais como compromissos 


Social rights as commitments

 

Luís Pereira CoutinhoI

IFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: lpcoutinho@fd.ulisboa.pt

 

 

RESUMO

Este artigo aborda a adequação da concepção de direitos sociais como compromissos constitutivos – avançada por CASS SUNSTEIN com referência à Social Bill of Rights – para sistemas constitucionais, como o Português, em que esses direitos estão consagrados no texto constitucional. Defende-se que tal conceção captura, com mais precisão, a falta de força jurídica dos direitos sociais, ao contrário dos direitos de liberdade, reforçando a sua força política, que em última análise é a sua única força real possível. Sustenta-se ainda que a mesma conceção reforça a associação entre a democracia e os direitos sociais.

Palavras-Chave: direitos sociais, Second Bill of Rights, compromissos constitutivos, democracia.

 

ABSTRACT

This paper addresses the adequacy of the conception of social rights as constitutive commitments – advanced by Cass Sunstein with reference to the Social Bill of Rights – to constitutional systems, such as the Portuguese, in which those rights are consecrated by the constitutional text. It is defended that such conception captures more accurately the lacking legal force of social rights, as opposed to freedoms, reinforcing their political force, which ultimately is their only possible real force. It is also defended that the same conception strengthens the association between democracy and social rights.

Keywors: Social rights, Second Bill of Rights, constitutive commitments, democracy.

 

 

1 - A conceção de direitos sociais como compromissos constitutivos da comunidade política foi desenvolvida por Cass Sunstein por referência à Second Bill of Rights1.

Nessa conceção, parte-se da constatação da mesma Declaração como uma declaração política que “nunca se tornou parte da Constituição americana através de aditamento ou de interpretação”2. Assim, não se encontrando os direitos sociais formalizados como “direitos constitucionais” – ao contrário do que sucede com os direitos de liberdade correspondentes aos 10 primeiros aditamentos à referida Constituição –, os mesmos deveriam ser concebidos como compromissos extra-constitucionais com uma força difusamente política e, do mesmo modo, com um significado constitutivo da comunidade política com um estatuto paralelo ao da Declaração de Independência dos Estados Unidos.

Enquanto “compromissos constitutivos”, os direitos sociais distinguem-se, quer dos “direitos constitucionais”, quer das “meras políticas” (policies ). Recorda Sunstein que:

« Roosevelt emphatically did not seek a constitutional ammendment. But he also believed that the second bill went far beyond a statement of current policies. He wanted Americans to understand the second bill as part of their defining principles and their heritage – as setting out the basic principles to which the nation is committed (…); not as a lawyer's document or a code for judicial enforcement. (…) We have yet to recognize the second bill as an account of some of the nation's deepest aspirations and its understanding of rights themselves 3.

2 – Poderíamos supor que uma conceção dos direitos sociais como compromissos constitutivos da comunidade política se revela inadequada no caso de nos encontrarmos perante uma Constituição que – como a Constituição portuguesa – formaliza os direitos sociais. Ou seja, poderíamos supor que, neste caso, estamos perante verdadeiros “direitos constitucionais” a conceber como “trunfos contra a maioria”, suscetíveis enquanto tais de ser judicialmente opostos ao legislador pelo juiz constitucional. É essa a posição desenvolvida por Jorge Reis Novais4.

Como se proporá de seguida, trata-se essa, no entanto, de uma suposição problemática face à natureza das normas de direitos sociais como princípios sujeitos a uma concretização política que, enquanto tal, cabe ao legislador democrático. Deste modo, os direitos sociais, apesar de constitucionalmente positivados, serão ainda compromissos da comunidade, e não “trunfos contra a maioria”, cuja concretização não pode caber ao juiz constitucional contra o mesmo legislador. Essa concretização antes terá de caber à comunidade política através do legislador (v. infra , 3). De resto, isto mesmo chegou a ser admitido por Sunstein, quando escreveu que “talvez tais direitos sociais devam ser incluídos na Constituição, mas com o entendimento explícito de que a sua aplicação será confiada à legislatura e não aos tribunais”5.

Assente este aspeto, verificar-se-á em que medida uma conceção dos direitos sociais como compromissos da comunidade reforça a articulação entre socialidade e cidadania e, bem assim, entre socialidade e democracia. Nesse âmbito, o raciocínio a desenvolver é o de que uma menor força jurídica dos direitos sociais não significa uma sua menor força tout court: o caso poderá ser bem o inverso, dada a força política que então se devolve aos direitos sociais. De facto, assentar em que os direitos sociais são compromissos normativos – e admitir que a Constituição desempenha uma função sobretudo simbólica ao consagrá-los – significa devolver a responsabilidade da sua concretização para onde ela efetivamente reside – a comunidade política –, recordar continuamente essa responsabilidade (v. infra, 4).

3 – A natureza política da tarefa concretizadora dos direitos sociais – uma tarefa, como tal, do legislador que não lhe pode ser judicialmente oposta – é suscetível de ser compreendida tomando como ponto de partida a posição comummente aceite segundo a qual os mesmos correspondem a direitos sob a “reserva do possível”.

3.1. A expressão “reserva do possível” poderá fazer supor erroneamente que aquilo que, em cada momento, inibe a realização dos direitos sociais é meramente o “possível” ou “impossível” enquanto “situação de facto” ou “dado da realidade”. Mas o que efetivamente inibirá a concretização – ou a concretização em certo grau – dos direitos sociais não será meramente um “dado da realidade”; antes relevará em última análise da responsabilidade que a comunidade política assuma ou não com vista à sua realização. Nestes termos, de resto, será paradoxal pretender que a realização dos direitos sociais possa ser oposta pelo juiz constitucional ao poder que, por excelência, é representativo dessa comunidade: o poder legislativo.

Mas mesmo desconsiderando este paradoxo – que se poderá fazer corresponder no limite ao chamado “paradoxo do constitucionalismo” – o caráter enganador da expressão “reserva do possível” persiste. Com efeito, o que se contrapõe à realização dos direitos sociais não é o “possível” ou “impossível” em si mesmo, assim como se fosse a realidade a contrapor-se à constitucionalidade. O que se contrapõe a tal realização antes é a necessária consideração dessa realidade no âmbito da constitucionalidade.

Com efeito, o “possível” ou “impossível” serão necessariamente atendidos pelo legislador, aquando da concretização dos direitos sociais, no âmbito de uma imperativa prossecução, pelo mesmo, de um comando jurídico de sustentabilidade: um comando que pode, ponderadamente, justificar a não realização dos mesmos direitos. A “reserva do possível” deve então ser entendida como uma reserva constitucional de ponderação dos direitos sociais com um princípio de sustentabilidade.

No que diz respeito à Constituição portuguesa, o mesmo princípio deve considerar-se imanente às tarefas fundamentais enumeradas no artigo 9.º. Na verdade, não poderá ler-se seriamente a Constituição supondo que essas tarefas são independentes de finanças públicas sustentáveis e, desse modo, não se poderá deixar de lhes fazer corresponder um comando normativo de promoção e conservação das mesmas.

Tenha-se ainda em conta que um princípio de sustentabilidade das finanças públicas nacionais pode considerar-se um princípio de Direito da União Europeia inerente ao modelo adotado de integração monetária, nos termos previstos nos artigos 3.º, n.º 4, do Tratado da União Europeia e dos artigos 5.º, n.º 1 e 121.º e seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Tendo presentes tais preceitos, as traves mestras dessa integração, tal como identificadas por Kaarlo Tuori6, são: “competência exclusiva da União Europeia na política monetária da zona euro; estabilidade de preços como objetivo primordial de uma política monetária europeizada; independência do Banco Central Europeu e dos bancos centrais nacionais; soberania dos Estados ao nível das políticas económica e financeira, sem prejuízo da coordenação no âmbito da União; responsabilidade financeira dos Estados como reverso da sua soberania financeira; primado da estabilidade prosseguida ao nível da política monetária europeizada sobre os objetivos da política económica e financeira dos Estados; disciplina orçamental dos Estados e prudência ao nível da política económica e financeira ”.

Deste modo, num quadro de “europeização do Direito Constitucional nacional”7, os direitos sociais constitucionalmente consagrados terão necessariamente de entender-se como se encontrando sob reserva de ponderação daquele princípio.

3.2. Vimos acima que o “possível” ou “impossível”, ao nível da concretização dos direitos sociais, é necessariamente atendido pelo legislador no âmbito de uma imperativa prossecução ponderada, pelo mesmo, de um comando jurídico de sustentabilidade. Cumpre agora verificar em que medida esse factor dita a natureza política da tarefa em causa.

Em contrário, poder-se-ia supor que, envolvendo a concretização de direitos sociais sempre uma ponderação – entre cada norma de direito social e o princípio da sustentabilidade –, e uma vez que ambos os elementos ponderáveis correspondem a princípios jurídicos, essa poderia ser efetuada pelo legislador sob controlo do juiz constitucional. De outro modo, que os direitos sociais seriam direitos sob reserva de ponderação com o dito princípio, mas ainda assim “trunfos contra a maioria”, oponíveis pelo juiz ao legislador. Não se diferenciariam então, fundamentalmente, os direitos sociais dos direitos de liberdade, também eles sob reserva de ponderação.

Não se deve, no entanto, perder de vista que uma coisa é uma reserva de ponderação com outro direito ou interesse com natureza determinável. Nesse caso, a ponderação será, admitidamente, uma operação jurídica. Outra coisa, bem diferente, é uma reserva de ponderação com o princípio da sustentabilidade.

Na verdade, saber o que é sustentável ou insustentável em dado momento envolve necessariamente avaliações complexas, não neutras em sede de opções de política económica e carregadas de elementos prognósticos. A acrescer, saber até que ponto riscos de insustentabilidade devem sobrepor-se ou não em cada momento à realização (ou realização em dado grau) de um direito social não se pode deixar de considerar um juízo político. Nestes termos, a ponderação entre um direito social e o princípio da sustentabilidade, sempre envolvida na concretização do primeiro, tem necessariamente de se considerar uma operação política.

Mesmo Jorge Reis Novais, refira-se, admite que a atividade de ponderação incidente sobre os direitos de liberdade se distingue daquela que incide sobre direitos sociais, pois, no segundo caso, não está apenas em causa mensurar os direitos contra outros “direitos de liberdade, sociais, ou bens públicos”, antes incluindo o juízo de ponderação a escassez de recursos do Estado e a “reserva de competência” do poder legislativo em matéria orçamental, aspetos que têm como conexos com uma “reserva do possível”8. Deste modo, Jorge Reis Novais admite que a concretização necessariamente ponderada de direitos sociais corresponde, em grande medida, a uma operação política não judicialmente revisível.

E se o mesmo Autor admite ao juiz a invalidação de soluções legislativas concretizadoras de direitos sociais – considerando-os, por isso, ainda “trunfos contra a maioria” e não meros compromissos da comunidade constitucionalmente vertidos – admite-o em duas possibilidades que acabam por não se revelar esclarecedoras no sentido de desmentir a plena natureza política da referida operação.

A primeira possibilidade diz respeito àquelas situações em que a solução (insuficientemente) concretizadora dos direitos sociais se sustente num preconceito ideológico contrário aos direitos sociais9. Ora, a admissão da invalidação judicial de uma solução legislativa em tais termos supõe uma prévia distinção – muito difícil, senão mesmo impossível – entre o que releva do “preconceito ideológico”, por um lado, e o que releva do sustentável ou insustentável, por outro.

Teme-se bem que a solução de Reis Novais abra a porta a uma conversão do controlo de constitucionalidade incidente sobre os direitos sociais numa espécie de “crítica da ideologia”. Uma crítica a ser levada a cabo pelo juiz constitucional, então chamado a decidir, à luz de um critério não explicitado, entre o que seja ideologicamente preconceituoso ou não seja. Ora, a avaliação, no âmbito de uma comunidade política plural, da qualidade dos argumentos, preconceituosos ou não, favoráveis ou desfavoráveis a um maior grau de concretização dos direitos sociais, deveria ficar confinada ao normal jogo político-democrático, sob pena até de os setores políticos acusados de serem preconceituosos pelo juiz constitucional ficarem afinal com boas razões para suspeitar dos preconceitos deste último…

A segunda possibilidade em que Reis Novais admite um controlo judicial de soluções legislativas insuficientemente concretizadoras de direitos sociais, diz respeito àquelas situações em que as mesmas se revelem contrárias a princípios fundamentais em Estado de Direito, como sejam o princípio da igualdade, da proporcionalidade ou da tutela da confiança. Ora, mesmo que se admita serem estes princípios plenamente oponíveis pelo juiz constitucional ao legislador – o que apenas se pode admitir com reservas10 –, ainda assim, cumpre frisar que o problema que então se coloca não se prende com a violação de uma norma de direito social ela mesma, mas com a violação de uma norma deste distinta. Ou seja, em caso de violação de um desses princípios aquando da concretização de um direito social, não será o direito social como trunfo que estará a ser oposto pela justiça constitucional à maioria. Antes será um daqueles princípios, permanecendo o direito social um compromisso normativo a ser conformado pela maioria no respeito pelos mesmos princípios.

3.3. Com o acima exposto, não se pretende pôr em causa que o legislador se encontre efetivamente subordinado às normas de direitos sociais. Pelo contrário: as normas em causa dirigem-se-lhe especificamente enquanto normas de ação, isto é, normas que justamente pedem uma sua concretização política (e uma inerente ponderação política com o princípio da sustentabilidade). O que as mesmas normas não consubstanciam é normas de controlo do legislador pelo juiz, sob pena de se permitir ao juiz um controlo político do legislador.

Com o acima exposto, não se pretende, por outro lado, pôr em causa que os direitos sociais, tal como os direitos de liberdade, correspondam a feixes de posições jurídicas, desdobrando-se, uns e outros, em posições pendentes de ponderação com o princípio da sustentabilidade. Mas se tal sucede tipicamente no que diz respeito às posições em que se desdobram os direitos sociais, não sucede tipicamente no que diz respeito às posições em que se desdobram os direitos de liberdade. O âmbito ou conteúdo típico dos direitos de liberdade não passa pois por uma concretização política: passa por uma concretização jurídica. Nestes termos, tomar os direitos de liberdade como reféns para justificar uma tese de direitos sociais configura-se como um passo retórico descabido: as posições jurídicas correspondentes aos direitos de liberdade que os diferenciam dos direitos sociais não são as posições pendentes de uma ponderação política (ainda que possa haver posições jurídicas não típicas correspondentes aos direitos de liberdade que se encontram pendentes de uma ponderação política).

4. Nos termos expostos, a concretização de direitos sociais corresponde a uma operação política judicialmente irrevisível – aos mesmos direitos correspondem então compromissos e não trunfos, normas de ação e não normas de controlo11.

Poder-se-á considerar que assim se compromete irremediavelmente a força dos direitos sociais. Não nos devemos, no entanto, deixar impressionar por tal consideração.

Desde logo, e em estrita sede de força jurídica dos direitos sociais, o significado prático da tese defendida acaba por não ser muito distinto do de uma tese, como a de Reis Novais, que qualifica tais direitos como trunfos, ao mesmo tempo que admite encontrarem-se os mesmos sujeitos a um juízo de ponderação com a escassez de recursos do Estado e, bem assim, com a “reserva de competência” do poder legislativo em matéria orçamental. O que afinal nos afasta de Reis Novais traduz-se, por um lado, em não admitirmos a invalidação judicial de soluções legislativas meramente porque baseadas em “preconceitos ideológicos” – ou assim supostamente – e, por outro lado, em procedermos a uma distinção analítica entre a violação de uma norma de direito social em si mesma e a violação de um princípio fundamental de Estado de Direito.

A acrescer, a tese que se defende concentra-se na imprescindível força política dos direitos sociais e, concomitantemente, na única garantia que, no limite, lhes pode ser oferecida, a qual se prende com a assunção da responsabilidade pela sua implementação por um corpo de cidadãos. Trata-se, pois, de focar a necessária conexão entre socialidade e cidadania e, do mesmo modo, entre socialidade e democracia.

4.1. A fórmula compromissos da comunidade pretende sublinhar que os direitos sociais correspondem a valores básicos da comunidade constitucionalmente plasmados. Mas mais ainda, pretende sublinhar que a respetiva realização depende, não tanto da Constituição ela mesma – a qual apenas pode refletir um compromisso –, mas de uma responsabilidade que ultimamente recai sobre os cidadãos. É essencialmente nesta medida que nela se exprime uma conexão entre socialidade e cidadania. Nesta medida, enquanto os direitos constitucionais de liberdade são “constituídos”, os direitos sociais são verdadeiramente “constitutivos”12.

Na fórmula em causa, explicitam-se pois aqueles que são os verdadeiros pressupostos dos direitos sociais. Sobretudo explicita-se que a consagração constitucional de direitos sociais traz implícitos deveres – deveres que recaem sobre todos os membros da comunidade política. Em correspondência, os destinatários últimos dos direitos sociais - aqueles que continuamente assumem o compromisso que eles consubstanciam - não são as maiorias enquanto tais. Antes são no limite os cidadãos que titulam os mencionados deveres, suportando os inerentes encargos, seja sob a forma de impostos, seja sob a forma de outros sacrifícios.

Uma fórmula dogmática destinada a apreender a força dos direitos sociais não deve deixar isto na sombra – não deve deixar na sombra o facto de a força dos direitos sociais ser uma força política ou não o ser. Do mesmo modo, tal fórmula não deve focar as posições de vantagem dos titulares dos direitos sociais, supondo que essas são suportadas pelas maiorias enquanto tais.

Em suma, não se deve ocultar que a consagração de um direito social envolve um compromisso assumido pelos cidadãos, que as maiorias apenas podem mediatizar. As consequências de tal ocultação não se traduzem apenas em assim se desfocarem os verdadeiros pressupostos dos direitos sociais. Na verdade, desfocado fica também o mais complexo problema normativo inerente à juridicidade dos direitos sociais, o qual se tem vindo a colocar com premência nas atuais circunstâncias de crise.

Esse problema não é verdadeiramente o de saber o que tem de ser oposto a cada maioria enquanto tal em ordem a satisfazer os direitos sociais. A questão normativa essencial antes será a de saber que encargos cada maioria tem de impor a cada momento aos membros da comunidade política para que sejam continuamente asseguradas as prestações correspondentes aos direitos sociais – pelo menos quanto ao seu mínimo constitucional de proteção.

Levar a sério os direitos sociais, sobretudo em circunstâncias de crise, passa por manter presente a essencialidade desta questão normativa. O que implica ter concomitantemente presente que a realização dos direitos sociais não é possivelmente feita contra a maioria mas necessariamente pela maioria, ou através da maioria, fazendo recair sobre os membros da comunidade política os inerentes sacrifícios.

Assim sendo, as relações entre os direitos sociais e as maiorias seguramente não são relações de sentido único. Mais do que algo contraposto às maiorias, tratam-se inevitavelmente os direitos sociais de exigências mediatizadas pelas maiorias – designadamente exigências que produzem um efeito justificador sobre o estabelecimento dos encargos que se revelem imprescindíveis a assegurar a continuidade das prestações sociais.

4.2. A articulação entre socialidade e democracia implicada na assunção dos direitos sociais como compromissos da comunidade política distingue-se da mesma articulação tal como comummente difundida hoje. Na verdade, a conexão entre socialidade e democracia é hoje habitualmente feita em obediência a pressupostos materialistas, em cujos termos à democracia enquanto regime subjaz necessariamente uma estrutura social permeada por determinados níveis de igualdade material que os direitos sociais assegurariam.

Ora, uma conexão entre socialidade e democracia feita nestes estritos termos poderá revelar-se paradoxal, pelo menos na medida em que se lhes encontre subjacente uma perspetiva passivizante dos beneficiários da socialidade, tidos como garantidos por “trunfos” que lhes são no limite alheios no plano ativo ou da atuação. É que, nesses estritos termos, a socialidade beneficiaria a democracia ao mesmo tempo que desresponsabilizaria os cidadãos pelo seu destino individual e coletivo, ocultaria a dimensão de cidadania ativamente responsável que tanto socialidade como democracia implicam.

Com o que se afirma não se quer pôr em causa uma articulação entre socialidade e democracia: o que antes se pretende, pelo contrário, é alertar para uma outra forma de conceber essa articulação – não estritamente materialista e, por isso, não passivizante e vulnerabilizadora da própria cidadania. Essa outra forma, recorde-se, encontra-se subjacente a uma longa tradição que no limite remonta a Aristóteles.

Neste último, a democracia suporia uma classe média13. A noção aristotélica de classe média prende-se, tanto com o seu lugar intermédio numa estrutura social, como sobretudo com a moderada virtude que “os muitos” têm de ter para que uma democracia não degenere em demagogia14. Ou seja, só uma classe média impermeável a um discurso nivelador e passivizante poderia garantir a persistência de um regime em que a moderada igualdade e liberdade que caracterizam a democracia não se convertessem em algo, na verdade, destrutivo das potencialidades humanas e arvorador de demagogos em posições de preeminência – algo, por isso, destrutivo da própria democracia. Transpondo a lógica aristotélica para o problema que ora nos ocupa, poder-se-á bem dizer que, nos seus termos, a conceção constitucional de socialidade, sob pena de se revelar corrosiva da democracia, tem de ser pensada em termos responsabilizadores e difusamente atuantes – comprometedores dos cidadãos enquanto tais – e não niveladores e passivizantes.

Remontando agora já à tradição constitucional, recorde-se que uma articulação entre socialidade e democracia surgiu marcadamente no republicanismo jeffersoniano. E curiosamente, também aqui, a preocupação fundamental residiu sempre, não no nivelamento social enquanto tal, mas na promoção da virtude dos cidadãos imprescindível à democracia. Neste quadro, no âmbito das reformas por si preconizadas para o Estado da Virginia, Jefferson ocupou-se do problema da dimensão da propriedade agrícola, preocupando-se com a sua distribuição por pequenos agricultores – pequenos agricultores cujo sentido de independência pessoal se revelaria imprescindível à sua virtude política15.

Ora, até que ponto uma conceção “trufante” ou “trunfadora” dos direitos sociais – tidos por garantidos por uma estrutura normativa objetivada e suscetível no limite de ser atuada contra o legislador democrático – não acaba por obedecer precisamente a uma lógica inversa a essa?

Com esta interrogação não se pretende, claro está, deixar implicado que a lógica de socialidade numa sociedade industrial ou pós-industrial avançada possa corresponder à socialidade preconizada por Jefferson. O que se quer dizer é que continua a ser necessário, neste outro quadro, não dissociar socialidade de um sentido de responsabilidade pessoal e virtude política. É precisamente para essa dissociação que Roger Scruton aponta quando refere que uma conceção heterónoma de socialidade – na qual a efetivação dos direitos sociais é compreendida como uma tarefa do Estado perante a qual os cidadãos se concebem exclusivamente como beneficiários – nos afasta de um ideal de autogoverno individual e coletivo. Nas palavras do Autor 16:

« On this view government is not the expression of a preexisting social order shaped by our free agreements and our natural disposition to hold our neighbor to account. It is the creator and manager of a social order framed according to its ruling doctrine of fairness and imposed on the people by a series of top-down decrees. Wherever this conception prevails, government increases its power, while loosing its inner authority. (…) Government ceases to be ours and becomes theirs – the property of the anonymous bureaucracy on which we all nevertheless depend for our creature comforts»

O confronto com esta situação de dissociação entre socialidade e cidadania torna prementes abordagens que subtraiam a primeira a uma lógica de heteronomia. Autores como Scruton têm sobretudo dedicado a sua atenção àquilo que podemos designar como dimensão passiva (e passivizante) da socialidade, o que inevitavelmente conduz à respetiva perda do sentido de liberdade e de responsabilidade.

Mas impõe-se também, nessa imprescindível rearticulação entre socialidade e cidadania, focar – em sede de configuração normativa da primeira – a respetiva dimensão ativa e assim explicitar que a mesma supõe, ao nível da sua sustentação e concretização, cidadãos com a mesma empenhados e comprometidos. Ou seja, articular socialidade e cidadania implica explicitar o compromisso responsabilizador, o constante incentivo à atualização pelos cidadãos, que aquela acarreta.

É neste contexto que se poderá considerar a Second Bill of Rights como um momento feliz, a cuja luz pode ser repensada a nossa conceção constitucional de socialidade e direitos sociais. De facto, na sua própria formulação como declaração política destinada permanentemente a ser atualizada pelos cidadãos em democracia – e não a ser oposta aos cidadãos num mero intuito nivelador e passivizante dos mesmos –, a Second Bill of Rights traz implicada uma articulação entre socialidade e democracia em que os dois termos mutuamente se reforçam, em lugar de se dissolverem ou corromperem.

4.3. É importante acrescentar uma última nota antes de terminar. Prende-se essa com o possível comprometimento da força política dos direitos sociais por um texto constitucional que vá demasiado longe ao nível da respetiva consagração, desenvolvimento ou concretização, indo para além do que se possa razoavelmente esperar da generalidade dos cidadãos num quadro pluralista – assim no âmbito dos seus distintos pressupostos e mundividências –, para além daquilo que se possa antecipar como possível ao nível da sua realização ou para além do nível de concretização razoável face à necessária adaptação e variabilidade no tempo das medidas concretizadoras dos direitos sociais.

Um bom exemplo de ultrapassagem simultânea destes três patamares de razoabilidade – e de inerente enfraquecimento da força política dos direitos sociais – encontra-se na Constituição portuguesa em matéria de direito à saúde. De facto, o texto constitucional português não se limita a contemplar o mesmo direito e, desse modo, a comprometer a comunidade política portuguesa com certos níveis de realização do mesmo (nos termos preconizados para a Second Bill of Rights, que se referiu a um right do adequate medical care and the opportunity to achieve and enjoy medical care). A Constituição portuguesa vai mais longe e encarrega-se de determinar in saecula saeculorum que “o direito à proteção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e (…) tendencialmente gratuito” (artigo 64.º, n.º 1, a)).

Com semelhante solução, o texto constitucional aliena aquele conjunto de cidadãos que se não revejam numa conceção estatista e antitética à subsidiariedade na intervenção do Estado – sobrepondo o meio ao fim a atingir independentemente da profunda discutibilidade desse meio –, compromete-se porventura com o impossível num quadro de sustentabilidade e, o que é pior, rigidifica uma solução organizatória que – em nome da realização do próprio direito à saúde de todos os cidadãos – poderia ser substituída por outras soluções mais adequadas a novas circunstâncias de maior complexidade e multiplicidade das necessidades e custos de saúde (por exemplo, princípio de não universalidade e/ou de não gratuitidade do serviço público de saúde salvo em situações de carência demonstrada ou de especial onerosidade, o que porventura asseguraria, quer a sustentabilidade do mesmo, quer a respetiva adequação àquelas situações limite em que a sua existência é insubstituível).

 

 

1 Cf. The Second Bill of Rights: FDR's Unfinished Revolution and Why We Need It More Than Ever, New York: Basic Books, 2004.
2 Idem , p. 99.
3 Idem , p. 179-180.
4 Cf. Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos Sociais como Direitos Fundamentais, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 75 segs.         [ Links ]
5 Cf. The Second Bill of Rights, p. 213.         [ Links ]
6 Cf. The European Fiscal Crisis – Constitutional Aspects and Implications, EUI Working Paper Law 2012/28, p. 1 segs.
7 As Constituições nacionais devem ser lidas em termos harmónicos com o Direito da União Europeia. Se tal não se compreender no âmbito do princípio do primado – cuja aplicabilidade é duvidosa no que diz respeito à relação entre Direito da União e Direito Constitucional interno –, compreende-se inequivocamente no âmbito de um processo de “europeização do Direito Constitucional” subsequente às “decisões europeias” tomadas por cada um dos Estados europeus. A este respeito, Rainer Arnold concebe dois fenómenos paralelos com um impacto adaptativo e transformador sobre o Direito Constitucional nacional, os quais designa como “internacionalização do Direito Constitucional” e “supranacionalização do Direito Constitucional”. Através destes dois fenómenos – que envolvem mudanças normativas, bem como novas interpretações judiciais adaptadas às exigências jusinternacionais e juseuropeias – as Constituições nacionais são compreendidas como corpos dinâmicos que integram crescentemente os Estados nas comunidades internacional e europeia, cf. The Internationalization of Constitutional Law, in Vasco Pereira da Silva (ed.), Portugal, Europe and the Globalization of Law, 2014 (no prelo).
8 Direitos Sociais …, p. 225
9 Idem , p. 330.
10 Cfr. o nosso Formular e Prescrever: A Constituição do Tribunal Constitucional, in O Tribunal Constitucional e a Crise: Ensaios Críticos, Coimbra: Almedina, 2014, p. 243 segs.
11 Para a distinção entre normas de ação e normas de controlo, cf. por último, Gonçalo de Almeida Ribeiro, O Constitucionalismo dos Princípios; Miguel Nogueira de Brito, Medida e Intensidade do Controlo da Igualdade na Jurisprudência, ambos em O Tribunal Constitucional e a Crise: Ensaios Críticos, cit. , respetivamente, p. 97 e 118 segs.
12 Essa a razão pela qual Cass Sunstein se lhes refere como “compromissos constitutivos”: são constitutivos na medida em que “ajudam a criar, ou constituir, os valores básicos de uma sociedade”; são compromissos no sentido em que “se espera deles que tenham um certo grau de estabilidade ao longo do tempo. A sua violação corresponderia a um certo tipo de incumprimento – a violação de uma confiança” cfr. The Second Bill of Rights , p. 62.
13 O termo democracia, aqui, deve ser entendido como se referindo àquilo que Aristóteles refere como politeia, expressão que, na tradução portuguesa de António Campelo Amaral e Carlos Carvalho Gomes (cf. Política, Lisboa: Veja, 1998) surge como “regime constitucional”, um regime assente num ideário de moderada liberdade e igualdade e suportado pela classe média. A opção prende-se com o facto de a expressão “democracia” permitir uma maior adequação à problemática contemporânea que se aborda, para além de se tratar de expressão comummente usada entre os comentadores de Aristóteles para referir o mesmo regime, em alternativa à expressão “demagogia”.
14 Cf. Política, Livro IV, 1295a25 segs.         [ Links ]
15 Ralph Lerner, Jefferson's Pulse of Republican Reformation, in Confronting the Constitution, ed. Allan Bloom, Washington: AEI Press, 1987, p. 143 segs.         [ Links ]
16 The Good of Government , First Things, Junho 2014.