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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.103 Coimbra maio 2014

 

RECENSÃO

Standing, Guy (2011), The Precariat. The New Dangerous Class

 

José Soeiro*

Doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal josemourasoeiro@gmail.com

 

Standing, Guy (2011), The Precariat. The New Dangerous Class. London: Bloomsbury, 198 pp.

 

Poucos autores que se debruçam sobre os temas do trabalho terão tido, nesta década, o impacto de Guy Standing. O seu livro The Precariat (2011) tornou-se num fenómeno que animou o debate muito para lá dos tradicionais espaços académicos. A grande tese da obra é que estamos perante a emergência de uma nova classe em formação (“class-in-the-making”), o precariado, distinta do proletariado ou da classe operária (“working class”). Esta classe precisaria de encontrar a sua agenda política e formas próprias de representação. O livro de Standing pretende justamente dotar o “precariado” de uma explicação sobre a sua origem, de uma definição dos seus antagonistas e de um programa de ação.

 

O precariado como classe

O autor avança três critérios para definir o precariado. O primeiro passa pela relação com as várias formas de segurança garantidas pelo contrato social do pós-Segunda Guerra Mundial. Standing identifica sete: segurança no mercado de trabalho, no emprego, na profissão, no trabalho, na reprodução de competências, segurança de rendimento e de representação (p. 10). O precariado seria a classe que não beneficia de nenhum destes tipos de segurança.

O segundo critério é a estrutura do rendimento social. Para o economista, o rendimento pode ser dividido em seis elementos: o que resulta da autoprodução, o que provém do salário, o que deriva do apoio comunitário ou familiar, o que se consubstancia em benefícios dados pela empresa, o que se traduz nas transferências oriundas do Estado e, finalmente, os lucros que têm origem em rendas privadas ou ações (p. 11). O precariado seria o grupo cuja estrutura de rendimento está privada destas múltiplas formas, restando-lhe apenas o salário.

O terceiro critério é a ausência de uma “identidade baseada no trabalho”, dado que, ao contrário do que acontecia no passado com a classe trabalhadora, “o precariado não se sente parte de uma comunidade laboral solidária” (p. 12). Fora do contrato social conquistado pelos sindicatos, o precariado teria “características de classe” que o diferenciariam desses outros trabalhadores, justamente por ter relações de confiança mínimas com o Estado e com o capital.

O “precariado”, como nova classe, possuiria assim uma composição e interesses distintos dos outros seis grupos que Standing identifica na estrutura das sociedades atuais: (i) a elite, (ii) os trabalhadores assalariados, (iii) os proficians (contração em inglês das palavras profissionais e técnicos), (iv) a “classe operária”, (v) os desempregados e (vi) os “desajustados” ou o que usualmente se designa por “excluídos” (p. 8).

 

Quem compõe o precariado?

“Pelo menos um quarto da população adulta está no precariado” afirma Standing (p. 24). Mas afinal, quem o compõe? Para além das categorias laborais tradicionalmente consideradas – trabalhadores temporários, a part-time, falsos independentes, o exército dos call centres, estagiários (pp. 14-15) – o autor inclui nesta “nova classe” outros grupos frequentemente invisibilizados: trabalhadores do sexo, minorias étnicas, estudantes endividados, cidadãos portadores de deficiência, pensionistas que voltam ao mercado de trabalho, população penitenciária (pp. 59-88). Este aglomerado de categorias não é obviamente homogéneo. Standing distingue, dentro do precariado, os que fazem parte dele por ausência de recursos e de escolha e os que valorizam as dimensões positivas que esta condição pode oferecer. Um capítulo inteiro é dedicado aos migrantes considerados “denizens” (neologismo que se contrapõe a citizens), isto é, pessoas cuja cidadania é limitada: os trabalhadores “ilegais” mas também aqueles cujo estatuto de “residente” se encontra amputado de direitos sociais, económicos, culturais ou políticos.

Um dos contributos mais interessantes do autor é a reflexão sobre a relação do precariado com o tempo. A tese de Standing poderia ser resumida assim: a tradicional separação entre o espaço de trabalho e o espaço doméstico está posta em causa; as fronteiras entre tempo de trabalho, tempo de lazer e jogo esbatem-se; há uma desvinculação entre uma atividade específica e um determinado espaço; o local de trabalho é cada vez mais também a casa, o carro, o café e, assim, a esfera da privacidade é cada vez mais objeto de controlo (p. 118). Esta dinâmica significa uma intensificação não apenas do tempo de trabalho, considerado na sua aceção mais clássica, mas ainda daquilo que Standing designa, numa terminologia original, de work-for-labour e de work-for-reproduction.

 

Da política do Inferno à política do Paraíso

Época em aberto, o nosso tempo confrontar-se-ia, para Standing, com a hipótese assustadora de uma “política do Inferno”, que estaria já em gestação através de uma sociedade de vigilância crescente, de um Estado liberal-paternalista, de políticas sociais com condicionalidades crescentes, do crescimento do workfare em detrimento da universalidade, do desenvolvimento do populismo, do enfraquecimento da democracia pela mercantilização da política, dominada por formações populistas e neofascistas (pp. 132-151). A esta política do Inferno seria preciso opor uma alternativa. Para Standing, quem pode fazê-lo é o precariado, que “tem de estar institucionalmente representado e reivindicar que as políticas se conduzam por princípios éticos” (p. 166). Garantindo segurança de rendimento e formas próprias de agência, ele poderia desenvolver uma “nova política do Paraíso” (p. 155).

A agenda política de Standing mistura propostas com alcances, lógicas e formulações muito diferentes. Vai do reconhecimento dos direitos de cidadania dos migrantes à criação de uma validação internacional da credenciação; da rejeição da mercantilização da educação à abolição dos subsídios ao capital e ao trabalho; da taxação das mais-valias financeiras a políticas redistributivas dos principais recursos em disputa (segurança económica, tempo, espaço, conhecimento e capital financeiro) (pp. 157-182). É na área do trabalho e do emprego que as suas propostas parecem ser mais ousadas: acabar com todas as formas de distorção do mercado de trabalho enquanto mercado livre, promovendo a sua “total mercantilização” (p. 161); assumir o emprego como “instrumental” e como uma “verdadeira transação comercial” (p. 162); acabar com o fetiche dos empregos e assegurar, pelo contrário, um direito ao trabalho para todos, entendendo-se por trabalho todas as formas de atividades voluntárias, comunitárias e sociais; regular o exercício dessas atividades, criando códigos éticos para todas as comunidades ocupacionais e atividades económicas; estabelecer um rendimento básico universal, individual, incondicional e inviolável que tomaria a forma de um “pagamento mensal modesto” (p. 171).

 

Três notas críticas

O livro de Standing é um relevante e sistematizado contributo para o debate que hoje se faz sobre o trabalho e a proteção social. Parte de um diagnóstico amplo, chama a atenção para aspetos muitas vezes negligenciados e arrisca propostas novas. Mas a sua leitura não deixa de causar perplexidade em alguns aspetos. Referimos três.

  1. Apesar de reconhecer variações internas, Standing tende a referir-se discursivamente ao precariado como um grupo homogéneo. Amiúde o precariado é definido a partir de circunstâncias existenciais, pelas suas escolhas políticas e, por vezes, pelos seus posicionamentos ideológicos, sobretudo relativamente ao mundo sindical. Tendo em conta a diversidade de setores sociais que o próprio autor inclui na categoria (do operário da fábrica deslocalizada ao jovem investigador, da mulher de limpeza ao imigrante sem papéis, do pensionista ao estuante endividado), não será um exagero analítico, ainda que com eficácia retórica, presumir uma tal uniformidade de experiências, de opiniões e de orientações ideológicas dentro deste grupo?
  2. Que o precariado é um sujeito político, parece incontestável. Foi em torno dessa identidade que, na última década e meia, surgiram alguns dos movimentos sociolaborais que mais interpelaram o movimento operário e sindical. Mas isso faz dele uma nova classe? É verdade que os segmentos precários têm formas distintas de sociabilidade, que a comunicação online e o ciberespaço recriaram os modos de construção de comunidades, que a multiplicação de condições e de estatutos laborais coloca problemas difíceis e dá origem a clivagens. Mas os três critérios avançados por Standing para definir o precariado como classe – ausência de segurança, estrutura do rendimento e identidade – parecem exíguos e o autor acentua uma competição com os restantes trabalhadores que é problemática. É evidente que a unidade da classe-que-vive-do-trabalho nunca é um dado adquirido, mas antes um lento trabalho político de universalização a partir de condições sempre diversas. Reconhecendo isso, o que as recentes mobilizações parecem acentuar é mais o potencial de convergência entre os diferentes segmentos da classe trabalhadora, submetidos a um processo de precarização cada vez mais transversal, do que a emergência de uma classe distinta.
  3. Crítico da centralidade que o emprego adquiriu na agenda política progressista, Standing avança uma proposta radical: desconectar o “direito a ter direitos” do trabalho assalariado, que deve ser tratado como mercadoria; desistir do pleno emprego; e instituir um rendimento básico para todos os cidadãos. O debate merece ser aprofundado. O autor previne que este rendimento se trata de “um pagamento mensal modesto” (p. 171). Mas se é o caso, vale a pena lembrar o alerta de um André Gorz que, convertido à ideia, ressalvava que “um rendimento de existência muito baixo é, com efeito, uma subvenção aos patrões”, que lhes permitiria “pagar o trabalho abaixo do salário de subsistência” (1997: 136-1371). Ou o argumento de Robert Castel, para quem a medida, que nestes moldes não dispensaria do emprego, teria o efeito paradoxal de estabelecer um “stock de trabalhadores potenciais já parcialmente remunerados por um rendimento básico medíocre”, que seria um novo exército de reserva a custo ainda mais reduzido (2013: 92). Num contexto de rarefação do emprego, a proposta de Standing é sedutora. Mas ao projetar a emancipação e a justiça para fora do emprego, o seu horizonte parece não ir além de uma sociedade capitalista comandada pelo mercado e compensada por um apoio universal modesto transferido pelo Estado para cada cidadão. O que é uma estranha imagem do Paraíso.

O livro de Standing é um útil e polémico contributo para um debate pleno de atualidade. A publicação em português de artigos do autor que retomam as teses ali desenvolvidas, como se faz neste número da RCCS, compensa parcialmente a lacuna que resulta de não haver ainda uma edição desta obra em Portugal.

 

NOTAS

* Sociólogo, licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É doutorando no programa de “Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo” (CES/FEUC), desenvolvendo uma tese sobre precariedade laboral e ação coletiva. É curinga de Teatro do Oprimido. Publicou recentemente, com Miguel Cardina e Nuno Serra, o livro Não acredite em tudo o que pensa. Mitos do senso comum na era da austeridade (2013, Lisboa, Tinta-da-China).

1 Gorz, André (1997), Misères du present, richesse du possible. Paris: Galilée.         [ Links ]

2 Castel, Robert (2013), “Salariat ou revenu d’existence? Lecture critique d’André Gorz”, La vie des idées. ISSN: 2105-3030, disponível em http://www.laviedesidees.fr/Salariat-ou-revenu-d-existence.html.

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