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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.122 Coimbra set. 2020

 

RECENSÃO

Foucault, Michel (2018), O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana

 

Grazielle da Silveira Pereira

https://orcid.org/0000-0002-3145-9856

Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rua Marquês de São Vicente, 225, CEP 22.451-900 Gávea, Rio de Janeiro, Brasil grazis.pereira@gmail.com

 

O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana

Michel Foucault

Foucault, Michel (2018), O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. São Paulo: n-1 edições, 144 pp. Traduzido por Lorena Balbino

 

Quarenta anos após a Revolução Iraniana (1978-1979), revisitar o processo a partir das percepções sobre a potencialidade da insurgência através da perspectiva de um crítico como Michel Foucault significa não reduzir os levantes a um movimento de retorno à religião para formação de uma teocracia. No anseio do povo iraniano que se insurge, é possível verificar um desejo de mudança que assume o risco do confronto, como sugere o filósofo. As múltiplas entrevistas e palestras realizadas por Foucault são uma das marcas de seu percurso e resultam em publicações e traduções constantes, como os diversos tomos de Ditset écrits. Ao desvelar as fissuras daquilo que parece evidente, Foucault assumiu a posição de intelectual específico por ele mesmo reivindicada. Exemplificativamente, esse tipo de desvelamento verifica-se em suas percepções sobre o Irã presentes nestas entrevistas por chamarem atenção às práticas de insurreição e à incomensurabilidade de qualquer explicação óbvia. Se, em suas análises sobre o “poder” desmistificou esquemas e o pensou enquanto relações, as novas revoltas populares são pesquisas relevantes sobre desmistificação dos arranjos revolucionários do Ocidente para se pensar outras formas de resistência.

A publicação de O enigma da revolta reúne postumamente duas entrevistas inéditas concedidas por Foucault em 1979 sobre as manifestações desencadeadoras da Revolução Iraniana, para além de ter uma apresentação de Lorena Balbino, um artigo de Farès Sassine (“Sobre entrevistar Michel Foucault”), e um posfácio de Christian Laval (“Foucault e a experiência utópica”). As entrevistas visam esclarecer as repercussões midiáticas das análises do filósofo sobre o processo revolucionário – que este teve oportunidade de acompanhar em duas visitas realizadas ao país em 1978, tendo produzido inclusive uma “Reportagem de ideias” para o periódico Corriere della Sera – e também são importantes para a compreensão do desenvolvimento de novas formas de insurreições populares no século xx, bem como para recolocar os limites e os desafios das análises produzidas por intelectuais.

A primeira entrevista foi concedida à revista semanal Le Nouvel Observateur em junho de 1979, tendo sido apenas divulgada em 2018 neste livro. A questão central foi a tentativa de esclarecimento sobre a expressão “espiritualidade política”, motor da insurreição iraniana, ideia veiculada por Foucault em uma reportagem anterior do mesmo jornal sobre o Irã. Buscando desvincular a expressão de um conceito estritamente religioso, o filósofo explica que tentava compreender a força que significava concomitantemente uma intensa sublevação contra um regime demasiadamente forte e a assunção de sacrifícios pelos revoltosos. Assim, define a espiritualidade como a prática do homem de se insurgir em relação à própria posição de sujeito que lhe foi fixada pelo poder, que se traduziria na vontade de “tornar-se outro do que se é”. O uso da noção de espiritualidade deveria ser compreendido de acordo com suas influências teóricas e, desta forma, retoma a concepção de experiência de Bataille, definida como o risco que o sujeito assume ao tornar-se outro.

Foucault inovou ao tentar demonstrar que o processo revolucionário iraniano não se centrava na oposição entre a crítica a uma modernização acelerada e a vontade de regressão a uma vida antiga, mas antes na reivindicação por outra forma de vida. Nesse sentido, demonstra bem que a religião islâmica concretizaria, através de um movimento político, a vontade de espiritualidade de ser outro para além do que se é. Foucault destaca ainda a presença da espiritualidade em grandes revoltas – exemplificadas nas grandes mudanças ocorridas no fim da Idade Média na Europa –, motivadas por inúmeros levantes, desmistificando qualquer cumplicidade com o islamismo.

A partir da leitura da obra surgem indagações acerca das razões das insurreições aparecerem sob uma vontade de espiritualidade em estado nu que podem adquirir uma roupagem religiosa para além do caso iraniano, rompendo-se com o modelo esquemático de revolução pensado no Ocidente. Por outro lado, o convite à necessidade da prática permanente de sublevação – na qual há recusa do atual estatuto de sujeito feito pelo pensador – revelaria a concretude da espiritualidade política e a reatualização de ações insubmissas desvinculadas de projetos religiosos.

Na segunda entrevista concedida a Farès Sassine em agosto de 1979 e divulgada em árabe em 2013, Foucault informa que o interesse pelo Irã adveio da leitura do livro Oprincípio esperança, de Ernest Bloch, e as concomitantes notícias veiculadas sobre os levantes iranianos. Na obra em tela, coloca-se na Idade Média europeia o surgimento de uma percepção coletiva da história orientada pela possibilidade de alteração do mundo; percepção de origem religiosa e, ao mesmo tempo, conteúdo que permitiria desenvolver a ideia de revolução. As manifestações no Irã, por sua vez, demonstrariam o posicionamento de um povo contra o regime sem os moldes revolucionários ocidentais, vinculado à importância do fenômeno religioso, o que parecia materializar o indicado por Ernest Bloch.

Farès Sassine, no texto que antecede a transcrição da entrevista, esclarece o contexto e a forma de desenvolvimento do diálogo com o filósofo sobre as análises da Revolução Iraniana. O jornalista traz importantes informações quanto à proximidade de Foucault com eruditos árabes, às polêmicas relativas às suas declarações sobre a insurgência iraniana, além de sublinhar as conclusões ainda titubeantes do intelectual em relação ao movimento.

Três noções compreendidas como sendo de preocupação da parte de Foucault foram trazidas para esclarecimento nessa entrevista: “vontade geral”, “governo islâmico” e “espiritualidade política”. A impressão do filósofo quanto à “vontade geral” estaria relacionada à materialização de uma agregação coletiva iraniana contra o regime, sem qualquer guia, que não se restringiria à mera contestação. Em relação à equivocidade do termo “governo islâmico”, o filósofo demonstra que o seu consenso estaria na tentativa de se encontrar formas de coexistência que não reproduzissem o modelo ocidental. À noção de “espiritualidade política”, sua explicação remonta à analogia do que ocorrera na Europa com o calvinismo, esclarecendo que nunca almejou no contexto revolucionário iraniano detectar um tipo de retorno ao sagrado – a possibilidade efetiva do islamismo propiciar uma nova forma política seria da responsabilidade dos muçulmanos.

É relevante a explicação trazida por Foucault sobre a incomensurabilidade dos motivos que levam alguém a combater um sistema que o oprime, preferindo o risco da morte à submissão. Por isso, as razões dessa revolta seriam enigmáticas. O enigma da revolta – ou seja, a dimensão do inexplicável no ato de insurgência – impede qualquer explicação fácil sobre as causas e motivações do movimento de sublevação. Ademais, o argumento de Foucault sobre o papel dos intelectuais – de desmantelar o que pareceria óbvio e evidente na realidade a partir do trabalho que realizam, demonstrando as fragilidades e possibilidades de revolta – indica sua função ativa e crítica. Ele sugere-nos a necessidade de uma estratégia de insurreição consistente no inconformismo ao intolerável e na materialização de mudanças, que não é necessariamente massiva e tantas vezes ocorre no âmbito das relações interpessoais em suas diversas dimensões. Assim, aponta que não pode haver sociedades sem insurreições.

Por último, acrescenta-se a importância da experiência utópica no pensamento foucaultiano trazida no posfácio de Christian Laval. Uma concepção de utopia que não é idealizada, segundo a leitura de Laval de Foucault, porém movimento que altera a relação consigo próprio e com o mundo a partir do resultado da própria transformação de si. Transformação potente que desloca os sujeitos, particular ou coletivamente, no exercício da prática da liberdade. Ainda é preciso ler que a utopia concretizada na mudança expõe o risco da morte. A espiritualidade do povo iraniano, assim identificada por Foucault, pode ser um exemplo de vislumbre da experiência utópica.

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