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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.108 Coimbra dez. 2015

 

RECENSÕES

Freire, André (2014), Austeridade, democracia e autoritarismo

 

Pablo Almada

Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Londrina (UEL). Rodovia Celso Garcia Cid, PR‑445, Km‑380, Campus Universitário, 86057‑970, Londrina, Paraná, Brasil pabloera@gmail.com

 

Freire, Andre (2014), Austeridade, democracia e autoritarismo. Lisboa: Nova Vega, 152 pp. 177-180

 

Compreender a complexidade do sistema político português, em um momento de crise econômica e política, é o desafio proposto pelo cientista político André Freire nesta obra. Professor do ISCTE-IUL e investigador do CIES-IUL, Freire tem como seu objeto de estudo os temas de comportamento político, sistemas eleitorais, representação e instituições políticas, participando amplamente nos debates públicos e políticos de Portugal. Austeridade, democracia e autoritarismo é uma compilação de vários artigos publicados entre 2007 e 2014, em sua coluna do jornal Público. A obra apresenta uma visão crítica sobre os dilemas concernentes ao sistema político e aos partidos, além do questionamento do futuro da democracia portuguesa e europeia.

Os artigos apresentados confluem com momentos-chave de conjuntura, enfatizando os efeitos do neoliberalismo e da governação “austeritária” na política partidária, na democracia, na vida concreta dos cidadãos e os desafios políticos para a Europa. O argumento central da obra parte do entendimento de que a condução do sistema político português enfrenta uma crise de governabilidade – fator que oferece um olhar ampliado sobre os desafios dos partidos políticos e da esquerda, frente aos cortes orçamentários nas políticas sociais e aos resultados diretos na educação, na saúde e no trabalho. Essa percepção indica que, para que sejam superados os problemas estruturais do sistema político e da conjuntura específica, seria necessária uma articulação de fatores internos (crítica da governabilidade austeritária, rearticulação das esquerdas, reforma política) com fatores externos (democracia europeia). Sua visão destrincha os meandros de uma alternativa política concreta e de oposição à atual conjuntura econômica e política, o que o autor faz de forma coerente e exemplar.

No primeiro momento da obra (“A democracia sob o fogo da Troika e da governação austeritária”), Freire analisa como a crise econômica recente conduziu a uma grave crise na democracia portuguesa. Tomando como eixo o “bloqueamento do sistema político” (p. 20), as políticas seguidas pelo Partido Social Democrata (PSD, no governo desde 2009) tiveram uma articulação aos ajustes econômicos impostos pela Troika, medidas que não foram sufragadas eleitoralmente. A aceitação do programa das instituições financeiras implicou na sistemática liberalização do Estado e seu recuo nas áreas sociais, além do controle das relações de trabalho e aumento do desemprego, sobretudo das camadas mais jovens e qualificadas da população. A governabilidade exercida pelo PSD, de caráter “ultraliberal”, encontrou campo aberto pelo legado do Partido Socialista (PS), que nos últimos anos de governo empreendeu medidas de liberalização que o aproximou da direita.

O segundo conjunto de artigos (“Política de alianças e dimensões de conflito: dilemas das esquerdas”) procura apresentar os fatores que conduziram a uma crise das esquerdas portuguesas. Seguindo uma tipologia analítica da esquerda – Freire, André; March, Luke (2012), A esquerda radical em Portugal e na Europa: Marxismo, mainstream ou marginalidade? Porto: Quidnovi – Freire aponta que parte dos problemas referentes à governabilidade austeritária tiveram origem nas dificuldades da esquerda portuguesa em se afirmar como oposição. Os motivos seriam a pendência do sistema eleitoral português à direita, o “centrismo” do PS e seu alinhamento com a direita, a impossibilidade de alianças entre as esquerdas e sua desradicalização. Esses fatores geraram um entrave eleitoral, onde as esquerdas perderam seus votos nas últimas eleições (especialmente nas autárquicas). Nesses meandros, o ensaio de outras alternativas, como as “listas de cidadãos” para as disputas autárquicas merecem destaque. Mesmo assim, coloca-se o desafio às esquerdas (PS, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) em efetivar alianças.

A análise do sistema eleitoral português é o tema da terceira parte (“Os portugueses, a política e a sua reforma”). Freire inicia o debate refletindo sobre os resultados do estudo sobre o sistema eleitoral e as possibilidades de reforma – Freire, André; Meirinho, Manuel; Moreira, Diogo, (2008), Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral. Lisboa: Sextante. Ao analisar os modelos dos outros sistemas políticos europeus, constata-se que, em Portugal, há um problema na qualidade da representação, por constituir um sistema de “listas fechadas e bloqueadas, conjugadas com um único segmento” (p. 79). Perante esse diagnóstico, propõe a “representação proporcional de múltiplos segmentos”, que fortaleceria a aproximação entre eleitos e eleitores, além de manter os níveis de proporcionalidade e governabilidade. Para isso, Freire apresenta duas propostas que permitiriam a revalorização do sistema político: uma “moção de censura construtiva” (um governo somente poderia cair caso houvesse uma proposta alternativa, reforçando a estabilidade de governos minoritários); e a permissão para “coligação de listas” em nível nacional (permitindo a cooperação entre listas e conversão de votos em mandatos). Se o atual sistema dificulta a personalização dos votos, por conta das listas fechadas, há uma defesa do “voto preferencial” para aproximar o eleitor de seus eleitos. A alternativa proposta é a de um sistema misto, com círculos uninominais e plurinominais, e, um círculo nacional, que, conjuntamente, resolveriam os problemas de proporcionalidade. A reforma eleitoral teria, segundo o autor, o objetivo de aproximar os portugueses de seus representantes e exigir uma mudança de atitude, além de reforçar a governabilidade.

No último excerto (“A Europa e a política internacional”) são debatidos os desafios atuais da Europa (o modelo social, a política externa e a democracia), bem como a crise neoliberal (e suas alternativas) e o esfacelamento da “ideia” de Europa. Os argumentos questionam se a ideia de coesão social e política, encabeçadas pela integração social, pela regulação do mercado e por uma política social-democrata não estaria sendo sufocada pela crise do neoliberalismo dos últimos anos. Constata-se que a autonomia do sistema financeiro, que subordina as esferas sociais e políticas em prol da desregulação capitalista, tem se constituído problema fundamental da coesão europeia. Para o controle do capitalismo financeiro, uma repactuação do modelo de Estado pode ser oferecida como alternativa ao neoliberalismo. Porém, velhos problemas que ganharam nova roupagem também devem ser repensados: a possibilidade de Estados multinacionais, o respeito pela ordem política internacional, o separatismo e a religião na esfera pública.

Ao longo de Austeridade, democracia e autoritarismo, uma visão bastante lúcida da realidade política portuguesa e europeia é apresentada, procurando caminhos para a renovação. As alternativas passam por atribuir um novo papel para as esquerdas, as quais são prudentemente criticadas de forma construtiva. Resta saber quais as articulações possíveis entre democracia representativa e democracia participativa, algo que escapa da análise do autor. A reforma do sistema eleitoral ganha grande enfoque, mas coloca em dúvida se, ao serem aplicadas formulações eleitorais semelhantes às de outros países (sobretudo dos países nórdicos), seria possível dar conta de tal lacuna. O incentivo representativo é válido, mas deve ser considerada a especificidade de anos de ausência de participação política, uma herança dos anos de autoritarismo salazarista. Notadamente, o autoritarismo neoliberal é de uma nova roupagem, no que tange ao controle do Estado sobre a sociedade civil, mas compartilha da premissa econômica de que a defesa de um modelo de desenvolvimento (no Estado Novo, o colonialismo; na democracia contemporânea, o neoliberalismo austeritário) deve ser seguido sem a necessidade de legitimação eleitoral. Essa prática aumenta os riscos para as sociedades do Sul da Europa, que se colocam à margem do modelo europeísta do centro. Assim, as instâncias representativas ficam cada vez mais reféns de despolitização e do afastamento político, como aponta Freire. Mas o desafio é suprir essa lacuna, fato que se pode orientar por outros dois caminhos: um debate comparativo do presente e do passado, procurando identificar os problemas políticos que persistem (domínio das oligarquias e elites políticas, alijamento das classes trabalhadoras e populares, de jovens e imigrantes na participação política, etc.); e a presença de uma sociologia e ciência política “pública”, de intervenção e engajamento – fato que a presente obra cumpre com rigor. Não há dúvida de que se trata de uma grande reflexão, de leitura obrigatória quando o assunto é a busca de alternativas políticas.

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