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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.123 Coimbra dez. 2020

https://doi.org/10.4000/rccs.11227 

DOSSIER

O antinarciso no século xxi – A questão ontológica na filosofia e na antropologia

The Anti-Narcissus in the 21st Century – The Ontological Issue in Philosophy and Anthropology

L’anti-narcisse au xxie siècle – La question ontologique dans la philosophie et dans l’anthropologie

 

Diogo Silva Corrêa*

https://orcid.org/0000-0001-5519-6985

Paula Baltar**

https://orcid.org/0000-0003-1674-6950

* Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade de Vila Velha Av. Comissário José Dantas de Melo, 21, sala 8, Prédio da Biblioteca, Boa Vista – Vila Velha ES, CEP 29102-920, Brasil dioscorrea@gmail.com

** Doutoranda em Sociologia, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) Rua da Matriz 82, Botafogo – Rio de Janeiro RJ, CEP 22260-100, Brasil paulabaltar2@gmail.com

 

RESUMO

No presente artigo procura-se realizar uma depuração analítica da retomada do conceito de ontologia na filosofia e na antropologia das duas primeiras décadas do século xxi. Nossa hipótese é que essa “virada ontológica” nas ciências humanas, a despeito de suas variações internas, tem em comum um movimento “antinarcísico” de busca obsessiva por uma alteridade radical. No caso da filosofia, essa busca se mostra por meio do reconhecimento do estatuto de realidade daquilo que não concerne ao humano; no caso da antropologia, esse reconhecimento se volta para os conceitos ou formas de vida não ocidentais. Procuramos ainda mostrar como ambas as disciplinas buscam transformar o acesso ao outro numa forma de colocar a si mesmo (o ser humano ou os conceitos ocidentais) em questão. Na filosofia, esse outro é imaginado nos espaços indiferentes ao ser humano ou nas personagens ficcionais teratológicos; na antropologia, trata-se de uma outra forma de vida ou uma outra metafísica conceitual.

Palavras-chave: antropologia ontológica, mudança ontológica, ontologia, pluralismo ontológico, realismo especulativo

 

ABSTRACT

This article seeks to make an analytical effort to recover the concept of ontology in philosophy and anthropology in the first two decades of the 21st century. Our hypothesis is that this “ontological turn” in the human sciences, despite its internal variations, can be defined by an “anti-Narcissus” movement of obsessive search for a radical alterity. In the case of philosophy, it shows itself through the recognition of the status of reality of that which does not concern the human; in the case of anthropology, this recognition turns to non-Western concepts or forms of life. Finally, we seek to show how both disciplines seek to transform this access to otherness into a way of calling oneself (human being or Western concepts) in question. In philosophy, this other is imagined in the spaces indifferent to human or in the fictional teratological characters; in anthropology, it is about another form of life or other conceptual metaphysics.

Keywords: ontological anthropology, ontological change, ontological pluralism, ontology, speculative realism

 

RESUMÉ

Dans cet article nous cherchons à procéder à une dépuration analytique de la reprise du concept d’ontologie en philosophie et en anthropologie des deux premières décennies du xxie siècle. Notre hypothèse est que ce « tournant ontologique » dans les sciences humaines, malgré ses variations internes, peut être défini par un mouvement « anti-narcissique » de recherche obsessionnelle d’une altérité radicale. Dans le cas de la philosophie, cette recherche se manifeste par la reconnaissance du statut de la réalité de ce qui ne concerne pas à l’humain ; dans le cas de l’anthropologie, cette reconnaissance se tourne vers des concepts ou des formes de vie non occidentaux. Enfin, nous essayons de montrer comment les deux disciplines cherchent à transformer cet accès à l’autre en un moyen de se remettre (l’être humain ou les concepts occidentaux) en question. Dans la philosophie, cet autre est imaginé dans des espaces indifférents à l’humain ou dans les personnages de fiction tératologiques ; en anthropologie, c’est un autre mode de vie ou une autre métaphysique conceptuelle.

Mots-clés : anthropologie ontologique, changement ontologique, ontologie, pluralisme ontologique, realisme spéculatif

 

Introdução

Uma das principais forças motrizes do pensamento contemporâneo, referente às duas primeiras décadas do século xxi, pode ser sintetizada pelo nome do livro que Viveiros de Castro (2009), em Metafísicas canibais, diz ter tido por ambição escrever, mas nunca o fará: O Anti-Narciso.

Chamamos de movimento antinarcísico a adoção, por parte de uma grande variedade de autores contemporâneos, de uma agenda de defesa e recuperação do conceito de ontologia (cf. Charbonnier et al., 2016; Holbraad e Pedersen, 2017). Ela define-se pela busca incessante, no limite do possível, de uma “alteridade radical” (Hage, 2012). Marchando em direção contrária ao encarceramento promovido pela redução cartesiana e kantiana do conhecimento às estruturas ideativas do ego ou do sujeito transcendental, esta agenda pode ser definida por uma espécie de busca obstinada por uma abertura ao alter, ao estranho e ao diferente. Como bem sintetizou Maniglier, ao definir a virada ontológica na antropologia, ela busca, no limite do possível, construir uma “ontologia formal de nós mesmos como variantes” (2009: 32).1

No entanto, é preciso reconhecer que esse movimento antinarcísico de descentramento do ego pode ser visto desde as primeiras décadas do século xx, momento no qual há um considerável esforço, que perpassa tanto a filosofia quanto a sociologia e a antropologia, para descentrar o sujeito cartesiano e todas as suas decorrentes metafísicas da subjetividade ou “mitos da interioridade” (Bouveresse, 1976).

Algumas das principais e mais influentes “viradas” do século xx, como as viradas cultural, linguística, hermenêutica e pós-moderna (cf. Bachmann-Medick, 2016), procuraram, cada qual ao seu modo, superar as filosofias do sujeito dissolvendo este último numa instância transcendental coletiva e impessoal, como a cultura, a linguagem, a tradição ou as relações de poder. Em vez do sujeito do cogito ergo sum de Descartes, o século xx nos brindou com diversas maneiras de superação do caráter potencialmente autocentrado da consciência por meio de vários transcendentalismos embebidos de intersubjetividade. Os esquemas transcendentais ou a pragmática universal da linguagem de Apel e Habermas, as categorias de classificação de Durkheim e Mauss, as formas simbólicas de Cassirer, os esquemas simbólicos de Bourdieu, os paradigmas de Kuhn, as epistemes históricas de Foucault, etc., todos têm em comum o fato de privilegiarem uma dimensão impessoal e de forjarem conceitos cuja função foi não só submergir o sujeito em instâncias transcendentais englobantes, mas também mostrar o quanto tais instâncias, em vez de resultantes de processos ideativos de uma subjetividade, eram na verdade a sua própria condição de possibilidade e de emergência. Assim, indo da construção social da realidade (Berger e Luckmann, 2004) à realidade da construção social, as ciências humanas mobilizaram a cultura, a linguagem ou os mitos para mostrar como toda realidade dependente de estruturas ou esquemas vinculados à espécie humana era tão real quanto quaisquer outras entidades independentes dela, como os objetos físicos e os elementos materiais.

No entanto, a despeito de suas possíveis derivações pós-humanistas (Vandenberghe, 2017), as ciências humanas e a filosofia do século xx, quando olhadas retrospectivamente pelos autores contemporâneos que advogam pela recuperação do conceito de ontologia, parecem não ter sido suficientemente antinarcísicas e levado suficientemente a sério a alteridade radical. E isso porque elas não se voltaram para aquilo que não concerne e não depende do ser humano, apresentando um desinteresse incondicional à sua existência.2

Quando observamos as duas primeiras décadas do século xxi, vemos delinear-se claramente uma mudança geral na paisagem da filosofia e das ciências sociais. No que tange à subjetividade e ao sujeito, podemos perceber que aquele descentramento apregoado pelas aludidas viradas do século xx torna-se ainda mais radical. Nas versões aderentes ao que se denomina virada ontológica, vemos um particular interesse por tudo aquilo que está – para utilizar a famosa expressão cunhada por Meillassoux em 2006 – para lá da “correlação” entre o ser humano e mundo, pensamento e ser. Nesse sentido, a virada ontológica na antropologia e os novos realismos na filosofia (ver Alloa e During, 2018) apresentam dois aspectos distintos, mas que convergem para um interesse comum pelas perspectivas ou metafísicas não antropocentradas ou antropocentráveis.

De um lado, podemos perceber nas primeiras décadas do século xxi uma proliferação de trabalhos que buscam trazer à baila formas de expressão, “mundos próprios” (von Uexküll, 1982) e modos de percipiência não humanos. Tanto na filosofia quanto na antropologia, vemos estudos que apontam para a importância de se conceber o mundo e forjar conceitos desde o ponto de vista de figuras outras do que aquelas dos humanos. Tal é o caso, por exemplo, da perspectiva dos ciborgues de Haraway (2003) e Hoquet (2019), do pensamento das florestas de Kohn (2013), das metafísicas das plantas de Coccia (2016), dos cogumelos apocalípticos de Tsing (2017) ou do ponto de vista animal de Bimbenet (2018): todos, ao seu modo, representam bem esse interesse e esforço de explicitar a realidade e o mundo a partir da expressão de modos de existência que se encontram para lá da correlação com o mundo humano. A percepção dos não humanos, enquanto sujeitos em relação aos humanos (e não mais objetos), expressa essa tendência geral do pensamento na direção do que Montebello (2015) chamou de metafísicas “cosmomórficas”.

De outro lado, há também um novo pós-humanismo que se debruça sobre a realidade que é completamente indiferente ao ser humano, voltado, portanto, para fenômenos naturais completamente desconhecidos e insensíveis a ele. Tal é o caso da ecologia profunda de Naess (2007), da ecologia sombria de Weisman (2007), do arquifóssil de Meillassoux (2008 (2006)), dos hiperobjetos de Morton (2013) e, por fim, do nada pós-apocalíptico de Brassier (2007). Enquanto os autores na filosofia têm em comum a expressão de um desejo antinarcísico que visa não tanto falar do ponto de vista de seres percipientes não humanos, mas de alcançar uma perspectiva não redutível (e mesmo indiferente) à espécie humana, a antropologia aspira abrir-se de modo mais radical à diferença e ao diferente, estabelecendo o maior grau possível de exposição e reconhecimento de alteridade. Ambas as disciplinas, assim, expõem a obsolescência daquelas concepções, propostas no século xx, de que o humano teria privilégios epistêmicos sobre a realidade – ou de que só poderíamos falar da parte da realidade cognoscível, isto é, dentro dos limites do sujeito transcendental.

É neste cenário, articulado com a emergência de questões ecológicas relativas ao Antropoceno (cf. Latour, 2015; Danowski e Viveiros de Castro, 2014), que é preciso conceber a preocupação do presente artigo, a saber, pensar o sentido da recuperação do conceito de ontologia que ocorreu na filosofia e na antropologia contemporâneas. Para isso, focaremos em um ponto fundamental: como e com qual finalidade se dá a recuperação da noção de ontologia nesses dois campos do saber? Longe de fazer um mapeamento exaustivo, o que fugiria aos propósitos de um único artigo, nos deteremos, primeiro, sobre o modo como o realismo especulativo, ao fugir do correlacionismo de Kant, retoma a noção de ontologia e propõe um pluralismo ontológico. Em um segundo momento, iremos expor como a recuperação da noção de ontologia proposta por autores da antropologia contemporânea visa ir além da política da diferença, também de inspiração kantiana, instituída pelo multiculturalismo. Por fim, concluiremos mostrando como, apesar de suas diferenças, há movimentos comuns tanto à filosofia quanto à antropologia a respeito das funções estratégicas exercidas pelo uso da noção de ontologia, a saber, a busca antinarcísica por uma alteridade radical e não humana, de um lado, e a tentativa de a ela conferir uma potência (ontológica) de realidade em sua pluralidade, de outro.

 

1. A ontologia na filosofia: do realismo especulativo às ontologias liberais

O realismo especulativo é um movimento filosófico constituído, inicialmente, por autores como Meillassoux, Harman, Brassier e Grant. Tendo seu nascimento datado em simpósio que ocorreu em Londres em 2007,3 ele desde então se estende por outros autores como Garcia e Gabriel, e exerce um campo de influência que vai para lá da dimensão filosófica (cf. Garcia, 2016). Apesar de variações internas importantes,4 há dois elementos comuns que perpassam os seus autores e que podem ser explicitados a partir do próprio nome dado ao movimento. Ele é “realista” à medida que enfatiza a independência da realidade e dos objetos em relação à mente e aos modos de conhecimento e de percepção humanos. Ao passo que as filosofias ou abordagens que aderem à crítica kantiana reduzem o mundo ao campo de aparição dos fenômenos, isto é, ao modo como a coisa-em-si (Ding an sich) se revela para a consciência humana, os realistas especulativos não apenas asseveram a existência de uma realidade que se encontra além da sua apreensão subjetiva, mas buscam criar conceitos que permitam a obtenção do acesso a ela.

1.1. Quentin Meillassoux e o problema da correlação

Quem melhor descreve a noção de especulação nesta corrente do realismo contemporâneo é Meillassoux. Segundo o filósofo francês, “especulativo (é) qualquer pensamento que pretenda atingir um absoluto em geral” (2008: 59). O verbo especular significa, portanto, a busca por um acesso à realidade que não seja relativo às próprias condições de possibilidade do acesso, o que quer dizer que implica a tentativa de produzir um conhecimento que, mesmo sem aderir a um discurso teológico, procura falar de um real absoluto e independente do humano. Com isso, o autor foge de uma discussão sobre epistemologia (isto é, modos de conhecimento da realidade) e se volta para uma discussão em termos de ontologia (ou seja, a realidade para lá do modo como ela pode ser conhecida pelo sujeito humano). É neste sentido que ele tenta voltar à especulação, ao inorgânico, ao absoluto, que era recusado pela tradição filosófica em prol de signos, objetos textuais e da experiência fenomenal.

No entanto, Meillassoux afirma, para isso, a necessidade de romper com o que seria uma espécie de aprisionamento de Kant ao que chama de “correlação”. O filósofo francês define “correlação” como “a ideia de que só temos acesso à correlação do pensamento e do ser, e nunca a um desses termos tomados isoladamente” (2008: 13). Em vez de estudar as condições do acesso, ele estipula, num movimento antinarcísico que caminha na direção de uma alteridade radical, que é necessário buscar a própria realidade não mediada por meio de “afirmações ancestrais” (ibidem: 22). Estas poderiam ser encontradas não tanto na filosofia metafísica pré-crítica ou na teologia, mas na própria ciência, uma vez que esta última se mostraria capaz de falar de “eventos anteriores ao advento da vida e da consciência” (ibidem: 20). Por exemplo, quando a ciência traz dados relativos ao mundo antes da presença humana, argumenta Meillassoux, ela se refere justamente a parcelas de espaço e tempo anteriores a qualquer existência da correlação entre sujeito e objeto. E, assim como ela permite falar de antes da aparição do humano, a ciência também nos oferece elementos e conceitos capazes para pensar o mundo “depois (de nossa) finitude”, isto é, sem a presença do ser humano.

Meillassoux procura então determinar como se pode conhecer o que existe fora do circuito correlacional. Em Après la finitude, de 2006, Meillassoux (2008) faz um encadeamento rigoroso de raciocínios para chegar enfim à afirmação de que apenas uma coisa é absolutamente necessária: a contingência. Nesse sentido, ele recupera uma dimensão incondicionada do real e explica, no aludido livro, que a contingência é absoluta porque sempre é implicitamente pressuposta por todos, inclusive por aqueles que defendem hipóteses correlacionistas. Embora não seja propriamente uma novidade dar validade à noção de contingência, Meillassoux confere a ela um estatuto ontológico particular e único. Ao asseverar que a realidade é essencialmente contingente, ele não se contenta em afirmar que o mundo é incerto e movente, como nas filosofias do devir de influência heraclitiana e deleuzianas, nem em asseverar que ele é constante e estável, como naquelas filiadas à tradição de Parmênides e Platão. De modo distinto, ele procura ir até as últimas consequências em sua ideia de que o curso das coisas sempre é, em si mesmo, contingente, isto é, aberto e indefinível. E se “a contingência”, como ele afirma, “designa a possibilidade de que algo possa persistir ou perecer, sem que nenhuma das opções contrarie as invariantes que governam o mundo” (ibidem: 89), isso quer dizer que a realidade não pode ser definida nem por sua estabilidade, muito menos como devir absoluto, mas por aquilo que contingentemente pode se manifestar, a qualquer momento, tanto de uma quanto de outra forma.

1.2. Graham Harmam – Entre a ontologia orientada ao objeto e as ontologias planas

A passagem de um kantismo epistêmico por meio de uma retomada do conceito de ontologia também ocorre no realismo especulativo de Harman. Em The Quadruple Object (2011), o autor parte da crítica ao gesto kantiano de que se deve reduzir a ontologia (o estudo da realidade) à epistemologia (o meio pelo qual ela é conhecida). Embora ele concorde que as formas de conhecimento do mundo dizem algo sobre o sujeito que o conhece, Harman é enfático ao defender que não se pode derivar disso a ideia de que não existe nada fora do horizonte da consciência, refutando não apenas aqueles que concluem que não há nada além da subjetividade porque não podemos nos abstrair dela, mas também procurando mostrar que podemos – e em certo sentido devemos – estabelecer certos discursos sobre o real.

Em contraposição ao que chama de “filosofias de acesso”, Harman (2018) propõe uma “ontologia orientada ao objeto”. Esta é destinada a substituir as abordagens centradas na epistemologia, isto é, mais preocupadas com o pensamento sobre as coisas do que em “voltar-se para as coisas mesmas”, para retomar um antigo bordão de Husserl. Ao mesmo tempo, o filósofo estadunidense não defende com isso um reavivamento de um realismo ingênuo ou positivista, que sustentaria que o discurso sobre a realidade a espelha tão simplesmente como se o pensamento tivesse uma relação pleonástica com o ser. Em vez disso, ele insiste em dois pontos: (1) o de que há objetos que existem para lá das representações que os sujeitos fazem deles; (2) e o de que esses objetos mantêm entre si relações, mesmo que por vezes não acessíveis aos humanos. Qualquer objeto, seja em relação a um sujeito cognoscente ou com outro objeto qualquer, expõe sempre, ainda que de forma indireta e parcial, algo de si, de sua dimensão ontológica. Ou seja, todo objeto se apresenta nas relações, mas ele nunca pode ser reduzido ao modo como suas qualidades se mostram nelas. Como diz Harman: “mesmo se humanos criaram a cadeira, mesmo se apenas humanos as veem como cadeiras, ainda vai haver, eu diria, um infinito número de qualidades da própria cadeira que não pode ser exaurido por nenhuma visão ou percepção” (2007: 371).

Harman, com isso, questiona o privilégio tradicionalmente concedido à relação sujeito/objeto, que, segundo ele, teria obscurecido o que os objetos revelam quando, entre si, são postos em relação. Num uso estratégico da noção de ontologia para caminhar numa alteridade mais radical, ele afirma que há algo da relação entre o fogo e o algodão, quando um interage com o outro, que revela algo sobre ambos e que é irredutível à apreensão que o sujeito cognoscente tem a respeito de um e de outro ou da relação entre os dois.

Mas é preciso enfatizar que por “objeto” Harman não entende, como na definição lexical que encontramos no dicionário Houaiss, “toda coisa material que pode ser percebida pelos sentidos”. De modo mais amplo, ele defende objeto no sentido mais genérico de “coisa”, isto é, enquanto “tudo o que existe ou que pode ter existência (real ou abstrata)”.5 Neste sentido, Harman advoga por um pluralismo radical que o leva a defender, junto com De Landa, Garcia e Latour, a noção de “ontologia plana”. Ela se define pelo ato de colocar, ao menos em um primeiro momento, a totalidade das coisas (seres humanos, objetos materiais, seres imaginários e imateriais, plantas, animais, etc.) em pé de igualdade, com o objetivo de conceder-lhes um direito igual à existência. Este gesto é, como veremos adiante, particularmente importante para a virada ontológica na antropologia, ao conceder aos objetos e entidades não humanas de sociedades outras, isto é, não ocidentais, um estatuto efetivamente ontológico.6

Assim, para aqueles que defendem as ontologias planas, a recuperação do conceito de ontologia tem a função estratégica de criar uma metafísica inclusiva que evite relegar certas coisas à esfera de um outro não passível de ser conhecido ou discursivamente relatável. Trata-se, portanto, de um modo de incluir a alteridade radical em sua multiplicidade integral – uma “nova teoria de tudo” (cf. Harman, 2018: 19-58). Ora, na ausência de qualquer critério metafísico primeiro e fundamental capaz de restringir ou discriminar as coisas que poderiam ou deveriam ser consideradas reais ou ontologicamente relevantes, esta corrente do realismo especulativo advoga, como bem define Garcia (2011), por um princípio de “liberalidade ontológica”7 (cf. Morelle, 2016). Nada, a priori, pode ser descreditado como irreal ou ontologicamente irrelevante. Com isso, o realismo especulativo abre margem para um movimento antinarcísico ao destituir o humano do seu privilégio epistêmico e ao colocá-lo na posição de “coisa” em meio a tantas outras igualmente reais, tornando tudo aquilo que não a “coisa” humana uma “coisa” igualmente relevante do ponto de vista ontológico.8

Além disso, é preciso também mencionar que o realismo especulativo de Harman não é redutível a um pluralismo ontológico que descentra de forma radical o sujeito humano e atribui um estatuto ontológico àquilo que lhe difere e lhe é indiferente. Além de propor a contestação da correlação necessária entre ser e pensar e de apresentar um particular interesse pela impassibilidade do ser ao pensar, em sua obra Weird Realism: Lovecraft and Philosophy, Harman (2012) expõe o que pode ser chamado de realização estética do realismo especulativo (cf. Garcia, 2016). Tal realização se encontraria na reformulação do sublime kantiano, mais precisamente no espetáculo da indiferença radical do mundo à subjetividade.

Segundo Harman, ao lermos a obra de Lovecraft, frequentemente nos deparamos com a descrição de seres cujo modo de aparição teratológico excede o poder de representação e conceitualização de que dispomos e, assim, demonstram o limite do nosso entendimento. A estética do horror moderno, com entidades como o alien lovecraftiano, ao nos colocar em contato com o irrepresentável, mostra tanto que o mundo é sempre não redutível à nossa imagem e semelhança quanto que o nosso aparato perceptivo é limitado para concebê-lo. Ora, cabe antecipar aqui que a estética do horror moderno, para a qual Harman chama a atenção por meio da obra e das personagens de Lovecraft, revela uma espécie de outro radical diante do humano, semelhante ao papel da alteridade radical, mobilizada pelos antropólogos da virada ontológica, de que falaremos adiante. Entretanto, distintamente dos filósofos do realismo especulativo, os antropólogos da virada ontológica buscam a alteridade radical por meio do reconhecimento da “autodeterminação ontológica dos povos” não ocidentais (Viveiros de Castro, 2009: 7), concentrando-se na desconstrução das formas de vida e conceitos ocidentais eurocentrados e antropocentrados, como a própria noção de humanidade (cf. Costa e Fausto, 2010). O foco na dimensão não humana não importa enquanto um fim em si mesmo, mas à medida que permite, primeiro, descrever as formas de vida não ocidentais e, segundo, colocar em xeque os pressupostos conceituais e metafísicos do próprio ocidente.

 

2. A ontologia na antropologia – Por uma radicalização da alteridade

A recuperação do conceito de ontologia na antropologia ocorre a partir da primeira década do século xxi e advém de uma espécie de mal-estar generalizado de diversos autores da disciplina com o conceito de cultura (Salmon, 2016). Desde o ocaso do evolucionismo, que foi marcado pela transição de uma abordagem evolutiva de uma única cultura para uma abordagem inclusiva e democrática que a concebia no plural, este conceito passou a ser tomado como o principal articulador e operador da política da diferença e da alteridade do saber antropológico. No entanto, desde a década de 1990, autores como Latour, Descola, Ingold e Viveiros de Castro passaram a insistir nas limitações oriundas de uma abordagem multicultural, alegando que ela não seria suficientemente pluralista, nem teria sido capaz de superar uma limitação intrínseca para abrir-se à alteridade. Ora, argumentam os autores, se as culturas nas abordagens propaladas pelas viradas cultural (Boas) e hermenêutica (Geertz) eram concebidas como um sistema coletivo de representações simbólicas projetadas sobre uma natureza sempre una e uniforme, isso evidentemente colocava para a antropologia uma série de problemas concernentes ao possível trato com as formas de vida, seres e modos de pensamento de outros coletivos humanos não ocidentais. Ainda que a antropologia multicultural tenha se mostrado capaz de lidar com uma política da diferença e da alteridade de modo amplo, ela o fazia apenas no plano neokantiano e epistêmico das representações (isto é, aquele relativo aos modos de conhecer o real), sem jamais colocar em jogo e em comparação o plano da natureza (ou ontológico) da própria realidade. Assim, por mais radical que o projeto multiculturalista procurasse ser em sua abertura à alteridade e em sua capacidade antinarcísica de se colocar em jogo a partir do pensamento ou de formas de vidas outras e não ocidentais, a natureza continuava una e intocada, deixada sob a tutela cuidadosa, ainda que impura, da ciência natural e “naturalista” dos “modernos” (cf. Latour, 1994; Candea e Alcanya-Stevens, 2012; Descola, 2013).

Diante deste impasse que interpunha um obstáculo intransponível aos pretendidos avanços da antropologia em direção à alteridade radical, diversas foram as perspectivas abertas como possíveis respostas. Neste artigo, nos ateremos à ecologia da vida de Ingold e ao projeto de metafísica comparada de Viveiros de Castro. Antes de avançarmos para a próxima seção, vale notar que Holbraad e Pedersen (2017) advogam pela existência de três viradas ontológicas na antropologia, cada qual associada, respectivamente, às obras de Strathern, Wagner e Viveiros de Castro, e não citam, por exemplo, Ingold. Além disso, o próprio Ingold não participou da coletânea sobre metafísica comparada que visava justamente apresentar os trabalhos em torno dessa “virada” na antropologia (cf. Charbonnier et al., 2016). Apesar disso, acreditamos, pelas razões que expomos adiante, que Ingold é, sim, representativo de uma virada ontológica na antropologia. Portanto, a escolha, que aqui fizemos, de colocá-lo junto com Viveiros de Castro (não elencando, por exemplo, a obra de Descola), se dá não só em função de espaço, mas também por razões estratégicas. Ingold e Viveiros de Castro, quando comparados no esforço de lidar e enfrentar os problemas do multiculturalismo, são diametralmente opostos: um escolhe a via da ecologia da vida e do engajamento prático, e o outro, a do conceito e da metafísica comparada.

2.1. Tim Ingold e a ecologia da vida

Inspirada nas filosofias de Heidegger e de Merleau-Ponty, na psicologia ecológica de Gibson e na ecologia da mente de Bateson, a ecologia da vida de Ingold procura superar a separação entre natureza (universal) e cultura (plural) introduzindo um solo antipredicativo – e ontológico – do qual estas instâncias partiriam. O autor afirma que:

se queremos um dia chegar a uma ecologia capaz de renovar o processo da própria vida, acredito que (...) é necessário (...) descer dos cumes da razão abstrata para nos restituir uma relação dinâmica do organismo e do ambiente. Em suma, meu objetivo é substituir a oposição natureza-cultura por uma oposição (...) dada pela sinergia dinâmica do organismo e do ambiente, a fim de reencontrar uma autêntica ecologia da vida. (Ingold, 2013: 21)

Em crítica às noções abstratas da filosofia ocidental que tendiam a ver os sujeitos humanos como seres desencarnados em espaços abstratos e vazios, Ingold (ibidem: 27-28) defende que uma abordagem ecológica9 como a que propõe deve “ter como ponto de partida o conjunto constituído pelo organismo em seu ambiente. Em outros termos, ‘organismo + ambiente’ não deve significar a associação de dois elementos distintos, mas uma totalidade indivisível”. Com isso, ele procura defender a ideia de que a relação que estabelecemos com o mundo e o conhecimento que adquirimos a seu respeito não advêm da incorporação de um conjunto de representações simbólicas ou de categorias de entendimento culturalmente herdadas mas, sim, de diferentes formas de envolvimento prático do organismo com o ambiente e seus habitantes. Assim, para o autor, a relação do sujeito cognoscente com o mundo não seria de ordem epistêmica e correlacional (no sentido representacionista kantiano), mas ontológica e integral. De modo a ilustrar o seu ponto, o antropólogo inglês invoca o modo como o seu próprio pai, um botânico, lhe ensinava sobre as plantas e os cogumelos. Em vez de mostrar-lhe fotos livrescas e narrar suas características, seu pai o levava aos bosques e lhe mostrava as coisas, não apenas assinalando a sua presença, mas também fazendo com que seu filho as experimentasse diretamente, sentindo os seus odores e sabores. Com isso, Ingold argumenta que seu pai não incutia em sua mente categorias de entendimento próprias a uma cultura, mas simplesmente educava a sua atenção, isto é, afinava as capacidades perceptivas de seu organismo, que, a partir de então, se tornava capaz de obter certas significações imanentes àquele ambiente e àquelas plantas e cogumelos.

Na chave desta fenomenologia de sensibilidade ecológica, Ingold propõe um outro modo de analisar a variação perceptiva entre coletividades humanas. Argumenta ele que, quando observamos diferenças de comportamento e de visão de mundo entre pessoas oriundas de “culturas” diferentes (como aquelas entre o advogado francês que vai pela primeira vez num safari de caça e um caçador do povo Cree ou mesmo entre um leigo em música e um maestro), estas diferenças não se dão apenas em termos epistemológicos, isto é, em relação às maneiras como tais organismos conhecem e representam o mundo. De modo distinto, para Ingold o próprio mundo se revela para elas de modo diverso, uma vez que, tendo sido criadas em contextos práticos de ação diferentes, estas pessoas teriam adquirido organismos com capacidades e sensibilidades distintas. Ora, se a diferença não diz respeito à mente e ao modo de conhecer o real, mas ao modo de aparição do próprio real em função de capacidades sensoriais diferentes e relativas a cada organismo, isso quer dizer que ela remete a uma dimensão ontológica, antipredicativa, na qual a separação entre sujeito e objeto, natureza e cultura, não tem qualquer operacionalidade.

Há duas maneiras por meio das quais Ingold (2000), em Perception of Environment, exemplifica esta virada na direção da ontologia. A primeira advém de um comentário a um dos aspectos centrais do seu compositor favorito, Janácek. Para o compositor tcheco, explora Ingold, toda e qualquer fala humana, assim como todos os outros sons do mundo (desde os ruídos das ondas, até o toque de um sino ou o estouro de um cano) seriam cantos. E tais cantos, para Janácek, não seriam veículos de comunicação simbólica, nem mesmo veículos que servem para dar expressão externa a estados internos como crenças, proposições ou emoções; em vez disso, Janácek afirma que tais cantos deveriam ser pensados como emergentes “de todo o nosso ser” (apud Ingold, 2000: 24). Nesta compreensão janacekiana, tanto as ondas quanto as pessoas seriam capazes de berrar. E o berro, em ambos os casos, não seria um veículo que carrega a raiva. Com o compositor tcheco, Ingold afirma que “os ecos do berro são as reverberações do próprio ser (do qual ele parte) enquanto se espalha pelo ambiente” (2000: 24). Com Merleau-Ponty, de Fenomenologia da percepção, Ingold sustenta ainda a ideia de que um berro raivoso não faz “pensar na raiva, (mas) ele é a raiva em si” (Merleau-Ponty apud Ingold, 2000: 24; itálico no original). Ora, é justamente a passagem do berro como representação (interior) da raiva a modo de aparição da raiva em si o que exemplifica a virada ontológica de cunho fenomenológico e ecológico na perspectiva ingoldiana.

A segunda imagem que o antropólogo inglês utiliza para diferenciar uma via representativa e epistêmica de uma via sensória e ontológica é calcada na relação de aprendizado e na oposição entre as noções de código e de pista (clue). Ao se referir às formas de ensino e de conhecimento do mundo, Ingold afirma que:

quando o aprendiz é colocado na presença de um ambiente e convidado a prestar atenção nele de uma determinada maneira, sua tarefa não é decodificá-lo. Trata-se sobretudo de descobrir por si mesmo a significação que ali se encontra. Para ajudar a realizar essa tarefa, pode-se fornecer a ele um conjunto de um tipo de chaves que não são códigos, mas pistas. Enquanto um código é centrífugo, permitindo ao aprendiz aceder a significações que o espírito acresce (‘grampeia’) na superfície exterior do mundo, a pista é centrípeta, guiando-o em direção às significações que se encontram no coração do próprio mundo, mas que são normalmente dissimuladas por detrás da fachada das aparências superficiais. (...) Uma pista é, portanto, um ponto de localização que concentra elementos díspares da experiência em uma orientação unificadora, que, por sua vez, abre o mundo a uma experiência de uma maior clareza e profundidade. (2013: 32-33)

Assim, ao jogar luz sobre os contextos relacionais de engajamento perceptivo, Ingold (ibidem: 33) permite ir além da política da diferença instituída pelo paradigma neokantiano e multiculturalista e caminha na direção de uma diferença ontológica que diz respeito “às significações que se encontram no coração do próprio mundo”.

Contudo, é importante enfatizar, como o próprio Ingold salienta em seu debate com Descola (cf. Descola e Ingold, 2014), que ele não concebe ontologia no sentido aristotélico da “ciência do ser enquanto ser”. A antropologia, segundo ele, deve estudar, sobretudo, processos ontogenéticos, isto é, o emaranhado mútuo de existências que emerge do campo relacional em desenvolvimento, em permanente devir (Ingold, 2011). A superação do paradigma multicultural, realizado pela virada ontológica da ecologia da vida, possibilita então ao antropólogo inglês mobilizar esse plano ontogenético, referido empírica e fenomenologicamente a contextos práticos de agir, e pensado conceitualmente como um contínuo “processo de vida”.

2.2. Eduardo Viveiros de Castro e o projeto de metafísica comparada

Embora o diagnóstico crítico seja semelhante ao de Ingold, a proposta de escape do multiculturalismo de Viveiros de Castro vai ser diferente e, em alguma medida, diametralmente oposta à do antropólogo inglês. Em vez de englobar tudo no plano ontogenético e relacional das práticas ou dos contextos práticos de ação e de engajamento, Viveiros de Castro se aventura num projeto conceitual de busca da alteridade radical por meio da comparação metafísica. Para isso, no entanto, ele primeiro parte de uma análise de como a metafísica da predação ameríndia pôde reelaborar as noções de ponto de vista e de natureza ocidentais para, em seguida, retomar a noção de ontologia, de modo a desenvolver um projeto de metafísica comparada (ver Charbonnier et al., 2016).

O que há de peculiar ao pensamento ameríndio, segundo Viveiros de Castro, é a sua lógica perspectival. Diz ele que, em situações habituais, os humanos veem os humanos como humanos, os espíritos como espíritos e os animais como animais. No entanto, predadores, como as onças e os espíritos, veem os humanos como presas, e os animais veem os humanos como predadores. Assim, todos os seres – humanos, animais (ou espíritos) – veem a si mesmos como pessoas. Ora, se na nossa concepção ocidental cada cultura (diferente) vê o (mesmo) mundo de forma distinta, no caso ameríndio cada espécie vê a si sempre da mesma forma e o mundo de forma diferente.

No entanto, cabe perguntar como é possível pensar isso em termos mais concretos? Levando a dimensão perspectival às últimas consequências, Viveiros de Castro (1996) então afirma que, segundo os ameríndios, o que para um corpo humano é sangue, para o corpo de jaguar é cauim. E não se trata de dizer, como faria a perspectiva multiculturalista, que o jaguar representa como cauim aquilo que nós, humanos, sabemos que é sangue (o que seria uma variação de representação em torno de um mundo comum). Cauim é de fato cauim para o corpo de jaguar, e sangue é de fato sangue para o corpo humano. A variação corporal, portanto, não faz variar uma representação de mundo, mas o próprio mundo. Desse modo, a variação de perspectiva dos ameríndios deixa de ser de ordem epistemológica ou relativa à “visão de mundo” e assume proporções ontológicas, uma vez que invade o solo até então estabilizado pelo multiculturalismo da “natureza”. Assim, ao pensar os dêiticos de Benveniste nessa chave ontologizante, o antropólogo brasileiro argumenta que, para os ameríndios, há uma “unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real”, essa sendo a razão pela qual, para eles, há “uma só ‘cultura’, (mas) múltiplas ‘naturezas’; (isto é, uma) epistemologia constante, (mas uma) ontologia variável” (Viveiros de Castro, 2015b: 93).

Com isso, Viveiros de Castro caminha em duas direções complementares. De um lado, ele mostra como a metafísica da predação ameríndia, para ser levada devidamente a sério, impõe a necessidade de um “comparativismo superior” (Maniglier, 2015) que vá além de uma dimensão epistêmica e cultural. O que ele compara quando trata de simetrizar os conceitos ocidentais e aqueles que formula junto aos ameríndios, como os de perspectivismo e multinatureza, são os mundos expressos por tais conceitos. Assim, diferentemente de Ingold, que reduz tudo ao plano ontogenético comum expresso pelas noções de prática e engajamento no mundo, Viveiros de Castro propõe um exercício comparativo e conceitual que caminha na direção de um outro plano: importa sobretudo tratar os conceitos nativos de modo simétrico àqueles dos ocidentais e ver como, a partir disso, os primeiros são capazes de reformular os últimos.

De outro lado, Viveiros de Castro faz um segundo movimento, quando equipara as noções de natureza e ontologia, trazendo esta última à baila a fim de colocar os termos da comparação antropológica num nível de abertura à alteridade ainda mais radical e pluralista – isto é, capaz de, como uma “bomba” (cf. Latour, 2009), atingir aquela camada da “natureza” ou da “ontologia” até então intocada no projeto comparativo multicultural. Passando do conceito ameríndio de multinaturalismo àquele de ontologia variável, ele investe a noção de ontologia de uma função estratégica:

A imagem do Ser (implicada no conceito de ontologia) é obviamente um solo perigoso para se pensar sobre as conceituações imaginárias não ocidentais. E a noção de ontologia não é sem os seus próprios riscos. Entretanto, eu penso que a linguagem da ontologia é importante por uma razão única e, digamos, tática. Ela age contra o truque da artificialização, frequentemente praticado contra o pensamento nativo, que torna o seu pensamento um tipo de fantasia, reduzindo-o às dimensões de forma de conhecimento ou representação, do tipo “epistemologia” ou “visão de mundo”. (Viveiros de Castro, 2003: 17-18)

Ora, a proposta da virada ontológica pela qual Viveiros de Castro advoga não visa a mera substituição do conceito de cultura pelo de ontologia (cf. Carrithers et al., 2010). A ontologia, como ele afirma, não é uma outra forma de cultura, embora a cultura (+ a natureza) seja uma outra forma de falar de ontologia (Viveiros de Castro, 2015a). Ao passo que a aposta da ecologia da vida de Ingold é mostrar como o que há de comum entre o antropólogo e o nativo é o nível ontogenético das práticas (e que é a partir dele que antropólogos e nativos conceituam), Viveiros de Castro inverte a relação e estipula que o que há de comum entre antropólogos e nativos é o nível do conceito (e o mundo que de tais conceitos podemos derivar).10 Em vez da explicitação das diferenças entre o antropólogo e o nativo por via dos engajamentos práticos, Viveiros de Castro aposta na exploração frictiva das diferenças incomensuráveis pela via dos contrastes conceituais. Se, no caso de Ingold, cabe pensar como tudo é oriundo desse plano ontogenético do qual tudo parte e em que tudo se forma, em Viveiros de Castro a tarefa do antropólogo é desenvolver uma espécie de senso de dissonância (Stark, 2011) que busca tornar visível e extrair o valor heurístico dos contrastes entre sistemas metafísicos comparados. É por isso que ele afirma que a virada ontológica não visa comparar ontologias, mas pensar a própria ontologia como comparação (Holbraad et al., 2017).

A recuperação da noção de ontologia na antropologia não é, portanto, uma nova maneira de tornar as diferenças comensuráveis (como no culturalismo) ou incomensuráveis (como numa espécie de exotismo metafísico) mas, sim, de não restringir a comunicação de diferenças ao plano epistêmico e cultural. É uma estratégia para fazer a diferença e a alteridade falarem em um nível ontológico e, como prefere Viveiros de Castro, “multinatural”. Com a ontologia, os projetos da ecologia da vida de Ingold e o projeto da metafísica comparada de Viveiros de Castro se apresentam como uma estratégia conceitual que pretende permitir à antropologia menos se autotransformar, mas acima de tudo se altertransformar, isto é, transformar-se permanentemente à luz da alteridade. Isso significa que, segundo a virada ontológica, o ideal regulativo da disciplina não deve ser uma nova e pretensa neutralidade axiológica (que teria por tarefa, na medida do possível, exprimir a cultura nativa ou a alteridade de forma objetiva e neutra), mas a exploração sistemática da fricção oriunda dos contrastes e das parcialidades ontológicas que emergem na comparação entre formas de vida ou conceitos e sistemas metafísicos distintos.

 

Conclusão

Ao longo deste artigo procuramos realizar um esforço de depuração analítica de dois projetos que buscaram retomar o conceito de ontologia. Na filosofia, tratou-se da busca de uma alteridade por meio do reconhecimento do estatuto de realidade daquilo que não somente não concerne ao humano, mas apresenta uma indiferença irrestrita à sua existência. Na antropologia, essa busca antinarcísica pela alteridade, embora também pós-humanista, voltou-se sobretudo para o reconhecimento ontológico dos coletivos, formas de vida e metafísicas não ocidentais. Procuramos mostrar que, em diversos aspectos, os esforços de ambas as disciplinas se cruzam: tanto os filósofos quanto antropólogos que defendem a recuperação do conceito de ontologia hoje propõem uma agenda reflexiva na qual seja revogado o protagonismo do sujeito transcendental kantiano, nas suas diversas formas, em busca de um movimento antinarcísico radical. Tanto na filosofia quanto na antropologia, o papel da ontologia exprime um movimento realista e antirrepresentacionalista que demanda uma capacidade criativa, conceitual e prática tanto para acessar o outro (seja um objeto, um indivíduo, a natureza, etc.) quanto para, por meio dele, colocar a si mesmo e aos seus próprios pressupostos em questão. Como vimos, na filosofia, esse outro é imaginado nos espaços indiferentes ao ser humano ou nas personagens ficcionais teratológicas; na antropologia, ele é buscado em formas de vida ou metafísicas conceituais outras.11

Outro ponto em comum aos advogados da virada ontológica na antropologia e na filosofia é a busca pela alteridade radical articulada a um pluralismo ontológico: enquanto Harman, Tristan, entre outros, falam em princípio de liberalidade ontológica, Viveiros de Castro (2015a: 9) chega a falar em “anarquismo ontológico” e Gille (2018) em “onto-heterologia” . Assim, se na filosofia o pluralismo ontológico leva à ideia de uma ontologia orientada ao objeto, na antropologia ele leva ao que poderíamos chamar de “etnografia ontologicamente orientada”. Por tal termo, não estamos afirmando que os defensores da virada ontológica na antropologia aleguem que o contato do antropólogo com o nativo seja um modo de conhecer uma ontologia outra (ou a alteridade radical) em sua integralidade. De modo distinto, a etnografia ontologicamente orientada visa fazer aparecer algo (real e ontológico) do outro no contato frictivo com o sistema metafísico da própria antropologia – ou da forma de vida da qual o antropólogo parte ou foi socializado. Na comparação, portanto, há sempre algo do nativo e do antropólogo que aparece nessa relação, sem que aquilo que se revela no contraste seja a totalidade da ontologia do antropólogo ou da ontologia nativa. Isso significa que, segundo a virada ontológica, a boa etnografia ontologicamente orientada deve não tanto buscar conhecer a alteridade radical em si mesma, mas simplesmente reformular os conceitos iniciais do antropólogo à luz da alteridade e da diferença, que sempre será interior à relação e ao contraste.

Por fim, um último ponto: tanto realistas especulativos quanto antropólogos que advogam pela noção de ontologia não visam apenas assumir o pluralismo radical da alteridade, mas, por meio dela, reconhecer a particularidade de nosso aparato perceptivo e os limites de nossa apreensão do mundo e, assim, se alter-provincializar – seja o humano, na filosofia, ou os conceitos ocidentais, na antropologia. A afirmação ontológica, assim, enfatiza a compreensão de que toda alteridade, seja de um objeto teratológico ou de um coletivo não ocidental, se apresenta em uma “relação” que não deve ser confundida com “correlação”. A ontologia não deve servir, como na acepção aristotélica, como um dispositivo para enunciar “o que é” – seja o outro da antropologia ou o outro da filosofia –, mas como um movimento que pretende conferir à alteridade um estatuto de realidade suficientemente forte para ser capaz de colocar a nós mesmos, reflexivamente, em questão.

Em “Who is Afraid of the Ontological Wolf”, Viveiros de Castro (2015a) mobiliza a metáfora de Lewis Carroll para descrever esse processo antinarcísico de busca pela alteridade radical na antropologia. Segundo ele, é preciso sempre atravessar o espelho — um espelho que é, antes de tudo, “não reflexivo” (Hage, 2012). Quando o antropólogo brasileiro afirma que “a antropologia é sempre sobre passar o seu pescoço pelo espelho da diferença ontológica” (Viveiros de Castro, 2015a: 15), nos perguntamos em que medida isso não descreve a antropologia, mas também a própria filosofia e todos aqueles que, contemporaneamente, têm buscado retomar o conceito de ontologia. Para seguir a metáfora, nos parece que a recuperação do conceito de ontologia sintetiza um amplo movimento do pensamento contemporâneo, a saber, o de colocar o narciso frente a um espelho que visa não o reflexo de sua imagem, mas que procura mostrar outros reflexos nos quais podemos ver algo do outro e, apenas assim, percebermos algo (outro) acerca de nós mesmos.

 

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Artigo recebido a 03.06.2020 Aprovado para publicação a 11.08.2020

 

NOTAS

1 Todas as traduções são da nossa responsabilidade.

2 É por isso que as viradas cultural, linguística, hermenêutica e pós-moderna, quando lidas contemporaneamente pelos autores realistas da filosofia (Alloa e During, 2018) e pelos antropólogos contemporâneos, parecem confirmar a intuição de Foucault quando ele afirmou, em meados da década de 1970, que todos eram “neokantianos (...) estejamos conscientes disso ou não” (1994: 546). Isso porque, na esteira de Kant, o próprio Foucault – mas também Habermas, Kuhn, Cassirer, Geertz, Lévi-Strauss, etc. – não deixou de compartilhar a ideia de que o único real a que tínhamos acesso era sempre aquele existente dentro do modo de aparição para o humano, isto é, de um real para nós, restrito portanto a um circuito correlacional.

3 Estamos nos referindo aqui ao encontro chamado “Speculative Realism: A One-Day Workshop”, que ocorreu em abril de 2007 na Goldsmiths, University of London, sendo promovido pelo Centre for the Study of Invention and Social Process e cofinanciado pela Collapse.

4 A respeito da variação interna ao realismo especulativo, Fadret e Garcia (2016: 1) argumentam que “na verdade, o pensamento especulativo é tão diverso que às vezes é feito para compartilhá-lo com o de predecessores mais ou menos distantes. Aqui, muitas vezes se evoca o nome de Latour, cuja Teoria Ator-Rede leva em conta tanto o mundo humano quanto objetos não humanos, mas também os de Schelling, Bergson, Whitehead, Laruelle e Badiou, alguns dos quais queriam pensar a realidade como ela é fora das condições subjetivas de acesso a ela. Usando a metáfora da tectônica de placas, quase se poderia dizer que o campo do realismo especulativo nasceu do encontro de dois continentes contemporâneos, o dos modelos de Latour e da ontologia de Badiou. Como os pensamentos próximos de Latour (Antropoceno, virada ontológica na antropologia contemporânea, ontologias orientadas ao objeto) e Badiou (materialismo contemporâneo, proponentes da hipótese comunista) se afastaram um do outro novamente, a unidade do realismo especulativo rachou”. Lembramos que, aqui, nos ateremos à tradição de autores próximos a Latour.

5 Assim, Harman concebe por objetos tanto objetos físicos (quarks) quanto teóricos (conceitos); tanto objetos naturais (cachorros) quanto artificiais (computador); tanto intangíveis (multinacionais ou capitalismo) quanto concretos; tanto objetos reais quanto objetos imaginários (triângulo quadrado). A reivindicação central é a de que todos sejam colocados em um mesmo plano.

6 É possível dizer que tanto a antropologia quanto a filosofia, quando recuperam o conceito de ontologia, são pós-humanistas. O pós-humanismo antropológico pode ser, por um lado, compreendido como derivado ou mediado pelo conhecimento da alteridade, isto é, pelo modo como seres não humanos compõem mundos outros. Por outro, ele é a expressão da necessidade de reinvenção da própria disciplina, descentrando seu interesse no antropos e voltando-se para os não humanos (ver Salmond, 2014).

7 Embora não seja objeto de exploração neste artigo, cabe mencionar que o “liberalismo” ontológico de Garcia e o “anarquismo ontológico” de Viveiros de Castro contêm similaridades formais significativas.

8 Este, que é um ponto fundamental do pluralismo ontológico mobilizado pela virada ontológica na antropologia, será expresso por Gille (2018) por meio do que ele chama de “onto-heterologia”.

9 É importante destacar que o paradigma ecológico de Ingold é ontológico, embora nem toda virada ontológica seja ecológica, como veremos no caso de Viveiros de Castro.

10 Em O nativo relativo, Viveiros de Castro (2002: 119) expressa bem essa dimensão da via do conceito: “O nativo é, sem dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um mundo possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo”.

11 É neste sentido que os antropólogos defensores da virada ontológica argumentam que a busca dos realistas especulativos por “objetos exóticos está ocorrendo no lugar errado” e que “um exame comparativo de outros coletivos produz seres ‘estranhos’ e relações de um tipo muito real que nem uma fenomenologia não antropomórfica nem uma filosofia das ciências naturais podem detectar” (Charbonnier et al., 2016: 13).

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