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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.106 Coimbra maio 2015

 

RECENSÕES

Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena (orgs.) (2013), As Guerras de Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas imaginados

 

Carolina Barros Tavares Peixoto

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal carolinapeixoto@ces.uc.pt

 

As Guerras de Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas imaginados. Maria Paula Meneses, Bruno Sena Martins

Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena (orgs.) (2013), As Guerras de Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra: CES/Almedina, 191 pp.

 

Como uma prévia das comemorações pelas quatro décadas do 25 de Abril, data que marcou o início do fim da Guerra Colonial/de Libertação Nacional travada entre o Exército colonial português e os braços armados dos movimentos que lutavam pela completa e imediata independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, veio a público “um livro pioneiro sobre a história recente de Portugal e dos países que estiveram sujeitos ao colonialismo português” (p. 9), como bem define Boaventura de Sousa Santos no prefácio da obra.

Aproveitando o término do período de quarentena de um vasto acervo documental sobre o Exercício Alcora – “uma aliança nunca publicamente reconhecida, estabelecida entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal” (p. 16) – outrora classificado de “Muito Secreto” ou “Top Secret”, um grupo formado por historiadores, antropólogos, sociólogos e militares que são, antes disso, mulheres e homens nascidos em Portugal, Angola e Moçambique no “tempo colonial”, apresenta ao público os resultados de suas pioneiras investigações exploratórias destas e outras fontes de informações sobre a última fase da presença colonial portuguesa em África. As análises críticas produzidas por estes investigadores e reunidas neste livro contribuem para desvelar o que foi ocultado, tanto pelo que foi dito como pelo que foi silenciado, na maior parte das narrativas anteriormente escritas sobre a história contemporânea de Portugal e dos países da África Austral.

Ao apresentar a temática geral tratada no livro e justificar a contribuição trazida por cada um dos capítulos, como é de praxe numa obra coletiva, a introdução “O Exercício Alcora no jogo das Alianças Secretas” (pp. 15-27), pela qual respondem os organizadores Maria Paula Meneses e Bruno Sena Martins, cumpre a importante função de alertar os leitores de que muito permanece por dizer não só sobre os contornos da Guerra Colonial e das lutas nacionalistas, mas também e, principalmente, sobre suas implicações geoestratégicas no palco africano em contexto da Guerra Fria. E esta talvez seja uma das contribuições mais relevantes da obra em questão: enfatizar, para resgatar do esquecimento, o fato de que “o palco africano foi um dos espaços mais devastados pelos conflitos violentos da última fase da Guerra Fria” (p. 16).

Verdade seja dita, cada um dos capítulos pode ser perfeitamente lido em separado sem prejuízos de maior para sua compreensão individual. Entretanto, explorar o livro como um todo é o que de fato permite ao leitor ter acesso ao complexo panorama das Guerras de Libertação que se opuseram aos sonhos coloniais na África Austral. Além disso, a complementaridade existente entre alguns capítulos é notória. Por exemplo, os dois primeiros capítulos têm em comum o tema da violência. Ambos contribuem para a desconstrução de narrativas onde a ditadura portuguesa, bem como a sua política colonial, tem sido retratadas como ‘brandas’ por refletirem a ideia de que Portugal sempre teria sido ‘um país de brandos costumes’.

No primeiro capítulo, “Violência, testemunho e sociedade: Incómodos e silêncios em torno da memória da Ditadura” (pp. 29-39), Miguel Cardina recorda aos leitores o fato de que a ditadura portuguesa, como qualquer outra, também se ancorou “na censura, na limitação das liberdades e na criminalização do político” (p. 32) aplicando uma cuidadosa gestão entre ‘violência preventiva’ – sustentada na intimidação, na dissuasão e no medo, e ‘violência punitiva’, embora os casos de repressão direta, incluindo prisões e recurso à tortura, incidissem sobre um número mais escasso de indivíduos. Isto no que dizia respeito ao contexto metropolitano, que é o abordado pelo autor.

Já o segundo capítulo, “O Olho do Furação? A África Austral no contexto da Guerra Fria (década de 70)” (pp. 41-58), escrito por Maria Paula Meneses, enfatiza a violência que atingiu a África Austral na segunda metade do século xx, ou seja, no contexto da Guerra Fria. De acordo com a autora, trata-se de “uma história de violência que não é separável dos dois projetos expansionistas celebremente opostos – o bloco capitalista e o bloco socialista” (p. 44). Para demonstrar a influência desta disputa global nos conflitos que tiveram lugar no cone austral de África, Maria Paula Meneses parte de uma detalhada análise das estruturas económicas e políticas ali presentes nos finais da década de 1960. Altura em que, na África do Sul não só a política, mas também a economia, em expansão e crescentemente ligada ao capital internacional, eram controladas por uma burguesia branca, minoritária. Na Rodésia a situação era semelhante. Neste contexto, a difusão de ideias comunistas e nacionalistas na África Austral colocaram em causa o projeto de dominação branca na região. Projeto que vários defensores do apartheid consideravam ser um modelo de paz e progresso. Esta perspectiva encontrou forte respaldo em Portugal e nos EUA, tanto que estes países transformaram a África do Sul do apartheid num aliado poderoso nos confrontos da Guerra Fria. “E aqui se pode encontrar uma das justificativas para o avanço do Exercício Alcora” (pp. 51-52), afirma a autora, uma vez que a solução apostada para travar o avanço dos movimentos nacionalistas na África Austral, considerados como um inimigo comum pois reivindicavam a queda dos regimes minoritários, foi o reforço das alianças económicas e militares entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia, oficializada discretamente através do Exercício Alcora. Reforço porque, como as várias fontes citadas ao longo deste capítulo demonstram, mesmo antes da constituição desta aliança secreta, a Rodésia e a África do Sul já colaboravam com o Exército colonial português em operações contra os movimentos nacionalistas que tinham lugar nos territórios angolano e moçambicano.

O terceiro capítulo, “Regressos? Os retornados na (des)colonização portuguesa” (pp. 59-107), de Maria Paula Meneses e Catarina Gomes, explora as complexidades inerentes à constituição e à dissolução das colónias de povoamento português em Angola e Moçambique. Ao revisitar a questão da identidade de retornado e observar os percursos de sujeitos socialmente inscritos nesta categorização histórica elencando, em paralelo, a situação de outros migrantes da descolonização que dela foram excluídos, as autoras demonstram que “a problemática da descolonização portuguesa constitui ainda hoje um vasto espaço para questionamentos múltiplos de cariz histórico e sociológico” (pp. 106-107).

No quarto capítulo, “Exercício Alcora: um projeto para a África Austral” (pp. 109-122), Aniceto Afonso apresenta uma visão panorâmica da importância da instauração do Exercício Alcora para a manutenção da Guerra Colonial, bem como do grau de sedimentação desta aliança – apesar da condição de secretismo que os portugueses sempre fizeram questão de manter, e de sua repentina dissolução, provocada pelo 25 de Abril. Esta visão geral aguça a curiosidade do leitor sobre o tema que mais à frente, no sexto capítulo, “Relações entre Portugal, África do Sul e Rodésia do Sul e o Exercício Alcora: Elementos fundamentais na estratégia da condução da guerra – 1960-1974” (pp. 143-169), Amélia Neves de Souto explora em profundidade. Ao analisar um impressionante número de documentos relativos ao Exercício Alcora, Amélia Souto esmiúça em detalhe o funcionamento desta aliança e as particularidades da sua aplicação prática no terreno, com especial destaque para o impacto da intensa participação de forças rodesianas em várias ações militares, geralmente marcadas por excessos de violência que vitimavam inclusive a população civil, realizadas em Moçambique.

Embora o quarto e o sexto capítulos apresentem uma maior conexão entre si, o quinto capítulo, “A africanização na Guerra Colonial e as suas sequelas. Tropas locais – Os vilões nos ventos da História” (pp. 123-141), da autoria de Carlos de Matos Gomes, não merece passar despercebido. Depois de resgatar os antecedentes que explicam em que bases esteve ancorada a estratégia de ‘africanização da guerra’, isto é, de recrutamento local de soldados para o Exército colonial português, que em Angola e Moçambique chegaram a representar mais da metade do total de efetivos militares mobilizados, o autor discorre sobre o modo como os novos poderes procedentes dos movimentos de libertação lidaram com as estruturas coloniais e os seus agentes, sobretudo os militares, após as independências. Uma leitura atenta deste capítulo revela a necessidade de lançarmos novas perguntas ao passado com a intenção de compreender, de fato, as múltiplas facetas da violência que assolou Angola e Moçambique depois de conquistadas as independências.

O sétimo e último capítulo, “Estilhaços do Exercício Alcora: O epílogo dos sonhos coloniais” (pp. 171-177), da autoria de Maria Paula Meneses, Celso Braga Rosa e Bruno Sena Martins, anuncia a infinitude do fim do projeto colonial sintetizado no Exercício Alcora, mas também do trabalho que deu origem ao próprio livro. Ao lembrar que os efeitos da aliança entre Portugal, África do Sul e Rodésia, mantida em segredo até há pouco tempo, se fizeram notar muito para além da Guerra Colonial portuguesa nos conflitos que marcaram a trajetória dos países da África Austral da segunda metade dos anos 1970 até ao princípio deste século, os autores identificam um vasto campo de investigação que ainda está por explorar. Assim sendo, é de se esperar que a divulgação deste livro produza efeitos que reverberem muito para além dele.

Uma última qualidade do conjunto da obra aqui apresentada merece ser destacada. É preciso reconhecer que o livro em questão presta um importante serviço de utilidade pública, pois representa um contributo ao respeito pelo direito à justiça histórica, uma vez que desmascara a inverdade fabricada pelas narrativas estabelecidas que vendiam a imagem de um ‘Portugal orgulhosamente só’ em África. A vasta documentação que serve de base para as análises contidas nesta publicação não deixa espaço à dúvida quanto ao fato de que, desde meados da década de 1950, Portugal sempre contou com uma rede internacional de apoio na luta contra a expansão dos movimentos nacionalistas africanos. Portanto, este discurso que enfatizava o suposto esforço solitário do Estado colonial-fascista português para manter a nação-império não passava de uma propaganda ideológica que contradizia a realidade.

Porque, como Boaventura de Sousa Santos chama-nos a atenção no prefácio, “não se pode compreender o 25 de Abril sem a corrosão física e emocional que a Guerra Colonial significou para os que foram parte da violência que foi cometida em África; não se pode compreender a ‘Guerra Fria’ sem os ‘momentos quentes’ constituídos pelas guerras patrocinadas no Sul global em nome da manutenção da presença colonial-capitalista; e não se podem compreender as ‘guerras civis’ que continuaram a deflagrar na África Austral sem referência à aliança colonial e aos interesses das potências capitalistas globais que, naquela região, haveriam de sobreviver à queda do Império português” (p. 11), a leitura desta obra recomenda-se.

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