SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número102Poder, sociedad y economía en Manuel Castells, 1983-2003: Estudio sistemático de una relaciónMudanças nas políticas: Do (des)emprego à empregabilidade índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.102 Coimbra dez. 2013

https://doi.org/10.4000/rccs.5462 

ARTIGO

Cultura do software livre e desenvolvimento: Uma análise sobre potencialidades e limites diante e adiante da “nova economia”

Free Software Culture and Development: An Analysis on Potentials and Limits in and beyond the Context of the “New Economy”

Culture du logiciel libre et développement: une analyse sur les potentialités et les limites face à et par delà la “nouvelle économie”

 

Leonardo Santos de Lima*

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil santosdelima.leonardo@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo analisa as potencialidades e os limites da cultura dosoftware livre e dos produtos dela derivados no que tange à promoção de desenvolvimento econômico e social diante da lógica da “nova economia” e das alternativas possíveis à mesma. Examina os incentivos e restrições à inovação, em seus diferentes sentidos, gerados pelos softwares livres enquanto bens tecnicamente distintos dos softwares proprietários e desenvolvidos com base em um conjunto de valores e interesses específicos. Da mesma forma, reflete sobre suas limitações e capacidades quanto ao fomento de estratégias de desenvolvimento voltadas não apenas à expansão econômica baseada no aprimoramento tecnológico, mas, sobretudo, à geração de oportunidades sociais.

Palavras-chave: assimetrias no acesso,desenvolvimento económico e social, inovação tecnológica, nova economia, software livre, tecnologia da informação e comunicação

 

ABSTRACT

This article analyzes the potentials and limits of the free software culture and the products derived from it in what concerns the promotion of economic and social development in the context of the “new economy” and the alternatives to it. It examines the incentives and constraints to innovation in its different senses, generated by free softwares as goods technically distinct from proprietary software and developed on the basis of specific values and interests. It also reflects on their limitations and capabilities in relation of the promotion of development strategies aimed not only at economic growth based on technological improvement, but especially at generating social opportunities.

Keywords: accessasymmetry, economic and social development, free software, information and communication technology, new economy, technological innovation

 

RESUMÉ

Cet article se penche sur les potentialités et les limites de la culture du logiciel libre et des produits qui en découlent pour ce qui est de la promotion de développement économique et social face à la logique de la “nouvelle économie” et de ses alternatives possibles. Nous y examinons les encouragements et les restrictions à l’innovation, dans ses diverses perceptions, engendrés par les logiciels libres en tant que biens techniquement distincts des logiciels propriétaires et développés sur la base d’un ensemble de valeurs et d’intérêts spécifiques. Nous abordons aussi ses limitations et ses capacités à favoriser des stratégies de développement n’ayant pas seulement pour but l’expansion économique reposant sur le perfectionnement technologique mais, surtout, quant au fait qu’ils puissent être source d’opportunités sociales.

Mots-clés: asymétrie d’accès, développement économique et social, innovation technologique, logiciel libre, nouvelle économie, technologie de l’information et de la communication

 

Introdução: o contexto da “nova economia”

Nas décadas finais do século xx, um conjunto estruturado de mudanças concomitantemente com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs) acentua um processo de amplas transformações em âmbito coletivo. Nesse cenário, países em todas as partes do planeta ingressam progressivamente em uma dinâmica de intensificação das relações de interdependência, o que traz como consequência o surgimento de novas formas de interação entre os campos cultural, político e econômico. Embora essas mudanças não atinjam as diferentes regiões do mundo com a mesma intensidade e tampouco possam ser consideradas resultado de um complexo de transformações globais unívoco e irreversível (Cocco, 2011; Santos, 2011), é possível dizer, no entanto, que são expressão de um conjunto de fenômenos que tende a se afirmar de modo hegemônico, cujas consequências e características não podem ser ignoradas, dado seu poder de influência nas esferas decisórias, sobretudo das sociedades política e economicamente dominantes (Guesser, 2011).

Em decorrência dessa dinâmica de transformações coletivas, associada a um processo de acelerado desenvolvimento técnico, uma “nova economia” ganha forma. Nela, a lucratividade e a competitividade – “os verdadeiros determinantes da inovação tecnológica e do crescimento da produtividade” (Castells, 2010: 136) – são obtidas a partir do aprimoramento da tecnologia, com base na acumulação de conhecimentos e em maiores níveis de complexidade do processamento da informação. Toma corpo uma economia centrada no saber, cujo desenvolvimento se sustenta na transformação da informação em inovação, o que lança as bases do que se poderia chamar de uma “economia do conhecimento”(Julien, 2010).

A partir desse período, portanto, a busca da inovação econômica surge como a principal estratégia de expansão das empresas e como o meio mais importante de superação da concorrência, através da capacidade de aceleração do processo de lançamento de novos produtos e serviços no mercado. A “nova economia” mostra-se indissociável da procura ininterrupta por novos consumidores potenciais, vistos como oportunidades de ampliação da quantidade de capital acumulado, o que explica, em boa medida, a grande velocidade com que são criadas e disseminadas novas tecnologias (Castells, 2003).

Por outro lado, o contexto econômico hegemônico também traz consigo diferentes tensões provenientes de suas limitações internas, decorrentes, dentre outros aspectos, da deslegitimação de qualquer contestação a uma ordem social estabelecida pelo mercado e pelos avanços tecnológicos (Martín-Barbero, 2006). Nessa ordem imposta do centro às periferias, a “globalização” se constitui a partir de uma dinâmica que, por um lado, põe em conexão tudo o que lhe parece possuir valor sob o ponto de vista instrumental – indivíduos, empresas e instituições – e, por outro, desconecta tudo aquilo que não é percebido como relevante sob essa lógica (Bauman, 1999). Desse modo, a “nova economia” e seus diferentes avatares, como as noções de “sociedade” e de “economia do conhecimento”, mostram-se fundamentalmente dependentes da inércia dos padrões tradicionais que definem as condições de produção e reprodução do conhecimento, frequentemente marcadas por toda sorte de autoritarismos e imposições (Orozco Gómez, 2006).

É, sobretudo, na perpetuação das atuais condições objetivas frente ao conhecimento, que os Estados e as instituições internacionais de regulação assumem seu mais importante papel no atual cenário econômico, ao definir as restrições institucionais em relação ao acesso e à disseminação da informação e dos saberes, transformando-os em commodities (Albagli e Maciel, 2011). Assim, são ampliados o controle e a concentração de recursos considerados estratégicos à “nova economia”, por meio do recrudescimento dos mecanismos de proteção dos direitos de propriedade intelectual, tal como tem ocorrido com o desenvolvimento de softwares diante de sua privatização em larga escala a partir das últimas décadas.

Entretanto, ainda que sejam claros os prejuízos coletivos inerentes ao surgimento das novas formas de domínio e de desigualdade observadas desde a reestruturação capitalista do final do século xx e ao longo do processo de globalização que molda a “nova economia” nesse mesmo período, as transformações atuais dizem respeito a um conjunto de fenômenos complexos, nos quais se observam quer aspectos negativos, quer positivos, por vezes profundamente ambíguos e imprevisíveis (Kellner, 2006). Logo, a complexidade desse contexto requer uma perspectiva crítica capaz de avaliar suas diferentes faces, sem deixar, por um lado, de ser cética em relação à legitimação de seu discurso ideológico e, por outro, de reconhecer a importância dos fenômenos que o constituem no sentido de afirmar e desenvolver seus pontos positivos (Best e Kellner, 2001; Kellner, 2002).

Uma vez que as novas tecnologias da informação e da comunicação assumem papel de destaque como recursos a partir dos quais a globalização mobiliza diferentes fluxos de bens, informações, pessoas e capital em sociedades, economias e culturas cada vez mais interligadas (Castells, 2010), a complexidade do cenário atual inevitavelmente se reflete também nos modos de constituição e apropriação dessas inovações técnicas, passíveis de produzir tanto prejuízos à espécie humana, quanto novas ideias, riquezas e amplo desenvolvimento na arena global (Kellner, 2006). Nesse sentido, a história da criação e da popularização dos computadores pessoais (PCs), as práticas e os valores das primeiras comunidades de desenvolvimento de softwares, ou o surgimento e a disseminação da internet, demonstram que o desenvolvimento das NTICs é resultante de interações sociais e culturais diversas,1 que em parte se opõem, em parte se complementam, e em parte são derivadas da lógica da “nova economia”.

Dentre os fenômenos socioculturais gestados no período de intensas transformações das últimas décadas, a cultura do software livre chama especialmente a atenção por sua capacidade de promover tanto aproximações, quanto afastamentos quase intransponíveis em relação ao universo das organizações, das instituições e dos valores preponderantes do cenário econômico contemporâneo. Assim, de maneira distinta às abordagens que tendem a privilegiar a análise de apenas um dos dois lados, este artigo busca investigar as potencialidades e os limites da cultura do software livrea partir de suas diferentes faces, diante e adiante da lógica da “nova economia” – seja no que tange à promoção de desenvolvimentopor meio de estratégias inseridas em um ambiente de competição econômica e marcado pela necessidade contínua de geração de novos conhecimentos, seja através da investigação de seu potencial socialmente capacitante e inclusivo, em contraposição às restrições inerentes a uma lógica conduzida pela perpetuação de assimetrias e exclusões disseminadas em âmbito global.

 

A cultura do software livre: origens e atualidade

Como lembra Coleman (2010), antes da década de 1980 ossoftwares desenvolvidos nos Estados Unidos raramente eram sujeitos à aplicação de direitos autorais (copyrights) e patentes, o que possibilitava aos programadores e hackers trabalhar de modo conjunto, aprimorando seus códigos-fonte.2 Contudo, a partir dessa época em diante, empresas privadas começam a fechar os programas através da aplicação das leis de Propriedade Intelectual (PI), em franca expansão naquele período. Como reação, Richard Stallman, hacker e um dos programadores do Laboratório de Inteligência Artificial do Massachussetts Institute of Technology (MIT), inicia um movimento para a criação e a preservação do que passa a ser conhecido como software livre (Silveira, 2004; Coleman, 2010).

Para Stallman e seus simpatizantes, o código-fonte e a possibilidade de compartilhamento deste eram o elo comum que estabelecia a ligação entre a comunidade de programadores e o fundamento da cultura da programação, em rápido processo de desintegração naquela época. Tentando evitar a extinção dessa cultura, o hacker americano cria, em 1983, uma licença de uso alternativa, a GNU (General Public License), conhecida também como copyleft. Por meio da GNU, Stallman dá origem a “uma licença na qual ele mantinha o direito autoral de seu código, mas permitia a livre distribuição, desde que essa liberdade também fosse estendida a todos os usuários” (Coleman, 2010: 133), utilizando, assim, a mesma arma de seus “inimigos” contra eles próprios.3

O surgimento do Linux, em 1991, um sistema operacional baseado no UNIX4 e desenvolvido por Linus Torvalds, acabou levando à proliferação de associações de voluntários orientadas pela ideologia presente nos princípios do software livre(Silveira, 2004). Da mesma forma, a partir da primeira metade da década de 1990, programadores e hackers se tornavam mais familiarizados tanto com as regulações do software livre, quanto com as leis de Propriedade Intelectual, com o objetivo de se defenderem delas. Estas se tornavam cada vez mais abrangentes e restritivas à medida que o copyleft, na direção oposta, também se expandia, gerando insegurança às grandes empresas, as quais já reconheciam, internamente, as vantagens do código-aberto (Coleman, 2010).

Por outro lado, as tensões geradas entre a disseminação do copyleft e os interesses de empresas privadas levaram um grupo de hackers, cujo representante mais famoso era Eric Raymond, a lançar em 1998 a Open Source Initiative (OSI). Seu propósito era tentar dissociar o software livre – que passa a ser por eles chamado de Software de Código Aberto (Open Source Software) – de seu conteúdo moral e político. O grupo adotou uma postura sustentada por questões de caráter prático, voltada à valorização do código aberto pelas suas vantagens técnicas, com o objetivo de torná-lo “mais palatável ao mundo dos negócios” (Coleman, 2010: 141).

As cisões ocorridas no Movimento do Software Livre (MSL) lançado por Stallman em 1985, com a criação da Open Source Initiative (OSI) e do Software de Código Aberto, demonstram a importância do pragmatismo como um valor central para uma parte significativa dos defensores do copyleft, que associam a qualidade de seu trabalho à capacidade superior de sua forma de organização e dos softwares desenvolvidos sob essa lógica, em comparação ao modo de produção das grandes empresas comerciais. Esse pragmatismo, por outro lado, relacionado ao “espírito livre” que caracteriza essa cultura, possibilita que muitos reivindiquem o direito de escolher pelo uso comercial de suas aplicações, de modo a não trair seu princípio mais fundamental: o acesso aberto a toda a informação do programa, com a liberdade de modificá-lo e utilizá-lo do modo que se preferir.

Em suma, a cultura do software livre, diferentemente do que ocorre em relação aos softwares proprietários, está fundamentada em práticas e valores que, ao mesmo tempo em que se diferenciam claramente daqueles que caracterizam os softwares protegidos por copyright, permitem também articulações com a lógica que orienta esses últimos, como é o caso do Software de Código Aberto. Sua distinção em relação aos “softwares livres”, tal como entendidos por Stallman e o MSL, assim, diz respeito muito mais a questões ideológicas do que a diferenças técnicas, uma vez que compartilham as mesmas raízes históricas e sociais e um mesmo conjunto de valores fundamentais centrados na ideia de liberdade.

Atualmente, segundo os dados do site SourceForge.net, o maior repositório de códigos de software livre da internet, no ano de 2008 existiam 180 mil projetos registrados e 1,9 milhão de usuários cadastrados (Johnson, 2010). Em 2003, havia em torno de 400 mil desenvolvedores de software livre, estes distribuídos em mais de 90 países (Silveira, 2003). Além disso, desde o início do ano 2000, diversas empresas ao redor do mundo têm vindo gradualmente a fazer uso, parcial ou total, de sistemas sob a forma copyleft: de entre elas, vários grandes grupos, privados e públicos, tais como Lufthansa, Walmart, DowJones, Amazon.com, Banco do Brasil, Petrobrás, etc., ou ainda órgãos e instituições estatais como a NASA e o Pentágono, diversos Ministérios, Câmaras Estaduais e Universidades Federais no Brasil, entre outros (Guesser, 2011).

Especificamente no caso brasileiro, o uso de software livre ampliou seu espaço tanto nos órgãos públicos, quanto nas empresas, ao expandir a demanda e o mercado a partir da criação, em 2003, das Diretrizes da Implementação de Software Livre pelo Governo Federal. Por meio dessa iniciativa, foi oficializada a opção preferencial do governo por esse tipo de software, com o objetivo de promover a adoção de padrões abertos diante dos benefícios que o software livre pode trazer5 (Miranda et al., 2008).

Ao longo das últimas décadas, por outro lado, algumas das maiores contribuições históricas da cultura do software livre e de suas implicações no campo social e econômico têm se revelado por meio das transformações que, desde seu surgimento, essa cultura foi capaz de desencadear. Seja em âmbito institucional – com a criação da licença GNU dentro do marco legal existente –, seja em âmbito organizacional e tecnológico. Com relação a essas últimas, é especificamente no processo de desenvolvimento da internet que sua grande capacidade inovadora se torna flagrante.

 

A internet e as contribuições do software livre

Como destaca Castells (2003), a internet não poderia ter surgido no mundo dos negócios. Isso se torna claro ao se considerar que, em seus primeiros anos de criação nas décadas de 1960 e 1970, por se tratar de uma tecnologia ousada demais e com custos de investimento muito altos, era incompatível com um ambiente de organizações orientadas pelo lucro e pelo retorno a curto e médio prazos. O volume de recursos e os riscos inerentes ao desenvolvimento inicial da internet só poderiam, portanto, ser arcados pelo Estado, o que explica o fato de que seu surgimento tenha ocorrido no ambiente político-militar norte-americano do período da Guerra Fria. Engajado na missão de mobilizar recursos de pesquisa a partir da associação com as instituições acadêmicas daquele país, o objetivo do governo dos EUA era alcançar a superioridade tecnológica e militar em relação à União Soviética.

Entretanto, o início dessa trajetória só pode ser compreendido adequadamente ao se considerar o inusitado encontro, nos laboratórios de pesquisa norte-americanos, entre a big science e as tendências contraculturais libertárias que marcaram as primeiras décadas da segunda metade do século xx. Essa “improvável intersecção” (Castells, 2003) estabelecia um elo de ligação entre as investigações científicas de ponta realizadas pela elite acadêmica das universidades dos EUA, geralmente voltadas ao desenvolvimento de grandes projetos militares financiados pelo Estado, e uma cultura ou ideologia fundamentada basicamente na defesa intransigente da liberdade individual e na desconfiança sistemática contra os governos (ibidem).

Um dos passos decisivos na constituição das redes de computadores que iriam dar origem à internet foi, portanto, a formação de uma comunidade de usuários, sobretudo estudantes e pesquisadores acadêmicos, utilizadores do sistema operacional UNIX. Assim,

[O UNIX] tornou-se a língua franca da maior parte dos departamentos de ciência da computação, e os estudantes logo se tornaram peritos em sua manipulação. Depois, em 1978, o [laboratório] Bell distribuiu seu programa UUCP (UNIX-to-UNIX copy) permitindo a computadores copiar arquivos uns dos outros. Com base no UUCP, em 1979, quatro estudantes […] projetaram um programa para comunicação entre computadores UNIX. Uma versão aperfeiçoada desse programa foi distribuída gratuitamente numa conferência de usuários de UNIX em 1980. Isso permitiu a formação de redes de comunicação entre computadores – a Usenet News – […] ampliando consideravelmente a prática de comunicação entre computadores. (Castells, 2003: 16)

É possível aqui observar a influência direta da cultura do software livre na criação do UNIX, programa que desempenhará um papel fundamental no desenvolvimento da tecnologia da internet, bem como na estruturação de um conjunto de redes marcado pela flexibilidade e por práticas de livre compartilhamento de informações entre seus usuários. Da mesma forma, como visto anteriormente, será o desenvolvimento do Linux, elaborado a partir do UNIX, que despertará, primeiramente entre hackers e geeks, e depois nas empresas e na sociedade mais ampla, a consciência sobre todo o potencial das práticas de produção compartilhada, características do universo da produção de softwares.

Por sua vez, ainda que a disseminação da internet em ritmo exponencial surja somente após a privatização da rede, na década de 1990, transformando essa nova tecnologia em uma verdadeira “rede mundial”, sua expansão na sociedade não teria ocorrido com a velocidade em que ocorreu devido apenas à abertura da exploração comercial, pois

[…] por volta de 1990 os não-iniciados ainda tinham dificuldade para usar a Internet. A capacidade de transmissão de gráficos era muito limitada, e era dificílimo localizar e receber informações. Um novo salto tecnológico permitiu a difusão da Internet na sociedade em geral: a criação de um novo aplicativo, a teia mundial (world wide web – WWW), que organizava o teor dos sítios da Internet por informação, e não por localização, oferecendo aos usuários um sistema fácil de pesquisa para procurar as informações desejadas. (Castells, 2010: 87-88)

O “www” consiste em um programa navegador/editor baseado na lógica do hipertexto, utilizando tecnologias multimídia que conferem um caráter audiovisual ao software. Uma vez criado, foi logo distribuído gratuitamente na rede (Castells, 2010). A partir de seu lançamento, sob licença copyleft, muitos hackers passaram a desenvolver seus próprios navegadores, tendo em vista, em diferentes casos, suas futuras potencialidades comerciais.

O primeiro navegador a ganhar popularidade, criado para funcionar em computadores pessoais, foi o Mosaic, lançado gratuitamente em 1993. Em um ano já possuía milhões de usuários. Logo em seguida, os criadores do navegador, que haviam fundado a empresa Mosaic Communications juntamente com Jim Clark (um grande empresário do Vale do Silício), lançam o Nestscape Navigator pela empresa Netscape Communications (antiga Mosaic). Em 1995, a Microsoft desperta para o mundo da internet e lança, juntamente com o Windows 95, o Internet Explorer. Em 1998 e diante de dificuldades financeiras, a Netscape adota uma iniciativa inédita para uma empresa privada da área da tecnologia da informação na época: libera “o código-fonte de seu programa sob uma licença de código-aberto para tentar salvar-se da baixa no valor de suas ações na bolsa” (Coleman, 2010: 141). Mais tarde o Netscape Navigator dá origem ao Mozilla Firefox, atualmente sob licença copyleft, que se torna, em poucos anos, um dos navegadores mais utilizados do mundo.

Em contrapartida, até o despontar do século xxi, a web – a parte gráfica da internet que tem origem com a criação do “www” – caracteriza-se como um ambiente dominado pelos grandes portais comerciais de conteúdo, como Yahoo! e America Online (AOL) – ambos lançados em 1996 nos EUA – e Universo Online (UOL), lançado no mesmo ano no Brasil. Ao mesmo tempo, o mercado de programação em HTML6 e de construção de sites ou webpages conhece, nessa época, uma expansão vertiginosa.

Assim, na primeira fase da web, osinternautas eram, sobretudo, receptores e consumidores de informações, produtos e serviços disponibilizados através da rede por empresas e outras instituições (Campos, 2009). No entanto, a postura dos grandes produtores de conteúdo, empresas de internet e dos próprios usuários iria, a partir do início do século xxi, se transformar fortemente em comparação a essa fase inicial – conhecida como o período da web 1.0.

Na segunda geração da “teia mundial”, as empresas da área da tecnologia da informação começam a despertar para as possibilidades de criação de conteúdo através da participação ativa e colaborativa dos usuários, por meio da incorporação de práticas e formas de uso da internet que remetem à cultura de produção livre e aberta que caracteriza as origens da rede e estão nas raízes do software livre. Serão essas práticas e formas de uso que delinearão o perfil da chamada web 2.0 e possibilitarão o surgimento de sites de compartilhamento de informações com enorme repercussão mundial e apelo comercial, como o Youtube e o Facebook. Assim, como Dale Doughherty, pioneiro da web, havia identificado em 2004, “ao contrário de haver explodido [com o estouro da bolha das empresas ponto.com ocorrido em 2001], a web estava mais importante do que nunca, apresentando instigantes aplicações novas e sites eclodindo com surpreendente regularidade” (O’Reilly, 2006: 1).7

O desenvolvimento histórico da internet permite, portanto, ilustrar a ideia de que as inovações costumam ocorrer de modo a extrapolar os horizontes das empresas e por meio de uma ampla rede de colaboradores, “numa trama que configura um ecossistema de alta diversidade e complexidade [e] cuja dimensão comercial é apenas uma de suas várias faces” (Arbix, 2010: 171). No caso da internet, a lógica de organização, produção e distribuição característica do universo do software livre, antes de se opor às estratégias de desenvolvimento da “nova economia”, mostrou-se indispensável ao seu fomento, mesmo quando não orientada prioritariamente pela busca do ganho econômico, diferentemente do que ocorre na produção dos softwares proprietários e nas grandes empresas de internet.

 

Cultura do software livre, inovação e desenvolvimento: diante e adiante da “nova economia”

As estratégias de desenvolvimento concebidas como capazes de garantir o bom desempenho dos países na “nova economia” e em um ambiente de globalização trazem, como presença obrigatória, a ideia de inovação. Esta é comumente entendida seja em seu sentido mais simples, a partir de noções como “rearranjo”, “combinação” e “exploração” (Arbix, 2010: 168), seja em sua associação ao mercado, isto é, como “aplicação econômica de uma ideia nova” (Black, 1997 apud Guesser, 2011: 73) ou como “todos os processos, descobertas, produtos ou serviços novos – não importa se high-tech, low-tech ou no-tech – que adicionam valor econômico à empresa” (Arbix, 2010: 170).

Com base nessas definições, torna-se pertinente explorar, primeiramente, as potencialidades e os limites da cultura do software livre no que tange à promoção de desenvolvimento,partindo-se da ideia de inovação em um ambiente de competição econômica, no qual a geração de novos conhecimentos é utilizada como principal matéria-prima para o processo inovador. Num segundo momento, em contrapartida, essa cultura será analisada através de outro recorte: por meio da noção de inovaçãoentendida em seu sentido amplo, isto é, não restrita à lógica preponderante do atual modelo de desenvolvimento econômico e tecnológico, mas voltada, sobretudo, à superação da reprodução das assimetrias e exclusões que definem as dinâmicas de produção e de disseminação da informação e dos conhecimentos especializados ou não (Albagli e Maciel, 2011).

Em aproximação com o primeiro enfoque, Benkler (2006) destaca em sua mais conhecida obra – The Wealth of Networks – os principais atributos e benefícios da atual “economia da informação em rede”, resgatando parcialmente os valores e pressupostos da chamada “nova economia”. Conforme o autor, a ação individual descentralizada assume hoje uma importância muito maior do que possuía em períodos anteriores, orientados pelos tradicionais paradigmas da produção industrial. Mais especificamente, o ambiente contemporâneo seria marcado pelo surgimento de uma “nova mão invisível”, originária de uma economia baseada no imaterial e fundamentalmente comunicacional, sustentada, por sua vez, no potencial das redes para a formação de uma sociedade livre e produtiva a partir de novas condições tecnológicas e econômicas.

Por outro lado, as principais potencialidades desse novo sistema em rede, conforme o autor, residem essencialmente na possibilidade, até então inédita, da troca de um grande volume e diversidade de informações a partir de um baixo custo. Isso requer a existência de condições que permitam a proliferação de colaborações sustentáveis e o compartilhamento de recursos entre indivíduos e grupos aptos a produzir por conta própria, com base, por exemplo, em modelos como o do copyleft e do commons, em lugar dos arranjos institucionais restritos às noções de propriedade atualmente preponderantes. Para Benkler (2006), portanto, são essas características que demarcam o que o período atual possui de mais positivo em comparação aos sistemas de produção anteriores, bem como as suas principais vantagens no que diz respeito à geração de riqueza e desenvolvimento.

Com referência a essas características, a permissão de livre alteração do código-fonte dos softwares abertos, quando em um ambiente de competição no mercado, revela uma série de benefícios diante dos softwares proprietários, limitados pelas restrições decorrentes dos direitos de propriedade intelectual. Nesse contexto, orientado pelo papel central conferido à inovação econômica e tecnológica baseada na utilização intensiva do conhecimento, as vantagens dos softwares livres se sustentam, sobretudo, na possibilidade de sua utilização para os fins que forem os mais convenientes aos interesses de cada agente do mercado. Isso gera para os empresários que trabalham com o desenvolvimento de softwares, entre outros benefícios, o diferencial de não só poder ter para si, mas também de oferecer a seus clientes, programas e serviços “personalizados” (Ferraz, 2002; Mendes, 2006; Guesser, 2011). Da mesma forma, tanto a aceleração no processo de aprendizagem propiciada pelo acesso ao código-fonte e à sua documentação, quanto a participação dos desenvolvedores em diferentes projetos de produção de softwares livres, com o consequente compartilhamento de conhecimentos tácitos por meio do contato com outros profissionais, são fatores de relevância central para a inovação nas empresas em uma economia fundamentada em bens imateriais (Mendes, 2006).

Por outro lado, pode-se também destacar que a opção por softwares sob licença copyleft não implica fazer uso apenas deste tipo de programa. É comum, em diferentes empresas, a coexistência com softwares protegidos por direitos de propriedade intelectual, sem que isso obrigatoriamente se traduza em desvantagens para os primeiros. Do mesmo modo, a liberação da necessidade de arcar com os custos de um grande número de licenças para os sistemas operacionais e outros aplicativos utilizados, ou ainda a redução da necessidade de investimento em equipamentos, visto que os sistemas abertos exigem menor capacidade de processamento de informação devido ao seu melhor desempenho (Ferraz, 2002; Mendes, 2006; Guesser, 2011), são fatores que permitem o direcionamento dos recursos das empresas para o investimento em inovação, em lugar de financiar as grandes corporações através da compra de softwares proprietários.

No entanto, uma das principais limitações à disseminação dos softwares livres e do reconhecimento acerca de seu potencial para a geração de inovações econômicas e tecnológicas diz respeito à forma como o mercado de programas informacionais se estruturou ao longo das últimas décadas, tendo por base uma expansão de caráter monopolista.8 Como lembra Guesser (2011), software livre não é sinônimo de software gratuito e a sua utilização implica, mesmo quando não se recorre ao desenvolvimento de um software personalizado, custos associados ao treinamento, ao suporte técnico e à manutenção básica. Logo, uma vez que ainda são poucos os profissionais preparados para trabalhar com esses programas, a falta de concorrência induz à cobrança de valores significativamente mais altos por esses serviços se comparados aos valores cobrados em relação aos softwares que possuem o monopólio do mercado, como o sistema operacional Windows e seu pacote de aplicativos.

É importante ressaltar, ainda, os riscos derivados da apropriação indevida de obras produzidas a partir de softwares livres. Esses riscos decorrem, sobretudo, da utilização da ideia base do código-fonte, seguida pelo seu “fechamento” no momento em que um novo software é reescrito por um desenvolvedor e incorporada à ideia do código-fonte original de forma ligeiramente diferente. O novo software passa, então, a ser comercializado como se fosse integralmente criado por este desenvolvedor, sob proteção dos direitos de propriedade intelectual (Mendes, 2006). A apropriação privada indevida favorece, portanto, a expansão da tendência de comoditização dos bens imateriais protagonizada pelas grandes indústrias de software, como parte da lógica do capitalismo de transformar produtos emmercadorias, sem fugir ao padrão de dominação dos países do Norte em relação aos países do Sul (ibidem).

Com relação a essas questões, é pertinente considerar, sob um recorte mais amplo, mas ainda bastante vinculado às dinâmicas econômicas, as potencialidades da cultura do software livre naquilo que se relacionam aos problemas que Sen (2000: 144) associa à “desigualdade na distribuição de liberdades substantivas e capacidades”. Pois, se por um lado, estas podem ser fomentadas, por exemplo, pela possibilidade de livre transação e de livre escolha de emprego (Sen, 2000) em condições ideais de competição no mercado, por outro, a ausência dessas condições pode restringir sensivelmente as liberdades e o desenvolvimento das capacidades por meio de mecanismos predominantemente voltados à preservação dos direitos de propriedade e à formação de monopólios.

Nesse sentido, a cultura do software livre é capaz de se constituir como um elemento regulador dessas distorções, na medida em que se mostra um instrumento importante para a preservação da eficiência dos mercados, pois permite torná-los mais competitivos e menos monopolistas. Da mesma forma, a articulação com iniciativas do Estado, tal como ocorre no caso brasileiro, com a criação de comitês técnicos com os objetivos de coordenar e articular o planejamento e a implementação de softwares livres, pode, por outro lado, abrir espaço para seus produtos e serviços, incentivar o desenvolvimento de tecnologia local, além de favorecer a livre concorrência entre fornecedores (Miranda et al., 2008).

Especificamente quanto à distribuição de capacidades, isto é, do potencial não só para utilizar rendas, mas diferentes recursos como o conhecimento (Sen, 2000), as propriedades técnicas dos softwares livres trazem a grande vantagem de tornar possível a ampliação da interconectividade e da flexibilidade no acesso e na troca de recursos por um número virtualmente ilimitado de indivíduos e a custos reduzidos, tal como Benkler (2006) pressupõe em seu modelo de produção em rede. Para isso, no entanto, suas propriedades técnicas necessitam estar articuladas com variáveis não digitais – de caráter social e cultural – voltadas a uma maior distribuição de poder na sociedade (Sassen, 2011). É sob esse aspecto, portanto, que se torna imprescindível a “cultura” que subjaz ao software livree seus produtos, pois os valores e interesses que a definem permitem conjugar as capacidades de natureza técnica constitutivas desses programas com o princípio do desenvolvimento das capacidades humanas de forma plena.

Desse modo, a discussão sobre desenvolvimento associada aos softwares livres não se encerra na consideração das possibilidades e dos limites relacionados aos ambientes de competição no mercado e de inovação tecnológica. Torna-se necessária a adoção de um segundo recorte de análise, no qual a questão da desigualdade na distribuição de liberdades substantivas e de capacidades requer também o repensar das definições de inovação restritas às esferas do mercado e da tecnologia, com o objetivo de ir em direção à sua concepção em sentido pleno.

A ideia de inovação, com base nessa perspectiva, pode ser compreendida amplamente como qualquer ação/movimento destinado à criação de algo novo com o propósito de resolver problemas, necessidades ou carências de indivíduos e/ou grupos a partir de conhecimentos de ordem prática e/ou teórica, isto é, em articulação com o estágio da técnica e dos saberes de uma dada sociedade (território/cultura) e em um determinado momento histórico (Baumgarten e Santos de Lima, 2014). Está relacionada, portanto, à noção de desenvolvimento compreendido não conforme a acepção comum de progresso (enquanto processo de transformação linear e unívoco), mas sim como mudança histórica no sentido da resolução de diferentes problemas e necessidades sociais (ibidem). Do mesmo modo, essa perspectiva permite pôr em primeiro plano a capacidade de indivíduos e grupos de se organizarem, visando à obtenção de conquistas sociais e (re)distribuição do poder, as quais dependem, em grande parte, de seu grau de informação e de instrução – isto é, da distribuição do saber (Maciel, 2005).

A partir da concepção ampliada daideia de inovação, a cultura do software livre e seus produtos podem ter suas potencialidades direcionadas à preservação das liberdades substantivas e à distribuição de capacidades com base em objetivos também mais amplos, ou seja, voltados à criação de oportunidades sociais.

A possibilidade de criação dessas oportunidades se revela com relativa facilidade quando os softwares livres são entendidos como ferramentas de inclusão e de redução da desigualdade social, e esta a partir da redução da desigualdade digital. Contudo, como destaca Warschauer (2006), o acesso significativo a novas tecnologias abrange muito mais do que fornecer recursos informáticos, tais como equipamentos, softwares e acesso à internet, pois

[…] insere-se num complexo conjunto de fatores, abrangendo recursos e relacionamentos físicos, digitais, humanos e sociais. […] Para proporcionar acesso significativo a novas tecnologias, o conteúdo, a língua, o letramento, a educação e as estruturas comunitárias e institucionais devem todos ser levados em consideração. (2006: 21)

Em suma, a exclusão e a desigualdade digital, antes de terem como condicionante central a falta ou a diferença de acesso a recursos materiais e imateriais restritos ao universo das tecnologias de informação, resultam fundamentalmente da má distribuição de recursos e capacidades de um modo geral, diferentemente das concepções ingênuas cujo foco recai somente na questão da difusão da tecnologia.

Ainda assim, mesmo que seja indispensável ter clareza sobre as limitações acerca do papel dos softwares livres nas estratégias de desenvolvimento alicerçadas simplesmente na aquisição de novos bens tecnológicos, é importante ressaltar, por outro lado, que o atual processo de disseminação das NTICs se apresenta, cada vez mais, como fator indissociável da “estratificação e [da] marginalização ou [do] desenvolvimento e [da] igualdade” (Warschauer, 2006: 282). Logo, o desafio político no que diz respeito à questão da tecnologia mostra-se indissociável da expansão do acesso e do uso das NTICs como estratégia de inclusão social, ainda que não se reduza a essa tarefa.

Nesse sentido, em se tratando de ações de inclusão digital, as vantagens ligadas à liberdade de modificação garantida aos softwares sob licença copyleft, sobretudo no que diz respeito às possibilidades de personalização dos programas, significa a oportunidade de adaptação a um amplo espectro de necessidades sociais, culturais e econômicas de indivíduos situados em contextos diversos e específicos (Silveira e Cassino, 2003). Pois a sua adaptabilidade permite colocar em primeiro plano, com muito mais sucesso do que os softwares proprietários, ou mesmo do que outras tecnologias da informação, a questão das “estruturas sociais, da organização social e das relações sociais” (Warschauer, 2006: 282) que condicionam as assimetrias e a má distribuição de recursos e capacidades.

A partir da consideração das necessidades e interesses específicos dos usuários nos contextos onde vivem, os softwares livres tornam possível o desenvolvimento de ferramentas de comunicação, aprendizagem e reflexão que estejam de fato a serviço de quem as utiliza. Do mesmo modo, tal postura abre importantes alternativas às estratégias de produção e disseminação tecnológica que reproduzem as condições sociais, que por sua vez inibem o desenvolvimento em sentido amplo: como criação de oportunidades sociais, expansão das capacidades humanas e da qualidade de vida (Sen, 2000).

 

Considerações finais

Buscou-se aqui destacar que a cultura do software livre não é um elemento secundário diante do contexto da “nova economia”. Ao contrário, essa cultura tem assumido um papel protagonista no conjunto de amplas transformações tecnológicas e sociais ocorridas a partir das últimas décadas do século xx. Da mesma forma, exerceu e continua exercendo grande influência no próprio processo de reestruturação da economia capitalista, a partir das inovações técnicas e organizacionais produzidas sob efeito direto e indireto dos valores de liberdade e de compartilhamento de informação e conhecimento.

Por outro lado, as potencialidades da cultura do software livre no que tange à promoção do desenvolvimento diante e adiante da lógica da “nova economia” revelam-se diversificadas e consistentes sob o ponto de vista dos atuais desafios e necessidades sociais e econômicos, tanto em regiões centrais, quanto nas menos integradas ao modelo de globalização hegemônico. Mais precisamente, a flexibilidade inerente a esses softwares, sustentada na ideia do livre compartilhamento, favorece não só sua adaptação a diferentes contextos econômicos – com vantagens potenciais no que diz respeito à inovação orientada pela competição no mercado –, mas também socioculturais – por meio do desenvolvimento centrado na redução de assimetrias com base na inclusão e na redução da desigualdade digital.

Nesse sentido, na medida em que ora podem se filiar, ora se afastar da dinâmica própria dos mercados, numa trajetória semiautônoma em relação aos imperativos econômicos hegemônicos e aos interesses dos Estados, a cultura do software livree seus produtos apresentam-se como elementos fundamentais tanto na distribuição de liberdades substantivas e capacidades, quanto na obtenção de conquistas sociais e na (re)distribuição do poder no contexto informacional. Revelam-se, portanto, como ferramentas de grande relevância para a implementação de inovações focadas em seu sentido amplo, bem como para a promoção do princípio proposto por Amartya Sen de “desenvolvimento como liberdade”.

 

Referências Bibliográficas

Albagli, Sarita; Maciel, Maria Lucia (2011), “Informação, poder e política: a partir do Sul, para além do Sul”, in Maria Lucia Maciel; Sarita Albagli (orgs.), Informação, conhecimento e poder: mudança tecnológica e inovação social. Rio de Janeiro: Garamond, 9-39.         [ Links ]

Arbix, Glauco (2010), “Estratégias de inovação para o desenvolvimento”, Tempo Social, 22(2), 167-185.         [ Links ]

Balducci, Jacqueline Rodrigues de Oliveira (2000), Sistema de informação: um breve histórico e sua aplicabilidade em bibliotecas universitárias. Itajubá: UNINCOR.         [ Links ]

Baumgarten, Maíra; Santos de Lima, Leonardo (2014), “Inovação, inovação social e comunicação pública de ciência e tecnologia: o caso da Wikipédia e sua rede de atores”, in Marcos Costa Lima; Antonio Almeida Jr. (orgs.), Comunicação, tecnologia e ambiente. São Paulo: Hucitec (no prelo).         [ Links ]

Bauman, Zygmunt (1999), Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Benkler, Yochai (2006), The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. New Haven/London: Yale University Press.         [ Links ]

Best, Steven; Kellner, Douglas (2001), The Postmodern Adventure. Science, Technology, and Cultural Studies at the Third Millennium. New York/London: Guilford/Routledge.         [ Links ]

Breton, Philippe (1991), História da informática. São Paulo: UNESP.         [ Links ]

Campos, Aline de (2009), Conflitos na colaboração: um estudo das tensões em processos de escrita coletiva na web 2.0. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.         [ Links ]

Cardon, Dominique (2012), A democracia internet: promessas e limites. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Castells, Manuel (2003), A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Castells, Manuel (2010), A era da informação: economia, sociedade e cultura, vol. 1. São Paulo: Paz e Terra [6.ª edição atualizada].         [ Links ]

Chopra, Samir; Dexter, Scott D. (2010), Decoding Liberation. The Promisse of Free and Open Source Software. New York/London: Routledge.         [ Links ]

Cocco, Giuseppe (2011), “A luta dentro do novo paradigma. Revisitando o debate sobre inovação”, in Maria Lucia Maciel; Sarita Albagli (orgs.), Informação, conhecimento e poder: mudança tecnológica e inovação social. Rio de Janeiro: Garamond, 103-149.         [ Links ]

Coleman, Enid Gabriella (2010), “Revoluções silenciosas: o irônico surgimento do software livre e de código aberto e a constituição de uma consciência legal hacker”, in Ondina Fachel Leal; Rebeca Hennemann Vergara de Souza (orgs.), Do regime de propriedade intelectual: estudos antropológicos. Porto Alegre: Tomo Editorial, 131-147.         [ Links ]

Ferraz, Nelson Corrêa de Toledo (2002), Vantagens estratégicas do software livre para o ambiente corporativo. Monografia em Master Business Information Systems, São Paulo, Centro de Ciências Exatas e Econômicas, Pontifícia Universidade Católica, Brasil.         [ Links ]

Guesser, Adalto Herculano (2011), Software livre & controvérsias tecnocientíficas: uma análise sociotécnica no Brasil e em Portugal. Curitiba: Juruá         [ Links ].

Johnson, Telma (2010), Nos bastidores da Wikipédia lusófona: percalços de um projeto de escrita coletiva on-line. Rio de Janeiro: E-papers.         [ Links ]

Julien, Pierre-André (2010), Empreendedorismo regional e economia do conhecimento. São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

Kellner, Douglas (2002), “Theorizing Globalization”, Sociological Theory, 20, 285-305.         [ Links ]

Kellner, Douglas (2006), “Cultura da mídia e triunfo do espetáculo”, in Dênis de Moraes (org.), Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 119-147.         [ Links ]

Kelty, Christopher M. (2008), Two Bits: The Cultural Significance of Free Software. Durham: Duke University Press.         [ Links ]

Maciel, Maria Lucia (2005), “Estímulos e desestímulos à divulgação do conhecimento científico”, in Maíra Baumgarten (org.), Conhecimentos e redes: sociedade, política e inovação. Porto Alegre: UFRGS Editora, 107-136.         [ Links ]

Martín-Barbero, Jesús (2006), “Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação no novo século”, in Dênis de Moraes (org.), Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 51-79.         [ Links ]

Mendes, Cássia Isabel Costa (2006), Software livre e inovação tecnológica: uma analise sob a perspectiva da propriedade intelectual. Dissertação de Mestrado, Campinas, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, Unicamp, Brasil.         [ Links ]

Miranda, Viviane Vieira de; Vieira, Carlos Eduardo da Costa; Carelli, Flávio Campos (2008), “O uso de Software Livre no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro)”, Cadernos UniFOA, 3(8), 11-20.         [ Links ]

Murillo, Luis Felipe Rosado (2010), “Tecnologia, política e cultura na comunidade brasileira de software livre e de código aberto”, in Ondina Fachel Leal; Rebeca Hennemann Vergara de Souza (orgs.), Do regime de propriedade intelectual: estudos antropológicos. Porto Alegre: Tomo Editorial, 75-93.         [ Links ]

Negroponte, Nicholas (1995), A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

O’Reilly, Tim (2006), O que é Web 2.0 – Padrões de design e modelos de negócios para a nova geração de software. Traduzido por Miriam Medeiros. Consultado a 01.07.2012, em http://www.cipedya.com/doc/102010.         [ Links ]

Orozco Gómez, Guillermo (2006), “Comunicação social e mudança tecnológica: um cenário de múltiplos desordenamentos”, in Dênis de Moraes (org.), Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 81-98.         [ Links ]

Santos, Boaventura de Sousa (2011), “Os processos da globalização”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 25-102 [4.ª ed.         [ Links ]].

Sassen, Saskia (2011), “Conhecimento político informal e seus efeitos capacitantes: o papel das novas tecnologias”, in Maria Lucia Maciel; Sarita Albagli (orgs.), Informação, conhecimento e poder. Mudança tecnológica e inovação social. Rio de Janeiro: Garamond, 151-182.         [ Links ]

Sen, Amartya (2000), Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Silveira, Sérgio Amadeu (2003), “Inclusão digital, software livre e globalização contra-hegemônica”, in Sérgio Amadeu Silveira; João Cassino (orgs.), Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 17-47.         [ Links ]

Silveira, Sérgio Amadeu (2004), Software livre: a luta pela liberdade do conhecimento. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.         [ Links ]

Silveira, Sérgio Amadeu; Cassino, João (2003). Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad Editora do Brasil.         [ Links ]

Warschauer, Mark (2006), Tecnologia e inclusão digital: a exclusão digital em debate. São Paulo: Editora Senac São Paulo.         [ Links ]

 

NOTAS

* Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Integrante do LaDCIS – Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social desta mesma instituição. Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS. Possui experiência na área de sociologia, com ênfase em sociologia do conhecimento, especificamente nos temas redes, ambientes virtuais e difusão do conhecimento.

1 Sobre o surgimento e o desenvolvimento dos computadores pessoais, vide Breton (1991), Negroponte (1995) e Balducci (2000). Sobre a história e a cultura da internet, vide Castells (2003; 2010) e Cardon (2012). Sobre as origens dos “softwares livres”, vide Kelty (2008), Chopra e Dexter (2010) e Coleman (2010).

2 Segundo Coleman (2010: 132), o código-fonte consiste no “conjunto de funções subjacentes que fazem funcionar os programas de computador”. Pode-se defini-lo ainda como “o conjunto de palavras ou símbolos escritos de forma ordenada, contendo instruções em uma das linguagens de programação existentes, de maneira lógica”. Consultado a 03.02.2014, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Código_fonte.

3 O manifesto GNU, que marca o início do Movimento do Software Livre, apresenta as “4 liberdades” que devem ser respeitadas na produção compartilhada de softwares pelos integrantes do movimento: “liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade n.º 0); liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo para as suas necessidades (liberdade n.º 1); […] liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao seu próximo (liberdade n.º 2); liberdade de aperfeiçoar o programa e liberar os seus aperfeiçoamentos de modo que toda a comunidade se beneficie (liberdade n.º 3)” (Murillo, 2010: 77).

4 Sistema operacional desenvolvido pelos laboratórios Bell, que está na base do desenvolvimento da internet (Castells, 2003: 16).

5 Essas vantagens e esses benefícios serão discutidos a seguir.

6 Hypertext markup language – formato específico para os documentos em hipertexto, criado com base na tradição da flexibilidade da internet, possibilitando a adaptação das linguagens específicas dos computadores a esse novo formato compartilhado (Castells, 2010).

7 Aqui se utilizou uma versão traduzida do texto original publicado em 2005: “What Is Web 2.0 – Design Patterns and Business Models for the Next Generation of Software”. A versão original encontra-se disponível em http://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html. Consultado a 03.02.2014.

8 Para efeito de exemplo, em 2014 mais de 90% dos usuários de microcomputadores no mundo utilizam o sistema operacional Windows, em suas diferentes versões. Consultado a 03.02.2014, em http://www.netmarketshare.com.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons