SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número113Tudo pode mudar. Capitalismo vs. clima índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.113 Coimbra set. 2017

 

RECENSÃO

Pereira, Ricardo Araújo (2016), A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar: uma espécie de manual de escrita humorística

 

Afonso Bento

Doutorando em Antropologia no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA, polo ISCTE-IUL)  Av. Forças Armadas, Edifício ISCTE-IUL, sala 2W2, 1649-026, Lisboa
afonso.de.castro.bento@gmail.com

 

Pereira, Ricardo Araújo (2016), A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar: uma espécie de manual de escrita humorística. Lisboa: Tinta-da-China, 112 pp.

 

 

No seu novo livro, Ricardo Araújo Pereira (RAP) propõe-se pensar a natureza do humor. O título da obra, que convoca a “morte” para o início de uma anedota, é revelador da forma como o autor o irá fazer: explorando a ligação inextricável do humor com a dor e o sofrimento. RAP encontra no sentido de humor um mecanismo destinado a manipular e a iludir o medo que temos da “doença”, do “sofrimento” e da “morte”. Um atributo funcional – algo parecido com um instinto de sobrevivência – que desenvolvemos de forma a conseguir fazer face a uma sempre latente angústia existencial. De facto, já nas suas conclusões, RAP chega a defender que é a consciência da nossa própria finitude que nos torna capazes de rir; e o medo da morte que nos motiva a fazê-lo.

Dito isto, não deixa de ser curiosa a forma como este título acaba por esconder do leitor uma parte importante do argumento: a ideia de que o humor é uma ferramenta epistemológica. Ou seja, o humor e comédia constituem, na verdade, uma forma específica de pensar e revelar a realidade. RAP (p. 39) afirma: “Esta é a minha hipótese: [o] sentido de humor, é […] um modo especial de olhar para as coisas e de pensar sobre elas”. Para o autor, este “modo de olhar” é posto em prática em dois momentos diferentes: primeiro, com a adoção de um “ponto de vista experimental” e, depois, com a consequente revelação de aspetos ocultados pelas formas viciadas de olhar o real. Rimo-nos, portanto, quando são reveladas as fraquezas e insuficiências das lógicas de que habitualmente dependemos para processar a experiência.

A obra começa com um “Preâmbulo relativamente inútil”, em que são sucintamente explicadas as principais teorias formuladas para compreender o humor, e prossegue com “Algumas considerações um pouco mais proveitosas”, onde são apresentados os principais argumentos do autor sobre o assunto. Os restantes capítulos do livro, sempre curtos e ricos em exemplos concretos, leem-se como um manual de utilização do humor enquanto ferramenta epistemológica. Ou seja, tal como indica o subtítulo da obra, cada capítulo corresponde à descrição de um procedimento que permite pôr em prática uma perspetiva humorística.

No capítulo “Opor uma coisa a outra”, é explorado o exercício da contradição. É cómico, por exemplo, quando um tema notoriamente pouco importante recebe um grau de atenção desproporcional; quando são opostas duas figuras de personalidade contrastantes; ou, ainda, quando existe uma diferença clara e percetível entre o que um sujeito diz e faz.

 De seguida, o autor explica como “Imitar uma coisa” pode ser proveitoso do ponto de vista humorístico. O processo é simples, mas “perverso”, avisa RAP: consiste em escolher algum aspeto de uma pessoa, objeto, discurso, etc. para cuidadosamente imitar e, assim, realçar e ridicularizar. O autor sublinha a crueldade deste método em que o imitado “não está a ser analisado de longe: está, para todos os efeitos, presente, e esvaziado de qualquer poder” (p. 54).

No quinto capítulo, é exposto o procedimento de “virar uma coisa de pernas para o ar”. O autor explica que se trata de exercitar uma “simetria reflexiva” (p. 64), segundo a qual os termos originais de uma situação são cuidadosamente invertidos. É criada, portanto, uma nova situação apenas com recurso aos elementos de uma situação precedente. Trata-se, segundo o autor, de uma operação feita segundo parâmetros rigorosos que deve conseguir produzir uma representação dotada de coerência interna.

No capítulo seguinte, RAP refere como “aumentar uma coisa” também pode ter efeitos cómicos. Este processo corresponde, na verdade, a uma “ampliação”, ou, por outras palavras, a um zoom in. O efeito é o de que, à medida que uma determinada coisa se torna mais percetível e nítida, também se torna excessiva, grotesca e ridícula.

Seguidamente, o autor analisa os efeitos de “Mudar uma coisa para outro sítio”. Este é um procedimento que consiste em tirar uma “peça” – i.e. uma personagem, um facto, um enredo ou um raciocínio – e alocá-lo noutra “engrenagem” – i.e. um contexto, uma narrativa ou uma lógica. Mais uma vez, trata-se de um procedimento que depende de uma operação lógica cuidadosa. Ou seja, a troca deve fundar uma nova coerência a partir de um realinhamento improvável de elementos preexistentes. RAP (p. 85) dá o exemplo de Aristipo de Cirene que, quando foi acusado de não amar o filho que ele próprio gerou, “respondeu que também gerava expetoração e, sendo ela inútil, a repelia igualmente para o mais longe possível.”.

Finalmente, a última operação descrita por RAP é a de “Repetir uma coisa”. Segundo o autor, o efeito cómico da repetição reside, em primeiro lugar, na forma como ela consegue “transformar uma bagatela numa instituição”. Ou seja, a forma como a discussão exaustiva de um tema – por muito insignificante que seja – lhe atribui uma importância excessiva e, portanto, cómica. Em segundo lugar, a forma como a repetição consegue acentuar ou revelar o “caráter monomaníaco de uma figura”, produzindo, dessa forma, uma semelhante visão de desproporcionalidade e excesso.

Este livro reveste-se de uma importância simultaneamente política e científica. Em primeiro lugar, é publicado numa altura em que o humor assume particular relevância enquanto terreno de disputa política e ideológica. A candidatura e eleição de Donald Trump, cujos ecos também se fizeram sentir no debate público português, colocaram novos pontos de interrogação sobre o que é esperado e exigido dos comediantes. Será a sátira ainda uma ferramenta política útil em contextos de mediatização altamente direcionados? Ou – ecoando as recentes discussões em torno do politicamente correto – até que ponto deverão os humoristas ser avaliados pelas dimensões morais e políticas do seu trabalho, e não só pelo sucesso que têm, ou não, em induzir o riso? Este livro constitui um ponto de partida importante, e sério, para pensar qual a expectativa que queremos depositar sobre a comédia e a sátira.

Em segundo lugar, e apesar de o autor ser um comediante de profissão, eu diria que este livro constitui um contributo importante para as ciências sociais, e, em particular, para a antropologia. A verdade é que RAP inaugura uma linha de análise do fenómeno humorístico que pode revelar-se imensamente produtiva do ponto de vista antropológico. Quando Pina Cabral (2000)1 se propôs a reequacionar a relação hierárquica que é geralmente estabelecida entre as noções de “margens” e “centro”, argumentou que as interpretações legítimas da vida social se constroem em relação de contradição com as que permaneceram ilegítimas. Mais: se é verdade que a vida social tende a reger-se por um conjunto restrito de significados legítimos, os indivíduos não deixam de adivinhar o vocabulário mais abrangente que ficou arredado. Diz este autor: “A hegemonia é como o foco teatral que, banhando de luz intensa uma área específica do palco, transforma o resto numa relativa penumbra” (ibidem: 875). Nesse sentido, não é tanto o centro que dita as margens; mas sobre as margens que se constrói o centro. Ora, RAP encontra o humor justamente nos interstícios dos significados culturais legitimados e nos reducionismos inerentes às visões do mundo. Naquilo que é marginal relativamente ao entendimento “normal” das coisas. Nesse sentido, o que o autor acaba por propor é que pensemos o humor enquanto forma produtiva de que os indivíduos dispõem para explorar as contradições inerentes à estruturação dos significados sociais.

 

NOTAS

1 Pina Cabral, João (2000), “A difusão do limiar: margens, hegemonias e contradições”, Análise Social, XXXIV, 865-892.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons