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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.114 Coimbra dez. 2017

https://doi.org/10.4000/rccs.6835 

DOSSIER

Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas*

Political and Epistemological Disobedience of Indigenous Movements in Brazil and Bolivia as Counter-Hegemonic Learning

Désobéissances politico-épistémiques de mouvements indigènes au Brésil et en Bolivie comme apprentissages contre-hégémoniques

 

Maurício Hiroaki Hashizume

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Palmas Avenida NS 15, Quadra 109 Norte, Plano Diretor Norte, Bloco Bala II, Sala 20, Palmas-TO, CEP 77001-090, Brasil maurijor@gmail.com

 

RESUMO

Perduram por quase um século as contribuições teórico­-políticas de Antonio Gramsci, em especial no sentido das definições e das interpretações em torno da noção de hegemonia – combinação de relações de poderes que se sustenta fundamentalmente no consentimento de oprimidos perante opressores. Com base em reflexões sobre a obra gramsciana que consideram a matriz abissal fundada na coisificação de povos racializados/subalternizados, são problematizados os potenciais enfrentamentos da hegemonia capitalista – a qual se vale também da dominação via coerção colonial, desde a sua formação histórica até à contemporaneidade. Daí os aportes de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia que, com seus atos de desobediências político-epistêmicas em eventos públicos ou posicionamentos políticos, podem ser entendidos como aprendizagens contra-hegemônicas, em consonância com as epistemologias do Sul.

Palavras-chave: Antonio Gramsci (1891-1937), Bolívia, Brasil, capitalismo, colonialismo, contra-hegemonia, movimentos indígenas

 

ABSTRACT

The theoretical and political contributions from Antonio Gramsci last for nearly a century, in particular his definitions and understanding of the broad notion of hegemony – the combination of power relationships whose preferential locus is called civil society and which is sustained fundamentally via the consent of the oppressed with respect to their oppressors. Based on the reflections on Gramsci’s work which consider the abyssal matrix as anchored in the thingification of racialized/subordinate peoples, the potential avenues for confronting the capitalist hegemony are problematicized, which, from its historical inception to the present day, has unyieldingly taken advantage of objectifying colonial power of domination by coercion. Hence the impact achieved by the indigenous movements in Brazil and Bolivia, felt in terms of the anti-hegemonic learning present in the public acts and manifestations of political and epistemological disobedience, in harmony with the epistemologies of the South.

Keywords: Antonio Gramsci (1891-1937), Bolivia, Brazil, capitalism, colonialism, counter-hegemony, indigenous movements, power relations

 

RÉSUMÉ

Il y a presque un siècle que perdurent les contributions théorico­-politiques de Antonio Gramsci, en particulier dans le sens des définitions et des compréhensions tournant autour de la notion d’hégémonie – conjugaison de relations de pouvoir qui repose fondamentalement sur le consentement des opprimés envers les oppresseurs. Sur la base de réflexions partant de l’œuvre de Gramsci qui considèrent la matrice abyssale comme ancrée dans la chosification de peuples racialisés/subalternisés, les voies de confrontation à l’hégémonie capitaliste se problématisent, hégémonie qui puise aussi de la domination par la coercition coloniale, depuis sa formation jusqu’à la contemporanéité. D’où les apports de mouvements indigènes au Brésil et en Bolivie qui, par leurs actes de désobéissance politico-épistémiques menées dans des évènements publics ou positionnements politiques, peuvent être perçus comme apprentissages contre-hégémoniques, en consonance avec les épistémologies du Sud.

Mots-clés: Antonio Gramsci (1891-1937), Bolivie, Brésil, capitalisme, colonialisme, contre-hégémonie, mouvements indigènes, relations de pouvoir

 

Introdução

Ainda em meados da década de 1970, Perry Anderson realçava que “nenhum pensador marxista posterior ao período clássico é tão universalmente respeitado no Ocidente como Antonio Gramsci” (Anderson, 1986 (1976): 7). Acrescentava ainda que não havia nenhum conceito “tão livre ou diversamente invocado entre as forças de esquerda do que o de hegemonia, que ele (Gramsci) tornou de uso corrente” (ibidem).

A partir de trechos dos famosos Cadernos do Cárcere de Gramsci, Anderson apresenta, antes de adentrar propriamente na questão central da hegemonia, um quadro­-resumo sobre a oposição das estruturas políticas do “Oriente” e do “Ocidente”, o qual serve como uma sorte de princípio organizativo para as reflexões gramscianas. Essa profunda operação colonial,1 embora não assumida inteiramente como tal, acaba por se associar a determinadas estratégias com vistas à transformação social e ao enfrentamento do sistema capitalista que, segundo as mesmas linhas de raciocínio, seriam mais adequadas para cada contexto específico (tendo os Estados­-nação como estrato privilegiado): as noções, inspiradas em táticas e estratégias militares, de “guerra de movimento” (para o “Oriente”) e de “guerra de posição” (para o “Ocidente”).

Inspirado na natureza dual – metade animal, metade humano – do centauro de Maquiavel, Gramsci propõe a “dupla perspectiva” de funcionamento das estruturas do poder da burguesia (em particular no “Ocidente”, segundo ele), a partir da consolidação do próprio Estado (sociedade política) e da sociedade civil: de um lado a coerção/dominação (submissão pela força) e, de outro, o consentimento/ a hegemonia (direção intelectual e moral). No entendimento de Anderson, não é consistente a suposição embutida nessa divisão inicial deduzida de Gramsci (cérebro e corpo), na qual a classe operária poderia ter acesso ao Estado (por meio de eleições parlamentares no bojo da democracia representativa, que se autoatribui intrínseco potencial distributivo). Só não teriam os trabalhadores capacidade de tomar e de exercer efetivamente o poder político por causa da primazia do consentimento burguês reinante (Anderson, 1986 (1976): 27).

Não deixa de ser curioso como a fixação no “Ocidente” encobre qualquer possível enfoque na inter­-relação fundadora e estrutural entre “Ocidente” e “Oriente”. O marxismo ocidental se mostra extremamente dedicado a apreender e transformar aquilo que entende como a formação social mais avançada do capitalismo e confere pouca atenção “aos países atrasados e as colônias”, como se nada do que se desse nas chamadas “periferias” do sistema pudesse ajudar a entender o sistema como um todo. Como sustenta Anderson, a própria forma política (Estado) se torna um instrumento de alienação no “Ocidente”, ao se descolar das esferas de exploração econômica, obliterando a possibilidade de outras formas de organização social que não a burguesa. A ideia do “contrato de trabalho entre pessoas livres e iguais no plano jurídico”, que seria a marca do modo de produção capitalista e do Estado burguês no “Ocidente”,2 encontra no “Oriente” configurações distintas. Não por mera incompetência, incapacidade ou desinteresse das burguesias ou mesmo dos proletariados locais, como tentaram e ainda tentam provar inúmeras teses e estudos sobre o estigmatizado “Terceiro Mundo”,3 mas por razões inerentes e históricas de uma estrutura capitalista/colonial/patriarcal. Foi o regime imperativo de dominação nas colônias que alimentou e tornou possível a hegemonia “civilizatória” experimentada nas sociedades centrais imperiais. Daí que dominação e hegemonia, historicamente, sejam complementares e articuladas – e não separadas e antagônicas.

 

Coisificação e matriz abissal

Gramsci, na esteira de Lenin,4 dá pouca atenção à formação histórica do capitalismo em concomitância com o colonialismo, principalmente a partir das invasões e dos saques coloniais promovidos por empresas ibéricas do final do século xv. Aquilo que Marx caracterizou como “acumulação primitiva” não foi apenas uma operação material limitada e finita (a qual teria se encerrado logo no seu início) que apenas deve ser entendida como pontapé circunscrito de um posterior ciclo histórico de larga duração.5 É uma das marcas profundas e inerentes do próprio sistema, como denunciaram intelectuais negros como Frantz Fanon6 e Aimé Césaire. Este último, aliás, propõe, em resposta às fórmulas apresentadas pelos colonizadores,7 uma equação que corrobora essa sociologia das ausências (na lógica de uma produção ativa de não existências, conforme Santos, 2002): colonização = coisificação.

Césaire revela que o “Ocidente” tal qual pensado por Gramsci passou a ter seus contornos desenhados muito antes de meados do século xix, portanto. É justamente a deliberada ignorância e o recorrente desprezo com relação a esse longo, violento e multifacetado processo de colonização = coisificação que fomenta o chamado pensamento abissal (Santos, 2009 (2007)), cujos alicerces podem ser encontrados no direito e na ciência que acompanham a modernidade ocidental hegemônica. Como pontua o autor,

por mais radicais que sejam estas distinções (produzidas pelo pensamento abissal moderno) e por mais dramáticas que possam ser as consequências de estar de um ou do outro dos lados destas distinções, elas têm em comum o facto de pertencerem a este lado da linha e de se combinarem para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha baseiam­-se na invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha. (Santos, 2009 (2007): 24)

O outro lado da linha, complementa Santos (2009 (2007): 26), “compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal como os seus autores” e, historicamente, tem uma localização territorial que coincide com um território específico: a zona colonial.

A centralidade do colonial ganha um sentido bem mais alargado e presente com as profícuas reflexões em torno da linha abissal. Já não se trata mais da mera inexistência “do outro lado da linha”, mas de um mundo repleto de experiências e de modos de vida, de saberes e de conhecimentos, de povos e de corpos, de territórios e de poderes “ativamente produzidos como não­-existentes, isto é, como alternativas não­-credíveis ao que existe”8 (Santos, 2002: 19). Esta realidade, prossegue Santos (2009 (2007): 31), é “tão verdadeira hoje como era no período colonial”.

Em colisão com essa afirmação mais recente das linhas abissais como “constitutivas de relações e interações políticas e culturais que o Ocidente protagoniza no interior do sistema mundial” (Santos, 2009 (2007): 31), o enquadramento analítico gramsciano repete muitos outros anteriores. Opta, assim, por desvincular e desconectar (ou ao menos não vincular nem conectar decididamente) o poder político, econômico, cultural e social acumulado pelo “Ocidente” (e toda a sua sociedade civil “desenvolvida/sólida”, bem como sua inter­-relação “equilibrada” com o Estado) de sua opressão coercitiva direta e indireta no “Oriente” já previamente existente e na produção de novos “Orientes”.9 Ao fazê­-lo, estabelece uma periodização historicista e alinhava uma interpretação político­-epistêmica concatenada que, em sua espinha dorsal, coisifica a sociedade civil (congelando­-a em seu “estado de natureza”) no dito “Oriente” como “primitiva/gelatinosa”. Dessa maneira, abre­-se margem para que o fenômeno singular e global de constituição do sistema­-mundo capitalista­-colonial e todos os seus possíveis desdobramentos sejam atravessados por uma matriz abissal10 que (re)produz e naturaliza divisões (diga­-se coisificações de sujeitos sociais ativos e não inertes) arbitrárias e subalternizantes a partir de hierarquizações, generalizações e estigmatizações político­-civilizacionais revestidas de um controverso pendor universalizador.

 

(Des)Caminhos da (contra­-)hegemonia

Mesmo em análises “progressistas” feitas com base em contextos latino­-americanos, não raro a matriz abissal fragmentadora acaba por se fazer presente, tanto no que diz respeito às avaliações dos quadros de relações de poder de dominação e de hegemonia, quanto nas recomendações para os possíveis caminhos para suplantá­-las. Citada como referência por agentes políticos do alto escalão11 de governos desse mesmo “progressismo” latino­-americano do século xxi, Harnecker (2013) desconecta capitalismo e colonialismo ao atribuir o surgimento e a expansão do capitalismo exclusivamente a uma dinâmica de mercado regida por “leis econômicas” (busca do lucro e da ganância mediante a exploração do trabalho livre assalariado).12

Atribui­-se relevo a um ideal de “construção do socialismo” que requer a “realização de uma verdadeira revolução cultural que nos permita superar a cultura herdada, a construção do sujeito revolucionário que sustentará todo o processo” (Harnecker, 2013: 113). Essa construção, continua a cientista política chilena, estaria vinculada também a uma “aprendizagem do povo em formas de autogoverno” e “tudo isso não pode ser alcançado de forma espontânea, daí a necessidade de um instrumento político (grifos do autor)”.

Há aqui uma aposta num instrumento político dotado de uma determinada direção e com linhas preestabelecidas que seja capaz de construir “força social” (no bojo da sociedade civil), mais do que apenas “força política” (no âmbito do Estado). Tal centralidade tem como ambição a capacidade de “erguer um projeto nacional que permita aglutinar todos os setores afetados pela crise e que sirva de bússola (grifo do autor) a eles” (ibidem: 109). Sem o “Norte” do instrumento político, o socialismo do século xxi ficaria, de acordo com a autora, à deriva.

Embora clame pelo respeito à “autonomia dos movimentos sociais, recusando manipulá­-los”, a recomendação de Harnecker é a de que o instrumento político atue como uma “instância orientadora e articuladora a serviço dos movimentos sociais”, que se esforce “para articular suas práticas num único projeto político” (ibidem). Essa articulação se assemelha à proposição de frente única (voltada a embates mais prolongados de uma guerra de posição pela hegemonia) de Gramsci e dependeria de configurações políticas, econômicas, sociais e culturais específicas.

O que esse tipo de proposta reproduz da matriz abissal é a desconsideração da extrema violência/coerção sistemática do colonialismo contida desde sempre no capitalismo. Forças policiais e militares, por exemplo, são elementos cruciais dessa barbárie continuada dirigida à parte substantiva das populações racializadas e subalternizadas. Estas últimas lidam permanentemente com uma guerra de movimento – na realidade, concentrando­-se naquilo que se pode chamar de estratégia de r­-existência13 – para, de alguma forma, darem respostas e apresentarem alternativas aos vetores de dominação (coerção) e de hegemonia (consentimento) que lhes são impostos.

Ainda que o neoliberalismo agrave o empobrecimento – não só do ponto de vista econômico, mas também da subjetividade, como coloca Harnecker (2013: 109­-110), gerando vulnerabilidades e discriminações – da grande maioria da população dos países latino­-americanos, vigoram profundas opressões coloniais que dificultam imensamente a possibilidade de aglutinação dos vulgos “perdedores e prejudicados” pelo sistema.

A resposta que a própria autora dá é que em grande medida isso se explica pela comunicação, pois “uma parte importante da população não conhece nosso verdadeiro projeto”, uma vez que “os meios opositores se encarregam de deformá­-lo, de criar falsos alarmes e, muitas vezes, conseguem aterrorizar as pessoas acerca do futuro que lhes espera” (ibidem: 124). A culpa também caberia aos próprios defensores do socialismo do século xxi, já que não só faltam investimentos em criatividade e tempo na comunicação, mas também as/os próprias/os defensores muitas vezes não o praticam (negando­-o efetivamente) no seu dia a dia.

O paradoxo é bem mais grave do que o fator comunicação: o esforço para se construir uma contra­-hegemonia alternativa que não prioriza o colonialismo acaba por retroalimentar a própria hegemonia capitalista, que supostamente tenta combater. Através da coisificação de colonizadas/os – impondo­-lhes um roteiro preestabelecido de salto de sua condição prévia alienada (classe em si) para um estado de ativismo social pleno posterior (classe para si) –, definem­-se hierarquias de lutas. Não por acaso se mostraram frágeis a sustentação e a disseminação de uma “nova cultura de esquerda” no bojo de uma frente única, “que ponha acima o que une e deixa em segundo plano o que divide” (ibidem). Por mais que se almeje promover a unidade em torno de valores como “a solidariedade, o humanismo, o respeito às diferenças, a defesa da natureza, rechaçando o afã do lucro e as leis de mercado como princípios orientadores e condutores da atividade humana” (ibidem), essa tentativa menospreza a matriz abissal do colonialismo; se ampara em premissas democráticas (direitos civis e políticos) e igualitárias (trabalho livre) de cunho universalista que, no cotidiano das relações sociais vividas por sujeitos subalternizados, inexistem.

Essa forma idealizada do Brasil imaginado como nação “ocidental” também percorre reflexões expressas na Mesa­-redonda: a estratégia da revolução brasileira (Coutinho et al., 1986), registrada em meados da década de 1980 e provocada também pelas já referidas considerações de Anderson sobre Gramsci. Trata­-se de evento bem mais antigo que a obra recente de Harnecker, mas serve a título da leitura de relevantes intelectuais sobre os caminhos para enfrentamento da hegemonia. Destacado seguidor da obra gramsciana, Carlos Nelson Coutinho sustentava a avaliação de que o Brasil passara por um acentuado processo de “ocidentalização”, com uma sociedade civil que vinha se tornando cada vez mais complexa. Definido esse quadro, acreditava que a transição socialista deveria se dar mais no campo da guerra de posição – ou melhor, revolução processual – do que pela guerra de movimento14 típica de sociedades “orientais”. Coutinho reforçava ainda, nesse intercâmbio de opiniões, a necessidade de superação de preceitos do antigo “partidão”, Partido Comunista Brasileiro (PCB) – enfrentamento ao latifúndio e ao imperialismo – em nome de um empenho pela “ocidentalização”. “Ocidentalização” essa que se daria com o fomento da sociedade civil (perante o Estado), num acordo mais amplo de democratização modernizadora e modernizante (fortalecimento dos aparelhos de hegemonia, como partidos e sindicatos) com segmentos liberais. Para acompanhar, ele sugeria a consolidação de um “bloco de forças centrado no mundo do trabalho” visando reformas que introduzissem “elementos do socialismo” na sociedade brasileira, ou seja, que modificassem progressivamente a correlação de forças para a superação gradual do capitalismo. A essa proposta deu o nome de reformismo revolucionário.

A posição de Coutinho, apoiada quase que integralmente por Francisco Weffort, coincide com as orientações de Harnecker; ambas miram a superação da hegemonia liberal­-capitalista com receitas “contra­-hegemônicas” que escondem a dominação colonial (do tipo “oriental”) que persiste nas sociedades latino­-americanas. Ao fazê­-lo, legitimam uma interpretação abissal que autoriza injustiças coisificantes que, por seu turno, tonificam os músculos do sistema capitalista­-colonial de desenvolvimento (do subdesenvolvimento, adicionariam os pensadores da teoria da dependência).

Um dos expoentes dessa linha de pensamento, Theotônio dos Santos,15 manifestou na dita mesa­-redonda discordância com relação a essa tendência lenta, gradual e liberalizante – com potenciais pretensamente socializantes.16 Entre os pontos de divergência, este economista questiona tanto a caracterização do Brasil como sociedade “ocidental”, quanto o receituário da “ocidentalização” como melhor caminho para a consolidação de uma contra­-hegemonia ao capitalismo, levantando ressalvas aos fundamentos e às promessas associadas ao reformismo revolucionário.

Mesmo desconfiado do programa de “ocidentalização” para o Brasil de Coutinho e Weffort, Theotônio dos Santos sinaliza ainda estar preso a uma das armadilhas do pensamento abissal que tende a circunscrever a análise de fenômenos sociais às fronteiras nacionais ou até continentais. Ao afirmar que “o nosso (do Brasil) capitalismo gerou realidades que o capitalismo europeu não gerou”, ou que o capitalismo brasileiro deve merecer condenação ainda maior pela “sua incapacidade de resolver os problemas que o capitalismo europeu (ou japonês) resolveu historicamente”, o teórico da dependência estabelece um corte que esconde a inter­-relação entre os capitalismos e se esquece de que os lados positivos de uns e negativos de outros não são aleatórios. Em outras palavras, o que se perde nessa operação é justamente o colonialismo, a máquina de coisificar humanos e não humanos e de produzir desigualdades abissais.

 

Desobediências político­-epistêmicas

A opinião de propositoras/es de agendas socialistas, desde debates passados da década de 1980 até formulações recentes como o socialismo do século xxi, demonstra o quanto de miopia embaça as visões para enfrentar a dominação e a hegemonia capitalistas­-coloniais. Não se trata apenas da alienação das classes operárias que exercem a liberdade de vender suas respectivas forças de trabalho aos donos dos meios de produção (que extraem daí a mais­-valia). Tampouco se resume a uma outra variedade de alienação relacionada à igualdade política ofertada pela democracia liberal­-representativa que esconde a divisão de classes. Há outras operações não contabilizadas (produzidas ativamente como não existentes) para o funcionamento desse sistema.

O colonialismo forma o alicerce para a montagem e a legitimação das justificativas e das estruturas de Estados modernos vinculados a relações sociais dominadas e hegemonizadas pela burguesia. Os processos materiais e simbólicos de acumulação passaram a garantir um ambiente cada vez mais favorável à posse e à manutenção das propriedades privadas dos meios de produção pela classe burguesa. O exaltado trabalho livre firmado no “Ocidente” tem como contrapartida inexorável as inúmeras formas de escravidão (e de imposição à força do trabalho) que compuseram e compõem a sua face colonial. Hegemonia, portanto, nunca existiu sem dominação. Nem consentimento sem coerção. Muito menos “Ocidente” sem “Oriente”. Um dos meios utilizados para encobrir essas coisificações das/os colonizadas/os foi a “raça”17 – concepção social crucial que está na base da perpetuação da colonialidade do poder (Quijano, 1992). Como reforça outro autor:

(...) o apelo à raça (distinto da atribuição de raça) é uma maneira de fazer reviver o corpo imolado, amortalhado e privado dos laços de sangue e de território, das instituições, ritos e símbolos que o tornam precisamente um corpo vivo. (Mbembe, 2014 (2013): 69)

A partir dos pontos de vista individuais e também de perspectivas coletivas de sujeitos políticos com as/os quais se estabeleceu interlocução durante as pesquisas de campo,18 foi possível ter acesso a um aspecto­-chave, que é o ímpeto antidominação e contra­-hegemônico de agentes formuladores e praticantes de epistemologias do Sul (Santos, 2014), que expuseram análises e alternativas com base nas suas formas de se ver (e de ver os outros), atuar e ser no mundo.19 Essas perspectivas serão apresentadas aqui de dois modos: na descrição e na subsequente análise de duas manifestações (uma em cada país) em que foi possível estar presente, organizadas pelos movimentos com os quais se estabeleceu diálogo; e com trechos de entrevistas feitas com integrantes dos mesmos sobre o tema da inter­-relação com as instituições estatais.

O ato acompanhado no Brasil foi a ocupação coletiva de um trecho, com a interrupção da circulação de automóveis, da Rodovia BR­-17420 – que liga a cidade de Boa Vista (capital do Estado de Roraima) a Pacaraima, já na fronteira com a Venezuela – logo nas horas iniciais de 2 de outubro de 2013. Tratava­-se da primeira grande manifestação indígena desde a conquista histórica obtida pelo movimento liderado pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) que, com o julgamento da Ação Popular 338821 no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, teve assegurada a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS).

A manifestação tinha como foco o repúdio de um amplo conjunto de organizações indígenas e indigenistas (como parte da Mobilização Nacional Indígena)22 à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000,23 em trâmite no Congresso brasileiro. A proposição legislativa tem como finalidade transferir a palavra final sobre demarcações de territórios para usufruto dos povos, hoje a cargo do Poder Executivo, ao próprio Parlamento, notória instância em que prevalecem interesses anti­-indígenas.24

Desde a própria preparação (conduzida pelo CIR, que pôs em marcha vasta estrutura própria, além de convocar parcerias), passando pelas assembleias no local dos acampamentos (Comunidade Sabiá) que precederam o ato, ficou patente a legitimidade acumulada pela parte organizadora. Eram perceptíveis a existência e a validação de conhecimentos e de ritos forjados nos enfrentamentos de longa data protagonizados pelo movimento indígena de Roraima. Chamou atenção o papel destacado de militantes e de lideranças femininas,25 mostrando elementos de interseccionalidade nas lutas.26 Nenhuma das prescrições clássicas supracitadas – “movimento para sociedade oriental” e “posição para sociedade ocidental” – fazia ali muito sentido, uma vez que a ação se voltava muito mais a uma afirmação política de direitos. Para viabilizar a organização de uma manifestação com participação de mais de mil indígenas mobilizadas/os por mais de 12 horas (da 1h da madrugada do dia 2 até depois das 13h do mesmo dia), deram­-se trocas seguidas de turnos, demonstrando o relevante sentido de união27 na r­-existência – animada com músicas de protesto de composição própria e dança (parixara) – contra a crescente pressão de indivíduos contrariados que cobravam a liberação da estrada. Estava diante de uma metáfora dos indígenas interrompendo a ofensiva dos poderes político­-econômicos dominantes (pela força) e hegemônicos (pela prevalência de suas opiniões na “sociedade civil” e no “Estado”) contra os seus direitos. Inclusive a minha própria presença (para além da pesquisa acadêmica em si) tinha o intuito de propiciar conteúdo jornalístico28 que pudesse fazer reverberar – perfurando assim “barreiras” impostas pela mídia regional ou pela imprensa comercial nacional29 – esse ato pelo cumprimento de garantias constitucionais, liderado pelo movimento indígena regional.

Frente ao sistema opressor, indígenas de Roraima optaram, então, pelo caminho das desobediências político­-epistêmicas que reforçam as suas condições como sujeitos, contestando a coisificação (étnico­-racial) que caracteriza e estrutura o capitalismo­-colonialismo. Não se limitaram a atitudes secundárias que mais bem se enquadrariam na condição de “pautas identitárias” que, tal como demonstram análises como as de Meiksins­-Wood (2003 (1995)) e de Chibber (2013), serviriam fundamentalmente para “atrapalhar” processos classistas de transformações supostamente mais definitivas tanto de mobilização, como de alcance “universais”. Ao não se restringir à questão de classe, o movimento reforça a tarefa não menos relevante de enfrentamento do sustentáculo colonial da matriz abissal por meio da qual a hegemonia se renova.

Trecho de entrevista com Amarildo Mota, jovem liderança da comunidade da Laje – numa área de divisa com a República Cooperativa da Guiana, não muito distante da sede do município de Uiramutã (em Roraima) –, na Região das Serras da Raposa Serra do Sol,30 atesta o fundamento colonial da coisificação (objetos de conhecimentos e de poderes) a posição de firmeza assumida pelos povos indígenas de Roraima frente à tentativa de imposição com fins de dominação coercitiva e hegemonia consensual.

Pergunta – O que poderia ajudar mais hoje, como apoio às comunidades? O que seria mais importante? Já que estamos em jogo, né? Uma parte mais importante que a gente vê assim é a das publicações (na imprensa e também na academia, no que diz respeito à opinião pública), né? Por exemplo, aqui a comunidade está trabalhando. Aí tem a publicação errada? Tem. Aí o pessoal acredita. (Prioriza­-se versões do) Governador, parlamentares... (Todos) Estão acreditando. Mas tem que publicar (levando em consideração) o nosso movimento, as nossas manifestações, o nosso trabalho, por exemplo, da roça. O povo está trabalhando. Eu acho que é importante. A publicação e a defesa, né? É um projeto muito grande. (...) É isso que eu estou dizendo: a prioridade mesmo é defender a causa indígena. É um projeto que a gente agradece muito se tiver um governador que apoie essa, um parlamentar que apoie essa causa. Pergunta – Mas acha que isso vai acontecer algum dia? A gente espera, né? Agora esse negócio de rancho (destinação/doação de produtos alimentícios, como cestas básicas, por exemplo), assim, ninguém espera, ninguém quer. Ninguém aceita porque nós não estamos passando fome (...). Agora se ele quiser fazer um projeto: ‘vou mandar um trator para o Willimon (outra comunidade da região, que é um centro ao qual a comunidade da Laje está vinculada) para ajudar na agricultura’... É dever! É dever ele apoiar nesse sentido. Mas o projeto grande que a gente quer que um governador, um presidente, um parlamentar apoie é o dos direitos dos povos indígenas. Assegurar o direito dos povos indígenas. Respeitar os direitos dos povos indígenas. É isso que a gente quer. Eu imagino que um dia isso ainda pode acontecer. Pode ser que tenha um para defender. (...) Pergunta – Então o principal é essa falta de reconhecimento? Isso. É um projetão para nós. Nós consideramos um projeto muito grande para nós. É um ouro para nós se as pessoas defenderem os nossos direitos, se respeitarem. Para nós, é isso. Não precisamos... Nós não dependemos do governador. Nem um centavo dele nós precisamos. Se ele quiser apoiar na educação, ele pode. Porque é dever do governador apoiar na educação, na saúde, na agricultura. É dever, mas desde que tenha que manter acordo com as comunidades. Ele também não pode (pensar, planejar e executar): “ah, vou apoiar a agricultura” assim, de qualquer jeito. Aí já não cabe a nós. Nós não aceitamos. Se o governador quer fazer um projeto, o projeto aqui vai ser de acordo com a comunidade.31

Um aspecto relevante a ser destacado nesse sentido é que, tanto no contexto em que se deu a pesquisa no Brasil como no da Bolívia, as comunidades indígenas, mesmo usufruindo de terras e da criação de animais ou de atividades locais, pontuais e de pequena escala de mineração como meios de produção,32 têm a sua condição de sujeitos deslegitimada. E esse pensamento dominante e hegemônico que prima pela coisificação da/o subalterna/o atua por vieses distintos nos dois países.

No Brasil se dá, entre outras formas, pela imposição de uma pecha (incentivada por setores que detêm o poder político­-econômico) de incapacidade e de indolência em termos de produção, isto é, com a sua existência condicionada apenas ao posto de empregados reduzidos à mão de obra barata.33 Como vendedores objetificados de sua própria força de trabalho e majoritariamente despreparados para a auto­-organização em seus territórios,34 os indígenas são tratados rotineiramente com altas cargas de discriminação e preconceito, tendo como pano de fundo o persistente bordão racista do desperdício de “muita terra para pouco índio”.

Na Bolívia, por sua vez, a coisificação de movimentos indígenas trilha caminhos múltiplos e tortuosos. Por um lado, o próprio governo central (alçado ao poder a partir de largas mobilizações da articulação indígena originária camponesa)35 insiste em discursos acusatórios no sentido da manipulação de segmentos indígenas mais críticos às políticas oficiais por parte de interesses geopolíticos internacionais imperialistas.36 Pelo outro lado dos setores mais críticos ao governo, segmentos e entidades indígenas ligadas ao Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS­-IPSP) são tidos como massas de manobra do grupo instalado no poder desde 2006 – encabeçado pelo presidente (de trajetória como sindicalista cocalero) Evo Morales e pelo vice­-presidente (ex­-guerrilheiro e intelectual) Álvaro García Linera.37

A experiência presencial num evento sobre educação38 do movimento indígena permitiu um conjunto de leituras e interpretações adicionais sobre o enfrentamento da dominação e a interpelação da hegemonia a partir do ponto de vista das comunidades indígenas Quéchuas locais. As dependências do Centro de Formação Originária das Alturas (CEFOA) “Fermín Vallejos” no núcleo de maior concentração populacional do território de Raqaypampa, receberam o encontro organizado pela Central Regional Sindical Única de Camponeses Indígenas de Raqaypampa (CRSUCIR) como parte do esforço para a constituição da segunda autonomia indígena originária camponesa do país.39 Na ocasião, representantes do Ministério da Educação e da Secretaria de Educação do Departamento de Cochabamba foram convidados para uma assembleia aberta40 com as comunidades, em que se trataram vários assuntos. Esse grande encontro temático contou com a participação de mais de uma centena de membros, homens e mulheres, de todas as cinco subcentrais41 que fazem parte da TIOC42 de Raqaypampa. Na parte da manhã, consultores ligados à ISA Bolívia apresentaram um planejamento de ações e metas na área educacional – particularmente dedicado à reestruturação do CEFOA como base de apoio para formação de pessoal para o autogoverno43 – formatado às diretrizes do Estatuto Autonômico e ao Plano de Gestão Territorial aprovados coletivamente no largo processo de construção e estabelecimento definitivo da AIOC de Raqaypampa.

Pela tarde, o debate foi direto com representantes das instâncias do governo, que foram questionados e cobrados não só por lideranças e membros de entidades que compunham a mesa, mas também diretamente por comunárias/os que reservaram o dia todo para discutir. Nas várias manifestações, as questões da falta de apoio no atendimento das demandas e das condições precárias das escolas foram citadas várias vezes, bem como a necessidade de que o currículo e o calendário diferenciados sejam respeitados. Aparentemente, a dominação via coerção/violência se reduziu substantivamente no que se refere à população indígena de Raqaypampa (e da Bolívia, em geral), principalmente desde as grandes mobilizações do início dos 1990,44 mas o tema da hegemonia político­-ideológica capitalista­-colonial – sempre na linha da coisificação pela matriz abissal – esteve no cerne da convocação da assembleia sobre a educação, apenas mais um episódio na luta das comunidades pelo autogoverno.

Em vez de tentar enfrentar a hegemonia com mais “ocidentalização” e com estímulo à expansão e sofisticação da sociedade civil no embate com o Estado ou de apostar a maior parte das fichas principalmente num instrumento político45 que sirva de bússola e se encarregue de formar militantes, as/os comunárias/os de Raqaypampa escolheram um caminho próprio. Embora assumindo papéis em espaços formais e usando repertórios de participação social relativamente ordinários da cidadania ocidental, de certo modo optaram por desobedecer ao sistema, estabelecendo do jeito deles parâmetros e negociações descoisificantes com as institucionalidades que trazem conteúdos e contornos imprevistos. Este trecho da entrevista com o professor indígena Miguel Caero, formado ele próprio pelo CEFOA, dá ideia do modo como o tema da educação – de reuniões menores a assembleias como a que se pôde acompanhar, passando por intensos protestos a negociações com os mais diversos setores – tem muito mais profundidade como contra­-hegemonia do que parece à primeira vista.

Pergunta – Que tipo de saberes de Raqaypampa pensas que seja importante manter e ser ensinados a mais gente? Por exemplo, a Lei 07046 está falando mais de cosmos, do holístico, de outras dimensões, da questão metodológica. De acordo com isso, (consiste numa) educação mais ligada à natureza, para viver com a natureza. Um camponês, por exemplo, não sabe nem ler e nem escrever, mas ele sabe. Vive da terra, de sua terra, do trabalho. Conhece, trabalhando na terra, quais são os animais que existem, quais são as plantas que existem. E quando vai chover. Por exemplo, o que estão fazendo as formiguinhas. Existem muitos indicadores. As aves, as plantas. Digamos, os camponeses sabem quando vai chover. Quando os animais vêm de um lado, eles já sabem o que vai acontecer. Se vai chegar uma chuva de granizo ou se vai chover forte. Tudo isso: os jampiris,47 os yatiris,48 como curam, como fazem tratamentos. Há tudo isso e a Lei 070 reconhece o seu valor. Isso está ajudando e pode ajudar a voltar os saberes dos nossos avós. Resgatando e valorizando saberes. Podemos aprender muitas coisas. E isso é para a vida. Pergunta – Mas também é muito importante fazer uma combinação de saberes, não? Há muitas coisas. Por exemplo, falavas que os alunos querem saber muito sobre computadores, novas tecnologias, etc. Como se faz essa combinação de saberes? Por exemplo, eu disse que a Lei 070 cita uma palavrinha: educação ‘revolucionária’, também inclusiva, socioprodutiva. Podemos, pois, aprender e ensinar sobre toda a luta, tudo aquilo, a história. Sobre política inclusiva, o governo está dando mais preferência a todas as pessoas. Educação para todos. Há educação formal, educação alternativa, educação especial para que pessoas que não enxergam... Pergunta – Com deficiência... Isso. A revolução tecnológica, claro, está aí. Ano passado recebemos computadores todos os professores. Para mais uma etapa dessa revolução educativa. Para melhorar. Para que pesquisemos. Para os alunos pesquisarem. Entrar na internet, buscar. Com mais facilidade. Pergunta – E acreditas que seja possível fazer essa combinação? Como se trabalha essa coisa de manter os saberes tradicionais, ao mesmo tempo em que também se ensina coisas mais “novas”? Antes, era uma educação copiada de outros países. E, agora, claro, se quer reconhecer e resgatar (os saberes “tradicionais”). Os dois têm que ir de mãos dadas, juntos. Não podemos aprender somente de um lado da sociedade: tanto da cidade como do campo, de acordo com as tecnologias.49

Nas respostas de Miguel Caero, há uma série de (im)posturas de desobediências político­-epistêmicas que, ao primeiro olhar, podem até soar como desprovidas de quaisquer pretensões contra­-hegemônicas, pois enquadradas e quase nada desestabilizadoras do status quo. Cobranças por educação de qualidade parecem algo corriqueiro; há quem enxergue nelas até uma agenda limitada, de conotação paternalista/assistencialista, sem projeção para transformações sociais mais profundas. Faz lembrar até mais um dos casos do quadro analítico gramsciano invocado no início deste artigo em que a sociedade civil do “Oriente” tenderia a assumir feições primitivas e gelatinosas perante um Estado preponderante. Ocorre, porém, que a partir desse entendimento não necessariamente socialista, as comunidades de Raqaypampa estão levando adiante uma proposta de educação comunitária, autoelaborada e de priorização endógena que carrega uma semente de conotação disruptiva descolonial. Não por acaso, acabam sendo alvo de certas reprovações tanto de dirigentes oficialistas como de grupos dissidentes, em seus afãs por definir a conduta que as/aos camponesas/es indígenas deveriam seguir segundo suas respectivas opiniões e visões de mundo.

Guardadas as devidas limitações e os alcances situados de cada uma das iniciativas invocadas, ambas desafiam (mesmo que em grau localizado e parcial), com suas atitudes autônomas que não deixam de se contrapor à matriz abissal, a manutenção inconteste do sistema capitalista­-colonial. É evidente que se trata de esforços pontuais insuficientes para desestruturar lógicas e imposições político­-epistêmicas vigentes há séculos. Mas os indígenas organizados em torno do CIR e as comunidades reunidas na CRSUCIR têm se dedicado com obstinação a confirmar os seus papéis de sujeitos de direitos diferenciados conquistados coletiva e globalmente e, dessa maneira, se recusado a obedecer integralmente às ordens marcadas pela coisificação racializadora e subalternizante – violência tipicamente colonial não raro autorizada por socialistas deste e de outros séculos. Lançando mão de diversas estratégicas nas inter­-relações mantidas em tempos e espaços heterogêneos por meio das epistemologias do Sul que não se prendem em reformismos (revolucionários ou não), dão vida, com todas as dificuldades que as cercam (sejam elas violências com vistas à dominação direta ou artifícios voltados ao consenso indireto via hegemonia), a lampejos emergentes (Santos, 2002) de “alternativas das alternativas”, associadas às suas múltiplas e encarnadas lutas.

Em termos de caminhos de contra­-hegemonia, esses movimentos têm cumprido uma função ímpar: ao mesmo tempo em que conquistam direitos (seja aos territórios, às políticas sociais e até à manutenção de formas próprias de organização política), apontam, para as veladas injustiças que estão associadas ao caráter profundamente colonial do sistema em vigor. Não se limitam a pleitear benefícios apenas para si próprios conforme as circunstâncias, diferentemente do que pregam seus detratores. Pelo contrário, ao contestar de alguma maneira a coisificação (nas manifestações públicas e nas entrevistas, nas quais se percebe a relevância da autonomia), sinalizam a outras coletividades e indivíduos que os intentos de dominação, por mais poderosos que sejam, não foram e não são capazes de fazer sucumbir por completo a todas e todos.

 

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Artigo recebido a 21.09.2017 Aprovado para publicação a 22.10.2017

 

NOTAS

* Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “Alice: espelhos estranhos, lições imprevistas”, coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Portugal. O projeto recebe fundos do Conselho Europeu de Investigação, Sétimo Programa Quadro da União Europeia (FP/2007­- 2013) / ERC Grant Agreement n.º 269807.

1 Na introdução de coletânea que coloca em diálogo a obra de Gramsci com os estudos pós­-coloniais, Srivastava e Bhattacharya (2012: 3­-7) chamam atenção para as reflexões do autor sobre o colonialismo e os impérios, colocando­-o como “mais progressista que a maioria dos pensadores marxistas e socialistas da sua geração”. O italiano de fato teceu críticas sobre temas como a escravidão, buscando escapar de armadilhas nacionalistas, mas a cisão “Oriente/Ocidente” tem inegável carga colonial.

2 Pachukanis (2017 (1924)) sustenta que o Direito e o Estado, da forma como foram forjados pela classe burguesa e tendo como núcleo concentrador de riquezas a Europa ocidental, são produtos do capitalismo e se fundamentam na criação de uma cidadania liberal individual que se caracterizaria pela compra e venda de mão de obra de trabalhadores/as “livres”. Ainda que importante em seu aspecto de crítica às estruturas institucionais estatais modernas, também Pachukanis parece não atentar ao fato de que essa cidadania liberal tem um amplo processo colonial de coisificação por trás de si.

3 Para González­-Casanova (1995: 9), “o Terceiro Mundo é o mundo colonial renovado”.

4 Lenin (2012 (1917)) busca diferenciar aquilo que caracteriza como fase Imperialista do capitalismo (exportação de capitais) das etapas anteriores mais mercantilistas e nacionalistas. Ocorre que, como depois vieram a enfatizar autores como Wallerstein (1974) e Quijano (1992), forma­-se já na “primeira modernidade” uma divisão internacional do trabalho (mais especificamente segundo Quijano, tendo a raça como elemento socialmente hierarquizante) que perpassa todas as fases do capitalismo.

5 Mbembe (2014 (2013): 50) realça que “o capital não só nunca pôs termo à fase de acumulação primitiva, como sempre foi recorrendo a subsídios raciais (ênfase do autor) para a executar”.

6 Fanon (1968 (1961): 50) não deixa incólume a conexão entre a riqueza e a abundância das metrópoles com a exploração e o saque nas colônias.

7 Em Discurso sobre o colonialismo, Césaire (1978 (1955): 15) faz menção, mais precisamente no Capítulo 1, a outras “equações desonestas” que ele atribui ao “pedantismo cristão”: “cristianismo = civilização; paganismo = selvageria (destaque do autor), de que só se podiam deduzir abomináveis consequências colonialistas e racistas, cujas vítimas haviam de ser os Índios, os Amarelos, os Negros”.

8 Por meio da sociologia das ausências, que tem como finalidade realçar aquilo que está presente, mas é produzido como ausente. Vem acompanhada da sociologia das emergências, a qual enfatiza lutas que visam romper com essa realidade socialmente produzida como abissal (Santos, 2002).

9 Em alguma medida, Said (1990 (1978)) trata de temáticas correlatas e complementares a esse ponto, ainda que de forma parcial. No caso da América Latina, há uma crescente e variada produção que tem a ver com esse “encobrimento do Outro” (Dussel, 1994 (1992)) que se plasma na muito difundida noção de colonialidade do poder (Quijano, 1992), relacionada com uma “ideia de América Latina” (Mignolo, 2007 (2005)) e de “invenção do Terceiro Mundo” (Escobar, 2007 (1995)). A coletânea organizada por Lander (2005) e as noções de giro decolonial (Grosfoguel e Castro­-Gómez, 2007) e de giro ecoterritorial (Svampa, 2016 (2011)) são desdobramentos dessas reflexões, que têm alcançado patamares outros com produções e intervenções de pensadoras/es indígenas e negras/os.

10 A proposição da ideia de matriz abissal se pretende conjugada à noção de linha abissal. A referência à matriz remete ao molde capitalista­-colonial­-patriarcal dos processos repetidos de coisificação de que trata Césaire. Metafórica, a linha abissal expressa mais um sentido de consequência (tanto material como simbólica); a matriz, por sua vez, se ancora em (e acaba mesmo por sugerir) uma lógica de causa que pode assumir configurações diversas nas distintas temporalidades e territorialidades em questão. A matriz enfatiza ainda o senso de replicabilidade e de profusão em formas não necessariamente uniformes de linha desenhadas e redesenhadas em variados contextos e condições geopolíticas.

11 Em palestra ministrada em 25.07.2017 como parte do Pré­-ALAS 2017 Brasil – evento “prévio” ao congresso bianual da Associação Latino­-Americana de Sociologia (ALAS), na Universidade de Brasília (UnB), o ministro do governo do Estado Plurinacional da Bolívia, Carlos Romero, citou Martha Harnecker e as reflexões de lavra da intelectual chilena como marcos de análise para o socialismo do século xxi e para a revolução democrática e cultural que estaria em curso na Bolívia.

12 Essa relação entre capitalismo e trabalho livre é contestada por autores como Mbembe (2014 (2013)), que direcionam o foco à conexão do capitalismo com o colonialismo, em particular com o largo e complexo sistema de tráfico e de coisificação de milhões de pessoas negras escravizadas.

13 Em se tratando de povos originários da América Latina/Abya Yala, “mais do que resistência, o que se tem é R­-Existência posto que não se reage, simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo pré­-existe e é a partir dessa existência que se R­-Existe” (Porto­-Gonçalves, 2008: 47).

14 No Brasil, o horizonte da revolução explosiva (guerra de movimento) como caminho ao socialismo se explica por conta da predominância, a partir de um dado momento, de duas correntes políticas marxistas no país: trotskistas ou trotskizantes, stalinistas ou neo­-stalinisistas (Coutinho et al., 1986: 132).

15 Integrante de uma linha político­-ideológica mais bem demarcada, a Teoria Marxista da Dependência (TMD), da qual também faziam parte Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra.

16 A relevância de uma organização operária sólida forjada num programa com orientação anticapitalista bem definida, para além de possíveis alianças ampliadas num campo democrático­-popular, foi realçada pelo quarto participante da mesa­-redonda, João Machado. Doutor em Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC­-SP), ele fazia parte, à época, da executiva do diretório estadual do Partido dos Trabalhadores (PT). Rompeu com o partido em 1994 e fundou o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no qual continua militando.

17 A raça, discorre Mbembe (2014 (2013)), consiste não só num lugar de “verdade das aparências”, mas também num lugar “de dilaceração, de efervescência e de fervor”. “A verdade do indivíduo a quem é atribuída uma raça está simultaneamente em outro lugar e nas aparências que lhes são atribuídas. A raça está por detrás da aparência e sob aquilo de que nos apercebemos. É também constituída pelo próprio ato de atribuição – esse meio pelo qual certas formas de infravida são produzidas e institucionalizadas, a diferença e o abandono, justificados, a parte humana do Outro, violada, velada ou ocultada, e certas formas de enclausuramento, ou mesmo de condenação à morte, tornadas aceitáveis” (ibidem: 66).

18 As pesquisas empíricas fazem parte de uma tese de doutorado no Programa de Pós­-Colonialismos e Cidadania Global, no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC), integrado ao Projeto ALICE, coordenado pelo Professor Boaventura de Sousa Santos, e tem como base empírica diálogos estabelecidos nos territórios com organizações indígenas no Brasil e na Bolívia. O trabalho de campo em Roraima, no Brasil, se deu entre o final de setembro e o início de dezembro de 2013; já a pesquisa na região de Cochabamba, na Bolívia, foi realizada entre janeiro e março de 2014.

19 Não é foco deste artigo, mas contribuições antropológicas relativas a povos na América Latina ajudam a dar contornos, por exemplo, ao “perspectivismo ameríndio” (Viveiros de Castro, 2013). Ainda que possa suscitar debates, o senso de desobediência político­-epistêmica dialoga com tais formulações.

20 O núcleo da manifestação, definido com bastante antecedência por um colegiado de lideranças indígenas, foi a Comunidade Sabiá, localizada no interior da Terra Indígena São Marcos, num ponto situado à beira da estrada que fica a cerca de 40 km de Pacaraima. Foi uma ação estratégica que interditou a mesma rodovia em outro ponto (5 km mais à frente, na outra vila chamada Makunaima), já depois de uma das principais saídas que permite o acesso à Comunidade do Barro/Surumu, às margens do Rio Cotingo, um dos “portais” da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS).

21 A íntegra do acórdão do julgamento da ação que pleiteava a nulidade da Portaria 534/2005, do Ministério da Justiça (MJ), homologada pelo Presidente da República em 15.04.2005, encontra­-se acessível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133.

22 Iniciativa (acessível em http://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que é composta da união de diversas organizações regionais do país: a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal e Região (Arpipan), a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpin­-Sudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembleia do Povo Guarani (Aty Guasu) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

23 A PEC 215/2000 foi aprovada em comissão especial formada para análise da matéria (mais detalhes em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562), mas ainda aguarda apreciação por parte do Plenário da Câmara Federal.

24 Além da PEC 215/2000, outra iniciativa da bancada ruralista, que ao longo de anos se destacou pela promoção de interesses contrários à defesa dos direitos indígenas, foi a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Essa CPI acabou por aprovar, em março de 2017, um relatório que pede o indiciamento de 67 pessoas (entre indígenas, antropólogas/os, integrantes de organizações indigenistas e membros do poder público), o qual foi criticado por diversos segmentos da sociedade brasileira.

25 Uma das principais articuladoras da referida manifestação, de acordo com observação durante o ato, foi Telma Marques, da etnia Taurepang, então secretária do Movimento das Mulheres Indígenas do CIR. Telma foi também uma das lideranças participantes do Colóquio Internacional Território, Interculturalidade e Bem­-Viver: as lutas dos povos indígenas no Brasil (para mais informação cf. http://alice.ces.uc.pt/news/?page_id=3568), organizado no final de junho de 2014, no âmbito do Projeto ALICE (CES/UC). O evento também contou com a presença de Jacir de Souza, ex­-coordenador­-geral do CIR, liderança histórica do movimento indígena de Roraima.

26 Confirmando trabalhos do campo dos chamados feminismos pós­-coloniais/descoloniais (ver prólogo elaborado coletivamente pelo centro social autogerido feminista Eskalera Karacola, 2004) que têm enfatizado as múltiplas combinações entre opressões (e mobilizações, em resposta) de classe, de gênero e de raça.

27 Entre muitos momentos marcantes de união entre os indígenas da TIRSS, lideranças e informantes consultados citaram várias vezes o caso ocorrido em 1987 em torno da Aldeia Santa Cruz, nas proximidades de Normandia (Estado de Roraima). Um casal indígena fora vítima de graves agressões por parte de jagunços armados da Fazenda Guanabara, que impediam a circulação a mando do fazendeiro Newton Tavares. Após novas agressões, três jagunços acabaram retidos por indígenas, os quais reagiram diante da ausência de providências quanto ao crime. Na sequência, forças militares e policiais foram enviadas em grande número ao local, resultando em mais episódios de violência e na prisão de 19 indígenas acusados pela retenção dos jagunços (CEDI, 1991: 151­-158). Mesmo com tanta repressão e com a sequência de ataques (físicos e morais, também pela imprensa), a ação unida dos indígenas é lembrada como momento­-chave para a auto­-organização dos mesmos. O feixe de varas, que representa a união de gravetos, é símbolo da resistência dos indígenas da TIRSS.

28 Matéria publicada no site Repórter Brasil: http://reporterbrasil.org.br/2013/10/indios-de-roraima-bloqueiam-rodovia-contra-a-pec-215/.

29 No contexto dos conflitos pela garantia dos direitos territoriais da TIRSS, o CIR foi capaz de extrapolar “barreiras” regionais e nacionais da mídia hegemônica com denúncias em nível global, como no caso do vídeo com registro de tiros e bombas a mando do fazendeiro e político Paulo César Quartiero, divulgado, entre outras entidades de apoio aos direitos dos povos indígenas, pela Survival International (http://www.survivalinternational.org/news/3389), em junho de 2008, ainda antes do julgamento.

30 Em outubro de 2013, havia na Região das Serras (uma das quatro divisões da TIRSS adotadas pelo CIR; as outras são Surumu, Baixo Cotingo e Raposa) mais de 100 comunidades, ultrapassando 10 mil pessoas. As informações foram dadas (em entrevista) pelo então coordenador regional do CIR, Abel Lucena.

31 Entrevista realizada em 19 de outubro de 2013, na comunidade Willimon.

32 García Linera (2010 (2009): 58­-62) chega a invocar, ainda que parcialmente, a noção de “um tipo de colonialismo contemporâneo” a partir “não da subordinação do processo de trabalho imediato, que já presume certa homogeneização mercantil das relações laborais e culturais, mas da subsunção geral (em sua modalidade formal e real) dos processos de produção e de circulação social do capital comercial”. Porém, acaba por repetir a centralização da classe histórica nas relações de trabalho.

33 Indígenas também são frequentemente acusados de serem marionetes nas mãos de ONG, empresas e governos estrangeiros. Encontra­-se com facilidade nos discursos de membros da bancada parlamentar ruralista e da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a associação das reivindicações indígenas por territórios com a cobiça internacional das riquezas amazônicas, a despeito de serem os agentes do agronegócio aqueles que mais guardam vínculo com o capital transnacional.

34 No julgamento no STF das 19 condicionantes associadas à demarcação da TIRSS, ocorrido em outubro de 2013 (e registrado in loco em outra matéria deste pesquisador, cf. http://reporterbrasil.org.br/2013/10/direitos-sao-mantidos-na-terra-indigena-raposa-serra-do-sol/), o ministro Marco Aurélio Mello evocou conteúdo da revista semanal Veja que propalava a ideia de que a retirada de não indígenas do território teria sido desvantajosa aos próprios indígenas, os quais estariam vivendo numa “reserva de miséria”. Mas a declaração que provocou maior indignação entre os povos da região foi a do governador de Roraima, José de Anchieta que, à época da decisão pela área contínua por parte do STF (2009), dissera que a TIRSS se transformaria num “zoológico humano”, “sem a menor condição de sobrevivência”, com a retirada de produtores rurais não indígenas da área.

35 Em sua etnografia sobre a Assembleia Constituinte (2006­-2007), Schalvezon (2013) discorre detalhadamente (no item 2.1: 93­-101) sobre as disputas, impasses e acordo final em torno da construção da síntese tripla ‘indígena originária camponesa’, sem sinais ortográficos de separação entre os termos, via Pacto de Unidade: a articulação entre as cinco principais organizações que se uniram numa frente para a construção da Constituição Política de Estado (CPE) de 2009 ­– Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), Confederação Nacional de Mulheres Camponesas Originárias e Indígenas da Bolívia “Bartolina Sisa” (CNMCOIB­-BS), Confederação Sindical de Comunidades Interculturais da Bolívia (CSCIB), Confederação Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu (Conamaq) e Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia – Oriente, Chaco e Amazônia (CIDOB).

36 Há uma coleção de falas e comunicados de Morales, de García Linera e de outros ministros do governo do MAS­-IPSP que atribuem a postura crítica de grupos dissidentes – particularmente de grupos do Conamaq e da Cidob que se rebelaram contra direções “oficialistas” – a interferências internacionais. A não aceitação de povos indígenas locais ao projeto governamental de construção de uma rodovia que atravessa o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), obra lançada inicialmente em 2011 com suporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e atribuída à empreiteira OAS (ambas do Brasil), têm um peso grande na intensificação desse discurso coisificante. Tais acusações também se mostraram extensivas a centros de pesquisa, associações e ONGs com atuação de muitos anos no país – como o Centro de Documentação e de Informação Bolívia (CEDIB), a Fundação Tierra e o Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA),

37 É possível notar descontinuidades entre proposições ancoradas na “dimensão multicivilizatória da comunidade política” (García Linera, 2010 (2009): 214­-221) e enfoques mais atuais deste mesmo autor que se dedicam a defender uma sorte de papel transitório de “vanguarda” assumido pelo Estado, que acaba por confluir com a ideia de instrumento político orientador das ações políticas (Harnecker, 2013).

38 Num dos preâmbulos do Estatuto da Autonomia Indígena Originária Camponesa (AIOC) de Raqaypampa, aprovado com 91,78% dos votos em referendo local (novembro de 2016), a formação da CRSUCIR e do Distrito Maior Indígena, como um passo para a Subprefeitura, é vinculada à educação. As experiências de educação comunitária permitiram, de acordo com o texto, “constituir um projeto educativo próprio com os Conselhos Comunais Educativos como instância de controle comunal sobre a gestão educativa, em torno ao qual forjamos o Conselho Regional Educativo das Alturas (CREA) e o Centro de Formação Originária das Alturas (CEFOA), onde refletimos e nos preparamos para o exercício da gestão territorial indígena originária camponesa”. Ver na íntegra em http://observatorioparidaddemocratica.oep.org.bo/files/uploads/estatuto_raqaypampa.pdf.

39 No último dia 12 de agosto de 2017, a autoridade tradicional eleita em pleito realizado em maio do mesmo ano, Florencio Alarcón, recebeu as credenciais, junto com outras cinco pessoas também escolhidas pelas/os próprias/os comunárias/os para o Conselho de Gestão Territorial da AIOC de Raqaypampa. Foi o último passo formal para a conclusão de um projeto autonômico de mais de 10 anos, que exigiu empenho e participação das comunidades numa sequência de consultas populares e diversos trâmites burocráticos (incluindo a edição de leis específicas). Raqaypampa se consolidou, portanto, como segunda AIOC do país (a primeira foi Charagua Iyambae, do povo Guarani); mas foi a primeira a se tornar autonômica sem antes ter sido um município, pois fazia parte de Mizque.

40 O evento contou com o apoio da organização não governamental Instituto Socio Ambiental (ISA) Bolívia, que presta auxílio no processo de formação e efetivação da AIOC de Raqaypampa, com particular dedicação aos temas da educação e da organização produtiva. Também o projeto audacioso da Organização Econômico­-Comunitária (Oecom) de Raqaypampa, que instalou uma primeira e pequena planta de produção de bolachas (Tikita) a partir da produção local e orgânica de trigo e milho na comunidade de Salvía, com fundos de cooperação internacional, conta com suporte da mesma ONG.

41 As comunidades são divididas em cinco subcentrais (Raqaypampa, Laguna, Molinero, Santiago e Salvía), segundo o modo de organização do sindicalismo agrário adotado pela CRSUCIR, que integra a Federação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses de Cochabamba (FSUTCC), organização departamental associada à Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB). Ao todo, 43 sindicatos fazem parte da CRSUCIR. Estima­-se que cerca de 10 mil pessoas vivam no território.

42 Raqaypampa foi reconhecida como Terra Comunitária de Origem (TCO) – módulo fundiário atualmente renomeado como Território Indígena Originário Camponês (TIOC) – em 2005, em consonância com a reivindicação de outras organizações, o que assegurou a titulação coletiva das terras.

43 A Bolívia se define no artigo 1.º de sua CPE 2009 como “Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário” fundado na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico. A AIOC é definida (artigo 289) como: “autogoverno das nações e povos indígenas originários camponeses, cuja população comparte território, cultura, história, línguas, e organização ou instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas próprias”. Em 2010, para a regulamentação das autonomias, promulgou­-se a Lei Marco 031 de Autonomias e Descentralização (LMAD) “Andrés Ibañez”.

44 Um dos marcos para a reorganização e retomada de ciclo de mobilizações de indígenas na Bolívia foi a Primeira Marcha Indígena “Pelo Território e Pela Dignidade”, das terras baixas até La Paz, em 1990. Outras marchas se seguiram e, no ano de 2000, a Guerra da Água em Cochabamba, contra a privatização dos serviços de abastecimento do precioso recurso natural, simbolizou outro importante momento de mobilização social e autonomia popular, assim como a Guerra do Gás, em 2003. O ciclo de revoltas e transformações refluiu de alguma forma na eleição do primeiro presidente indígena do país, Evo Morales, e na Assembleia Constituinte que elaborou, por fim a CPE promulgada em 2009.

45 Até por fazer parte da CSUTCB, a CRSUCIR mantém uma relação “orgânica” com o MAS­-IPSP, mas esse vínculo não a impediu de dar preferência pela AIOC, em vez de se contentar com as estruturas político­-partidárias e burocrático­-institucionais já existentes. Tanto que uma liderança importante de Raqaypampa, o masista Melécio Garcia, já tinha sido eleito e atuava como prefeito de Mizque, município ao qual o território indígena originário camponês pertencia antes da autonomia confirmada.

46 A Lei de Educação 070, de 2010, estabelece marcos para uma educação intercultural e plurilíngue, que reflete em seus conteúdos as realidades dos povos indígenas originários camponeses da Bolívia. Carrega o nome dos educadores Avelino Siñani e Elizardo Pérez (fundadores da histórica Escola de Warisata, pioneira na implementação, ainda no início da década de 1930, de proposta educacional a partir dos ayllus (as formas andinas de organização social, política, econômica e cultural), (cf. na íntegra: http://www.minedu.gob.bo/index.php/pages/documentos-normativos-minedu/233-leyes/1524-ley-avelino-sinani-elizardo-perez).

47 Jampiris são, por aproximação, curandeiros das comunidades, que conhecem em particular as ervas, os frutos da natureza e manejam formas de preparação e aplicação da medicina tradicional.

48 Yatiris são, também por aproximação, algo mais próximo aos pajés, dotadas de dons espirituais.

49 Entrevista realizada em 19 de março de 2014, na comunidade de Raqaypampa.

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