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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.3 Lisboa June 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i3.12550 

RELATOS DE CASO

Síndroma do túnel cárpico ulcero-mutilante: relato de um caso

The ulcerative and mutilating variant of carpal tunnel syndrome: a case report

Inês Torrinha Leão,1
https://orcid.org/0000-0002-5788-2433

Daniel Kiessling,1

Fabíola Ferreira2

1 Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Vale do Vez, ULS do Alto Minho.

2 Médica Assistente Graduada de Medicina Geral e Familiar. USF Vale do Vez, ULS do Alto Minho.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A síndroma do túnel cárpico (STC) é a mononeuropatia focal compressiva mais comum observada na prática clínica. Em alguns casos, a apresentação clínica pode ser atípica e, em estadios avançados, pode ocorrer uma variedade de manifestações cutâneas.

Descrição do caso: Doente do sexo masculino, com 84 anos, pertencente a uma família alargada de classe social média, com antecedentes de hipertensão arterial, dislipidemia, neoplasia da próstata e cirurgia bilateral a STC. O doente foi observado na sua unidade de saúde familiar por avulsão parcial da unha no terceiro dedo da mão esquerda, em contexto de lesão em placa erosiva, sangrante e indolor, aparentemente não traumática no leito ungueal, com três meses de evolução. Pela suspeita de melanoma, o doente foi referenciado à consulta de dermatologia, mas entretanto, por apresentação de sinais inflamatórios recorrentes, foi submetido a vários ciclos de antibioterapia e desbridamento cirúrgico. Posteriormente, já em consulta de dermatologia, foi realizada biópsia que excluiu a suspeita diagnóstica de neoplasia e foi colocada a hipótese de STC ulcero-mutilante, confirmada por eletromiografia e pela clínica sugestiva.

Comentário: A STC ulcero-mutilante é uma variante rara de uma patologia muito frequente nos cuidados de saúde primários. Assim, o médico de família deve estar alerta para a sua existência, iniciando a abordagem diagnóstica, assegurando a necessária articulação com as diferentes valências hospitalares, a continuidade de cuidados e a prevenção de complicações.

Palavras-chave: Síndroma de túnel cárpico; Acro-osteólise; Úlcera cutânea.


 

ABSTRACT

Introduction: Carpal tunnel syndrome (CTS) is the most common compressive focal mononeuropathy in clinical practice. In some cases, the clinical presentation may be atypical and in advanced stages, a variety of cutaneous manifestations may occur.

Case summary: 84-year-old male patient from an extended middle-class family with a history of hypertension, dyslipidemia, prostate cancer, and bilateral CTS surgery. The patient was observed by his family physician because of partial avulsion of the nail on the third finger of the left hand. He had previously an erosive, painless, apparently non-traumatic, bleeding lesion on the nail bed of that finger with three months of evolution. Considering the suspicion of melanoma, the patient was referred to a dermatology specialist. Meanwhile, due to the presence of recurrent inflammatory signs, he underwent several cycles of antibiotic therapy and surgical debridement. Subsequently, in consultation with dermatology, the biopsy performed excluded the diagnostic suspicion of neoplasia, and the hypothesis of an ulcer-mutilating STC was placed and confirmed by electromyography and suggestive clinic.

Commentary: Ulcerative and mutilating CTS are a rare variant of a very common disease in Primary Care. Thus, the family physician should be alert to its existence, initiating the diagnostic approach, ensuring the necessary articulation with the different hospital specialties, and the continuity of care and prevention of complications.

Keywords: Carpal tunnel syndrome; Acro-osteolysis; Skin ulcer.


 

Introdução

A síndroma do túnel cárpico (STC) é a mononeuropatia focal compressiva mais comum observada na prática clínica.1 Refere-se ao conjunto de sinais e sintomas provocados pela compressão do nervo mediano à medida que atravessa o túnel cárpico.2-3

Os doentes geralmente apresentam uma tríade clássica de sintomas, que incluem dor noturna, parestesias e atrofia tenar.3 Habitualmente estas manifestações envolvem os primeiros três dedos da mão devido ao território de inervação do nervo mediano.2-3

Em alguns casos, a apresentação clínica pode ser atípica e, em estadios avançados, como o STC ulcero-mutilante, pode ocorrer uma variedade de manifestações cutâneas, como o eritema, edema, esclerodactilia, atrofia cutânea e cianose, lesões bolhosas, úlceras e alterações das unhas.1,4

Descrição do caso clínico

Doente do sexo masculino, 84 anos de idade, raça caucasiana, viúvo, independente para as atividades de vida diária, reformado, previamente trabalhador agrícola. Insere-se numa família alargada, altamente funcional e pertencente à classe média de Graffar. Apresenta como antecedentes pessoais: hipertensão arterial diagnosticada em 2012, medicada com perindopril + indapamida 4+1,25mg um comprimido de manhã; dislipidemia mista diagnosticada em 2012, medicada com fenofibrato 145mg e sinvastatina 20mg um comprimido ao jantar; e adenocarcinoma da próstata diagnosticada em 2012, tratada com hormonoterapia, mantendo acompanhamento hospitalar.

Foi submetido a correção cirúrgica de STC bilateral, à direita em 2008 e à esquerda em 2010. Após a última cirurgia manteve parestesias e hipoalgesia dos segundo e terceiro dedos da mão esquerda, com melhoria da força muscular. O doente não valorizou os sintomas, uma vez que não interferiam na realização das suas atividades diárias. Sem antecedentes familiares relevantes.

História da doença atual

O doente recorreu à consulta aberta na sua unidade de saúde familiar (USF) por avulsão parcial da unha do terceiro dedo da mão esquerda, quinze dias antes da consulta, devido à existência de uma lesão não traumática presente no leito ungueal. Essa lesão teria três meses de evolução e, de acordo com o doente, previamente no seu lugar teria um nevo. Ao exame objetivo apresentava lesão em placa erosiva, sangrante e indolor, localizada na polpa do terceiro dedo da mão esquerda (Figura 1).

 

 

Pela suspeita de melanoma, o doente foi referenciado à consulta de dermatologia, mantendo cuidados de penso na USF com betadine®.

Entretanto, cerca de um mês depois, estando ainda a aguardar consulta de dermatologia, regressou à consulta aberta da USF pelo aparecimento de sinais inflamatórios no dedo afetado compatíveis com quadro de dactilite, ainda que sem queixas álgicas associadas. Realizou radiografia dos dedos da mão (Figura 2), que mostrou acro-osteólise no tofo da falange distal do terceiro dedo da mão esquerda, tendo sido encaminhado para o serviço de urgência (SU) de ortopedia, onde foi levantada a hipótese de osteomielite, realizado desbridamento cirúrgico e instituída antibioterapia com levofloxacina 500mg um comprimido de 12 em 12 horas e metronidazol 250mg dois comprimidos a cada oito horas durante 10 dias e dada indicação para continuação de cuidados de penso, com betadine®, na sua USF (Figura 3 e 4).

 

 

 

 

Três dias mais tarde, já em consulta de dermatologia, foi realizada biópsia pela suspeita de melanoma, mas esta apenas revelou aspetos remanescentes de tecido de granulação/granuloma piogénico incipiente.

O doente voltou à consulta de dermatologia cerca de uma semana mais tarde, realizou nova radiografia a nível hospitalar pela ausência de melhoria do quadro. Face aos achados radiográficos e clínicos (Figura 5) optou-se por repetir biópsia e reinstituir antibioterapia com cefaclor 500mg um comprimido de 12 em 12 horas durante 10 dias.

 

 

Cerca de oito dias após última consulta foi novamente observado por dermatologia. Os resultados anatomopatológicos da segunda biópsia excluíram mais uma vez lesão tumoral. Devido aos antecedentes de STC e à ausência de sensibilidade dolorosa e tátil do doente durante todo o quadro foi levantada a hipótese de STC ulcero-mutilante e solicitada colaboração de ortopedia.

Enquanto aguardava a consulta de ortopedia foi solicitada eletromiografia dos membros superiores, pelo seu médico de família, que confirmou STC esquerdo de grau severo.

Em consulta, a ortopedia ponderou a amputação pela persistência dos sinais inflamatórios apesar dos vários ciclos de antibioterapia e pela possibilidade de recorrência de novas lesões cutâneas. No entanto, após último ciclo de antibioterapia com flucloxacilina 500g um comprimido de oito em oito horas durante 14 dias, os sinais inflamatórios acabaram por reverter (Figura 6), tendo-se optado de forma partilhada por manter uma atitude expectante. Atualmente mantém hipostesia dolorosa e tátil e ligeira limitação da flexão das falanges média e distal. Sem novas lesões cutâneas desde então.

 

 

Comentário

As úlceras cutâneas associadas à STC são raras, tendo sido inicialmente descritas pela literatura científica em 1979.5 Desde então poucos casos têm sido publicados, estimando-se que o envolvimento cutâneo na STC grave seja de 20%.6

Em contraste com a alta prevalência de STC em pessoas do sexo feminino quando comparadas com o sexo masculino (rácio de 4:1),7 na variante cutânea da STC foi demonstrada uma diminuição significativa deste rácio (2:1).5

A perda de sensibilidade cutânea causada pela compressão autonómica das fibras do nervo mediano predispõe ao aparecimento de úlceras cutâneas. Um dos fatores predisponentes para esta variante da STC é o trauma mecânico associado a trabalhos manuais.2-3,8 A variante cutânea da STC é caracterizada pelo aparecimento de úlceras, bolhas e atrofia localizadas nas falanges distais dos primeiros três dedos da mão, mesmo sem a presença de sintomas neurológicos. As unhas podem apresentar nonicodistrofia, onicólise e cutículas hiperqueratósicas.4 Em casos mais graves pode ocorrer envolvimento ósseo com acro-osteólise das falanges distais devido a oclusão vascular.3,9-10 Estes fatores predispõem a infeções bacterianas e, eventualmente, a mutilação das falanges.

Apesar de ser uma entidade rara, os médicos devem considerar a variante cutânea da STC quando se encontram na presença de lesões necróticas e bolhosas dos primeiros três dedos das mãos, especialmente quando existem sinais neurológicos.

O principal diagnóstico diferencial das lesões ulcerativas é a esclerose sistémica, mas que pode ser excluída pela ausência de endurecimento da pele, assim como de alterações capilares. As lesões bolhosas devem ser diferenciadas do impetigo, pênfigo, herpes simplex ou herpes zoster. Nestes casos, as características clínicas da STC, como a hipostesia neste caso, aliadas à eletromiografia, permitem realizar o diagnóstico correto. A radiografia óssea é útil no sentido em que pode demonstrar a existência de acro-osteólise, que é usualmente resultado da deficiente vascularização distal, no entanto, não é essencial ao diagnóstico.10

Por se tratar de um diagnóstico raro, é muitas vezes necessária a exclusão de outros diagnósticos mais frequentes. Neste caso, pela descrição por parte do doente da existência de um nevo prévio, a biópsia foi importante para a exclusão de neoplasia.

A cirurgia de libertação do túnel cárpico é o tratamento de escolha e na maioria dos casos leva à cura. No caso descrito não se optou por este tratamento, pelo facto de o doente já ter sido submetido a cirurgia prévia, sem melhoria, e considerando também a vontade do mesmo.

A descrição deste caso clínico, que expõe uma variante rara, potencialmente mutilante, de uma patologia muito frequente nos cuidados de saúde primários, pretendeu alertar para a sua existência, assim como descrever a abordagem diagnóstica e terapêutica destes casos. O médico de família desempenhou, neste caso, um papel essencial na articulação dos cuidados, assim como na continuidade dos cuidados prestados ao doente e no aconselhamento para a prevenção de complicações, como o cuidado em relação a traumatismos e ao aparecimento de novas lesões.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Inês Torrinha Leão

E-mail: ines.torrinha@gmail.com

 

Agradecimentos

À Dra. Vera Teixeira, Assistente de Dermatologia a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, pelo apoio prestado na elaboração do presente artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 18-12-2018. Aceite para publicação em 02-07-2019

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