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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.1 no.1 Lisboa Jan. 2014

 

DIREITO PÚBLICO

A Relação Jurídica Procedimental no projecto de revisão do Código de Procedimento Administrativo

Remarks on participation rights in the reform of administrative procedure code

 

Francisco Paes MarquesI

IFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal. e-mail: fpaesmarques@fd.ulisboa.pt

 

 

RESUMO

A figura da relação jurídica prevista no projecto de Código de Procedimento Administrativo tem por objectivo afastar uma concepção autoritária do Direito Administrativo, segundo a qual os particulares seriam meros súbditos perante a Administração. Procurou-se adoptar um novo paradigma, próprio de um Estado de Direito Democrático, que fomente a ideia da tendencial paridade entre os cidadãos e os poderes públicos. Todavia, de um ponto de vista prático, nada se acrescenta em face da lei anterior, sendo esta uma alteração meramente retórica, pois, nas diversas disposições da lei, o CPA continua a referir-se simplesmente aos interessados, não extraindo consequências efectivas da figura da relação jurídica procedimental.

Palavras-chave: Código do Procedimento Administrativo; terceiros interessados; legitimidade procedimental; audiência dos interessados; relações procedimentais multipolares;

 

ABSTRACT

The instrument of the legal relationship enshrined in the Administrative Procedure Code project intends to remove an authoritarian conception of administrative law, according to which individuals would be mere subjects before the administration. The purpose was to adopt a new paradigm, in accordance to the rule of law, enhancing the idea of the trend parity between citizens and public authorities. However, this is a mere rhetorical change because, in the various provisions of the law, the Code continues to refer simply to interested parties, not drawing effective consequences from this instrument.

Keywords: Code of Administrative Procedure; interested third parties; procedural legitimacy; audi alteram partem; multilateral procedural relations.

 

 

DIREITO PÚBLICO

1. Apreciação global geral do projecto

Através do despacho 9415/2012 da Ministra da Justiça e do Ministro das Finanças, publicado no Diário da República, II Série, de 12-07-2012, foi constituída a Comissão responsável pelo estudo da Revisão do Código de Procedimento Administrativo, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Dos trabalhos desta Comissão resultou um Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo (PRCPA) 2.

Este PRCPA que visa reformar o CPA em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91 de 15 de Novembro e revisto uma única vez pelo Decreto-Lei n.º 6/96 de 31 de Janeiro, apresenta, globalmente, soluções consistentes, bem estruturadas e formuladas rigorosamente em termos técnico-jurídicos. Tal não equivale a considerar que se esteja de acordo com a concepção global que preside a esta reforma. Penso ser de rejeitar uma revisão desta magnitude, pois o PRCPA não se limitou a corrigir aspectos parciais que claramente necessitavam de revisão. É que mesmo que se afirme não se ter pretendido elaborar um novo código, o PRCPA será, pelo menos, uma fénix renascida. De acordo com a exposição de motivos, o PRCPA pretendeu enriquecer a lei com os contributos forjados pela doutrina e jurisprudência ao longo das décadas de vigência deste diploma. É uma aspiração comovente e bem-intencionada mas, de todo em todo, inadequada, tendo em conta a importância que o CPA tem no edifício jurídico-administrativo nacional e a circunstância de as suas actuais soluções não estarem suficientemente sedimentadas na prática dos vários operadores jurídicos. A este título, revela-se particularmente infeliz a alteração da numeração dos artigos do CPA. Como exercício académico este PRCPA é louvável mas como projecto de diploma legal parece-nos desajustado.

Deve distinguir-se, com clareza, o domínio da doutrina ou da jurisprudência das funções e do papel a desempenhar pela lei, sendo que esta fonte de Direito nem tem de dizer tudo nem tem de absorver permanentemente os contributos das primeiras. Apenas da conjugação destas três fontes (não cabendo agora aqui discutir se estamos perante verdadeiras fontes de Direito no que respeita à doutrina e jurisprudência) se cria uma prática institucional sedimentada que possibilita a necessária segurança nos operadores jurídicos e promove a confiança no investimento. De resto, se o nosso modelo inspirador é o alemão, já que a exposição de motivos até nos brinda com expressões como o Untertan ou amtshilfe, deveria seguir-se o exemplo da VwfG (Verwaltungsverfahrengesetz) de 1976, que foi alterada apenas quatro vezes e em aspectos muito concretos 3.

2. Apreciação global parcelar do projecto

Naturalmente que os anos de vigência já decorridos do actual CPA recomendavam a actualização deste diploma em alguns aspectos concretos- especialmente aqueles resultantes da evolução social, tecnológica, legal ou dogmática- que os seus autores, em inícios dos anos 90, não podiam obviamente prever. No que respeita aos pontos claramente positivos e que, sem dúvida, necessitavam de alteração, deve destacar-se:

i) administração electrónica: instrução por meios electrónicos (artigo 58.º PRCPA), balcão único electrónico (artigo 59.º PRCPA);

ii) alterações decorrentes da reforma do contencioso administrativo, designadamente a actualização e clarificação do deferimento tácito (artigo 128.º PRCPA), eliminação do indeferimento tácito; articulação dos meios graciosos e contenciosos, designadamente a necessidade ou facultatividade da prévia impugnação administrativa, efeitos do acto impugnado, prazos, etc. (artigo 187.º e segs PRCPA);

iii) solicitação de auxílio administrativo (artigo 66.º) e instituição de conferências procedimentais (artigo 67.º e segs.).

No entanto, são em número claramente superior as alterações que considero supérfluas ou que alteram pontos que foram sendo aperfeiçoados ou resolvidos, de forma mais ou menos pacífica, pela doutrina e pela jurisprudência, tais como:

i) no âmbito de aplicação do Código, a sua extensão a entidades privadas que exerçam poderes de autoridade (artigo 2.º, n.º3 PRCPA), já seria extraível da aplicação aos concessionários, embora numa formulação menos sofisticada4;

ii) alteração da própria noção procedimento administrativo, englobando-se agora a organização interna das entidades administrativas (artigo 1.º.n.º1, a) PRCPA);

iii) alteração e desdobramento da formulação de princípios já perfeitamente consagrados e cuja explicitação já tinha sido feita pela doutrina e jurisprudência, como o princípio da proporcionalidade (artigo 7.º PRCPA) e da justiça e razoabilidade (artigo 8.º PRCPA);

iv) eliminação da revogação por motivos de invalidade, designando-se agora esta forma de revogação de anulação administrativa (artigo 164.º, n.º2 PRCPA), em nome de um suposto clamor incessante da doutrina e de uma leitura um tanto apressada das ordens jurídicas estrangeiras;

v) alteração nome recurso hierárquico impróprio, englobado agora sob a designação de recursos administrativos especiais (artigo 197.º PRCPA);

vi) alteração do conceito de acto administrativo (art. 146.º PRCPA), retirando-se-lhe o elemento orgânico e substituindo-se expressão ao “abrigo normas de Direito público” por “exercício de poderes administrativos”.

3. Da Relação jurídica procedimental em especial

3.1. Fundamento e relevância

O procedimento administrativo possui duas funções essenciais: informação e articulação5. De acordo com a primeira, o procedimento destina-se a servir a averiguação material fáctica e a aquisição de informação relevante (Funktion der Information) 6. No que respeita à segunda, o procedimento serve de plataforma privilegiada de participação activa dos actores privados, que pretendem fazer valer a sua posição substantiva na tomada de decisão, expondo a sua perspectiva da realidade jurídico-material ( Funktion der Artikulation)7. Consequentemente, quanto maior densidade possuir a informação de base e quanto mais intensivo for o contraditório dos argumentos pro e contra, maior probabilidade haverá de o procedimento administrativo produzir a decisão correcta8.

Com efeito, atendendo a esta última função, torna-se especialmente relevante a figura da relação jurídica procedimental como instrumento susceptível de enquadrar uma “multiplicidade de conexões jurídicas e materiais entre uma pluralidade de sujeitos, perfilando-se o procedimento administrativo como estrutura ordenadora e integrativa desses interesses”9. Neste linha, pode o procedimento administrativo, através da participação dos titulares de interesses conflituantes, constituir-se como a plataforma privilegiada para uma adequada avaliação do risco ( Risikoabschätzung)10.

3.2. Legitimidade procedimental

Particular destaque no contexto da relação jurídica procedimental deve merecer a problemática da legitimidade, daí decorrendo quem tem o poder de participar no procedimento e, consequemente, de ser sujeito dessa mesma relação jurídica. Verificamos que o PRCPA não procedeu, nesta matéria, a nenhuma alteração estruturante no que respeita à forma como são configurados os sujeitos do procedimento administrativo. Assim, não se acolheu, por exemplo, a posição defendida por certa doutrina11, que procede à divisão entre interessados obrigatórios e facultativos, o que me parece positivo, pelo menos se aceitarmos os termos estritos, designadamente de ordem formal, em que assenta essa distinção12. Contrariamente ao que sucede na Alemanha 13, não me parece que esta diferenciação possa ser útil em sede procedimento administrativo, devendo ser concebida como uma importação algo acrítica do contencioso administrativo14. Com efeito, é sobretudo a nível processual que ocorre uma especial preocupação de estender a eficácia das sentenças a certos sujeitos que são titulares de interesses que apenas parcialmente estão em conexão com o objecto processual, não se colocando no procedimento administrativo, de forma tão evidente, essa necessidade, não obstante a sua igual vocação para a formação de uma decisão com força de caso decidido15.

O máximo que poderia aceitar-se, em nome de uma certa clareza conceptual, seria a divisão entre interessados e contra-interessados em face da decisão a adoptar no procedimento administrativo, dando-se assim expressão ao conceito de relação jurídica procedimental multipolar 16. Esta opção implicaria, contudo, certos riscos, designadamente o de se destruir a ambivalência de conteúdo positivo inerente ao conceito de “interessados”, o qual, por via da sua amplitude, não acarreta o espartilhamento e a rigidez das várias categorias dos sujeitos da relação jurídica procedimental. De facto, o PRCPA também não optou por realizar uma divisão estrita entre interessados e contra-interessados, subsistindo assim a obscuridade decorrente do CPA continuar a fazer referência a tais sujeitos em certas disposições, designadamente em matéria de recursos administrativos (artigos 190.º e 193.º do PRCPA) e no que respeita ao regime do efeito anulatório dos actos administrativos (artigo 161.º, n.º5, alínea d) PRCPA), mas para efeitos de legitimidade tout court, tal como no CPA em vigor, apenas se refere genericamente aos interessados (artigo 64.º PRCPA). Mais ainda, o PRCPA continua a ter referência aos terceiros, designadamente no artigo 154.º, no que respeita à atribuição de eficácia retroactiva de actos, que não podem prejudicar direitos de terceiros, e no artigo 82.º, que se refere a documentos nominativos relativos a terceiros.

Curiosamente, a comissão que elaborou o PRCPA sentiu necessidade de introduzir alterações nesta temática, consagrando um novo artigo 61.º sob a epígrafe sujeitos da relação jurídica procedimental, onde se incluem particulares, cidadãos e pessoas colectivas privadas no seu direito de acção popular procedimental e ainda sujeitos de relações procedimentais administrativas. No entanto, com excepção desta última parte, não vejo o que é que isto acrescenta ao artigo 53.º do CPA em vigor, referente à legitimidade. Das duas uma: ou se aproveitava o novo preceito, referente aos sujeitos da relação procedimental, para resolver a ambiguidade terminológica do CPA, definindo-se quem deve ser considerado interessado, contra-interessado e terceiro, ou o artigo 53.º, referindo-se ao conceito unitário de interessados para designar todos os sujeitos da relação jurídica procedimental, “chegava para as encomendas”, sendo desnecessária a introdução de um artigo que nada traz de novo.

O PRCPA não deixou, porém, intocado o actual artigo 53.º (artigo 64.º PRCPA), passando a incluir, juntamente com os direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos, deveres, ónus, encargos ou sujeições como posições jurídicas subjectivas atributivas de legitimidade procedimental 17. Causa-nos porém uma certa perplexidade saber em que medida um sujeito intervém no procedimento para fazer valer um dever? É certo que os sujeitos da relação jurídica procedimental podem estar onerados com certos deveres ou ónus, mas essas posições encontram-se sempre em conexão com determinados direitos, ou porque para se exercer determinado direito há um ónus preexistente (requerer a licença de construção para o exercício do direito de propriedade) ou porque o dever que a Administração entende que onera o particular encontra determinados limites em virtude de um direito do respectivo titular (particular intervém no procedimento para fazer valer um direito que implica não ter de realizar uma prestação que a Administração entende ser devida).

De resto, uma formulação deste género não tem paralelo no Direito comparado. A lei alemã refere-se, no § 13 VwfG, à parte cujos interesses jurídicos possam ser afectados pelo procedimento, enquanto o artigo 7.º da lei italiana (Lei 241/90, de 7 de Agosto, relativa ao procedimento administrativo e ao direito de acesso aos documentos administrativos) dispõe ser detentor de legitimidade quem do acto administrativo a adoptar possa sofrer um certo prejuízo 18, ao passo que a lei espanhola (Lei 30/92, de 26 de Novembro, regime jurídico das Administrações Públicas e do procedimento administrativo comum) no seu artigo 31.º, 1, b), alude a sujeitos afectado pela decisão 19. Por conseguinte, pressupõe-se naturalmente que é a lesão na posição jurídica individual- direito- que faz com que o sujeito da relação jurídica procedimental adquira legitimidade, isto é, o direito subjectivo é sempre a medida da legitimidade. Se, porventura, a intenção foi incluir titulares de interesses contrapostos, como já supra referimos, então tem de se fazer referência ao sentido da decisão, favorável ou desfavorável, criando duas categorias: interessados e contra-interessados, muito embora sempre em face das posições- direitos (ou interesses legalmente protegidos para quem admita a existência autónoma de esta figura)- que detêm em face do ordenamento jurídico.

Uma última nota para referir ainda que o projecto corrigiu, e bem, o n.º2 do artigo 53.º do CPA, pois aí, ao aludir-se a prejuízos relevantes causados aos cidadãos em certos bens, fazia com que as posições desses sujeitos não pudessem ser qualificadas como interesses difusos, e, dessa forma, impossibilitava a consagração inequívoca de uma legitimidade popular contraposta à legitimidade singular 20. Neste sentido, a alteração cirúrgica, operada pelo PRCPA, referindo-se agora a “prejuízos relevantes não individualizados em bens fundamentais” comporta doravante, de forma indubitável, a legitimidade popular em sede de procedimento administrativo (artigo 64.º, n.º2 PRCPA). Não obstante, deveria ter-se fechado o círculo, esclarecendo-se quais as prerrogativas concretas reconhecidas a estes titulares de interesses difusos. De facto, como já escrevemos anteriormente, esta legitimidade popular não deixa de ser uma legitimidade coxa, porque em muitas disposições do CPA continua a exigir-se, para o exercício de determinadas prerrogativas procedimentais, a titularidade de direitos ou interesses legalmente protegidos21.

3.3. Reflexos específicos

As ambiguidades terminológicas quanto à qualificação dos sujeitos da relação jurídica procedimental não deixam, naturalmente, de incidir negativamente na formulação de outras disposições do PRCPA. Vejamos algumas delas especificamente.

3.3.1. Caducidade do procedimento

O n.º5 do art. 126.º do PRCPA dispõe que que os procedimentos de iniciativa oficiosa que possam conduzir a uma decisão desfavorável para os interessados caducam, na ausência de decisão, no prazo de 180 dias. Sucede que pode conceber-se também a existência de interessados a quem a decisão favoreça, não havendo razão para que a lei lhes confira uma tutela menos intensa. A opção dos autores do projecto parece ter sido consciente por estar aqui em causa um procedimento de iniciativa oficiosa (que conduziria, regra geral, a uma relação meramente bilateral entre a Administração e um particular interpelado pela acção administrativa) mas não será de excluir que no curso do procedimento possam intervir interessados titulares de interesses contrapostos. Deveria então ficar explícito se esta regra tem aplicação perante situações nas quais se verifique existirem titulares de interesses contrapostos ou, caso tenha sido essa a intenção, fixar em que medida gozam estes de tutela perante a situação em causa.

3.3.2. Audiência dos interessados

Já no que respeita à audiência dos interessados, agora designada audiência prévia, houve alterações nesta matéria em aparente sintonia com a nova regra acerca da legitimidade dos sujeitos da relação jurídica procedimental prevista no artigo 61.º do PRCPA. Assim, dispõe o artigo 120.º, n.º1 do PRCPA que têm direito a ser ouvidos os interessados na relação jurídica procedimental, enquanto a versão em vigor do CPA refere-se apenas aos interessados.

Porém, no n.º2 deste artigo 120.º do PRCPA ainda se vai mais longe e complica-se a questão, pois o responsável pela direcção do procedimento determina se a audiência é escrita ou oral em face “dos destinatários da decisão e dos outros sujeitos da relação jurídica procedimental”. Ora bem, serão estes os interessados na relação jurídica procedimental a que se refere o n.º1 e que adquiriram legitimidade procedimental ex vi artigo 64.º PRCPA? Se sim, porque não se disse só interessados, mantendo-se a redacção que se encontra em vigor. Se não, como parece ter sido a intenção (mudando-se até o nome do instituto por, aparentemente, se considerar que não apenas os interessados teriam direito a ser ouvidos) por que razão esses sujeitos não foram chamados, no início ou no curso do procedimento, já que serão titulares de direitos respeitantes ao seu objecto?

Dificuldades acrescidas colocam-se em face da dispensa da audiência dos interessados (não deveria dizer-se audiência prévia, em coerência com a alteração do nomen iuris do instituto? ou visou-se apenas aqui uma particular categoria de sujeitos?) quando os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão inteiramente favorável aos interessados (artigo 123.º, alínea f) do PRCPA). A intenção de se ter acrescentado a palavra “inteiramente” parece ter em vista a distinção relativa que há entre actos ampliativos e ablativos, pelo que a dispensa só ocorrerá perante um acto que satisfaça integralmente as pretensões do particular. Deixou-se, assim, por resolver os casos em que a decisão a adoptar beneficia certos particulares mas lesa, correlativamente, outros sujeitos. Por conseguinte, devia ter ficado claramente consagrado só haver lugar a dispensa de audiência prévia em face de uma decisão favorável a todos os sujeitos da relação jurídica procedimental22.

3.3.3. Revogação do acto administrativo

Uma última nota para registar não se ter aproveitado esta revisão para solucionar inequivocamente a questão da revogação dos designados actos com eficácia dupla ou com eficácia em relação a terceiros. A revogação com fundamento em invalidade, agora designada de anulação administrativa, foi aperfeiçoada no n.º 2 do artigo 167.º PRCPA, prevendo este preceito que um acto constitutivo de direitos, cujo beneficiário esteja de boa-fé, só pode ser revogado no prazo de um ano ou, para além desse prazo, no âmbito de um processo de impugnação administrativa ou até ao encerramento da discussão em processo jurisdicional. Por conseguinte, passando a referir-se ao procedimento de impugnação administrativa, o qual será necessariamente desencadeado por um sujeito titular de interesses contrapostos ao beneficiário do acto (um contra-interessado), admite-se estar aqui em causa um acto com eficácia dupla ou com eficácia em relação a terceiros. Todavia, o alcance desta disposição vai certamente para além deste tipo de actos, pelo que seria conveniente uma norma autónoma que esclarecesse definitivamente a questão23. Uma disposição expressa, tal como existe na Alemanha (§ 50 VwfG), seria bem-vinda, para acabar com as dúvidas de que uma revogação de um acto administrativo desta natureza só deve ter por fundamento a invalidade e que o procedimento de revogação tem de ser desencadeado pelo particular lesado nos seus direitos e que, assim, se opõe à subsistência do acto no ordenamento jurídico.

 

 

1 Este texto corresponde à comunicação oral proferida no âmbito do Painel «Questões relativas ao âmbito de aplicação, à relação jurídica procedimental e às fases do procedimento», durante o colóquio «Revisão do Código de Procedimento Administrativo», em 15 de Julho de 2013, organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Foram apenas aditadas algumas notas de rodapé com referências bibliográficas básicas e explicitados alguns pontos essenciais.
2 Disponível em http://www.dgpj.mj.pt.
3 Veja-se a evolução e as alterações sofridas por este código em FERDINAND KOPP / ULRICH RAMSAUER, Verwaltungsverfahrengesetz, Kommentar, 10.ª ed, Beck, Munique, 2008, p. 14 e segs.         [ Links ]
4 O que não significa que esta opção de actualização seja correcta, porque a expressão “exercício de poderes de autoridade” diz menos do que o que deveria dizer, pois trata-se aqui de uma actuação ao abrigo do Direito Administrativo e este caracteriza-se pela exorbitância ambivalente do regime, isto é, não inclui apenas especiais prerrogativas mas também especiais vinculações jurídico-públicas, cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, “O Conceito de Direito Administrativo: barroquismo conceptual inútil ou tábua de salvação no Tsunami?”, in Estudos em Homenagem ao Professor Sérvulo Correia, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 345.         [ Links ]
5 Cfr. MATHIAS SCHMIDT-PREUSS, “Gegenwart und Zukunft des Verfahrensrechts”, NVwZ, 2005, p. 489 e segs.
6 Cfr. MATHIAS SCHMIDT-PREUSS, “Gegenwart…cit., p. 489.
7 Cfr. MATHIAS SCHMIDT-PREUSS, “Gegenwart…cit., p. 489.
8 Cfr. MATHIAS SCHMIDT-PREUSS, “Gegenwart…cit., p. 490.
9 Cfr. WALTER SCHMITT GLAESER, “Die Position der Bürger als Beteiligte im Entscheidungsverfahren gestaltender Verwaltung”, in LERCHE/SCHMITT GLAESER/SCHMIDT-ASSMANN (org.), Verfahren als staats- und verwaltungsrechtliche Kategorie, Decker & Müller, Heidelberg, 1984, p. 77.         [ Links ]
10 Cfr. MATHIAS SCHMIDT-PREUSS, “Gegenwart…cit., p. 490.
11 Cfr. M. ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO C. GONÇALVES/J. PACHECO DE AMORIM, Código de Procedimento Administrativo- Comentado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 1999, p. 273.
12 Cfr. as críticas a essa posição em FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares- Contributo para a sua compreensão substantiva, Almedina, Coimbra, 2011, p. 371 e segs.
13 Segundo a VwVfG, os sujeitos participantes são: a) o requerente; b) o sujeito afectado pela procedência da pretensão do requerente; c) aqueles cuja esfera jurídica a Administração atingiu ou pretende atingir; d) aqueles com os quais a Administração celebrou ou pretende celebrar um contrato de Direito público; e) aqueles chamados a participar no procedimento, mediante requerimento ou oficiosamente, cujos interesses jurídicos possam ser afectados com a decisão aí adoptada (§13 VwVfG). Quanto a estes últimos, denota-se uma especial preocupação do legislador relativa à multipolaridade administrativa, prevendo-se expressamente, mediante a adopção de uma decisão administrativa nesse sentido, a possibilidade de intervenção de terceiros no procedimento administrativo (Hinzuziehung). Este chamamento permite a inclusão no procedimento de outros sujeitos não referidos nos números 1, 2 e 3 do § 13 VwVfG, e cujos interesses podem encontrar-se em conexão com o objecto do procedimento ( Drittbetroffen), possibilitando-lhes influir no resultado do procedimento, tendo ainda por fim, tal como no processo administrativo, a extensão subjectiva dos efeitos constitutivos da decisão adoptada, e o interesse da Administração no esclarecimento, transparência e aceitação dos sucessivos actos procedimentais; sobre esta disposição, cfr. FERDINAND KOPP / ULRICH RAMSAUER, Verwaltungsverfahrengesetz…cit., p. 239 e segs; HERMANN PÜNDER, “Verwaltungsverfahren”, in ERICHSEN/EHLERS, Allgemeines Verwaltungsrecht, 13.ª ed, Walter de Gruyter, Berlim, 2006, p. 402 e segs; OLIVER VON ROSENBERG, Probleme drittbelastender Verfahrensfehler im Rahmen des Baugenehmigungs- und abfallrechtlichen Planfeststellungsverfahrens, Peter Lang, Frankfurt, Berlim, Berna, Nova Iorque, Paris, Viena, 1994, p. 20 e segs; ALBRECHT WEBER, “Beteiligung und Rechtsschutz ausländischer Nachbarn im atomrechtlichen Genehmigungsverfahren, DVBl., 1980, p. 330 e segs.
14 A lei alemã do contencioso administrativo (VwGO) distingue, no seu § 65 entre os terceiros que intervêm no processo facultativamente, por decisão discricionária do juiz (§ 65, I) e aqueles que obrigatoriamente têm de ser chamados (§ 65, II), por todos, cfr. CLAUDIA NOTTBUSCH, Die Beiladung im Verwatungsprozess, Duncker & Humblot, Berlim, 1995, p. 50 e segs.
15 Cfr. EBERHARD SCHMIDT-ASSMANN, “Der Verfahrensgedanke in der Dogmatik des öffentlichen Rechts”, in LERCHE/SCHMITT GLAESER/SCHMIDT-ASSMANN (org.), Verfahren als staats- und verwaltungsrechtliche Kategorie, Decker & Müller, Heidelberg, 1984, p. 25, fazendo especialmente referência à estabilização das decisões administrativas complexas.
16 Por último, referindo-se a relações jurídicas multipolares procedimentais, cfr. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 421.
17 Sobre estas posições de desvantagem, cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 61 e segs; e, por último, PAULO OTERO, Manual…cit., p. 248 e segs.
18 Sobre esta disposição, cfr. ROSARIO FERRARA, “Il Procedimento Amministrativo visto dal Terzo”, DPA, 2003, p. 1024 e segs; MARCO D´ALBERTI, “La Visione et la Voce; Le Garanzie di Participazione al Procedimenti Amministrativi”, RTDP, 2000, p. 16 e segs; ROSARIO FERRARA, “Il Procedimento Amministrativo visto dal Terzo”, DPA, 2003, p. 1024 e segs; RICARDO VILLATA, “Reflessioni in tema di partecipazione al procedimento e legittimazione processuale”, DPA, 1992, p. 171 e segs.
19 Sobre a condição de interessado no procedimento administrativo espanhol, cfr. CÉSAR CIERCO SEIRA, La Participación de los Interessados en el Procedimiento Administrativo, Publicaciones del Real Colegio de España, Bolonia, 2002, p. 145 e segs.
20 Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações…cit., p. 375-376.
21 Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações…cit., p. 376.
22 Como propusemos em FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações…cit., p. 386.
23 Como propusemos em FRANCISCO PAES MARQUES, “A revogação de acto administrativo multipolar”, Direito & Política, n.º1, 2012, p. 60.