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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.116 Coimbra set. 2018

 

RECENSÃO

Armano, Emiliana; Bove, Arianna; Murgia, Annalisa (orgs.) (2017), Mapping Precariousness, Labour Insecurity and Uncertain Livelihoods

 

Pedro Quintela

Doutorando na Faculdade de Economia/Centro de Estudos Sociais Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal pedroquintela@ces.uc.pt

 

Mapping Precariousness, Labour Insecurity and Uncertain Livelihoods. Subjectivities and Resistance

Armano, Emiliana; Bove, Arianna; Murgia, Annalisa (orgs.) (2017), Mapping Precariousness, Labour Insecurity and Uncertain Livelihoods. Subjectivities and Resistance. London/New York: Routledge, 236 pp.

 

Nos últimos quinze anos, o tema da precariedade, em sentido mais ou menos restrito, tornou­-se central numa parte significativa do debate das ciências sociais e humanas e, em particular, no campo da sociologia. Para tal foram decisivas as investigações realizadas por alguns dos mais reputados sociólogos europeus e norte­-americanos (Bauman, Sennett, Beck ou Castel, entre outros) que, nos anos de viragem para o século xxi, se debruçaram sobre o impacto profundo das transformações em curso na esfera laboral, nomeadamente do ponto de vista das mudanças que desencadeavam ao nível das subjetividades dos indivíduos. Entre outros aspetos notáveis, estas pesquisas permitiram, de algum modo, resgatar o conceito de precariedade de um contexto até então essencialmente ligado ao ativismo político, suscitando um interesse académico mais amplo pelo aprofundamento da investigação em torno deste tema. Foi também neste âmbito que se assistiu a uma certa recuperação do trabalho de Foucault que, na sua fase mais tardia, refletiu sobre o neoliberalismo enquanto um novo modo de governamentalidade, impondo subtis formas de (auto)governo que operam essencialmente a um nível micro, através de um trabalho subjetivo de controlo das condutas individuais. No entanto, ao longo destes anos, manteve­-se uma certa polémica em torno da consistência conceptual e empírica da noção de precariedade, frequentemente acusada de assumir um excessivo carácter polissémico e, por vezes, até alguma ambiguidade que, em muitos casos, resultaria da ambição por abranger um excessivo leque de situações, com características muito diversas entre si.

A obra Mapping Precariousness, Labour Insecurity and Uncertain Livelihoods, organizada por Emiliana Armano, Arianna Bove e Annalisa Murgia, insere­-se precisamente neste quadro, propondo uma reflexão profunda sobre a questão da precariedade na contemporaneidade, centrando­-se na análise dos seus impactos ao nível das subjetividades individuais e coletivas, bem como das possibilidades de resistência e emancipação que é hoje possível perscrutar. Assume, simultaneamente, uma forte dimensão empírica, reunindo um leque diversificado de estudos de caso, a par de uma importante dimensão de análise teórica de forte pendor histórico, sociológico e filosófico.

Após um capítulo de introdução, em que as autoras elaboram um excelente mapeamento do debate científico e político atual em torno da problemática da precariedade nas sociedades contemporâneas, dando conta do seu caráter profundamente multidimensional e polissémico, o livro organiza a sua discussão em três grandes secções, cada uma delas centrada em aspetos diferenciados.

A primeira, intitulada “Subjetividades: uma cartografia de experiências”, propõe um conjunto de estudos de caso internacionais recentes que refletem sob a questão da precariedade sob diferentes perspetivas, considerando uma multiplicidade de contextos nacionais e regionais (China, Roménia, Japão, África, Reino Unido, Austrália, Grécia, Itália, França, Estados Unidos da América), de experiências de trabalho em diversos setores económicos e de atividade socioprofissional, de experiências políticas e ainda de modelos de regulação e legislação de âmbito laboral e social. A opção por abordagens qualitativas constitui um aspeto comum a estes nove capítulos, contribuindo assim para dar uma maior coerência e unidade a esta primeira secção do livro. A riqueza empírica das investigações aqui apresentadas reflete­-se na grande diversidade de aspetos abordados, permitindo conhecer e confrontar as assinaláveis diferenças que marcam hoje as experiências subjetivas do duro modo de vida precário, nestes diferentes contextos. Simultaneamente, apresentam­-se aqui algumas das experiências que apontam para um desejo, muitas vezes “forçado” e que, na verdade, traduz a internalização de esquemas de autogoverno do eu, de uma maior autonomização dos trabalhadores. O capítulo de Bureau e Corsani sobre França e as cooperativas de trabalhadores freelancer é particularmente interessante a este nível. Destaco ainda os capítulos de Spyridakis e Richter que, debruçando­-se sobre contextos tão diversos como os da Grécia e do Japão, também identificam um conjunto de formas emergentes de resistência e da auto­-organização dos trabalhadores precários.

A segunda parte do livro, “Resistência: movimentos sociais contra a precariedade”, retoma alguns aspetos abordados na primeira secção, mas centrando­-se agora na dimensão de resistência à precariedade, socialmente organizada em coletivos vários. Adquire aqui um maior protagonismo a dimensão de análise e balanço histórico­-sociológico, nomeadamente nos capítulos de Papadopoulos e Foti. De formas distintas, ambos os autores propõem uma reflexão sobre os movimentos sociais antiprecariedade que emergiram na Europa no início dos anos 2000, com destaque para o Euro May Day, analisando o modo como estes se desenvolveram até hoje. Como argumenta Papadopoulos, face a um contexto da ampla crise e recessão social e económica que dominou o cenário político global pós­-2008, muitos destes “novíssimos” movimentos sociais revelam hoje grandes dificuldades em encontrar um lugar e uma voz própria – o que constitui um dos seus grandes desafios. Dialogando estreitamente com este quadro, Graziano apresenta, no capítulo seguinte, um conjunto de experiências que, a uma escala micro, propõe novas respostas à precariedade, procurando contrariar, simultaneamente, um certo esvaziamento dos movimentos sociais antiprecariedade e, por outro lado, a prevalência de lógicas de individualização que apelam ao isolamento e introspeção. Segue­-se um interessante capítulo, de Casas­-Cortés e Cobarrubias, sobre a recente vaga de emigração em Espanha e os seus efeitos num contexto de forte mobilização política e social dos jovens. Os autores evidenciam ainda, por outro lado, o modo intrincado como têm sido aqui equacionadas aspetos relacionados com direitos políticos, sociais e laborais, e com as políticas de integração e inclusão social.

Finalmente, na terceira e última parte desta obra, designada de “Perspetivas conceptuais”, são apresentados três capítulos, de âmbito teórico, que visam contribuir para um balanço problematizador da noção de precariedade, à luz de um conjunto de desenvolvimentos que se têm vindo a sedimentar nos últimos 15 anos. Destaco, em especial, o capítulo de Ross, um dos autores que mais contribuiu para o desenvolvimento da investigação sobre esta matéria, que oferece um excelente balanço do processo de transformação da categoria de precário que, em poucos anos, passou de uma condição “excecional” e “atípica” a hegemónica, fruto de uma profunda tendência para a desregulação dos mercados de trabalho. Ainda que com abordagens distintas, os capítulos de Lorey e Mitropoulos discutem como a crescente precarização das relações sociais (e não só em termos laborais) tem vindo a ser utilizada como instrumento de governo das sociedades contemporâneas. Embora estas reflexões não pretendam sistematizar e discutir os vários aspetos abordados anteriormente, a verdade é que estes capítulos finais acabam por assumir um pouco esse papel, ao mesmo tempo que oferecem um conjunto de pistas interessantes para o futuro aprofundamento da investigação sociológica em torno desta problemática multidimensional e heterogénea. Possivelmente por essa razão, as organizadoras do livro optaram por não elaborar um capítulo de conclusão, o que, ainda assim, se poderia justificar, permitindo uma melhor integração e sistematização dos vários e interessantes contributos aqui reunidos.

Em conclusão, trata­-se de uma obra com grande interesse e atualidade para todos os investigadores que, sob diferentes perspetivas, trabalham a questão da precariedade, particularmente na esfera laboral, permitindo aprofundar a reflexão sob os seus efeitos muito significativos ao nível das relações e subjetividades individuais e coletivas, a diferentes níveis – sociais, políticos, psíquicos, etc. Ao reunir um conjunto de contributos bastante sólidos, tanto do ponto de vista teórico como empírico, contribui ainda para contrariar algumas das críticas que têm sido inúmeras vezes feitas quanto à utilidade e pertinência da noção de precariedade, justificando assim a sua relevância enquanto categoria de análise e reflexão sociológica.

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