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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.108 Coimbra dez. 2015

 

RECENSÕES

López de la Vieja, Maria Teresa (org.) (2014), Bioética en plural

 

Maria do Céu Pires

Instituto de Investigação e Formação Avançada (IIFA), Universidade de Évora.Palácio do Vimioso, Largo Marquês de Marialva, Apartado 94, 7002-554 Évora, Portugal ceupires@gmail.com

 

López de la Vieja, Maria Teresa (org.) (2014), Bioética en plural. Madrid: Plaza y Valdés Editores, 350 pp.

 

Bioética en plural é uma obra coletiva organizada por Maria Teresa López de la Vieja e inclui diversos estudos, abordando diferentes aspetos daquela que é a “mais radicalmente contemporânea das disciplinas” (p.7), a bioética. Professora catedrática de Filosofia Moral na Universidade de Salamanca, Maria Teresa López de la Vieja é autora de várias obras sobre estas temáticas, das quais se destacam: Princípios morales y casos prácticos (2000), Ética y literatura (2003), La mitad del mundo. Ética y crítica feminista (2004), Bioética y ciudadania (2008), La pendiente resbaladiza (2010) e Bioética y literatura (2013).

Bioética en plural é constituída por uma apresentação seguida de três partes: “I – Bioética. Figuras, instituciones”; “II – La salud y la vida” e “III – Bibliografía”.

A Parte I é constituída por um conjunto de quatro estudos. O primeiro, de Stuart J. Youngner, analisa os diferentes papéis que um especialista em bioética pode desempenhar e os vários conflitos daí decorrentes. Depois de clarificar a definição de cada um desses papéis – erudito, ativista e político – o autor faz o inventário de alguns dos possíveis “choques”, pois há normas específicas inerentes a cada um deles que podem, por vezes, colidir.

No segundo e no quarto estudo, o tema em debate incide na questão dos Conselhos de Ética a partir das reflexões de Maria Teresa López de la Vieja e de Maria Fernanda Henriques.

A partir do relato da experiência pessoal do ator britânico Dirk Bogarde, relacionada com os seus problemas de saúde e com as suas convicções sobre a eutanásia, Maria Teresa López de la Vieja sugere um conjunto de indicações sobre como deverá ser a constituição de um Conselho de Ética. Recorre à tipologia de Max Weber para a atividade política e, aplicando-a à área da bioética, distingue os participantes em vários tipos: profissionais, semiprofissionais e ocasionais. A autora defende que um comité de ética não pode ser entendido como mera agregação de várias contribuições individuais, mas antes como um espaço intersubjetivo de deliberação prática, incluindo especialistas e não especialistas. Neste sentido, sublinha a relevância da presença de especialistas em filosofia pela sua familiaridade com a prática da argumentação. Competências como análise crítica, confronto de diferentes teorias e argumentos, interpretação e mediação são decisivas nos processos de deliberação inerentes aos comités de ética.

No seu trabalho “La Bioética en Portugal: perspectivas”, realizado com a colaboração de Paula Martinho da Silva, Maria Fernanda Henriques situa o início da reflexão bioética em Portugal na década de 1980, um começo que, embora tardio, esteve ligado ao Centro de Estudos de Bioética em Coimbra, cuja atividade se desenvolve a partir de 1988. O artigo dá conta, de uma forma pormenorizada, desses desenvolvimentos nos vários planos, e destaca a constituição em 1990 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), considerando que este representa uma viragem significativa na reflexão bioética em Portugal. Na análise que realiza, Maria Fernanda Henriques observa que a reflexão sobre a ética e a bioética é escassa na sociedade portuguesa, o que também se refletiu no funcionamento interno do CNECV. Entre as várias razões explicativas é apontada a fragilidade do espaço público em Portugal, o que suscita alguns receios relativamente ao futuro da bioética no nosso país.

Ainda na Parte I da obra é incluído o estudo de Ion Arrieta Valadero sobre o funcionamento do princípio de autonomia em bioética. Reportando-se à polémica entre Gerald Dowrkin e Onora O’Neill sobre a autonomia na sua relação com a confiança, o autor analisa algumas das diferentes perspetivas em confronto: autonomia pessoal, autonomia moral (de princípios), autonomia relacional e autonomia naturalizada (corporizada) e a sua incidência na ética assistencial e na ética da investigação biomédica.

A Parte II da obra “La salud y la vida” é constituída por um conjunto de cinco estudos dedicados a questões mais específicas no domínio da bioética, como sejam a doação de órgãos, as políticas de transplante ou o aborto.

David Rodriguez-Arias analisa as políticas de transplante, os meios e as carências existentes, assim como a perceção social acerca dos mesmos. Constata-se que a escassez de órgãos é, hoje, uma dificuldade, e que as várias estratégias para a enfrentar devem ser sujeitas a discussão, pois embora a sua finalidade seja salvar vidas, não deixam de colocar inúmeros problemas éticos. Na verdade, os maiores obstáculos que se colocam relativamente à disponibilidade de órgãos são mais de carácter ético e social do que propriamente técnico. Rodriguez-Arias analisa essa problemática nas suas diferentes dimensões e sugere algumas estratégias que podem ser: incentivos económicos, tomadas de posição relativas à determinação do final da vida, processo de consentimento para a extração, sistema de distribuição de órgãos extraídos, critérios para determinar quem pode ser dador.

Rosana Triviño Caballero dedica o seu artigo à análise de legislação, concretamente o Real Decreto-lei 16/2012. A aplicação desta lei tem, entre os seus efeitos, um que conduz à segregação da população, pois nega a assistência médica a um grupo (imigrantes ilegais) com base na sua situação administrativa. Na perspetiva da autora, esta disposição põe em causa o direito básico à assistência na saúde, sendo, por isso, expressão de um retrocesso social em Espanha.

Lizbeth Sagols parte da análise da perspetiva da ecofeminista Val Plumwood sobre a opressão de género e da natureza, no seu confronto com a teoria crítica do patriarcado, para tentar mostrar como as questões de género e a destruição da natureza se enraízam numa visão dualista que caracterizou a cultura patriarcal. Na perspetiva desta teoria, o patriarcado não é exclusivamente ocidental e é anterior ao colonialismo. Nas considerações finais do seu artigo, Lizbeth Sagols chama a atenção para o facto de que, não ignorando o peso do colonialismo, será importante sublinhar que o extermínio da natureza resulta de uma conceção hierárquica/inferiorizante que separa o ser humano dos outros seres, considerados mais débeis. Neste sentido, propõe a aprendizagem de uma outra forma de relacionamento entre os seres humanos e destes com a natureza. O que passará por nos compreendermos como seres de relação, seres que, em liberdade, constroem uma igualdade básica. Significa isto que deveria emergir uma nova identidade ética, sustentando-se no cuidado e na responsabilidade face a todos os seres vivos, entendidos todos como portadores de interesses e necessidades e dignos de atenção e de respeito.

No último estudo da parte II, “Los grados del vivir”, da autoria de Lorenzo Peña y Txetxu Ausín, é apresentada uma perspetiva sobre a vida (e o seu surgir) considerando-a como um continuum, algo que se desenvolve por estádios. Assim, e tendo em consideração o valor da vida humana que é hoje consensualmente admitido, a questão debatida refere-se à licitude do aborto. O que está em causa é a determinação de um momento que possa ser considerado como “fronteira”, ou seja, estabelecer um momento em que não existiria ainda vida humana e o momento em que esta já existisse. Na sequência da exposição de diferentes respostas, os autores do artigo sugerem uma proposta gradualista, baseada no seguinte princípio: “Em cada novo passo, é maior o seu grau de existência e menor o da não existência” (p. 254). A partir desta perspetiva, analisam a interrupção da gravidez segundo graus de legitimidade e ilegitimidade e dos diferentes direitos que podem estar em conflito.

Por último, na Parte III, Alberto Molina Perez faculta uma extensa bibliografia sobre temas de bioética, editadas em língua castelhana entre 2005 e 2013. Este conjunto de referências bibliográficas constitui um bom instrumento de trabalho para todos/as os/as investigadores/as nesta área, sendo um dos aspetos mais significativos da obra.

Pelo exposto parece-me ser possível concluir que estamos perante uma obra de grande utilidade para quem trabalha em bioética, mas também para os/as investigadores/as das diferentes áreas disciplinares que se entrecruzam nesta reflexão. De igual modo, o seu interesse deve estender-se ao público em geral, dado que os temas tratados nos vários artigos dizem respeito a qualquer pessoa que já se encontre ou potencialmente possa vir a encontrar-se afetada por este tipo de decisões. Na verdade, as questões da saúde e da doença, da vida e da morte são questões a que nenhum ser humano pode ficar indiferente. As inúmeras possibilidades técnicas que hoje se colocam e, em simultâneo, os inúmeros riscos, exigem de cada um de nós informação, reflexão e participação.

O pluralismo e a diversidade, características da sociedade contemporânea, são também características da bioética, e constituem-se, igualmente, como o distintivo desta obra e como justificativo do título Bioética en plural. Contudo, Maria Teresa López de la Vieja não deixa de lembrar que, a partir do diálogo entre as diferentes perspetivas a que a obra dá voz, se podem estabelecer pontes. A diversidade não é para separar, para atomizar, mas para articular. A racionalidade é um espaço de conflitualidade e de controvérsia, sendo na vivacidade do debate que podemos encontrar novas possibilidades. Penso ser esta a grande lição que fica para quem lê Bioética en plural.

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