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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.117 Coimbra dez. 2018

https://doi.org/10.4000/rccs.8070 

ARTIGO

Mudanças e andanças em nome do combate à criminalidade e da defesa da sociedade*

Changes and Wanderings in the Fight against Criminality and in Defense of Society

Changements et errances au nom de la lutte contre la criminalité et de la défense de la société

 

Maria Manuela Magalhães*, Ana Paula Guimarães**

* Instituto Jurídico Portucalense, Departamento de Direito da Universidade Portucalense Rua Dr. António Bernardino Almeida, 541-619, 4200-486 Porto, Portugal mmdmms@upt.pt

** Instituto Jurídico Portucalense, Departamento de Direito da Universidade Portucalense Rua Dr. António Bernardino Almeida, 541-619, 4200-486 Porto, Portugal apg@upt.pt

 

RESUMO

A crescente sensação de insegurança da população vai exigindo do poder punitivo estatal um desempenho maior, mais acelerado e eficaz. Esta reivindicação tem vindo a denotar uma evidente determinação no sentido de se obter uma justiça penal dura, rígida e modelar. Nesta linha, o legislador, não imune às reclamações da população, mas também em consequência de populismos triviais, acaba por ceder e introduzir mudanças na lei processual penal, respondendo assim ao fenómeno reivindicativo. Acontece que a tendência punitivista e securitária restringe necessariamente as garantias dos arguidos, que também são cidadãos. E é justamente esta vertente, da discutível trilogia “segurança, liberdade, administração da justiça penal”, que é objecto desta reflexão. Daí que tivéssemos tentado dar um contributo, a propósito de algumas alterações da lei processual penal portuguesa, no que respeita às declarações do arguido e ao julgamento em processo sumário, que afectaram alguns direitos deste sujeito processual.

Palavras-chave: combate ao crime, intervenção do Estado, justiça penal, Portugal, processo penal

 

ABSTRACT

The growing sense of insecurity of the population will require greater, swifter and more effective performance from the State’s punitive power. This claim has come to denote a patent determination to obtain a hard and rigid model of criminal justice. In this way, the legislator, not immune to the complaints of the population, but also in consequence of trivial populisms, ends up giving in and introducing changes in criminal procedural law responding to the phenomenon of vindication. The punitive and security tendency turns out to be one that is likely to narrow the guarantees of the defendants, who are also citizens. And it is precisely this aspect of the debatable trilogy “security, freedom, administration of criminal justice”, which is the subject of this reflection. Thus, we have tried to make a contribution regarding some changes in Portuguese criminal procedural law that have impacted certain rights of the accused.

Keywords: criminal justice, criminal procedure, fight against crime, Portugal, State intervention

 

RÉSUMÉ

Un sentiment croissant d’insécurité de la population exige du pouvoir punitif de l’État une performance meilleure, plus rapide et plus efficace. Cette affirmation montre une détermination claire à l’obtention d’une justice pénale dure, plus rigide et servant de modèle. Par conséquent, le législateur non immunisé contre les réclamations de la population et, aussi en raison du populisme trivial, fini par céder et apporte des modifications à la loi sur la procédure pénale, pour répondre au phénomène revendicatif. La tendance punitiviste et sécuritaire restreint nécessairement les garanties des accusés, qui sont aussi des citoyens. Et c’est précisément cet aspect, la trilogie controversée “sécurité, liberté, administration de la justice pénale” qui fait l’objet de cette réflexion. Par conséquent, nous avons essayé d’apporter une contribution, à propos de quelques modifications de la loi sur la procédure pénale portugaise, en ce qui concerne les déclarations de l’accusé et du jugement en procédure sommaire, qui a affecté certains droits de ce sujet procédural.

Mots-clés: intervention de l’État, justice pénale, lutte contre le crime, Portugal, procédure pénale

 

Introdução

A incumbência do Estado de administrar de forma eficaz a justiça penal prende-se, do ponto de vista material, com a questão das garantias constitucionais do arguido. Neste domínio, existem pretensões de celeridade, de eficácia e de infalibilidade que acabam por ser concretizadas à custa do sacrifício de garantias de defesa do arguido. O modelo processual penal português vinha sendo conhecido por ser um bom exemplo de valorização da pessoa enquanto tal e de um processo penal cujos canais condutores assentam na ideia e na materialização de uma República “baseada na dignidade da pessoa humana”, conforme decorre dos artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que constitui o fundamento último e o limite da intervenção estatal. Todavia, a legislação, em algumas das suas alterações, revela uma mudança de paradigma, segundo o qual o arguido sai mais fragilizado perante a envergadura dos meios e das instâncias formais de controlo, resultado da necessidade de o Estado dar uma resposta pronta às preocupações comunitárias de segurança e tranquilidade, na linha do designado populismo penal.1 Esta via assume-se como o modo adequado para dar forma às pretensões justicialistas e punitivistas que, de resto, se alastram, em maior ou menor escala, em outros ordenamentos jurídicos e que vão colhendo cada vez mais adeptos. Apreciamos aqui dois aspectos do processo penal português que foram atingidos por esta tendência, revelando uma tensão dialéctica na sociedade e dentro do sistema processual penal quando observada à luz dos direitos fundamentais.

 

1. Sobre a questão das declarações do arguido

Uma das consequências imediatas da adopção de posturas securitárias e punitivistas – bem sabemos que em nome do alegado bem comum, da paz social e do bem-estar societário – é o inevitável abreviamento da distância entre o indivíduo enquanto sujeito do processo e o indivíduo enquanto objecto do processo. Tal atitude tende a transformar o arguido em mero objecto do processo, em relação ao qual o Estado pode tudo – ou quase tudo – para descobrir a verdade e para punir.

É verdade que o Estado tem a missão de assegurar os direitos e garantias fundamentais dos seus cidadãos, designada constitucionalmente, no artigo 9.º, alínea b, como uma das suas tarefas essenciais. Também não é menos verdade que a prova por declarações do arguido há muito que vem sendo um instrumento de defesa deste. É o que resulta das normas constantes dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, da CRP e de alguns preceitos do Código de Processo Penal (CPP), entre os quais se contam os artigos 61.º, n.º 1; 140.º, n.º 3; 343.º, n.º 1; 344.º e 347.º, n.º 1. Com efeito, o meio de defesa “declarações do arguido” – prerrogativa que resulta do direito a ser ouvido no processo sobre os factos que lhe são imputados – destina-se a ser utilizado quando o arguido o pretenda, caso assim queira e na exacta medida em que o deseje.2 Vejamos a sua razão de ser: o princípio da jurisdicionalidade reserva para os tribunais a exclusividade da aplicação das sanções criminais em decorrência de um processo penal de estrutura basicamente acusatória, garantia assegurada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 5; havendo diferenciação entre a entidade que investiga e aquela que julga, a incorporação do princípio da investigação da verdade material – embora limitado pela definição do objecto processual – prescreve ao julgador o dever de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º 1 do CPP). Por outro lado, para decidir, o tribunal não pode atender a outras provas que não sejam as que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento; de acordo com o artigo 355.º “não valem em julgamento, nomeadamente para efeito de formação de convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.

Todavia, a Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que introduziu algumas alterações ao CPP, ampliou o espaço de permissão da leitura das declarações do arguido na fase de julgamento, de modo a aceitá-las mesmo que nesta fase o arguido decida remeter-se ao silêncio. Passamos a explicar. O sistema processual penal veda, por princípio, em fase de julgamento, o recurso a provas obtidas em fases processuais anteriores. Havia, contudo, justificadas excepções previstas no artigo 357.º do CPP: a leitura das declarações do arguido, prestadas em fases precedentes, só tinha lugar por sua expressa solicitação, independentemente da entidade perante a qual tivessem sido prestadas, ou, se tivessem sido feitas perante um juiz, quando houvesse contradições ou discrepâncias entre o que por ele fosse afirmado em sede de julgamento e o que tivesse sido dito anteriormente. Nestes termos, na fase de julgamento, as declarações confessórias ou outras que o arguido tivesse prestado não poderiam ser lidas caso este usasse o seu direito ao silêncio. Por conseguinte, essas declarações não constituíam elemento de prova na fase processual do julgamento. Esta era a interpretação dada ao disposto no artigo 357.º, n.º 1, alínea b, a contrario,3 do CPP. De resto, só assim poderia ser pois que as discrepâncias ou contradições nas declarações do arguido só se verificariam se este resolvesse apresentar o seu depoimento invocando as suas razões de facto ou de Direito, de modo divergente ou contrário ao que tivesse alegado em fase processual anterior.

Esta norma, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, foi alterada e encaminha-nos para uma outra alteração legislativa efectuada também no artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP, relativo ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Agora, em sede do mesmo, o juiz, entre outros esclarecimentos, deverá informar o arguido “de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova”. Por sua vez, a alínea b do n.º 1 do artigo 357.º dispõe que “a reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º”.

Da conjugação dos dois preceitos resulta que a leitura permitida de declarações do arguido nos termos previstos passa a ser mais um elemento de prova a ter em conta no julgamento. Para tanto, basta que as declarações tenham sido prestadas perante uma autoridade judiciária – juiz, juiz de instrução ou Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência (conforme o artigo 1.º, alínea b, do CPP) – com assistência de defensor e precedidas do aviso ao arguido de que estas podem vir a ser utilizadas contra si no processo. Trata-se de uma aproximação ao “tudo o que disser pode ser usado contra si” do Direito norte-americano por efeito das conhecidas Miranda Warnings ou Miranda Rules,4 que vieram ampliar o privilege against self-incrimination a outras fases processuais, não se limitando ao julgamento, onde a prerrogativa já era perfilhada. As declarações do arguido, em consequência da alteração legislativa, podem vir a ser utilizadas em audiência de discussão e julgamento, ainda que o arguido venha a fazer uso do seu inalienável direito ao silêncio ou mesmo que seja julgado na ausência.

A mudança operada não veio trazer vantagens ao arguido, pelo contrário, estreitou o plano da sua defesa no que concerne ao meio de prova por declarações. Tal representa um recuo nos direitos do arguido que facilita e agiliza a descoberta da verdade em troca da diminuição de garantias processuais no âmbito do direito à defesa – o que, na prática, tem vindo a resultar, em especial nos processos mais complexos, no uso mais frequente e cauteloso do direito ao silêncio por parte do arguido.

São as garantias jurídico-constitucionais inerentes ao estatuto do arguido – princípio da presunção da inocência e direito a um processo justo e equitativo, respectivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4, da CRP – que concretizam, materializam e realizam a tipologia das relações entre o Estado, detentor do ius puniendi, e o indivíduo. Deste modo, e segundo parte relevante da doutrina, é o privilégio de não auto-incriminação ou nemo tenetur se ipsum accusare portador de um fundamento processualista (Dias et al., 2009: 41-42) cujo principal corolário se traduz na proibição da procura da verdade à custa das declarações do arguido. Independentemente de se partilhar a concepção minimalista ou maximalista do direito à não auto-incriminação, existe um espaço comum em ambas no que concerne à prova declaratória: o direito do arguido à não prestação de declarações incriminatórias ou à não resposta a perguntas feitas, seja por que autoridade for, sobre os factos imputados. Por isso, o arguido não presta juramento em caso algum e o seu silêncio não o pode prejudicar, nem o fará incorrer na prática do crime de desobediência previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b, do Código Penal.

Não deixamos de ressalvar que, ainda assim, o legislador empregou algum cuidado ao colocar uma reserva de não confissão dos factos, no n.º 2 do artigo 357.º do CPP: as declarações anteriormente prestadas pelo arguido, reproduzidas ou lidas em audiência, não equivalerão a confissão dos factos nos termos e para os efeitos previstos no artigo 344.º do CPP (norma que explana os casos e as condições de admissibilidade da confissão dos factos pelo arguido).5

Por outro lado, a alteração legislativa em causa não é facilmente compreensível em face do direito do arguido a não responder às perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar. O artigo 343.º do CPP prevê que o “presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que, no entanto, a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo”.

Portanto, até à modificação legislativa, se o arguido optasse pelo silêncio, o valor probatório deste era irrelevante, logo não podia ser levado em conta para efeito da formulação da convicção do julgador. Do silêncio do arguido não se poderia extrair nenhum resultado processual, nada a não ser o seu silêncio, nem mais, nem menos. O direito ao silêncio e o privilégio de não auto-incriminação6 são verdadeiras ampliações do direito de defesa do arguido e evidentes limites ao apuramento da verdade.7 Em sede de matéria jurídico-criminal, “na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual” (Andrade, 2006: 121-122), o que impõe limites ao poder legislativo num Estado de Direito democrático: a estrita observância das normas constitucionais e dos princípios fundantes do processo penal.8 Assim, mesmo que o arguido decida usar o direito ao silêncio, as suas declarações prestadas em fases anteriores podem ser lidas em audiência de julgamento, bem como se o arguido for julgado na ausência.

O legislador justificou a sua nova opção na exposição de motivos: “a quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça”.9 Ora, a razão em que assentou esta escolha prendeu-se com o que o legislador entendeu ser a necessidade de dar resposta pública e pronta às dúvidas, aos anseios e às inquietações da população que não entende os problemas da justiça criminal, a morosi-dade da máquina judiciária e os abundantes resultados de arquivamento ou de absolvições. As preocupações relativas à impunidade dos factos criminosos e à intolerância dos cidadãos relativamente a este estado de coisas, já tinham sido referenciadas no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945, que reformulou alguns princípios básicos do processo penal contidos no Código de Processo Penal de 1929:

(…) será certamente causa de inquietação a circunstância de cerca de um terço dos crimes praticados no País não serem objecto de julgamento, em grande parte, por insuficiência da instrução processual. Há sectores importantes da actividade delituosa em que a impunidade é a regra. Algo sem dúvida funciona mal. Uma sociedade não pode, sem perigo, consentir longamente na violação assídua das regras fundamentais em que assenta a sua existência e ordenado funcionamento, como os cidadãos não podem permanecer continuadamente à mercê da pertinaz agressão à sua esfera jurídica.10

Verificamos, pois, que o legislador assumiu como ponto de partida a necessidade de dar satisfação pública às reclamações da comunidade, viu como indispensável dissipar o desassossego respeitante ao modus procedendi no seio da realização da justiça penal imprimindo mais vigor, mais dureza e mais firmeza ao processo penal. Mas, como contraponto, retorce o ponto de chegada do processo penal: a referência do Homem portador de direitos inalienáveis que fazem dele um sujeito processual. Assistimos a um movimento de sobreposição do interesse colectivo em detrimento do homem enquanto indivíduo.

A modificação legislativa em apreço teve como intencionalidade normativa a mera eficácia. A eficácia na descoberta da verdade, no julgamento e no sancionamento, em jeito de reconduzir o sujeito processual arguido à expressão redutora de objecto processual. Trata-se de uma cedência não compatível com a inteligibilidade dos princípios processuais-penais oriundos dos direitos fundamentais e com assento constitucional. Com efeito, a mudança legislativa operada teve o desígnio de aproveitar o mais possível as declarações do arguido, prestadas antes do julgamento, perante uma autoridade judiciária e na presença de um defensor, com a advertência de que virão a ser utilizadas posteriormente. Sucede que, ao arguido, quando formalmente investido deste estatuto, é conferido um concreto conteúdo material de defesa cuja formulação compreende o direito de “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar” (artigo 61.º, n.º 1, alínea d, do CPP), ao que acresce um vasto conjunto de direitos que formam uma unidade de sentido na definição do seu status processualis.

Assumindo as declarações do arguido um meio da sua defesa, o condicionalismo factual, temporal e até espacial em que este decide prestá-las vai-se modificando, à medida que o processo se desenvolve, dado o processo criminal ter uma dinâmica evolutiva em busca dos indícios suficientes que sustentarão, no final, a acusação. Ora, o que o arguido possa resolver dizer sobre os factos que lhe são imputados num dado momento processual, por exemplo, quando confrontado com uma certa quantidade e/ou um determinado tipo de provas carreadas pelo Ministério Público, poderá não ser o mesmo que queira ou possa dizer em sede de audiência de julgamento, num momento em que o objecto do processo está definido, em face da dinâmica natural e da progressão do próprio processo penal. Como se sabe, o procedimento criminal vai-se desenvolvendo e solidificando desde o momento da aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público. Não é, nem pode ser, um procedimento estático.

Desde a abertura do inquérito, este órgão vai carreando para o processo elementos de prova que, caso os indícios recolhidos se revelem suficientes, darão lugar a um despacho de acusação no qual se define e delimita o objecto do processo. Naturalmente, o arguido irá defender-se da acusação proferida tal como ela está elaborada, caso queira, pois que sobre ele não recai nenhum ónus de impugnação ou de prova.11 Ora, os elementos de prova conducentes ao apuramento da verdade sobre a prática do crime, de quem o cometeu e a sua responsabilidade não se encontram todos reunidos logo no início, vão-se coligindo continuamente, à medida que o procedimento progride e avança. Pode suceder que, no momento em que o arguido presta as suas declarações, ainda não estejam reunidos todos os meios de prova a recolher pelo Ministério Público. Basta, para tanto, que até aí tenham sido recolhidos elementos probatórios indicativos da suspeita fundada da prática de crime (artigo 58.º, n.º 1, alínea a, do CPP). Donde resulta que, decidindo o arguido prestar declarações, mesmo sendo advertido de que o conteúdo destas poderá ser usado contra si ulteriormente, fá-lo-á nos exactos termos adaptados aos ditos elementos de prova até então adquiridos e de que teve conhecimento no momento em que presta as declarações. Quando, mais tarde, na fase de audiência de discussão e julgamento, as suas declarações vierem a ser lidas, poderão vir a apresentar-se como desajustadas temporalmente, não se olvidando que faz parte da estratégia processual a escolha entre exercer – ou não – o direito ao silêncio. Não esqueçamos que existe um hiato de tempo, maior ou menor consoante a complexidade do processo, entre o momento do inquérito e o do julgamento. E são as declarações anteriormente prestadas pelo arguido que vão ser levadas em conta para efeito de formação da convicção do julgador.

Na fase do julgamento, com grande probabilidade, existem mais alguns elementos de prova que integram o processo, os quais por sua vez, poderiam ter determinado, com alguma margem de segurança, outro tipo de declarações, com diferente teor, com diverso sentido, ou porventura, até a sua omissão. A vinculação ao que tenha dito anteriormente pode prejudicar a sua estratégia de contraditar, ou pelo menos, condicioná-la em determinado sentido, o que acaba por diminuir ou limitar o carácter de meio de defesa das declarações, metamorfoseando-as em simples meio de prova.12

O valor do silêncio do arguido sai daqui diminuído, o que constitui motivo de apreensão, dada a sua específica característica inerente a um processo penal respeitador dos direitos fundamentais: é um meio de defesa do arguido. Permitindo o CPP, como permite, na fase do julgamento, a leitura ou reprodução das declarações do arguido tomadas em fase processual anterior, mesmo que agora este não se disponha a prestar declarações ou seja julgado na ausência, sujeitando-as ao princípio da livre apreciação da prova, está a encarar as declarações com uma outra faceta – a de meio de prova – a postergar o garantido direito ao silêncio. De tal forma que, na fase de audiência de discussão e julgamento, pode suceder que o arguido, que decida usar o seu direito ao silêncio, se veja confrangido na posição de mero observador e simples ouvidor da leitura das suas declarações anteriores. O arguido, de facto, é desapossado de uma parte do seu direito ao silêncio quando o Tribunal usa as declarações prestadas anteriormente, não podendo impedir a sua leitura, não obstante essas declarações poderem apresentar-se, no momento concreto, incompatíveis com a sua estratégia de defesa.

O contra-argumento que acentua a lealdade do Estado para com o arguido, que antes do julgamento renuncia ao direito ao silêncio, informando-o das consequências, não nos parece bastante (artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP). A advertência em causa, sendo nota de uma franqueza erguida nas relações Estado/arguido – a lealdade emergente do cumprimento dos deveres de informação por parte do Estado, de que nos fala Paulo Dá Mesquita (2014: 152) – não deixa de não levar em consideração a (quase) inevitável variabilidade do conteúdo das declarações, conforme o momento processual em que são prestadas: as declarações de hoje, num certo contexto, com um determinado acervo de provas, poderão não ser as de amanhã, aquando da ou após a definição do objecto do processo. Chamamos aqui à colação a “fundamental unidade do estatuto jurídico do arguido” de que nos dá conta Jorge de Figueiredo Dias (2004: 443),13 alinhada com as garantias jusconstitucionais de defesa no processo penal, proclamadas no artigo 32.º, n.º 1, e com a garantia do princípio da proporcionalidade, plasmado no artigo 18.º, n.º 2.

A presença obrigatória de defensor impõe que a defesa proporcionada ao arguido, além de técnica, seja efectiva do ponto de vista material. Neste aspecto, podem vislumbrar-se algumas dificuldades práticas, em especial, no que concerne às defesas oficiosas, uma vez que o acompanhamento no primeiro interrogatório implica que o defensor esteja, desde logo, munido de um profundo conhecimento dos factos imputados ao arguido e que também tenha tido oportunidade de delinear uma estratégia de defesa consentânea com o uso ou o não uso futuro das declarações prestadas pelo arguido nesse momento. Esta dificuldade, bem como o fundado receio de o arguido ficar vinculado ao que disser, dá lugar ao uso do direito ao silêncio não por opção primária da defesa, em virtude da natureza e das razões subjacentes à sua estratégia, mas por razões de índole prática. A solução que conduz à adopção do direito ao silêncio como forma de obviar às consequências futuras da utilização das declarações então prestadas, como se se tratasse de um “remédio para males futuros”, desvirtua o conteúdo do direito ao silêncio como forma passiva de defesa processual primária e estratégia deliberadamente eleita pelo arguido e pelo seu defensor. Entendemos o silêncio adoptado pelo arguido exclusivamente com a finalidade de evitar o uso futuro do conteúdo das suas declarações como uma forma de silêncio forçado ou forçoso por via indirecta.

Por outro lado, o requisito de tais declarações deverem ser prestadas perante autoridade judiciária, sendo irrefutavelmente relevante, não invalida a barreira, atrás já referida, que acaba por ser colocada à liberdade da vontade do arguido na escolha ou não do silêncio como sua arma de defesa. Vejamos: quando um arguido detido acaba de ser confrontado com factos que lhe são imputados, as suas declarações reflectem, muitas vezes, estados de alma, sentimentos de raiva, angústia e impulsos dirigidos ao próprio sistema judicial ou ao queixoso, caso existam. O arguido está colocado num quadro de circunstâncias únicas e irrepetíveis, que enformam as suas declarações, podendo dizer mais do que aquilo que pretendia, podendo omitir ou introduzir elementos de que depois se venha a arrepender. Inevitavelmente, a tramitação processual ao longo do tempo, a par da alteração do estado de espírito inicial do arguido, vão trazer-lhe a percepção de novas circunstâncias de facto e de Direito e vão permitir-lhe uma “outra” leitura do processo. Daí que a “importação” das suas declarações para a audiência de julgamento possa constituir meio de prova desligado do todo circunstancial que o arguido é. Invocamos uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa14 segundo a qual

entre as várias concretizações do processo equitativo resulta, desde logo pela própria designação (aqui na sua expressão em língua inglesa: fair hearing), que a resolução do pleito só possa ser levada a cabo por alguém que tenha acesso ao que foi exposto pelas partes; o que, no caso da fixação da matéria de facto, significa alguém que tem acesso directo a todas as provas (ou seja, tal como elas foram produzidas perante o tribunal, sem qualquer mediação pessoal ou tecnológica).

Pensamos que este Acórdão, embora tenha sido proferido em matéria cível, tem aqui, no que respeita ao entendimento de processo equitativo, inteira aplicabilidade. Com efeito, sobre as declarações prestadas pelo arguido antes do julgamento, ainda que perante autoridade judiciária, o julgador não chega a ter o conhecimento directo das circunstâncias em que estas foram prestadas, não presenciou, não viveu a paixão, a “verdade”, a intensidade, a energia das palavras do arguido, nem a sua linguagem comportamental. Mesmo que utilizados meios de registo audiovisual, há sempre pormenores da realidade do momento que se perdem. Por isso, consideramos a conclusão do citado Acórdão pertinente nesta sede.

Um outro aspecto a considerar tem especial atinência com a possibilidade da reprodução e leitura das declarações prestadas antes do julgamento, mesmo que o arguido seja julgado na ausência (artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP).

Da articulação de vários preceitos do CPP, relativos às regras gerais sobre notificações (artigo 113.º), em particular da definição dos termos da notificação para a morada indicada pelo arguido no termo de identidade e residência (artigo 196.º, n.º 2 e 3, alínea c), combinadas com a norma relativa à notificação do despacho que designa dia para a audiência de discussão e julgamento (artigo 313.º, n.º 3) e com a norma sobre o julgamento na ausência do arguido (artigo 333.º, em especial, os n.os 2 e 3) conclui-se que, caso o arguido tenha alterado a morada indicada aquando da prestação do seu termo de identidade e residência, nos termos do n.º 2 do artigo 196.º do CPP, ou se tenha ausentado, e não tendo comunicado nos autos esta mudança, fica legitimada a realização da audiência na sua ausência, ficando assegurada a sua representação por defensor (artigo 334.º, n.º 4), tenha ou não tido de facto conhecimento da data do julgamento. É consequência da violação da obrigação de comunicação de alteração de morada: presunção inilidível de notificação efectuada por via postal simples para a morada conhecida nos autos e por si fornecida. Todavia, a notificação por via postal simples não é sinónimo de que o arguido tenha sido real e devidamente informado da data do julgamento. Por outro lado, não deixou o legislador de, no n.º 10 do artigo 113.º, considerar a audiência de julgamento um acto de fulcral importância, exigindo que a notificação da designação de dia para julgamento seja efectuada não só ao defensor ou advogado, como também ao próprio arguido, justamente para dar efectividade às garantias de defesa deste em sede de julgamento.

Deste cenário resulta que, caso a audiência de julgamento seja realizada sem a presença do arguido, nos termos acima apresentados, e este tenha anteriormente prestado declarações, o arguido perderá a oportunidade de esclarecer o seu conteúdo, sentido e alcance, de as clarificar, ou de expor a sua versão mais completa dos factos. Na verdade, o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, com excepção dos que forem reservados pessoalmente a este. E a prova por declarações é um destes casos, que só pelo arguido pode ser prestada. Deste modo, a utilização das declarações anteriormente prestadas consubstancia um meio de prova, mas já não um verdadeiro meio de defesa nesta fase processual que o arguido sempre poderia aproveitar, no âmbito do direito à sua defesa plena.

Nesta matéria é de considerar a Directiva (UE) 2016/343, do Parlamento Europeu e do Conselho.15 O artigo 8.º, n.º 2, vem impor exigências à realização do julgamento na ausência do arguido, a saber: “a) o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou b) o suspeito ou o arguido tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado”.

A não ser que exista prova de que o arguido tenha tido conhecimento efectivo da data do julgamento, a realização deste na sua ausência, com base na notificação através de via postal simples na morada indicada no termo de identidade e residência, não preenche os requisitos do artigo 8.º, n.º 2, da Directiva. A violação das condições enumeradas no artigo 8.º confere ao arguido direito a um novo julgamento ou a outras vias de recurso que admitam a reapreciação do mérito da causa, compreendendo a possibilidade de apresentação de novas provas com vista à obtenção de uma decisão diferente da inicial (n.º 4 do artigo 8.º e artigo 9.º).16 A partir de 1 de Abril de 2018 – data limite da transposição da mencionada Directiva17 – a realização de audiência de discussão e julgamento na ausência do arguido só será admissível quando este tenha renunciado de forma voluntária, séria, consciente, inequívoca e informada ao seu direito a estar presente. É a consagração do direito a estar presente em audiência de julgamento como um dos inalienáveis direitos do arguido, com a face de um direito de defesa, que opera ao nível declaratório.

Não contestamos o papel do Ministério Público que, em representação do Estado, tem, entre outras atribuições, a direcção do inquérito, a dedução da acusação e o dever de sustentar em julgamento (artigo 53.º, n.º 2, alíneas b e c, do CPP). O que aqui tentámos demonstrar foi que a consecução do referenciado propósito, bem como a tarefa da descoberta da verdade, tem limites, não nos parecendo proporcional com a amplitude material do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

 

2. Sobre o julgamento em processo sumário

O artigo 381.º do CPP admitia o julgamento em processo sumário, da competência de tribunal singular, dos detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de máximo não superior a cinco anos (mesmo em caso de concurso de infracções), desde que a detenção tivesse sido efectuada por autoridade judiciária ou entidade policial, ou caso a detenção tivesse sido efectivada por outra pessoa, contanto que o detido fosse entregue no prazo máximo de duas horas às autoridades ou entidades referenciadas, tendo havido redacção do correspondente auto sumário da entrega. O julgamento nesta forma de processo podia ainda ter lugar relativamente aos detidos em flagrante delito por crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (mesmo em caso de concurso de infracções), quando o Ministério Público entendesse, na acusação, que em concreto não deveria ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.

Movido por necessidade de imprimir rapidez aos julgamentos, o legislador veio indicar – na exposição de motivos – a necessidade de alterar este normativo com a oportunidade de gerar

uma justiça célere que contribui para o sentimento de justiça e o apaziguamento social. (…) Contudo, não existem razões válidas para que o processo não possa seguir a forma sumária relativamente a quase todos os arguidos detidos em flagrante delito, já que a medida da pena aplicável não é, só por si, excludente desta forma de processo.18

E assim se materializou esta pretensão. A Lei n.º 20/2013, de 1 de Fevereiro, veio justamente consagrar a possibilidade de julgar em processo sumário todos os detidos em flagrante delito, independentemente da moldura penal do crime imputado, desde que à detenção tenham procedido as entidades indicadas na predecessora redacção do artigo 381.º. Com poucas ressalvas: a) criminalidade altamente organizada; b) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal; c) crimes contra a segurança do Estado; d) crimes previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.

Sendo o processo sumário um processo mais breve que o processo comum – quer no que respeita aos prazos, quer no que concerne à defesa e utilização dos meios de prova, quer no que se refere às formalidades e aos ritualismos processuais – apresenta uma expressiva redução das garantias do arguido. Assim é, nomeadamente, quanto às suas garantias de defesa. Basta atentar na própria estrutura não colegial do tribunal competente,19 no facto de a audiência de julgamento ter de se iniciar no prazo máximo de 48 horas após a detenção, embora haja a possibilidade de adiamento até ao limite máximo de 20 dias após a detenção, se o arguido requerer prazo para preparação da defesa ou se o Ministério Público considerar necessária a realização de diligências imprescindíveis à descoberta da verdade. Um outro óbice à plenitude das suas garantias de defesa consiste na limitação do direito ao recurso; com efeito, só é admissível recurso da sentença ou despacho que ponha termo ao processo e, por mais grave que seja a pena aplicada em concreto, não caberá recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição determina que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido” que compreende necessariamente o direito a colocar em crise a decisão judicial.20

De resto, não se vê como dois arguidos, a quem sejam imputados factos idênticos, de significativa gravidade, puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, cuja prova pode ser da maior complexidade, possam gozar de diferentes níveis de garantias, um por ser julgado em tribunal colectivo e o outro em tribunal singular, apenas por virtude da detenção em flagrante delito.

As críticas à nova redacção do artigo 381.º do CPP soaram de diversos quadrantes, repetidamente, e sempre acentuando a questão particular da redução significativa das garantias processuais do arguido. Depois de a norma em causa ter sido considerada materialmente inconstitucional por meio do Acórdão n.º 428/2013 e das Decisões Sumárias n.os 587/2013, 589/2013, 590/2013, 614/2013 e 637/2013 no âmbito da fiscalização concreta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro.

Nesta sequência, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/201421 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em apreço. Escreveram os Senhores Conselheiros:

Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável.22

Todavia, a decisão não foi unânime pois que a Senhora Conselheira Maria João Antunes, em voto de vencido, entendeu:

No plano do direito constitucional não decorre um qualquer critério de atribuição de competência ao tribunal singular, ao tribunal coletivo ou ao tribunal de júri, decorrendo somente do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição que o júri intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada.23

Não obstante no processo sumário estar salvaguardado o respeito pelos princípios gerais fundamentais do processo em matéria probatória – como o da legalidade das provas e o da proibição da valoração de provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento – as suas especificidades, em nome da celeridade e da simplificação processual, levaram-nos a problematizar o juízo de adequação constitucional entre a celeridade da justiça24 e as exigências da defesa, com os prazos encurtados e a simplificação das formalidades característicos do processo sumário. Na base da referida alteração legislativa de 2013 esteve a intencionalidade normativa e argumentativa de promoção do tipo de justiça penal populista de índole securitária.

 

3. Incoerências e discordâncias

O combate ao crime é uma causa que não merece censura, pelo contrário, é definitivamente necessária e indispensável ao livre desenvolvimento ético da pessoa num Estado de Direito democrático e é uma das tarefas fundamentais do Estado elencadas no artigo 9.º, alínea b, da Constituição. Por outro lado, o direito de defesa integra o direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Como referido anteriormente, o modelo de processo penal português vinha sendo conhecido por ser bom exemplo ao nível da concretização da dignidade da pessoa, modeladora do poder punitivo, do limite da intervenção dos competentes órgãos na busca da verdade material e da aplicação do Direito Penal.

O princípio da equitatividade (due process) constitucionalmente garantido exige a configuração de “um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. (…) O significado básico da exigência de um processo equitativo é do da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva”.25

A actual realidade normativa jurídico-processual representa a ilusão de que o Estado faz tudo o que estiver ao seu alcance e no âmbito das suas possibilidades técnico-legislativas para descobrir a verdade, a fim de punir eficazmente os culpados, tendo por base a interpretação de que essa é a vontade da população em geral. Dá a entender à comunidade que é empenhado e diligente. Passa a visão de promoção razoavelmente ajustada do direito de defesa do arguido quando efectivamente o relega para um lugar secundário e julga em processo sumário, com diminuídas garantias, os detidos em flagrante delito – qualquer que seja a gravidade do crime e independentemente da moldura penal prevista em abstracto. O arguido aparece, pelo menos em certa medida, servo do processo, o que representa uma patente incoerência e discordância entre a lei infraconstitucional e a Lei Fundamental.

O posicionamento do legislador deixa latente o conflito entre as finalidades da promoção da justiça criminal e o respeito pelos direitos jusconstitucionais do arguido, problema de base de todo o processo penal. É e será a matéria e a substância do legislado que confere legitimação ao poder legislativo, dado que legitimidade já a tem a partir do poder representativo que lhe é conferido pelo povo através do processo eleitoral. O valor da segurança, a indispensabilidade da manutenção e preservação da ordem pública e a necessidade de combater a criminalidade não são justificação imediata para a supressão do conteúdo essencial dos direitos fundamentais do arguido, desde logo por desintegrar o modelo processual penal vigente com os princípios constitucionais que o informam, introduzindo incoerências a nível sistémico.

Na senda do securitarismo, lembramos algumas medidas da era da administração do Presidente George W. Bush, com o USA Patriot Act de 2001, em reacção aos ataques terroristas de 11 de Setembro, em nome da união e do fortalecimento dos Estados Unidos América e do combate ao terrorismo,26 com manifesta incidência no plano da recolha de prova, visando uma perseguição criminal eficaz. Foram várias as medidas adoptadas para reforçar a segurança interna e para combater o crime: endurecimento dos procedimentos de vigilância, robustecimento da protecção das fronteiras, aprimoramento das regras relativas à imigração, passando pela faculdade de intercepção todo o tipo de comunicações e partilha de informações para fins de investigação criminal, com fragilização do direito à privacidade e à confidencialidade das comunicações, fortalecimento do combate ao branqueamento de capitais, alterações à lei de segredo bancário, agravamento das sanções penais, entre outras.

 

Conclusão

As alterações legislativas processuais penais devem coadunar-se de forma exemplar com o sistema jurídico processual penal e constitucional global vigente na sociedade, de modo a acautelar dissonâncias entre as duas ordens normativas. O legislador deve arrogar-se o comprometimento inalienável do culto da liberdade, procurando uma visão global e completa do Direito. De outro modo, na procura da ordem encontrará a desordem, na procura da paz encontrará a guerra, na procura da confiança encontrará a desconfiança. E desconfiança é um dos sentimentos dominantes da população em relação à administração da justiça em geral e, em particular, da justiça criminal. São estes alguns dos corolários do movimento punitivista e securitário. Estas são algumas das consequências, a par da “coisificação” dos sujeitos, que o Estado de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana têm de impedir, obstaculizando as concretizações de tendência securitária. O encurtamento da amplitude e extensão do direito de defesa do arguido é uma das sequelas que colide com a consistência normativa dos direitos processuais do arguido de índole constitucional27 e que toca inevitavelmente todos os cidadãos. Quando a população clama pelo tipo de justiça “custe o que custar” e quando o Estado dá guarida, na lei e na prática judiciária, a tais pretensões, quem sai lesado somos todos nós. A justiça quer-se com regras bem definidas e deixando espaço para o contraditório e a defesa, em que o sujeito é isso mesmo: sujeito e não mero objecto ao serviço de uma pretensão punitiva.

Trata-se de uma matéria extraordinariamente importante, justamente num contexto em que o sentir do indivíduo desagua num horizonte de expressão de sentidos opostos, causador de uma tensão dialéctica na sociedade e dentro do sistema processual penal: de um lado, a reclamação fervente da intervenção eficaz do Estado no sentido da obtenção de justiça, da célere pacificação da comunidade e do rápido restabelecimento da paz jurídica; do outro lado, a exigência da não intromissão excessiva do Estado nos direitos fundamentais do cidadão, da não ingerência desproporcionada nas liberdades e garantias constitucionais, cujo respeito integra o âmago do Estado de Direito. Um difícil equilíbrio que não pode ceder às tentações demagógicas da justiça populista.

 

BIBLIOGRAFIA

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Artigo recebido a 24.03.2017 Aprovado para publicação a 22.02.2018

 

NOTAS

* Por vontade das autoras, este artigo não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

1 Na perspectiva aqui analisada, o populismo na vertente top-down. Uma via política e utilitariamente utilizada, a partir da leitura e interpretação do sentir comunitário, colocada pelo Estado ao serviço de pretensões – exacerbadas – de mais segurança, de reforço do poder punitivo e da redução da criminalidade. Sobre o assunto veja-se, entre outros, Leite (2013). Realçamos o ponto de vista de Henrique Abi-Ackel Torres, segundo o qual as medidas contra a delinquência e a desordem são uma forma de o Estado reafirmar a sua soberania, de controlar o território e os seus cidadãos e “a própria vontade do Estado em demonstrar capacidade de governar” (2017: 284).

2 Veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 40/84, de 03/05/1984: “princípio da defesa é, (…) não mais que a explicitação concretizada, ao nível do processo judicial sancionatório, de uma componente necessária da ‘dignidade da pessoa humana’ em que, segundo o artigo 1.º da Constituição, se baseia a República” (consultado a 15.12.2016, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).

3 Sobre esta questão veja-se Albuquerque (2008: 856).

4 As regras resumem-se ao seguinte: qualquer pessoa, seja na qualidade de suspeito, seja na qualidade de arguido, tem o direito de ser advertida e esclarecida dos direitos que lhe assistem, nomeadamente o de não produzir prova contra si própria e de permanecer em silêncio perante as autoridades, sejam elas judiciárias ou policiais, em qualquer fase processual, relativamente aos factos que lhe são imputados.

5 Possível nos crimes puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos; uma confissão integral e sem reservas que o juiz se encarregará de apurar, sob pena de nulidade, se é produzida de livre vontade, determinando as seguintes consequências: renúncia, à produção da prova sendo os factos imputados dados como provados, passagem de imediato às alegações orais e à determinação da sanção aplicável (caso se não verifiquem outras circunstâncias que devam conduzir à sua absolvição) e redução da taxa de justiça em metade.

6 Sobre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, veja-se Dias et al. (2009) e, ainda, Silva (2014).

7 Sobre esta matéria reproduzimos um excerto do Acórdão n.º 95-695-1, de 05/12/1995, do Tribunal Constitucional: “o conteúdo essencial do direito de defesa, no qual se inclui o direito de ser ouvido, assenta em que o arguido deve ser considerado como ‘sujeito’ do processo e não como objecto, do que resulta o direito ao silêncio que lhe assiste – directamente relacionado com o princípio da presunção de inocência – e que só as afirmações por ele produzidas no integral respeito de decisões de sua vontade possam ser utilizadas como meio de prova”.

8 “O princípio nemo tenetur se ipsum accusare é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objecto da actividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente”, assim refere o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 340/2013, publicado no Diário da República, II Série, n.º 218, de 11 de Novembro de 2013.

9 Ponto 3 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B9aaf8b94-84eb-4a92-a439-b56826cf4ba6%7D.pdf (consultado a 28.09.2018). Sobre este assunto pode consultar-se o “Parecer da Ordem dos Advogados sobre o projecto de proposta de lei de alteração do Código de Processo Penal”, disponível em https://portal.oa.pt/advogados/pareceres-da-ordem/processo-legislativo/2012/parecer-da-oa-sobre-projecto-de-proposta-de-lei-que-visa-a-alteracao-do-codigo-de-processo-penal/ (consultado a 28.09.2018) e “Proposta de alteração ao Código de Processo Penal é inconstitucional”, Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 86, Janeiro 2012, p. 11.

10 No ponto 1 da parte preambular do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945.

11 Veja-se, a título meramente exemplificativo, o artigo 315.º do CPP que concede ao arguido o prazo de 20 dias, a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, para, assim querendo, contestar e apresentar o seu rol de testemunhas.

12 De acordo com Patrício (2005: 16), “a utilização do arguido como meio de prova é sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade”.

13 O autor, após expor os três tipos de interrogatório (pelo juiz a arguidos presos, pelo Ministério Público a arguidos não presos ou presos, pelo juiz ou Presidente do Tribunal em audiência de julgamento), a propósito dos quais se debate o papel das declarações do arguido como meio de prova ou como meio de defesa, acaba por concluir “não cremos, porém, que toda esta consideração diferenciada do estatuto jurídico do arguido se imponha”, acrescentando que “em qualquer deles se torna nítido o estatuto jurídico fundamental do arguido tal como atrás o desenhámos, i. é, como estatuto próprio de um sujeito processual sempre armado com o seu ‘direito de defesa’” (Dias, 2004: 442).

14 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/02/2016, Processo n.º 176/06.3TNLSB.L2-1, relator: Rijo Ferreira. Consultado a 16.12.2016, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/F2DF5C9FEEF843ED80257FDF006B80CD.

15 De 9 de Março de 2016, relativa ao reforço de certos aspectos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L 65/1, em 11.03.2016.

16 À semelhança do então artigo 380.º-A do CPP que fora introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, prevendo o recurso e novo julgamento em caso de julgamento na ausência, revogado pelo DL n.º 320-C/2000, 15 de Dezembro.

17 Que seguramente terá reflexos ao nível da positivação na lei processual penal, cujas alterações se aguardam.

18 Assim se lê no ponto 7 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, aprovada em Conselho de Ministros, datada de 21 de Junho de 2012, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B9aaf8b94-84eb-4a92-a439-b56826cf4ba6%7D.pdf, consultada a 28.09.2018.

19 O tribunal singular, pela própria estrutura, confere ao arguido menos garantias de defesa. Sendo os factos apreciados por uma só pessoa, o risco de erro aumenta; vejam-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 393/89, proferido no Processo n.º 417/88, 2.ª Secção, de 18/05/1989, e 326/90, proferido no Processo n.º 50/90, 1.ª Secção, de 13/12/1990, o primeiro disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19890393.html e o segundo disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900326.html (consultados a 20.01.2018).

20 Aquele uso que Canotilho e Moreira (2007: 516) designam como “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação”.

21 Publicado no Diário da República, n.º 51, I Série, de 13 de Março de 2014.

22 Ver Acórdão supra indicado, p. 1862. Nele se conclui: “Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição”. Consultado a 01.10.2018, em https://dre.pt/application/file/a/571825.

23 O mesmo Acórdão, na p. 1864.

24 “A questão da eficácia deve ser vista de maneira integrada: deve permanecer subordinada à justiça”, assim o afirma Rodrigues (2003: 57).

25 Assim o expressam Canotilho e Moreira (2007: 415).

26 Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (USA PATRIOT ACT) Act of 2001, Public Law 107-56-oct. 26, 2001. Consultado a 19.01.2018, em https://www.sec.gov/about/offices/ocie/aml/patriotact2001.pdf.

27 Germano Marques da Silva (2012) pronunciou-se sobre a matéria, apresentando fortes críticas a esta alteração legislativa, na qualidade de Relator e Presidente do Gabinete de Estudos da Ordem dos Advogados: “(…) resultado das intuições de alguns juristas e políticos inspiradas por um certo populismo em matéria de combate ao crime que parece ter-se apoderado da sociedade portuguesa ou pelo menos dos meios de comunicação social”. Este autor conclui tratar-se de “(…) uma importante limitação do direito ao silêncio”, falando na existência de “um retrocesso grave em termos de garantias da defesa no processo penal” (ibidem).

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