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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.1 no.1 Lisboa ene. 2014

 

ENERGIA

A inconstitucionalidade e ilegalidade da aplicação da portaria n.º 243/2013, de 2 de agosto aos centros electroprodutores em regime especial sujeitos a regimes de remuneração garantida anteriores ao decreto-lei n.º 215-b/2012, de 8 de outubro

The unconstitutional and illegal application of regulation n. 243/2013, of august the 2nd to the power plants in special regime subject to guaranteed remuneration regime prior to decree-law n. 215-b/2012, of october the 8th

 

Duarte AbecasisI, Lourenço Vilhena de FreitasII

IFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: duarte.abecasis@cuatrecasas.com

IIFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: lourencofreitas@fd.ulisboa.pt

 

 

RESUMO

No presente artigo serão analisados os regimes aplicáveis à produção de electricidade em regime especial e os regimes transitórios criados a respeito das alterações que têm vindo a ser introduzidas nos mesmos por influxo do direito da união europeia. Em especial serão analisadas as alterações introduzidas ao direito de venda de produção a tarifa bonificada (feed in tariff) introduzidas pelo decreto-lei n.º 215-b/2012 e o seu regime transitório, bem como o desenvolvimento que a portaria n.º 243/2013, de 2 de agosto fez dos novos regimes. No que toca a esse desenvolvimento, analisa-se em especial o regime de desconto á tarifa previsto nessa directiva em caso de modificação da licença sujeita a regime anterior á entrada em vigor do novo regime e a sua falta de habilitação legal, e violação do princípio da segurança jurídica tutelado pela constituição e da união europeia.

Palavras-chave: Portaria n.º 243/2013; centros electroprodutores; tarifas feed-in; regulamentos delegados; tutela da confiança;

 

ABSTRACT

In the present article one will analyze the regimes applicable to the production of electricity in special regime and the transitory regimes set forth in respect to the changes that must be introduced due to eu law. In particular, one will analyze the changes introduced in feed in tariff by decree-law 215-b/2012 and the development of the new regimes by regulation n. 243/2023, of august the 2nd. Regarding that aspect one will analyze the creation of a mandatory discount to the tariff in case of modification of the licenses issued under a regime prior to the new one and its lack of habilitation and the violation of the legitimate expectations protected both in constitutional and European union law.

Keywords: Regulation 243/2013; power plants; feed-in tariffs; delegated legislation; legitimate expectations

 

Sumário: No presente artigo serão analisados três pontos: 1. história recente dos regimes de remuneração garantida (feed in tariff) no que toca aos produtores de electricidade em regime especial, 2. regime da Portaria n.º 243/2013, de 2 de Agosto no que tange à alteração das licenças de produção de energia eléctrica em regime especial; 3. Inconstitucionalidade da Portaria n.º 243/2013 na medida em que determina um desconto à tarifa por falta de habilitação normativa e por violação do princípio da segurança jurídica tutelado pela Constituição e pelo Direito da União Europeia.

 

 

ENERGIA

1. Na esteira das Resoluções do Conselho de Ministros n.º 63/2003, de 28 de Abril, e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005, de 24 de Outubro, o Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro, estabeleceu os princípios da organização e funcionamento do sistema eléctrico nacional (“SEN”), bem como as regras gerais aplicáveis ao exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, depois desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto. Aqueles diplomas visaram dar tradução às exigências decorrentes da Directiva n.º 2003/54/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, que tinha revogado a Directiva 96/92/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro.

Contudo, o terceiro “pacote” energético, plasmado na Directiva 2009/72/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, veio introduzir alterações no sector, revogando a Directiva 2003/54/CE e prevendo um prazo de transposição do nela previsto até Março de 2011. Do ponto de vista do direito interno, esta directiva traduziu-se na Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2010, de 15 de Abril, no Decreto-Lei n.º 78/2010, de 20 de Junho e principalmente nas grandes alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 215-A/2012, de 8 de Outubro e pelo Decreto-Lei n.º 215-B/2012, da mesma data.

Em especial, o Decreto-Lei n.º 215-B/2012, de 8 de Outubro, veio proceder à revisão do regime jurídico aplicável às actividades integrantes do SEN, desenvolvendo as bases gerais instituídas pelo Decreto-Lei n.º 29/2006, na versão consolidada do Decreto-Lei n.º 215-A/2012.

No que respeita à produção de electricidade, o Decreto-Lei n.º 215-B/2012 sistematiza e unifica o regime jurídico aplicável à produção de electricidade em regime especial, em particular, através de fontes de energias renováveis, consolidando num único diploma normas que se encontravam dispersas. O referido diploma vem ainda alterar os conceitos de produção em regime ordinário e em regime especial, porquanto a produção em regime especial passa também a abranger a produção de electricidade através de recursos endógenos em regime remuneratório de mercado.

Neste contexto, o Decreto-Lei n.º 215-B/2012, vem revogar um extenso leque de legislação aplicável aos procedimentos de licenciamento de projectos de produção de electricidade em regime especial.

Sabendo que à data da entrada em vigor do diploma havia centros electroprodutores em diversas fases de implementação, o legislador introduziu uma disposição transitória que afasta a aplicação do diploma aos projectos de produção de electricidade em regime especial já existentes, que tenham sido precedidos de procedimento concursal, ou cujos procedimentos administrativos já se encontrem em determinadas fases ali referidas, à data da entrada em vigor do referido diploma.

De acordo com aquela disposição transitória, aos projectos de produção de electricidade em regime especial já existentes, que hajam sido precedidos de procedimento concursal, a atribuição das respectivas condições de ligação à rede, pontos de recepção, autorizações de instalação ou licenças de estabelecimento, licenças de exploração e condições remuneratórias, continuam a reger-se pela legislação anterior aplicável, pelos regulamentos dos procedimentos respectivos, e pelos contratos celebrados entre os referidos promotores e a Direcção Geral da Energia e Geologia (“DGEG”). Do mesmo modo, no que respeita a projectos de produção de electricidade em regime especial, cujos titulares ou promotores já tenham obtido licenças de exploração ou licenças de estabelecimento, ou autorizações de instalação, ou tenham beneficiado da atribuição de um ponto de recepção, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 215-B/2012, não é aplicável o previsto neste diploma, desde que a licença de exploração e no último caso também a licença de estabelecimento ou autorização de instalação sejam obtidas dentro de determinados prazos, continuando a beneficiar do regime remuneratório garantido e bonificado pré-existente.

Note-se que é apenas com o Decreto-Lei n.º 215-B/2012 que se opera uma grande transformação no quadro do licenciamento dos regimes especiais em matéria de sector eléctrico, que não tinham sido alterados pela entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 29/2006 e do Decreto-Lei n.º 172/2006, que se tinham concentrado, no que toca à produção de energia eléctrica, na produção em regime ordinário.

Co-existiam, por isso, diversos regimes legais no que toca à produção em regime especial, sendo os mais relevantes os constantes do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de Maio, do qual constava um anexo II (alterado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 33-A/2005 e pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 225/2007), que garantia aos produtores em regime especial um direito de venda da sua produção e uma tarifa bonificada para essa venda, habitualmente apelidada de Feed in tariff (ou FIT).

Trata-se de um dos sistemas de incentivo ao desenvolvimento de renováveis a par dos certificados verdes e de incentivos fiscais 1, modelo aplicado em diversos países europeus tais como França, Alemanha, Suíça, Hungria ou Dinamarca, para dar alguns exemplos2. A criação de incentivos às renováveis foi aliás até certo ponto um desígnio comunitário, atento o desenvolvimento que se pretendia para o sector e que se plasmava na Directiva 2001/77/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Setembro de 2001, relativa à promoção da electricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis no mercado interno da electricidade (Directiva renováveis), que foi revista pela Directiva 2006/108/CE, do Conselho de 20 de Novembro de 2006 e finalmente revogada pela Directiva 2009/28/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Abril de 2009, actualmente em vigor.

Este sistema de incentivo, inicialmente generoso, estabelecia portanto fórmulas de remuneração das centrais electroprodutoras, com bonificação relativamente à energia activa, prevendo um montante de remuneração variável (VRD) em função do tipo de produção, a saber eólica, hídrica, solar fotovoltaica, biomassa florestal ou animal, valorização energética do biogás, valorização energética de resíduos sólidos, ou proveniente de outras instalações de energias renováveis (ponto 20 do referido anexo II).

Note-se que a evolução tecnológica e, mais recentemente, constrangimentos orçamentais e relativos à concorrência vieram a criar um ambiente político favorável à alteração e mesmo redução dos incentivos à produção através de energias renováveis. É essa a tendência legislativa recente.

Contudo, tais alterações tem sido habitualmente mitigadas pelo estabelecimento de regimes transitórios para salvaguarda das situações constituídas ao abrigo de legislação anterior. Com efeito, já o Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de Fevereiro, tinha procedido a alterações significativas ao regime de remuneração da electricidade produzida por instalações de energia em regime especial, mas, tinha sido criada uma norma transitória de acordo com a qual o regime previsto naquele diploma apenas seria aplicável às instalações já licenciadas aquando da sua entrada em vigor, se os respectivos titulares exercessem opção expressa nesse sentido, em requerimento dirigido ao então Director-Geral da Geologia e Energia.

Com efeito, o n.º 1 do artigo 4.º do referido diploma dispunha que: “à electricidade produzida em instalações que já tenham obtido licença de estabelecimento à data da entrada em vigor do presente diploma e à electricidade produzida em instalações cujo pedido de informação prévia tenha sido respondido favoravelmente pela DGGE até à data da entrada em vigor do presente diploma e venham a obter a respectiva licença de estabelecimento no prazo de um ano após a entrada em vigor do presente diploma não são aplicáveis as alterações ao anexo II do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de Maio, previstas no presente diploma.”

Nos termos do n.º 8 do mesmo artigo, estava, contudo, prevista a possibilidade de se optar pelo novo regime nos seguintes termos: “as centrais electroprodutoras já licenciadas ao abrigo dos Decretos-Leis n.ºs 189/88, de 27 de Maio, e 312/2001, de 10 de Dezembro, poderão optar pela remuneração resultante da aplicação das fórmulas constantes deste anexo, nas condições dele constantes e tendo em consideração a electricidade produzida desde a data da respectiva licença de exploração, mediante requerimento dirigido ao director-geral de Geologia e Energia.

Por isso, relativamente aos produtores que não requereram a aplicação da disciplina prevista no Decreto-Lei n.º 33-A/2005, o regime aplicável à exploração dos parques eólicos abrangidos continuou a ser o constante do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de Maio, na versão que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 168/99, de 18 de Maio, não lhe sendo aplicáveis as alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 33-A/2005 ao Anexo II do Decreto-Lei n.º 189/88, incluindo as relativas à energia reactiva (a nova redacção do Anexo II, tendo eliminado a definição do regime aplicável a essa matéria, passou a estabelecer que: “as condições relativas à energia reactiva a fornecer pelos produtores serão estabelecidas nos regulamentos da rede de distribuição e transporte” (secção 23)).

Tal quadro não foi modificado pela Decreto-Lei n.º 225/2007, de 31 de Maio, que veio introduzir novas alterações no anexo II do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de Maio e no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 33-A/2005.

Tal diploma manteve o teor do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 33-A/2005, aditando-lhe apenas um número 7 que se limitou a prorrogar os prazos para requerer licenças que permitissem a certas entidades virem ainda a beneficiar do regime anterior a 2005. Nos termos do referido n.º 7 diz-se: “a requerimento do promotor, o prazo referido no número anterior pode ser prorrogado, por despacho do director-geral da Geologia e Energia, por um ou mais períodos com a duração máxima de um ano, desde que o prazo de prorrogação não ultrapasse a data de 31 de Dezembro de 2008 ou 12 meses após a efectiva disponibilização de potência de ligação pelo operador da rede, conforme o prazo mais alargado, e desde que o incumprimento do prazo tenha origem em motivos que não sejam comprovadamente imputáveis ao promotor.”

Note-se que a alteração deste artigo só faz sentido porque foi possível ainda, após 2007, continuar a aplicar o regime anterior a 2005, permitindo-se a utilidade de obter a prorrogação de um regime já anteriormente abolido, mas que vigorava transitoriamente.

Esta salvaguarda dos regimes anteriores, que estabeleciam uma verdadeira garantia remuneratória por 15 anos, resulta do respeito pela lei, do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança enquanto corolários do Estado de Direito Democrático, que seria desrespeitado se se permitisse impor a quem estivesse licenciado ao abrigo de regimes remuneratórios determinados, pelo menos, sem haver uma compensação financeira, um novo regime remuneratório, até porque a decisão de investimento foi com grande probabilidade tomada nesse pressuposto. Por isso, a secção 24 da nova redacção do anexo II dispunha que “as centrais electroprodutoras já licenciadas ao abrigo dos Decretos-Leis n.º 198/88, de 27 de Maio, e 312/2001, de 10 de Dezembro, poderão requerer a integração no regime de remuneração resultante da aplicação das fórmulas contidas no presente anexo, sendo que o IP Cref a considerar será o do mês anterior à decisão do director-geral de Geologia e Energia que aprovar o pedido, sem prejuízo da contagem dos prazos a partir da atribuição da licença de exploração, nos termos previstos no n.º 20.” Ou seja, a aplicação do novo regime remuneratório só se faria se o produtor o requeresse expressamente junto do então Director-Geral de Geologia e Energia.

Estes regimes foram ainda mantidos em vigor pelo Decreto-Lei n.º 215-B/2012, para os produtores já licenciados antes da sua entrada em vigor (n.º 3 do artigo 15.º do referido Decreto-Lei). São assim ressalvados da aplicação da lei nova os procedimentos concursais já lançados e os produtores que tenham obtido licença de exploração até à entrada em vigor do referido decreto-lei, ou tenham obtido autorização ou licença de estabelecimento até à mesma data e venham a obter a licença de exploração dentro de determinados prazos , ou, ainda, que tenham obtido um ponto de recepção e venham a obter a autorização de instalação ou licença de estabelecimento e a consequente licença de exploração também dentro de certos prazos.

Coexistem, hoje, portanto, diversos regimes transitórios.

2. Na senda do Decreto-Lei n.º 215-B/2012, e com o objectivo de concretizar as regras e princípios ali estabelecidos, foi publicada a Portaria n.º 243/2013, de 2 de Agosto, que veio estabelecer o regime jurídico da atribuição da reserva de capacidade de injecção na RESP e do licenciamento da actividade de produção de electricidade no âmbito do regime especial de remuneração garantida. Embora publicada para concretização do Decreto-Lei n.º 215-B/2012, a Portaria n.º 243/2013 inclui uma disposição transitória cuja letra aparenta desvios à disposição transitória do Decreto-Lei n.º 215-B/2012 acima referida.

Isto porque, de acordo com o artigo 35.º da Portaria n.º 243/2013 (sob a epígrafe “Centros electroprodutores instalados ou a instalar”), o regime relativo às alterações de centros electroprodutores constante da referida Portaria é subsidiariamente aplicável aos centros electroprodutores regidos pela lei anterior, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 215-B/2012. São alterações para aquela Portaria, qualquer modificação introduzida nas características do centro electroprodutor que constem da decisão de atribuição do ponto de recepção ou da licença de produção. E, de acordo com a mesma Portaria, a autorização da alteração solicitada, depende, entre outros, da apresentação de uma proposta de desconto à tarifa aplicável, o que se reflectirá, necessariamente, no regime remuneratório aplicável.

Ora, a prática anterior à publicação da Portaria n.º 243/2013 era a de sujeitar as modificações dos actos de licenciamento de centros electroprodutores (inclusive em situações de sobreequipamento e aumento da potência declarada) ao regime jurídico do acto modificado. Contudo, a referida Portaria veio aparentemente sujeitar parcialmente ao novo regime remuneratório, a alteração das licenças sujeitas a regimes remunerados de acordo com o regime anterior, o que não estava previsto no Decreto-Lei n.º 215-B/2012.

Assim, pese embora a disposição transitória constante do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 215-B/2012, no sentido de fazer aplicar a legislação anterior aos centros electroprodutores existentes que reúnam determinados requisitos, incluindo no que respeita aos regimes remuneratórios, a Portaria vem apontar em sentido diverso, ao incluir no âmbito de aplicação do procedimento de autorização de alterações de centros electroprodutores, as alterações de centros electroprodutores regidos pela lei anterior, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 215-B/2012.

3. Deve, pois, questionar-se a aplicação da Portaria aos regimes remuneratórios anteriores, por se considerar tratar-se de matéria inovatória que extravasa o âmbito de uma Portaria, que se pretende de mera execução do referido Decreto-Lei (sendo certo que este não regula o regime de alteração de licenças anteriores) e que, a essa luz, pode ser considerada matéria que competiria à lei regular.

Com efeito, não tendo o Decreto-Lei n.º 215-B/2012 definido minimamente o regime do impacto das alterações às licenças em sede de tarifas, a Portaria n.º 243/2013 apresenta um grau de inovação similar ao da lei, o que não lhe é constitucionalmente consentido, ao gizar um regime novo em matéria tão relevante como a não salvaguarda dos direitos adquiridos em matéria remuneratória, quando se requeira uma alteração da licença.

Mas mais, a Portaria n.º 243/2013 afecta regimes legais, os regimes que salvaguardam os direitos remuneratórios dos produtores licenciados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 215-B/2012, que são assim parcialmente derrogados, violando também a preferência de lei.

Não parece de acolher entendimento diverso com o argumento de que teria sido habilitada genericamente por lei.

Com efeito, não se pode validamente argumentar que a Portaria n.º 243/2013 foi habilitada por lei para regular todos os aspectos relativos ao licenciamento da actividade de produção de energia eléctrica.

A este respeito tem-se pronunciado de forma estável a jurisprudência do Tribunal Constitucional.Por exemplo no Acórdão n.º 398/2008, de 29.07.2008 da 3.ª secção do Tribunal Constitucional3, em que foi relatora a Juiz-Conselheira Professora Maria Lúcia Amaral é dito:Mas, além disso, a revisão constitucional de 1982 veio a proibir em geral as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a “interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar” quaisquer preceitos da própria lei “habilitante” (artigo 112º, nº 5, da versão actual da CRP). Este princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competências. Com efeito, do princípio contido no nº 5 do artigo 112º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflecte a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa – enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas –, «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que, recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982).”

Aliás interpretação diversa da competência atribuída ao regulamento pelas suas bases legislativas determinaria a inconstitucionalidade das disposições em que se baseia a Portaria n.º 243/2013. Com efeito, no Acórdão n.º 304/2008, do Plenário do Tribunal Constitucional, de 30.05.2008 4, proferido em sede de fiscalização preventiva, a pedido do Presidente da República, é dito por este último:

“- na verdade, toda e qualquer lei que se limite a definir a competência objectiva e subjectiva para a emissão de regulamentos do Governo, conferindo-lhes um poder inovatório, sem que atribua aos mesmos regulamentos independentes a forma de decreto regulamentar, viola o disposto nos nºs 6 e 7, do artigo 112.º, da C.R.P.;

- no caso em apreciação, o n.º 2, do artigo 22.º, do Decreto, ao deslegalizar as normas que irão estabelecer a competência das unidades da PJ, limitou-se a definir a competência subjectiva para a emissão da portaria que irá reger essa matéria e a competência objectiva do acto regulamentar;

- a regra do n.º 2, do artigo 22.º, e, remissivamente, a do n.º 1, do artigo 29.º, não fixam qualquer tipo de critérios ou princípios conformadores de um regime material que permitam diferenciar as competências policiais de cada unidade da PJ, ou determinar o “sentido e os limites da intervenção regulamentar”, pelo que ao limitarem-se a remeter em branco para portaria a definição das competências das novas unidades da PJ, sem fixarem qualquer outro critério que permita determinar o sentido e os limites das mesmas, autorizam que uma disciplina tendencialmente primária, própria do conteúdo típico de um regulamento independente do Governo, seja regida por portaria, contrariando o disposto nos nºs. 6 e 7, do artigo 112.º, da C.R.P.”

Razões a que o Tribunal Constitucional veio a dar acolhimento, decidindo que: “De tudo o que se vem dizendo, conclui-se que a fixação de competências das diferentes unidades da PJ constitui matéria abrangida por reserva de acto legislativo, nos termos do n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P., pelo que a remissão da regulação desta matéria para portaria constitui uma violação a essa reserva, o que determina a inconstitucionalidade das normas sob fiscalização.

Alcançado este juízo positivo de inconstitucionalidade, fica necessariamente prejudicada a apreciação da alegada questão subsidiária de violação de reserva de decreto regulamentar.

Decisão

Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 22.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, do Decreto da Assembleia da República n.º 204/X, na parte em que determinam que as competências das diversas unidades da Polícia Judiciária são estabelecidas nos termos da portaria referida no mencionado n.º 2 do artigo 22.º, por violação da reserva de acto legislativo imposta no artigo 272.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.”

E no mesmo sentido se orienta a doutrina.

GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA5 afirmam de forma lapidar: “Por maiores que sejam os problemas de interpretação levantados pela norma do n.º 5, são líquidos, porém, dois sentidos primordiais: a) afirmação do princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei; b) a ideia de que as leis não podem autorizar que a sua própria interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação seja efectuada por outro acto que não seja outra lei. Salvo os casos expressamente previstos na Constituição (cfr. art. 172.º), uma lei só pode ser afectada na sua existência, eficácia ou alcance por efeito de outra lei. Quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir derrogar ou alterar aquela lei (ou deslegalizar a matéria).

(…)

Embora não sejam incompatíveis com a Constituição os fenómenos da remissão normativa e da deslegalização (mas nos termos e com os limites adiante assinalados), já a controversa figura dos «regulamentos delegados» – ou seja, aqueles em que uma lei «delega» a possibilidade de revogação dessa ou de outra lei – é inequivocamente inconstitucional em qualquer das suas manifestações: como regulamentos derrogatórios – isto é, regulamentos que, sem revogarem a lei, a substituem em certos casos determinados-, como regulamentos modificativos – isto é, regulamentos que alteram a disciplina legislativa-, como regulamentos suspensivos-isto é, regulamentos que se limitam a tornar ineficaz uma norma legal preexistente, mas desprovida de qualquer efeito inovador-, como regulamentos revogatórios-isto é, como actos que eliminam leis do ordenamento jurídico. Em qualquer dos casos eles implicam o estabelecimento de uma disciplina excepcional com força de lei através de fontes secundárias (regulamento), contrariando abertamente o princípio da preeminência de lei e do congelamento do grau hierárquico.

A proibição de regulamentos delegados em qualquer das suas manifestações – modificativas, derrogatórias, suspensivas, revogatórias – não constitui apenas um limite negativo do poder regulamentar; é também um limite do próprio poder legislativo, dado que a norma constitucional pretende também subtrair à disponibilidade do legislador a determinação da força e valor de lei. É a Constituição e não a lei que estabelece a hierarquia normativa. São por isso inconstitucionais as normas legais que infrinjam a proibição de deslegalização, sendo consequentemente ilegais os regulamentos que porventura sejam emitidos ao abrigo dessa delegação.”

É evidente que algumas situações de alteração de licenças sujeitas a regimes remuneratórios anteriores poderiam merecer tratamento diferente do legalmente consagrado, enquanto outras situações merecem continuar a beneficiar do regime anterior. Mas para assim ser, teria de ser a lei a delimitar de forma inovatória os tipos de situações que mereceriam tratamento diferente.

Ao fazê-lo sem base legal que assegure uma densidade normativa suficiente a Portaria n.º 243/2013 perece-nos incorrer, como se adiantou, em violação de lei, por violação do princípio da legalidade e em usurpação de poderes legislativos.

Acresce que, nas situações em que a alteração ao centro electroprodutor não é significativa e em que à luz da proporcionalidade não se justifica, portanto, a sujeição ao novo regime, também se põe também em causa o princípio da segurança jurídica constitucionalmente protegido, enquanto corolário do Estado de Direito, pelo Direito da União Europeia, pela Carta dos Direitos Fundamentais e pela Jurisprudência (veja-se, a título de exemplo, o caso Deuka c. Einfuhr und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel, do Tribunal de Justiça, de 18 de Março de 197567.

Uma interpretação em conformidade com a Constituição e com o Direito da União Europeia impõe, portanto a nosso ver, que a Portaria n.º 243/2013 não se aplique às alterações das características constantes da decisão de atribuição do ponto de recepção ou da licença de produção no que respeita a centros electroprodutores sujeitos a regimes anteriores, sempre que da alteração não decorra um aumento da remuneração previsível da instalação licenciada, seja em função de aumento de potência, seja em função de ganhos inesperados. Ou seja, quando a alteração não gere um benefício para o promotor, dever-se-ia manter a sujeição da licença alterada ao regime anterior, não se permitindo a aplicação da referida Portaria a não ser aos casos claramente novos, em que a alteração, pela sua dimensão, não deva ser tratada como uma questão de direito transitório, mas sim como um novo acto de licenciamento.

 

1 TERESA NORA/PEDRO SIZA VIEIRA, Esquemas de incentivo à produção de enegia a partir de fontes de energia renovável em Portugal e na Europa, in APREN 1998-2013, 25 anos de electricidade renovável em Portugal, APREN, Lisboa, 2013, pp. 183 e ss.
2 Diversamente o Reino Unidos e a Itália optam pelos certificados verdes, optando a Irlanda pelos incentivos fiscais, por exemplo.
3 Pesquisável in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
4 Pesquisável in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
5 Constituição da República Portuguesa , Coimbra, 1993, p. 510.
6 Acórdão pesquisável in http://eur-lex.europa.eu,
7 No caso A. Tomadini S.n.c. c. Amministrazione delle Finanze dello Stato, do Tribunal de Justiça, 16 de Maio de 1979, Processo n.º 84/78, pesquisável in http://eur-lex.europa.eu, considerou-se que o legislador, nos casos em que a tutela da confiança o imponha, está obrigado a prever disposições transitórias relativamente à aplicação da lei nova (ponto 23 do aresto), embora tenha realçado que “ este princípio não pode ser estendido a ponto de impedir de forma genérica a aplicação de novas regras a situações futuras”. Admite a jurisprudência comunitária contudo excepções quando exista um interesse público peremptório que imponha a renúncia à adopção de uma regra transitória .”