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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.spe2018 Coimbra nov. 2018

https://doi.org/10.4000/rccs.7862 

ARTIGO

Literatura e cultura*

Literature and Culture

Littérature et culture

 

Maria José Canelo

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra | Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal mjc@ces.uc.pt

 

RESUMO

Neste texto, são discutidas as dinâmicas entre a literatura e a cultura conforme vêm sendo tratadas no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, nos 40 anos que constituem a vida deste centro de pesquisa. O foco incide em artigos publicados na Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS), a publicação que dá voz à investigação científica do CES desde a sua fundação. A ênfase recai em textos da autoria de investigadores/as envolvidos/as na estruturação do Centro, momento em que foram definidas as linhas-mestras da sua pesquisa, as metodologias e o tipo de conhecimento a construir. O objectivo primeiro deste trabalho é dar conta do papel que a RCCS tem tido na constituição de uma ideia de comunidade científica, com um projecto comum de construção de formas de conhecimento-emancipação e o contributo dos debates em redor da literatura e da cultura na definição desse projecto.

Palavras-chave: cidadania, estudos culturais, estudos literários, Revista Crítica de Ciências Sociais

 

ABSTRACT

This text presents a discussion on the dynamics between literature and culture, following the forms of approach to these categories in the research developed at the Centre for Social Studies (CES) of the University of Coimbra over its forty years of existence. The focus is directed at articles published in the Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS), the journal that has been giving voice to the scientific research conducted at CES since its inception. The emphasis is placed on those articles authored by CES researchers involved in the creation of the Center, for this was the moment when the research guidelines, methodologies and the idea of knowledge to be pursued were first established. The main goal of this article is to identify the role the RCCS has played in the development of the idea conceived by an academic community whose common project was the construction of emancipatory forms of knowledge and the contribution to debates on literature and culture stemming from the definition of that project.

Keywords: citizenship, cultural studies, literary studies, Revista Crítica de Ciências Sociais

 

RÉSUMÉ

Dans ce texte, nous abordons les dynamiques existantes entre la littérature et la culture, conformément à l’approche qui en est faite par le Centre d’Études Sociales (CES) de l’Université de Coimbra, au cours des quarante ans qui constituent la vie de ce centre de recherche. Nous nous penchons particulièrement sur des articles publiés dans la Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS), la publication qui est la voix de la recherche scientifique du CES depuis sa fondation. Nous mettons en exergue des textes signés par des chercheurs/euses engagés/ées dans la structuration du Centre, moment où furent définies les lignes maîtresses de sa recherche, les méthodologies et le type de connaissance à bâtir. L’objectif premier de ce travail est de rendre compte du rôle que la RCCS a joué dans la constitution d’une idée de communauté scientifique, comme un projet commun de construction de formes de connaissance-émancipation et la contribution des débats à propos de la littérature et de la culture dans la définition de ce projet.

Mots-clés: citoyenneté, études culturelles, études littéraires, Revista Crítica de Ciências Sociais

 

Introdução

Com os poetas aprendemos que a linguagem tem de ser sempre reflexivamente entendida como um lugar agónico por excelência, um lugar onde os sentidos se não cristalizem no sentido, antes constituam um lugar de sentidos porosos, temporários, incompletos – sentidos dinâmicos de interrupção ou de passagem. Ramalho e Ribeiro (2002: 18; itálico no original)

Dado que os conceitos de literatura e cultura são muito amplos, sobretudo o segundo, o foco deste trabalho não é tanto uma definição exaustiva e rigorosa de cada um deles, mas sobretudo uma exposição de como têm sido articulados e discutidos nas páginas da Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS), nas últimas quatro décadas. Procede-se, em primeiro lugar, a uma delimitação dos conceitos centrais, seguindo de perto as distinções assinaladas por teóricos como Raymond Williams. Além de um breve percurso histórico atento aos desenvolvimentos das ideias de literatura e de cultura, destaca-se o entendimento das formas culturais, inclusive a literatura, enquanto sistemas simbólicos de representações, e em constante relação com os sistemas de produção e as formas de conhecimento hegemónicas. Daqui resulta uma abordagem que pensa a literatura e a cultura na sua relação com as formas de poder, entre a regulação e a emancipação. Também não é exaustivo o tratamento dos textos que analisam problemáticas ligadas à literatura e à cultura, apenas se toma por referência e como exemplo um conjunto de artigos que ilustram os debates principais que marcaram a revista, no que a este tema diz respeito.

 

1. Literatura e cultura

Naturalmente, as humanidades, no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, não se reduzem à abordagem da literatura e da cultura, mas este trabalho é dedicado especificamente à discussão destes conceitos. E começo por explicar por que importa pensá-los em conjunto. De uma forma geral, a cultura pode ser entendida como um pano de fundo vasto e dinâmico, uma constelação de representações simbólicas através das quais os sujeitos identificam o seu lugar no mundo através de significados que assinalam, quando não determinam, condições de agência ou de subalternidade. A literatura acaba por constituir uma prática de significação incontornável, pela sua relação intrínseca com a linguagem, um dos sistemas-chave de representação do mundo.

A relação das ideias de literatura e cultura reflecte-se nos sentidos comuns que ambas angariaram, em contextos históricos semelhantes: une-as, nomeadamente, a noção de valor social, associado à promoção do autodesenvolvimento intelectual, espiritual e estético do ser humano, na tradição iluminista (Eagleton, 2000: 20). Como assinalou Raymond Williams, ser letrado e ser culto eram condições praticamente sinónimas e ligadas ao privilégio, já que designavam uma condição de erudição e refinamento (Williams, 1983: 184), um capital simbólico associado a valores estéticos universais (leia-se especificamente ocidentais) e reservado a poucos. Este processo de aperfeiçoamento estético e moral permitia desenvolver o chamado “bom gosto” que distinguia quem o tinha do povo (ou dos povos) iletrado e, consequentemente, considerado inculto.

Esta ideia de cultura desenvolve-se no contexto da construção da própria ideia do Ocidente. Isso explica a sua função eminentemente reguladora, de apoio ao domínio do Ocidente sobre outras regiões do mundo. Pois se, por um lado, a cultura se aplicava a um processo de aperfeiçoamento individual, por outro, essa função estendia-se à colectividade, como um processo de aperfeiçoamento social, sobretudo a partir dos séculos xviii e xix. Foi esta tensão que conduziu ao debate cultura/civilização, em que a cultura passou a significar um padrão de desenvolvimento material associado à industrialização e ao chamado progresso tecnológico, que se ia instalando. Este período histórico inscreve a cultura na mesma lógica da colonização que produziu aquilo a que Boaventura de Sousa Santos chamou as linhas abissais que separam, ainda, o Ocidente do resto do mundo e que articularam o poder e o conhecimento sempre a favor da hegemonia ocidental (Santos, 2007).

Paradoxalmente, é esta definição que leva aos primeiros passos do que se poderia chamar uma crítica cultural: a reacção dos filósofos e poetas românticos europeus contra o materialismo e a superficialidade da cultura do progresso e os modos de vida por ela gerados (Williams, 1983: 89). Esta linha de pensamento acaba por ter expressão, já em finais do século xix, na obra de referência Culture and Anarchy, de Matthew Arnold (1994 (1869)). Embora Arnold, ao contrário dos românticos, venha reforçar a ideia de um padrão ocidental, os chamados Grandes Livros, ou toda uma tradição estética e filosófica ocidental, esta intenção crítica da cultura como modo de vida da sociedade industrial e colonial e das suas fraquezas abre um caminho crítico que se tornará mais forte no século seguinte.

A literatura faz parte desse mesmo cenário. Com o aparecimento do mercado cultural e da figura do/a autor/a, a partir do século xviii, começa a destacar-se a ideia do “literário”, ligada, portanto, especificamente, à escrita, em especial a ficcional ou criativa. A ênfase na imaginação ganha força durante o já referido período romântico (Williams, 1983: 185-186) e a literatura conquista terreno no plano emancipatório, no exercício de poder crítico e também no envolvimento dos intelectuais românticos num plano eminentemente político, pois o seu papel na recolha de formas culturais populares e linguísticas associa-os activamente à legitimação da unificação de determinadas comunidades no novo modelo nacional. Daí herdámos a associação da literatura ao território e à língua, que persiste até hoje, apesar dos esforços recentes na recuperação de um conceito dialogante e transnacional de literatura-mundo, que os filósofos românticos também esboçaram, mas que o poder político das nações acabaria por abafar. Pode afirmar-se que a literatura e a cultura, aliadas à ideia de nação, se tornaram conceitos reguladores, ao serviço de um ideário homogeneizante que legitimava a nova estrutura política. No entanto, a industrialização, por um lado, com as grandes vagas migratórias para as cidades, e as vagas colonizadoras, por outro, não deixavam de assombrar esses ideais de coesão, deixando entrever os Outros, que, oriundos ora da nação profunda, ora das profundezas do império, exibiam modos de vida e línguas muito incómodos na sua diferença explícita. Os museus nacionais, as bibliotecas públicas, o próprio ensino público, que surgem na Europa a partir de meados do século xix, como instituições culturais novas, são parte deste processo de “aculturação” da história recente das nações, também no sentido de dar significado a esse percurso.

Em finais do século xix, enquanto a literatura tende a autonomizar-se, a cultura vai ganhando um cunho antropológico que se acentua no século xx (Williams, 1983: 91). É a ideia de cultura associada à produção material, bem como a um modo de vida, um conjunto de comportamentos, atitudes e valores reguladores, materializados e disseminados por instituições, mas também redefinidos ou reajustados em função da subjectividade individual, uma acepção que seria desenvolvida por Raymond Williams (1965: 63), embora tenha levado mais tempo para que este tipo de valorização chegasse não só aos grupos subalternos, mas às populações colonizadas.

A institucionalização da literatura e a criação de um cânone, em finais do século xix, responde também à criação do mercado cultural, que vai popularizando determinados tipos de texto, alguns de pendor literário, como os folhetins ou a literatura de cordel. A popularidade não era, porém, uma medida de valor, já que a reprodução mecânica tornava o acesso fácil, imediato e indiferenciado à literatura, tal como a outras formas culturais da altura, algumas das quais estavam directamente associadas ao progresso técnico, como era o caso da fotografia. Era o dealbar do fenómeno novo do consumo cultural, que, como Walter Benjamin assinalaria, marcava o fim da aura que distinguira a singularidade e a originalidade da obra de arte. Tanto a literatura como a cultura obedeceram, portanto, a um padrão normativo, que, embora viesse a ser gradualmente democratizado, manteria marcas claras ou afinidades privilegiadas com determinadas categorias sociais, como a classe, a nação, a raça, o género e a etnia. Os adjectivos “alta” e “baixa” associados a cultura ou literatura davam voz justamente a essa distinção, que separava as chamadas formas culturais de consumo, consideradas inconsequentes, porque associadas puramente ao prazer, de formas de cariz intelectual, que, alegadamente, tinham um efeito não só duradouro como consequente e assim continuavam o processo tradicional de elevação estética e moral dos seres humanos.

A lógica de massificação da produção e do consumo, que invadiu o próprio fruir estético, gerou um dos debates críticos mais duradouros do século xx, que inscreveu definitivamente o poder no percurso do conceito de cultura: as formas literárias e culturais são emancipatórias ou reguladoras? A questão admitia também que o significado deixava de estar aliado apenas ao lugar de produção; os modos de produção da indústria da cultura inverteram os termos, colocando a ênfase no momento de consumo. Este, sim, criava espaço para a agência do sujeito consumidor, atribuindo ao consumo um papel semelhante ao que a cultura de elite tivera. Este debate alargou o entendimento de cultura enquanto sistema simbólico sempre em relação com os sistemas de produção e a ideologia dominante; Raymond Williams definia aqui a cultura como modo de vida, no sentido de valorizar as práticas e os hábitos – a experiência vivida – enquanto produtos das relações sociais (Williams, 1965: 63, 1989: 8).

Quando a crítica literária se entrincheirou na academia, depois da Segunda Guerra Mundial (no caso do mundo anglo-saxónico, com o estabelecimento de escolas como a Nova Crítica), os teóricos críticos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, assumiram o papel da cultura como crítica da sociedade e das suas práticas, abrindo caminho ao aparecimento dos estudos culturais umas décadas mais tarde. O materialismo cultural da Escola de Birmingham, sob a orientação de Raymond Williams e, mais tarde, de Stuart Hall, toma em mãos o estudo das formas culturais enquanto sistemas simbólicos em relação com os sistemas de produção e a ideologia hegemónica, dando, contudo, visibilidade também às formas de expressão cultural dos grupos subalternizados (Williams, 1989: 8-9). O contributo de Williams destacou-se por inverter os termos do debate marxista, valorizando o contributo dos sujeitos na definição e mudança das estruturas económicas, para além da influência que estas possam ter sobre eles. Assim, a emergência dos estudos culturais, sob a tutela de Williams, marcou precisamente o reconhecimento do valor de formas não literárias – a cultura como todo um modo de vida (Williams, 1960: vi) – no âmbito do qual se negoceiam as subjectividades individuais e as identidades sociais enquanto construções discursivas (Williams, 1989: 4). Como diria Terry Eagleton mais tarde, ia-se chegando à conclusão de que, “se a política é aquilo que unifica, a cultura é aquilo que diferencia” (Eagleton, 2000: 82).

Este debate criou condições para que o campo da cultura e da crítica cultural ganhasse, gradualmente, autonomia. A literatura como instituição e a noção do literário enquanto marca de valor superior, distintivo, acabaram por ser alvos deste exercício crítico, que veio reposicionar as críticas literária e cultural dentro e fora da academia. A pressão para que as humanidades evidenciassem a sua relevância social tornou muito problemático o universalismo e a noção de valor intemporal que presidiam à construção do cânone. Esses princípios basilares dispensavam os factores vários de localização ou contextualização histórica e social dos textos que refractam a experiência da escrita, da leitura, do prazer e da própria apreciação crítica. Ao mesmo tempo que a literatura se “humanizou” face a outras expressões culturais, ganhava força política a ideia de cultura como um processo conducente à mudança, um espaço de conflito e de disputa, de relações de poder complexas (Williams, 1977: 83), cuja análise exigia a combinação de várias áreas do saber. Esta percepção do “poder” da cultura, em plena crise paradigmática das Humanidades e das Ciências Sociais, na década de 1980, abriu portas a uma aliança capaz de salvaguardar o poder interventivo e emancipatório destas áreas (Ramalho e Ribeiro, 1998/1999: 66).

 

2. Humanidades e conhecimento-emancipação

A leitura do que ia sendo escrito nas páginas da RCCS permite a percepção de que a questão da interdisciplinaridade entre Ciências Sociais e Humanas era um dos tópicos na agenda e um dos maiores desafios científicos do projecto de conhecimento a que o CES se propunha.1 Esta agenda mantém-se até aos dias de hoje. O editorial do primeiro número da revista projectava-a como “uma alternativa científica coerente” (Santos, 1978: 7) e afirmava a teoria crítica como uma das suas linhas mestras mais fortes.

A marginalização das áreas de Humanidades e de Ciências Sociais, foi, presume-se, uma das razões da sua aproximação no CES, na tentativa de lhes dar visibilidade e condições para, numa articulação nova, criarem o tipo de crítica alternativa que a comunidade da RCCS se propunha desenvolver. Como também frisava Santos, no citado número inaugural da revista, mesmo após o fim da ditadura, as Ciências Sociais continuavam a ser penalizadas por causa do que era entendido como o seu potencial subversivo (ibidem: 4).

O percurso das Humanidades, neste caso, os estudos literários e culturais, tem tentado, em larga medida, responder a esse repto, lançado pelo então Director da revista, para criar no CES uma alternativa de saberes coerente, crítica e criativa, um conhecimento emancipador feito de várias áreas do saber, de vários estratos e de vários corpos, inspirado nos ideais da teoria crítica. Assinalando os limites impostos pelas formas de representação do mundo na base do pensamento moderno, vigentes até à actualidade – com base firme na racionalidade, na ciência e na alta cultura – como geradores de formas de conhecimento meramente reguladoras, Santos avançará no sentido oposto, por aquilo que designará como um conhecimento-emancipação. Assinalando que “a racionalidade estético-expressiva das artes e das literaturas modernas” (Santos, 1991: 136) era um constituinte fundamental do conhecimento-emancipação, Santos acaba por atribuir às Humanidades um papel fulcral na identificação e expressão de outras subjectividades e outras formas de cidadania emancipadoras. Santos identifica assim formas de expressão cultural que se articulam com uma posição crítica próxima da ideia da cultura como modo de vida – a que podíamos chamar uma cultura cidadã que expressa e alarga o conhecimento desenvolvido no CES e do qual a literatura e a análise do fenómeno literário fazem parte. A literatura e a cultura cidadãs não se limitam, portanto, a representar o mundo, mas a intervir no mundo, como formas de conhecimento emancipador (Santos, 2007: 26). Elas participam, assim, da perspectiva da análise crítica, na reabilitação e na recombinação de experiências e saberes diversos e desautorizados ou marginalizados enquanto formas de conhecimento que têm marcado a investigação do CES.

Santos definiu como epistemologia da visão a metodologia para produzir formas de conhecimento-emancipação. Baseada na sociologia das ausências, a epistemologia da visão troca a criação da ordem, na natureza e na sociedade, e a sua concomitante ocultação e descrédito de saberes alternativos (Santos, 2002: 238), pela criação de saberes solidários, num modelo de racionalidade que substitui a razão indolente da modernidade por uma razão cosmopolita (ibidem: 239). A epistemologia da visão propõe não apenas perceber, mas também imaginar o que tem sido invisibilizado, desqualificado e descartado (ibidem: 246). Este modelo de conhecimento-emancipação é, portanto, baseado naquilo a que Santos chama uma ecologia de saberes (ibidem: 250), que considera ser o modelo digno de substituir a lógica de regulação herdeira do colonialismo, que continua a traçar linhas abissais na contemporaneidade (Santos, 2007: 10). A ecologia de saberes implica, além do reconhecimento da diversidade epistémica, a aceitação de que todo o conhecimento é interconhecimento (ibidem: 23).

Este desafio crítico tem tido expressões diversas no âmbito dos estudos literários e culturais no CES ao longo dos seus 40 anos de vida. Maria Irene Ramalho e António Sousa Ribeiro identificam o contributo destes dois campos disciplinares na reflexão que fazem sobre a própria linguagem enquanto artefacto cultural e social, individual e colectivo, atenta à textualidade e aos processos de significação (Ramalho e Ribeiro, 1998/1999: 79). Como notam estes investigadores, uma reflexão que parta da linguagem é sempre, necessariamente, crítica, situada, e interpelativa, muito mais do que interpretativa (ibidem: 77). Da mesma forma, e num número da RCCS dedicado a repensar a teoria crítica, Maria Irene Ramalho defende uma teoria crítica como teoria da linguagem (Ramalho, 1999: 139), no sentido de uma teoria consciente da artificialidade da linguagem enquanto construção cultural e simbólica, a qual parte, inevitavelmente, de um abismo entre a realidade que nomeia e a palavra que lhe tenta corresponder. A linguagem é, paradoxalmente, uma arma poderosa na naturalização e normalização da ideologia, mas também um instrumento de potencial desocultação da normalização ideológica.

No mesmo contexto de análise, António Sousa Ribeiro, ao examinar a falácia da democratização da cultura, no seu artigo “Tópicos fragmentários para uma reflexão sobre a questão da cultura”, apontava caminho para os estudos culturais na perspectiva da teoria crítica. Advogando uma crítica cultural capaz de prefigurar aquilo a que chamava “uma hermenêutica de suspeição” (Ribeiro, 1999: 166), António Sousa Ribeiro denunciava o consenso celebratório do consumo enquanto fabricação ideológica, que interpretava esta prática como forma de cidadania ou de integração cultural, mas invisibilizava as formas de produção e, por isso, excluía da análise as classes sociais que efectivamente não partilhavam do acesso ao mercado. Para este investigador, os estudos culturais e a sociologia da cultura deviam, nos trilhos da teoria crítica, ocupar-se da questão do valor enquanto “lugar de negociação e conflito” (ibidem: 168), tomando a cultura como um palco no qual se evidencia a produção de desigualdades na participação e no acesso à mobilidade social.

 

3. A literatura, a cultura e o social

Nos primeiros números da RCCS, era notória a orientação marxista, preocupada em associar as formas culturais às estruturas sociais. A primeira década da publicação abordou a questão da cultura de massas, o contributo do povo para a cultura pós-revolucionária, o papel das elites, ou dos intelectuais na construção democrática, os géneros menorizados do conto popular, da ficção científica, da telenovela, ou das autobiografias da classe operária. Destaco o prefácio, e texto programático, do número temático 4/5 (1980), “Literatura e Sociedade”, que tinha por título “Onze teses sobre Literatura”. Aqui se enunciavam os princípios subjacentes à organização dos artigos e, claro, o entendimento da relação entre a literatura e a sociedade, já que a linguagem era “um lugar privilegiado de articulação das ideologias e práticas sociais” (GAAFLUC, 1980a: 7). Mais se dizia que a institucionalização da literatura domava o carácter rebelde do texto, neutralizando a sua capacidade de intervir; que a crítica literária não podia conformar-se com leituras essencialistas, nem assumir a transparência da linguagem. Caso contrário, soçobraria à ideologia e ao poder; só a distância lhe permitiria participar na desconstrução dos sentidos subscritos pelo próprio poder (ibidem: 8). Reclamava-se, em suma, “a liberdade livre da produção textual” (ibidem: 7), uma posição radical explicada pelo contexto revolucionário em que foi produzida.

Outra questão importante, que preocupou os estudiosos de literatura e cultura do CES nos primeiros anos, foi a natureza da voz crítica. Num contexto histórico, social e cultural que se deparava com o dilema entre a solidariedade social, a comunidade e formas de emancipação e agência, por um lado, e o estabelecimento triunfante da economia capitalista e das práticas de consumismo a ela associadas, por outro, colocava-se a questão: a voz crítica devia ser individual ou colectiva? A própria RCCS era, na altura, um lugar de experimentação da produção científica como “processo colectivo”, procurando demonstrar que o conhecimento científico também era social (“Editorial”, 1980: 3). No já referido número 4/5, dedicado à relação entre a literatura e a sociedade, a “Introdução” explicava que todos os textos do número tinham circulado, na versão de trabalho, entre os/as vários/as autores/as, criando “uma estrutura colectiva e dialogante” (GAAFLUC, 1980b: 6), uma prática designada como “processo enriquecedor da comum apropriação do conhecimento” (ibidem: 5).

O envolvimento da literatura no “pensamento revolucionário” vai-se desvanecendo progressivamente nos textos referentes a questões literárias e culturais. Mas permanece a interrogação acerca do papel da literatura, da arte e da cultura na transformação social, assim como da relação entre o indivíduo, ou o colectivo, e o poder, bem como a preocupação com novas formas de emancipação e, portanto, a necessidade de tornar visíveis subjectividades normalmente silenciadas. Os estudos literários e culturais têm continuado a exercitar um olhar atento e crítico ao poder, às suas várias representações e às formas como vai informando a linguagem, nomeadamente, na desmontagem de ficções sociais como a raça, o género, a nação, as várias fórmulas de domesticação e hierarquização da diferença. Ou ainda, de outra perspectiva, como essas categorias sociais são apropriadas pelos indivíduos e se reflectem nas representações discursivas da literatura e da cultura.

O comparativismo sempre teve uma expressão forte na metodologia de desmantelamento de ficções sociais, na pesquisa apresentada na RCCS. Por exemplo, o estudo comparativo da imaginação do centro (Santos, 1993) e da margem, a partir de dois poetas da chamada alta cultura, construídos como “nacionais”, expressão máxima da identidade territorial e simbólica de Portugal e dos Estados Unidos, permite a Maria Irene Ramalho examinar a relação da literatura com o poder. Em “Poetas do Atlântico: as Descobertas como metáfora e ideologia em Whitman, Crane e Pessoa”, a investigadora analisa de perto o envolvimento do discurso poético com a narrativa imperialista: poderia a ideia totalizante de poesia-nação como utopia de harmonia universal (Ramalho, 1990: 121), subjacente ao império espiritual idealizado por Fernando Pessoa, ser menos opressiva do que a ideologia eurocêntrica de opressão? Ou será o poder sempre poder? A autora considera inegável o contributo da obra de poetas como Pessoa, em Portugal, ou do grande bardo dos Estados Unidos, Walt Whitman, para a consolidação da ideologia do Atlantismo – isto é, a recondução do Ocidente a centro do mundo. O estudo de Catarina Martins (2008), “‘Imperialismo do Espírito’. Ficções da totalidade e do eu no modernismo austríaco”, corrobora esta conclusão, ao trazer a debate as ficções poéticas de outro império, este continental, dos Habsburgo, e a sua função reguladora. Tal como Pessoa e Whitman, também escritores e poetas como Robert Müller ou Hugo von Hoffmanstahl procuram reconstruir o imperialismo, a partir das cinzas do império, reconfigurando as ideias do “espírito” e da “cultura” de uma perspectiva aparentemente diferente: a do sujeito modernista. A percepção crítica da reconfiguração do poder político no centro da Europa não permite, contudo, a estes projectos emancipar-se da herança simbólica do império, pois, como conclui Martins, eles estão enredados na ideologia totalizadora e hierarquizante que é o paradigma imperial (ibidem: 130).

Mas a epistemologia da visão também se vai ocupando de estudos de caso que alargam o conceito à cultura popular. Por exemplo, em “Ficções credíveis no campo da(s) identidade(s): a poesia dos emigrantes portugueses no Brasil”, Graça Capinha (1997) lança um olhar crítico aos poetas menorizados – os chamados “poetas com ‘p’ pequeno”, os emigrantes, ditos pouco cultos e desconhecedores da literatura com “L” maiúsculo –, no sentido de desvendar como é que questões de territorialidade se manifestam no uso e no entendimento da língua e assim evidenciam a sua dimensão cultural e política. A investigadora parte da premissa de que “(t)oda a argumentação identitária surge simultaneamente como um acto de poder do sujeito e um acto de outros poderes dentro da linguagem” (Capinha, 1997: 104), que situa imediatamente o estudo num entendimento de cultura williamsoniano. Capinha analisa a posição intermédia dos poetas portugueses emigrantes no Brasil, nos seus usos de uma língua que, para eles, é ainda centro, mas, no contexto pós-colonial, é efectivamente semiperiférica. Dado que a poesia é a forma de representação mais apta a sugerir as brechas no discurso identitário, pela sua “lógica centrípeta e aberta, que reúne, no mesmo campo, forças que só aparentemente se excluem” (ibidem: 119), a poesia expressa as composições e recomposições identitárias dos poetas da emigração, a partir da forma como falam a língua, mas também de como a língua “os fala” a eles.

 

4. Estranhamento e interpelação

Estes exemplos dão conta daquilo que identifico como duas grandes linhas condutoras da reflexão crítica dos estudos literários e culturais no CES: uma, sobre a relação entre o literário, o cultural e o político (seja o poder ou a ideologia) – ou formas de conhecimento-regulação –, e a outra, complementar, acerca da ligação entre a imaginação individual e o político, que identifica formas de conhecimento-emancipação. Maria Irene Ramalho argumenta que, ao falar da literatura como o poder da palavra, não se pode pretender tratar a literatura como poder; somente se pode assinalar a sua capacidade de intervir criticamente na desconstrução do poder, a começar na própria linguagem. A investigadora chamou arrogância poética à consciência dessa aparente inutilidade da poesia, concomitante, porém, com a ambição emancipatória, de transformação da realidade, por força da expressão da subjectividade individual. Este entendimento do literário coloca os/as criadores/as literários/as num espaço liminar: uma margem que se imagina como centro (Ramalho, 2003: 117), ao mesmo tempo que acreditam que a palavra tem autoridade: é saber – tem poder. Os/as poetas não esperam qualquer resposta, consequência, ou sequer o reconhecimento da sua voz, o que não implica, porém, a sua demissão da construção da realidade, nem da denúncia do Poder; porque a realidade – o político – irrompe pelo poema, ou pelo texto literário, inevitavelmente.

A este processo, Maria Irene Ramalho (2003) deu o nome de interrupção poética. O conceito descreve a percepção de uma ruptura que perturba a visão sublime da poesia como um todo uno e superior. A ruptura impõe a presença de algo estranho a essa visão totalizante: a realidade, ou o político, que se sobrepõe à escrita e abre possibilidades de agência (ibidem: 119). O mesmo se verifica no âmbito da leitura, na apropriação do texto pelo/a leitor/a, seja na mesma língua, seja em tradução. O poder interventivo da literatura acaba por ser essa capacidade de revelar o que em si há de cultural, levando o/a leitor/a a “tropeçar” nas palavras e a interessar-se activamente pelo seu sentido, o chamado estranhamento. Como já se afirmava na RCCS 4/5, à literatura emancipadora cabia despertar o “leitor activo, já não (seu) objecto (...) mas sujeito de um processo de apropriação produtiva em que transforma transformando-se” (GAAFLUC, 1980a: 9). Por isso também a RCCS dá à estampa números como “Estudos feministas e cidadania plena”, em cuja introdução Adriana Bebiano e Maria Irene Ramalho, as organizadoras, frisam a importância de continuar a desocultar o universo simbólico das sociedades contemporâneas, que continua a ser masculino e assim sustenta a hegemonia do poder patriarcal (Bebiano e Ramalho, 2010).

A análise literária e cultural na RCCS acompanhou certamente os princípios postulados pela sociologia das ausências (Santos, 2002), ao interrogar os modos como a literatura construía e desconstruía as representações de categorias sociais, empenhando-se no estranhamento dos lugares de cultura no texto, na linguagem. No número 4/5, a articulação entre língua, literatura e cultura era traduzida por Graça Abranches na tríade “experiência-valores-linguagem” (Abranches, 1980: 142), a partir do ensaio clássico de Virginia Woolf, A Room of One’s Own. Abranches questionava de que modo a voz e a subjectividade feminina marginal, apropriando-se de uma língua marcadamente patriarcal, reproduzia ou interrogava as construções de diferença sexual. Desta análise crítica sobressaía a ideia da androginia esboçada por Woolf, que, na obra, tinha expressão máxima na criatividade artística (ibidem: 144). A androginia propunha, portanto, uma subjectividade que recusava os limites e a hierarquia do binarismo heteronormativo (ibidem: 145). O contributo da análise do discurso neste campo dos estudos da identidade sexual (mais tarde, definida como “género”) e da sexualidade é evidente no texto publicado no número 10 da RCCS e intitulado “A construção da polémica da hegemonia e da diferença nos estudos sobre linguagem e diferença sexual (A propósito de You Just Don’t Understand, de Deborah Tannen)” (Keating, 1994). Aqui, Clara Keating examinava as várias perspectivas no debate em torno do uso da linguagem como expressão de diferentes formas de socialização radicadas na diferença sexual e como elas moldavam as representações culturais.

A literatura associada à identidade sexual volta a ser pano de fundo de pesquisa num estudo de Teresa Tavares (2002) baseado em romances de autoras portuguesas no período pós-25 de Abril, neste caso, pelas mudanças sociais e culturais no Portugal democrático dadas a ler nas suas representações do ideário revolucionário da igualdade... Segundo a investigadora, o deslocamento territorial era uma estratégia narrativa que propiciava a emancipação das personagens femininas, ao conceber novos papéis sexuais. Tratava-se, portanto, de uma representação que sugeria a transformação da própria estrutura social. Teresa Tavares notava, porém, a prevalência da hierarquia, pois embora as personagens femininas mais jovens evidenciassem um processo de individuação potencialmente emancipatório (ibidem: 379), as representações de partilha de poder e de autoridade resumiam-se a um futuro ainda sem representação no enredo (ibidem: 380).

A mesma problemática, desta feita cruzando áreas que também ganharam entretanto grande destaque no CES – o pós-colonialismo e os estudos de memória –, é abordada no artigo de Margarida Calafate Ribeiro que se debruça sobre os lugares das mulheres num espaço tão marcadamente masculino como a guerra, neste caso, a Guerra Colonial portuguesa. A investigadora concluía que a ida das mulheres/esposas para África, com toda a carga cultural que lhes atribui o papel de pilares da família, normalizara a vida na colónia, identificando este território como um lugar de estabilidade (Ribeiro, 2004: 17). O número 68 da RCCS, dedicado exclusivamente a esta temática, apresenta outros artigos que abordam a relação das mulheres com a guerra a partir de perspectivas históricas, como o de Manuela Cruzeiro, e também literárias – neste caso, os de Roberto Vecchi e Laura Cavalcante Padilha. Tanto a Guerra Colonial como aspectos diversos do contexto do Estado Novo e da Revolução de Abril têm, ademais, sido campos privilegiados de análise crítica de outros/as investigadores/as ligados à História, no Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz, como Rui Bebiano (2003) e Miguel Cardina (2010).

A atenção às relações entre a literatura e o poder, neste caso, ao desenvolvimento das políticas identitárias nos Estados Unidos da América (EUA), com a construção de uma identidade literária que dá voz, e legitimidade social, a um grupo étnico menorizado, manifesta-se também na análise de Isabel Caldeira (1980), em “‘All Colored People Sing’. Do estereótipo à realidade”. Este texto problematiza o conceito de “literatura afro-americana”, que ia ganhando reconhecimento no meio académico dos EUA. A investigadora analisava os canais de institucionalização e circulação dessa nova área, ou seja, as suas relações com o poder: a quem servia uma “identidade negra”? perguntava Caldeira. Ao mercado editorial? À comunidade afro-americana em si? Aos activistas? Aos intelectuais? À universidade? O mesmo se podia perguntar em relação a quem, dentro da comunidade afro-americana, se dedicava a estudar essa literatura de pontos de vista teóricos e críticos. Até que ponto poderia a adjectivação étnica, e a experiência social e histórica que ela evoca, condicionar o valor literário, por definição neutro, transparente, desinteressado? Em que medida incorria essa adjectivação no perigo de replicar, no plano da literatura, o mesmo mecanismo de estereotipificação em vigor na sociedade? A questão fulcral não deixava de ser a de identificar o potencial emancipador ou regulador desta “literatura negra”, aplaudida enquanto forma de reconhecimento do valor cultural da comunidade que identificava.

Já o artigo “A construção social e simbólica do racismo nos Estados Unidos”, da mesma autora, analisava o conceito de raça enquanto formação discursiva na sua relação com as estruturas de poder, numa variedade de documentos e de perspectivas empenhadas em explicar a integração deficitária da comunidade negra nos EUA (Caldeira, 1994). O mesmo texto não só sinalizava uma problemática que se tornaria numa das áreas-chave do CES, o racismo, como alargava já o debate a questões que continuam na ordem do dia, da capacidade de racialização dos discursos à existência de uma multiplicidade de racismos (ibidem: 55). A análise desta problemática interliga-se, hoje, com outras áreas disciplinares do CES, como fica patente, por exemplo, nos estudos de Marta Araújo e de Silvia Rodríguez Maeso, do Núcleo de Democracia, Cidadania e Direito; em jeito de exemplo, o texto conjunto “History Textbooks, Racism and the Critique of Eurocentrism” (2012) desenvolve a crítica ao racismo enquanto discurso regulador.

A questão da relação cúmplice da linguagem com o poder – no envolvimento da literatura com as estruturas ideológicas, neste caso, as formas de memória hegemónicas – é analisada, por exemplo, no artigo “Hordas de violadores. A instrumentalização da violência sexual em discursos anticomunistas alemães da Guerra Fria”, de Júlia Garraio (2012). A investigadora examina a instrumentalização da história pelo poder político, através de discursos completamente diversos – o confessional, o religioso e o político –, e demonstra como a ideologia da Guerra Fria, na Alemanha de Adenauer, instrumentalizou a história com o auxílio da literatura, ao construir um discurso de demonização do Outro soviético, socorrendo-se de textos que circulavam em esferas diversas, entre públicos variados.

À atenção a formas de cultura popular – do romance cor-de-rosa à literatura de cordel ou à música de Bob Dylan –, publicadas na revista ao longo dos primeiros dez anos (veja-se o n.º 13, de 1984), vão-se juntando os estudos comparativos entre cinema e literatura, como “Entre história e ficção: o fracasso do homem de excepção. Une saison au Congo (Aimé Césaire) e Lumumba (Raoul Peck)”, um estudo no qual Fabrice Shurmans (2015) lê criticamente representações da história que reposicionam a relação entre a realidade e a ficção, sem deixar de sublinhar a responsabilidade social da linguagem na criação e recriação da memória, seja ela escrita ou visual.

Por seu lado, a exploração do potencial emancipatório das formas de participação política enquanto manifestações culturais é analisada nos contextos securitários das últimas décadas – veja-se “O lugar da cultura no contexto pós-Onze de Setembro”, um estudo no qual George Yúdice (2002) discute como os sistemas de segurança e vigilância colocados em prática após os atentados do 11 de Setembro geraram novas formas culturais reguladoras. Enquanto espaço primordial de conflito e controlo, a cultura é o lugar onde se digladiam os movimentos contestatários e de denúncia dos ataques aos direitos cívicos, por um lado, e, por outro, as indústrias da cultura recrutadas ao serviço da segurança nacional (os filmes de Hollywood, a imprensa electrónica e tradicional). E uma vez que, em última análise, como refere o autor, a guerra ao terrorismo também procura proteger o regime de acumulação estabelecido pelo Consenso de Washington, caberá aos movimentos sociais usar o espaço da cultura enquanto palco de negociação e de conflito para contra-atacar as tácticas de poder das sociedades pós-disciplinares.

 

Conclusão

Posto isto, os estudos literários e os estudos culturais têm sido instrumentais na identificação de formas, subjectividades e vozes de resistência que prefiguram formas de conhecimento-emancipação. E, apesar da já longa crise das Humanidades, nem os estudos literários, nem os estudos culturais abdicaram de algumas características que continuam a valorizar estes campos de conhecimento enquanto instrumentos de análise crítica, seja através do “multiperspectivismo” dos estudos culturais, da historicização do texto e do enquadramento contextual, seja a atenção aos valores políticos e à ideologia em lugar da estética, seja a atenção à especificidade das práticas em análise e à “tolerância discursiva” que rejeita lógicas de exclusão (Ramalho e Ribeiro, 1998/1999: 80), seja ainda a “atenção à dinâmica inerente à linguagem, à textualidade e à significação” (ibidem: 79), que a técnica da análise detalhada, focada no texto na página (o close-reading) permite fazer. Nada disto implica, no entanto, esquecer que a literatura e a cultura são sistemas de significação específicos, com as suas lógicas próprias.

Parece-me justo afirmar que, através dos diversos estudos publicados na RCCS, se tem conseguido apresentar e discutir formas de conhecimento-emancipação capazes de dar o seu contributo para a imaginação de outro mundo. Para concluir, definiria a abordagem da literatura e da cultura como formas de conhecimento preocupadas com a cidadania, ou seja, formas de conhecimento preocupadas com um sentido estético e ético. Seguindo a ideia de uma ciência-cidadã, temos discutido uma literatura e uma cultura para a cidadania capazes de criar inquietude, inconformismo, ou, como aptamente escreveu Maria Irene Ramalho a respeito da literatura em tempo de crise, capazes de “desassossegar as almas” (Ramalho, 2012: 139) e devolver-nos a capacidade do espanto; formas literárias e culturais críticas, com as quais possamos recuperar o encantamento do mundo e preparar melhor o caminho do pensamento pós-abissal (Santos, 2007).

 

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NOTAS

* Por vontade da autora, este artigo não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

1 No editorial do primeiro número da RCCS, o então Director da publicação, Boaventura de Sousa Santos, dava conta de que existira o projecto de instalar a sede do primeiro pólo de estudos sociais da região centro de Portugal na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Santos, 1978: 3), o que, todavia, nunca se concretizara.

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