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Revista Nutrícias

versão On-line ISSN 2182-7230

Nutrícias  no.15 Porto dez. 2012

 

ARTIGO PROFISSIONAL


Alimentação Adequada e Sustenta-bilidade Social

Adequate Food and Social Sustainability

 

Sónia Lucena1

1Nutricionista, Professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, Consultora na Área de Segurança Alimentar e Nutricional

Endereço para correspondência

 

RESUMO


O desenvolvimento sustentável é condição essencial para o fortalecimento da democracia e da cidadania, mediante a participação dos indivíduos no processo de desenvolvimento, baseado na ética, justiça e satisfação das necessidades humanas, dentre as quais se incluem a alimentação, saúde, educação, moradia, segurança, dentre inúmeras outras. A alimentação constitui um dos fundamentos da sustentabilidade social, na medida em que garante o funcionamento integral e harmónico do organismo humano, do ponto de vista físico, psíquico, mental e social. As sociedades resultam da interacção do homem com o seu ambiente físico, psíquico e social, e seu equilíbrio e desenvolvimento estão intimamente relacionados a esses parâmetros. Daí a importância da alimentação adequada no amplo contexto da sustentabilidade social.

Palavras-Chave: Alimentação, Sustentabilidade social, Qualidade de vida, Segurança alimentar

 


 

ABSTRACT
Sustainable development is an essential condition for strengthening democracy and citizenship through the participation of individuals in the development process based on ethics, justice and the satisfaction of human needs, such as food, health, education, housing, security, etc. Food intake constitutes one of the foundations of social sustainability, as it ensures the integral, harmonious functioning of the human organism from the physical, psychical, mental and social standpoints. Societies result from the interaction of individuals with their physical, psychical and social environment. The balance and development of a society is closely related to these parameters. Therefore, adequate food intake is an important aspect in the broader context of social sustainability.

keywords: Food, Social sustainability, Quality of life, Food security

 


 

INTRODUÇÃO
Nunca se falou tanto em Sustentabilidade como nas duas últimas décadas. É fundamental a compreensão da importância de conservarmos os recursos naturais e a adopção de hábitos que respeitem a capacidade de produção e renovação do nosso planeta. São condições essenciais para garantirmos mais vida para todos que habitam o Planeta Terra e para as futuras gerações. Mas é importante lembrar que a preservação ambiental e a sustentabilidade só terão sentido se oferecerem condições básicas de vida para os que estão inseridos neste contexto ambiental.
Tratar do tema da Alimentação Adequada e da Sustentabilidade Social é um grande desafio, inclusive pela escassez de material escrito. Embora os temas isolados estejam na ordem do dia, dificilmente são abordados de forma correlacionada.
O grande marco para o desenvolvimento sustentável mundial foi, sem dúvida, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em Junho de 1992 (a Rio 92), ao término da qual se aprovaram uma série de documentos importantes, dentre os quais a Agenda 21, um plano de acção mundial para orientar a transformação desenvolvimentista. A Agenda 21 apresenta como um dos principais fundamentos da sustentabilidade o fortalecimento da democracia e da cidadania, através da participação dos indivíduos no processo de desenvolvimento, combinando ideais de ética, justiça, cidadania, democracia e satisfação de necessidades.
A noção de “sustentabilidade social” surge a partir do momento em que se identifica a necessidade de ampliação do conceito de sustentabilidade, quando se identifica a necessidade de inclusão das condições humanas neste contexto.
Para Silva (1995), a sustentabilidade social está baseada num processo de melhoria na qualidade de vida da sociedade e redução das discrepâncias entre a opulência e a miséria, por meio de diversos mecanismos. Esses mecanismos podem ser: nivelamento do padrão de renda, acesso a educação, moradia e alimentação, entre outros (necessidades biofisiológicas e de formação intelectual) (1).
Os principais benefícios obtidos por meio das acções de sustentabilidade social são: garantia da autodeterminação e dos direitos humanos dos cidadãos; garantia de segurança e justiça, através de um sistema judicial fidedigno e independente; melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, que não deve ser reduzida ao bem-estar material; promoção da igualdade de oportunidades; inclusão dos cidadãos nos processos de decisão social, de promoção da autonomia da solidariedade e de capacidade de auto-ajuda; garantia de meios de protecção social fundamentais para os indivíduos mais necessitados.
Actualmente, os problemas decorrentes da crise económica mundial podem representar um momento único para repensar os rumos que a sociedade vem tomando e as reais possibilidades de alcance do chamado desenvolvimento sustentável, entendendo este como a preocupação com a garantia mínima de manutenção dos padrões de bem-estar para as gerações futuras. Entre estes padrões de bem-estar, encontra-se a alimentação saudável.
E o que se entende por alimentação saudável‌
Segundo o Guia Alimentar da População Brasileira, “uma alimentação saudável não deve ser vista como uma receita preconcebida e universal, pois deve respeitar alguns atributos individuais e colectivos específicos impossíveis de serem quantificados de maneira prescritiva. Contudo, identificam-se alguns princípios básicos que devem reger a relação entre as práticas alimentares e a promoção da saúde e a prevenção de doenças” (2).
Para o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea, “a alimentação adequada e saudável é a realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais, pautada no referencial tradicional local. Deve atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação, prazer (sabor), às dimensões de género e etnia, e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de contaminantes físicos, químicos, biológicos e de organismos geneticamente modificados” (3). Segundo a nutricionista Regina Miranda, esta definição é clara ao extrapolar os atributos biológicos do alimento, propondo-se a avançar na direcção dos preceitos sociais, políticos e ambientais, conjuntamente envolvidos na realização de uma alimentação sadia e sintonizada com bons hábitos alimentares, com a natureza e os diferentes grupos sociais e seu direito ao prazer no acto de comer (4).
Reforçando os dois conceitos, o Guia alerta para uma questão básica: se a alimentação se dá em função do consumo de alimentos e não de nutrientes, uma alimentação saudável deve estar baseada em práticas alimentares que tenham significado social e cultural. Os alimentos têm gosto, cor, forma, aroma e textura e todos esses componentes precisam ser considerados na abordagem nutricional. Os nutrientes são importantes; contudo, os alimentos não podem ser resumidos a veículos deles, pois agregam significações culturais, comportamentais e afectivas singulares que jamais podem ser desprezadas. Portanto, o alimento como fonte de prazer e identidade cultural e familiar também é uma abordagem necessária para a promoção da saúde.
Nesse aspecto temos que reflectir, enquanto categoria, sobre as críticas feitas por Pollan no seu livro em “Defesa da comida: um manifesto”. A obra faz uma crítica à dieta ocidental (alimentação industrializada), que minou a cultura alimentar americana, substituindo durante o século XX a “comida de verdade” por “produtos alimentares” (Aqui abro um parêntese para afirmar que serviu de parâmetro também para a alimentação do brasileiro). O autor critica também a ideologia do nutricionismo, defendida pela indústria alimentar, que conseguiu ter poder e influência para gerar consenso em torno de três mitos: 1) o mais importante não é o alimento, mas sim o nutriente; 2) por ser este invisível e incompreensível, precisamos de especialistas para decidir o que comer; e 3) o objectivo da alimentação é promover a saúde física (5).
Mas, como relacionar o conceito da alimentação saudável com o de sustentabilidade social‌
Para alguns estudiosos, vivemos um momento histórico em que há uma grande produção de conhecimentos, de geração de riquezas e de desenvolvimento tecnológico, mas, concomitantemente a esta realidade, agravam-se os problemas sociais, as diferenças regionais, a degradação do meio ambiente, as desigualdades sociais e a presença de um processo económico excludente. Nunca se falou tanto em crescimento, desenvolvimento e riqueza como no momento actual, sem considerar todos os desafios a serem enfrentados por um contingente populacional a quem não se garante sequer uma refeição mínima por dia.
Se a sustentabilidade social está ligada intimamente à ideia de bem-estar, clarificando quais as funções dos indivíduos e das organizações e produzindo estabilidade social, qual seria o papel da alimentação adequada nesse contexto‌ A garantia de uma alimentação adequada e saudável é uma condição básica para a vida humana. Por isso, é tratada hoje no Brasil como um direito humano básico. Apesar do avanço brasileiro em garantir a alimentação como um direito, sabemos que, para sua concretização, ainda há um longo caminho a ser seguido. Os actuais indicadores nutricionais nos colocam numa condição de alerta absoluta para garantir esse direito. Vários factores são considerados desafios estruturantes nessa conquista, um deles tem relação directa com o consumo alimentar moderno. Há claras evidências de que a manutenção desse modelo invariavelmente se tornará insustentável.
Para Azevedo e Rigon (6), a Nutrição torna-se uma ciência socioambiental; o acesso a uma alimentação de qualidade passa a ter a dimensão de direito humano e dever do Estado; e o acto de alimentar-se, um acto político, mediante o qual o consumidor de alimentos se transforma em um actor a quem são atribuídos direitos e também responsabilidades pela forma de desenvolvimento que ele deseja ver no mundo.
O modelo alimentar moderno tem suas raízes históricas marcadas pelos ciclos económicos capitalistas de grande escala que supõem, entre outros aspectos, a intensificação da produção agrícola, a orientação da política de oferta e demanda de determinados alimentos, a concentração dos negócios em empresas multinacionais, a ampliação e especialização por meio das redes comerciais cada vez mais omnipresentes e, definitivamente, a internacionalização da alimentação.
Para Mabel Arnaiz (7), o sistema alimentar moderno apresenta às vezes paradoxos e, outras vezes, complementações que se sintetizam em quatro tendências:
1.º fenómeno da homogeneização do consumo em uma sociedade massificada;
2.ª persistência de um consumo diferencial e socialmente desigual;
3.º incremento da oferta personalizada, avaliada pela criação de novos estilos de vida comuns, e finalmente:
4.º incremento de uma individualização alimentar, causada pela crescente ansiedade do comensal contemporâneo.
Paul Roberts (8), em seu livro “O fim dos alimentos”, explica que o novo modelo industrializado da agricultura tornou a fazenda um empreendimento racional: quanto maior a entrada de capital - fertilizantes, pesticidas, sementes - maiores os lucros. A pecuária e a agricultura intensivas utilizando substâncias químicas degradaram a capacidade produtiva dos sistemas naturais. O autor acrescenta que a espiral tecnológica da crescente produtividade reduziu de forma generalizada os preços dos produtos no mercado, incrementando o poder de compra dos consumidores, contudo, gerando um lento desastre para os produtores. Empresas farmacêuticas e petroquímicas engoliram os produtores pequenos e menos eficientes, oligopolizando sectores de insumos e sementes. Na sua crítica, Roberts inclui conceitos de externalidades ambientais e sociais ocasionadas pelo consumo maciço dos recursos naturais, bem como a escassez iminente das fontes de energia que propiciam essa produção e demonstra como os todos factores se inter-relacionam, gerando a insustentabilidade socioambiental da economia alimentar.
De acordo com o mesmo autor, a revolução do sector do varejo deu-se pela seguinte lógica: “Os agricultores são reféns dos insumos, que são providos por multinacionais petroquímicas e farmacêuticas que agregam valor aos produtos enviados para grandes marcas que processam os alimentos e distribuem alimentos acabados ou semiacabados para varejistas que são controlados pelo preço e a demanda do mercado. Os quais criam suas próprias marcas (sector supermercadista) de menor qualidade e com menor valor de venda (genéricos), usurpando o poder de venda de redes menores que se fundem para criar umas poucas grandes redes varejistas, aumentando o custo do produtor primário e alimentando a hegemonia varejista”.
O resultado dessa lógica se evidencia nas diferentes análises das condições alimentares da população mundial, com ênfase na população de países do cone sul, mostrando o crescimento exponencial de graves doenças crónicas não transmissíveis, a exemplo da obesidade, doenças cardíacas, hipertensão e diabetes, registando que uma em cada sete pessoas no mundo vive em estado de “insegurança alimentar”. A obesidade é, de facto, uma das evidências mais visíveis da inadequação dos alimentos como fenómeno económico; embora os consumidores possam consumir DVDs ou ténis que as empresas de cartão de crédito permitirem, o mesmo não pode ser dito acerca do alimento, independentemente de quão barato se torne.
O Brasil segue bem essa lógica, iniciando pela alta concentração de terras que de certa forma dificulta, quando não inviabiliza, a participação do agricultor familiar na produção de alimentos, priorizando a grande propriedade rural que privilegia a monocultura para exportação, com uma alta degradação do meio ambiente. Apesar desse histórico, os dados do Censo Agropecuário (9) demonstram que a agricultura familiar, com apenas 24,3% da área agrícola, é responsável pela produção de quase 80% dos alimentos consumidos no país. Mesmo produzindo quase toda a alimentação da população brasileira, a agricultura familiar conta com menos recursos públicos como suporte de suas actividades: recebeu, mediante as políticas públicas, cerca de 13 bilhões de reais em 2008, em compensação aos mais de 100 bilhões obtidos pelo agronegócio.
Por esse e tantos outros motivos é que insistimos para que os profissionais nutricionistas priorizem e defendam a compra de alimentos locais e regionais, de alimentos da agricultura familiar camponesa pelos programas institucionais do governo. De facto, como nutricionistas, frequentemente temos, nos dias actuais, oportunidade para influenciar na execução dos programas institucionais do governo e, se nos preocupamos com uma alimentação adequada, temos de ampliar a compra de alimentos locais e regionais, de alimentos da agricultura familiar camponesa.
Outro problema para reflexão é a actual crise mundial de alimentos. Sabemos que ela é reflexo da produção mundial de commodities, do oligopólio empresarial e do consumo maciço de alimentos industrializados. É bem verdade que as principais causas apontadas no início da crise em 2008 estivessem relacionadas com quatro questões básicas: 1.ª) a produção de etanol de milho nos Estados Unidos. O país utiliza nada menos do que 10% da produção mundial de milho para produzir etanol; 2.ª) a especulação financeira; 3.ª) a demanda dos países em desenvolvimento, principalmente China e Índia, devido ao crescimento populacional e à mudança do padrão alimentar; 4.ª) a alta do preço do petróleo e problemas de safras causados pelo aquecimento global. Importantes perdas de produção ocorreram na Austrália e em alguns países africanos, relacionadas directamente aos problemas climáticos (10).
Em 12 de Julho de 2012, em matéria publicada pelo jornal Valor Económico, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a FAO reconhecem que não é mais possível fazer projecções no sector agrícola sem levar em conta o peso dos biocombustíveis nesses cálculos. A produção agropecuária precisará crescer mais de 60% nos próximos 40 anos para atender à crescente demanda por alimentos. Isso significa produzir 1 bilhão de toneladas de cereais e 200 milhões de toneladas de carnes a mais por ano em relação aos níveis de 2007. Ou seja, há uma disputa crescente de matérias-primas para alimentos e combustíveis no mercado mundial. A FAO tem alertado que a produção cresceu nos últimos anos graças ao aumento de área e da utilização de insumos, que não poderão ser mantidas no futuro. Segundo a entidade, cerca de 25% da totalidade das terras agrícolas estão muito degradadas. O desafio é fazer o melhor uso sustentável dos recursos disponíveis.
Diante do exposto temos que reconhecer que a nossa tarefa, como profissionais que reivindicam a responsabilidade em orientar a alimentação adequada da população brasileira, é mais complexa do que podemos imaginar. É fundamental, para isso, que o profissional nutricionista adquira uma formação mais abrangente que lhe possibilite ir além da simples prescrição nutricional, seja ela destinada aos indivíduos saudáveis ou enfermos. Cabe aos órgãos formadores a responsabilidade em responder às seguintes perguntas: estou formando nutricionista para atender uma demanda do mercado de trabalho‌ Ou para atender as necessidades reais da população‌ Esse é um grande desafio que temos que enfrentar, apesar da resistência do sector de ensino em discutir a sua responsabilidade neste contexto.
Outro desafio fundamental é lutar por outro modelo de desenvolvimento que priorize o homem dentro de um contexto de alimentação sustentável, como defende o conceito brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional que ainda sofre resistência no seio da categoria, reduzindo-o a uma actividade apenas dos profissionais de Saúde Pública.
O Brasil, hoje, é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Parte desses venenos foram banidos de outros países, pelos efeitos teratogénicos que podem causar ao homem, no entanto, permanecem sendo usados na produção de alimentos, sem que nenhuma medida efectiva tenha sido tomada para bani-los. Devemos fortalecer a Anvisa, como órgão de controle, para que a mesma possa exercer o seu papel no monitoramento da qualidade dos alimentos comercializados no Brasil sem a interferência de políticos que têm interesse monetários em proteger a indústria de venenos. Temos que fortalecer a campanha contra o uso de agrotóxicos banidos liderada pela Associação Brasileira de Saúde Colectiva (Abrasco) e outras entidades, apoiar o Fórum Nacional de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, liderado pela Procuradoria Geral do Trabalho, o movimento internacional Ciência Cidadão criado na Cúpula dos Povos, com a assinatura de mais de 120 cientistas brasileiros, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O Conselho Federal de Nutricionistas recentemente emitiu uma orientação aos profissionais e à população sobre o cuidado com alimentos produzidos com agrotóxicos e transgénicos. Se quisermos avançar na luta por uma alimentação adequada, seguramente temos que abraçar essa causa.
Segundo a professora Silvia Rigon (6), da Universidade Federal do Paraná: “O uso de novas tecnologias como os processos de transgenia e irradiação nos alimentos trazem novas apreensões. Nos alimentos transgénicos, os riscos à saúde humana estão relacionados a dois tipos de incertezas: a primeira é vinculada aos tipos e circunstâncias que promovem a absorção e a instalação do DNA exógeno no tracto gastrointestinal dos mamíferos. A hipótese levantada é que, uma vez que estudos demonstram que o DNA e as proteínas dos organismos geneticamente modificados persistem no tracto gastrointestinal, sua absorção nos mamíferos poderia conduzir ao desenvolvimento de condições de doenças crónicas. A segunda categoria de riscos é aquela que pode advir da produção de ameaças potenciais, tais como os alergénicos, já experienciadas por consumidores que utilizaram o suplemento alimentar transgénico L-triptofano e o milho StarLink com o gene contendo a toxina Bt”.
O estudo, realizado pela equipe do professor Gilles-Eric Séralini (11), da Universidade de Caen, na França, foi publicado em 19 de Setembro de 2012, em uma das mais importantes revistas científicas internacionais de toxicologia alimentar. Pela primeira vez na história foi realizado um estudo completo e de longo prazo para avaliar o efeito que um transgénico e um agrotóxico podem provocar sobre a saúde pública. Os resultados são alarmantes. O estudo foi realizado ao longo de 2 anos com 200 ratos de laboratório, nos quais foram avaliados mais de 100 parâmetros. Os ratos foram alimentados de três maneiras distintas: apenas com milho NK603, com milho NK603 tratado com Roundup e com milho não modificado geneticamente tratado com Roundup. Os resultados revelam uma mortalidade mais alta e frequente quando se consome esses dois produtos, com efeitos hormonais não lineares e relacionados ao sexo. As fêmeas desenvolveram numerosos e significantes tumores mamários, além de problemas hipofisários e renais. Os machos morreram, em sua maioria, de graves deficiências crónicas hepato-renais.
Vale salientar que praticamente todos os subprodutos do milho consumidos no Brasil são oriundos de produção transgénica. O milho usado como teste dessa pesquisa foi autorizado no Brasil em 2008 e está amplamente disseminado nas lavouras e alimentos industrializados, e o Roundup é também largamente utilizado em lavouras brasileiras, sobretudo as transgénicas. Com a aprovação da CTNBio.
Qual a solução para evitar esse tipo de alimento‌ Seguramente que a alimentação oriunda da produção orgânica agroecológica sem o uso de produtos químicos e geneticamente modificados.
A agricultura familiar tem apresentado alternativas de produção agroecológica, seguida hoje por várias organizações da sociedade civil nacional, para o efectivo equacionamento dos desafios alimentares, ambientais, sociais e económicos colocados para a humanidade. A Agroecologia goza hoje de crescente reconhecimento por prestigiosos organismos internacionais. Seus resultados práticos estão fartamente documentados no mundo inteiro, comprovando que um futuro mais promissor e seguro para a Humanidade pode ser construído a partir da revitalização da agricultura familiar camponesa.
A presidenta Dilma Roussef em 20 de Agosto de 2012 assinou o Decreto 7.794 que institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica- PNAPO (12), com o objectivo de integrar, articular e adequar políticas, programas e acções indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base agroecológica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudáveis. Esse é o primeiro passo de uma longa caminhada.
Devemos, nesse momento, revisar os conceitos de nosso inesquecível Nelson Chaves, em matéria do Jornal do Comercio de 01 de Maio de 1976 alertava sobre a relação da nutrição com o desenvolvimento económico: “A máquina, na civilização ocidental, atingiu o esplendor, deixando de ser um instrumento a serviço do homem para se transformar no seu competidor e destruidor”. Criou-se uma sociedade de consumo inquieta, correndo desesperadamente atrás de lucros, de bens de consumo, muitos deles inúteis e prejudiciais. Continua o professor: “O homem tem outras dimensões e não pode ser considerado apenas na sua expressão económica. Em decorrência dos conflitos generalizados, da agressividade crescente, os problemas humanos vêm sendo alvo da maior atenção, inclusive como medida de segurança... Entre esses problemas destaca-se o nutricional, porquanto sabemos que o desenvolvimento físico e mental do homem depende fundamentalmente do seu estado de nutrição e de saúde”. Ou seja, há 36 anos atrás Nelson Chaves alertava para os problemas do futuro que já chegou. Será que nos preparamos para enfrentá-los‌
José Mujica (13), presidente do Uruguai, faz indagações dramáticas acerca do momento que vivemos: “O modelo de desenvolvimento e de consumo que queremos é o actual das sociedades ricas‌ O que ocorreria no planeta se todos os indianos tivessem a mesma proporção de carros que têm os alemães‌ Quanto de oxigénio ficaria para respirarmos‌ Estamos governando a globalização ou ela nos governa‌ É possível falar de solidariedade e de que estamos “todos juntos” numa economia que baseada na competência actua com crueldade‌ O desafio que temos pela frente é um desafio de uma magnitude de carácter colossal e a grande crise que temos não é ecológica, é política. Não viemos ao planeta para desenvolvermos somente, assim, em geral. Viemos ao planeta para sermos felizes. Porque a vida é curta e logo se vai. E nenhum bem vale como a vida. Isto é o elementar”. Por fim, ele encerra seu discurso dizendo: “O desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Tem que ser a favor da felicidade humana; do amor à terra; do cuidado; dos filhos; dos amigos. E ter, sim, o elementar. Precisamente, porque é o tesouro mais importante que temos. Quando lutamos pelo meio ambiente, temos que recordar que o primeiro elemento do meio ambiente se chama felicidade humana”.

ANÁLISE CRÍTICA E CONCLUSÕES
Vivemos um momento histórico em que há uma grande produção de conhecimentos, de geração de riquezas e de desenvolvimento tecnológico, mas, concomitantemente a esta realidade, agravam-se os problemas sociais, as diferenças regionais, a degradação do meio ambiente, as desigualdades sociais e a presença de um processo económico excludente. Nunca se falou tanto em crescimento, desenvolvimento e riqueza como no momento actual, sem considerar todos os desafios a serem enfrentados por um contingente populacional a quem não se garante sequer uma refeição mínima por dia.
Nunca se falou tanto em Sustentabilidade como nas duas últimas décadas. É fundamental a compreensão da importância de conservarmos os recursos naturais e a adopção de hábitos que respeitem a capacidade de produção e renovação do nosso planeta. São condições essenciais para garantirmos mais vida para todos que habitam o Planeta Terra e para as futuras gerações. Mas é importante lembrar que a preservação ambiental e a sustentabilidade só terão sentido, se oferecerem condições básicas de vida para os que estão inseridos neste contexto ambiental.

NOTA DA DIRECTORA
Publica-se, nesta edição da Revista Nutrícias, a Palestra de abertura e Conferência Magna do XXII Congresso Brasileiro de Nutrição realizado em Pernambuco, proferida pela Professora Doutora Sónia Lucena, em Setembro de 2012.
Pela originalidade do tema: Alimentação Adequada e Sustentabilidade Social, bem como pelo brilhante modo como este é abordado e desenvolvido, entendeu-se ser este um registo de inegável interesse para os nutricionistas e leitores desta publicação.
Desejo expressar publicamente um agradecimento à Senhora Professora Doutora Sónia Lucena pela autorização dada para a sua publicação, assim como pela adaptação que desenvolveu ao discurso, de modo a adaptá-lo às normas de publicação, como artigo de índole profissional.
Helena Ávila M.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Silva J G. Agricultura Sustentável: um Novo Paradigma ou um Novo Movimento Social‌ Informações Econômicas, 1995; 25(11); 11-21
2.         [ Links ] Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Promovendo a Alimentação Saudável. Brasília: Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição, 2005
3. Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Promovendo a Alimentação Saudável. (Série A: Normas e manuais Técnicos). Brasília, 2006
4. Miranda R da S. Alimentação e Cultura. Alimentação adequada e saudável: uma questão de direito humano. Slow Food Brasil. 2007
5. Pollan M. Em Defesa da Comida: Um Manifesto. Editora Intrínseca. 2009
6. Azevedo E. de, Rigon, S. Sistema Alimentar com Base no Conceito de Sustentabilidade. São Paulo: Editora Rubio. 2011, 664p
7.         [ Links ] Arnaiz M G. Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro; Editora Fiocruz. 2005
8. Roberts P. O fim dos alimentos. Rio de Janeiro: Editora Campus. 2008
9. IBGE. Censo Agropecuário. Brasília. 2006
10. Entenda a crise de alimentos. Folha online. São Paulo. 25 de Abril de 2008
11. Gilles-Eric Séralini, Emilie Clair, Robin Mesnage, Steeve Gress, Nicolas Defarge, Manuela Malatesta, Didier Hennequin, Joël Spiroux de Vendômois. Long term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Food and Chemical Toxicology. 2012. Volume 50, issue 11, p. 4221-4231
12. Decreto 7.794 que institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica- PNAPO, Brasília
13. Mujica Cordano J A. Discurso na Rio+20. Rio de Janeiro, Julho 2012. Disponível em: http://www.youtube.com/watch‌v=zsOGZKRVqHQ&feature=share

 

Endereço para correspondência
Sónia Lucena
sonialucena54@gmail.com


Recebido a 4 de Outubro de 2012
Aceite a 24 de Novembro de 2012

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