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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.3 Lisboa June 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i3.12890 

EDITORIAL

Médicos e arquitectos: influência e persuasão nas escolhas em saúde

António Faria Vaz*

*Médico de família. Comissão de Ética para a Saúde, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

“Diferentemente dos Econs, os humanos
previsivelmente erram”1

Nudge, como designaremos o conceito, é
qualquer aspeto da arquitetura de escolha que
altera o comportamento das pessoas de maneira
previsível, sem proibir nenhuma opção ou
alterar significativamente os seus incentivos
económicos. Para contar como um simples nudge,
a intervenção deve ser fácil e económica. Nudges
não são mandatos. Colocar frutas ao nível dos
olhos conta como um nudge. Proibir comida
não saudável (junk food), não.2

(tradução livre do autor)

O conceito de nudge (influência, persuasão, empurrão) em saúde foi pela primeira vez empregue em 2008, por Richard Thaler, economista comportamental, e por Cass Sustein, jurista, num best-seller publicado. Baseando-se nos resultados da investigação comportamental, refutaram a assunção da economia clássica que afirmava que os consumidores tomam decisões económicas de risco numa perspetiva de maximização da utilidade. Ou seja, quando tomamos decisões de risco procuramos maximizar a sua utilidade (um valor quantificável, mas subjetivo), tendo em conta as consequências e as probabilidades que lhes estão associadas. Por sua vez, os economistas comportamentais usam modelos de escolha pelo consumidor que associam a investigação em psicologia e a investigação comportamental, pretendendo demonstrar que os seres humanos nem sempre escolhem em conformidade com os modelos propostos pelas teorias clássicas de decisão.3

Thaler e Sustein estabelecem a diferença entre o que designam como os «Humanos» e os «Econs». O conceito de Homo economicus, ou homem económico («Econ»), baseia-se na ideia de que as pessoas pensam e escolhem invariavelmente bem, conquanto o mesmo não possa ser dito a respeito do Homo sapiens («Humanos»). Nós, os sapiens, esquecemo-nos de coisas e, por vezes, fazemos más escolhas. Para os autores, os humanos são reais e os Econs são imaginários. É fundamental identificar essas diferenças enquanto arquitetos de escolhas, pois devem ser tidas em consideração quando se desenvolve uma nudge.

Richard Thaler recebeu o Prémio Nobel da Economia em 2017 pela sua significativa contribuição para o estudo da economia comportamental nas últimas quatro décadas. Thaler questionou e investigou a assunção da «racionalidade» (da economia clássica) e demonstrou com sucesso que a psicologia humana e o contexto desempenham um papel essencial nas decisões humanas, concluindo que, “diferentemente dos Econs, os humanos previsivelmente erram”. Thaler e os economistas comportamentais forneceram novas ferramentas para a compreensão do comportamento humano e, mais importante, ferramentas para o prever e para o influenciar.4

Daniel Kaheman, teórico da economia comportamental, Prémio Nobel da Economia em 2002, procurou explicar o comportamento aparentemente irracional da gestão do risco pelos seres humanos. Descreveu, com Amos Tversky, teórico da ciência cognitiva, os processos cognitivos humanos de processamento da informação que explicam por que razão as pessoas agem contra o seu próprio interesse: o sistema 1 é rápido, automático e altamente sensível ao contexto; o sistema 2 processa a informação de uma forma lenta, reflexiva e pondera os objetivos e as intenções no processo de decisão.

Nas escolhas ou nas decisões, o Sistema Automático poderia ser considerado uma reação «medular» (pavloviana) e o Sistema Reflexivo seria o nosso pensamento consciente. Um dos objetivos do nudge é o de incentivar as pessoas a decisões em que possam confiar no Sistema Automático para que logrem levar uma vida mais fácil, melhor e mais longa. O nudging (o processo de influenciar, de empurrar) procura retirar vantagens do sistema 1, promovendo escolhas benéficas e em saúde que promovam o bem-estar das pessoas.

O nudge diz, portanto, respeito às técnicas de influenciar as escolhas dos cidadãos, quer em políticas de saúde (governamentais) quer na relação médico-doente (ao nível clínico).5

O conceito de nudge e a sua interpretação, em particular a ideia de que se pode influenciar as escolhas dos cidadãos induzindo alterações de comportamento, escolhas saudáveis, escolhas racionais, na saúde, na economia e na sociedade, determinaram um extenso investimento dos governos na elaboração de estratégias que concretizassem esses potenciais benefícios para os cidadãos e para a sociedade.

No Reino Unido foi criada uma unidade nacional de nudge (British Behavioural Insights Team),6 nos Estados Unidos da América o Presidente Obama designou Sustein para dirigir uma unidade especializada, na Austrália o governo da Nova Gales do Sul estabeleceu uma unidade designada por Behavioural Insights Community e, surpreendentemente, o governo de Boris Johnson decidiu que o combate ao coronavírus deveria ser suportado pela «teoria do nudge».7 Note-se que a unidade britânica, agora designada por Bi. Team, é uma companhia global com escritórios em mais de 31 países e tem como missão sustentar a decisão política, melhorar os serviços públicos e o retorno público dos resultados.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) publicou um relatório, em 2017, onde relata a utilização das nudges e descreve mais de 100 iniciativas em diversos países, afirmando a sua aplicação em políticas públicas, que vão da redução da obesidade, às estratégias de doação de órgãos, passando pela promoção de genéricos até à desburocratização dos serviços públicos.8

Deveria então considerar-se, na prática clínica, que as escolhas dos doentes são sempre aceitáveis e que tal pressuposto se justifica quando se assume que a autonomia é um valor superior e absoluto que deveremos sempre respeitar? Mesmo quando essas escolhas não sejam clínica e epidemiologicamente aceitáveis, nomeadamente nas situações em que existem alternativas mais beneficentes e efetivas?

E a sociedade (nas políticas de saúde) ou o médico (na sua relação fiduciária com os doentes) deveriam procurar influenciar/persuadir/empurrar - nudge - os cidadãos (doentes ou não) em escolhas que lhes sejam benéficas, mesmo que essa intervenção possa, no limite, violar a sua autonomia e a sua confiança? Pode ainda considerar-se que esse empurrão tem um valor moral superior ao do respeito pela dignidade humana, porque os benefícios para a sociedade (e para o indivíduo) o justificam?

Os resultados dos estudos que têm vindo a ser publicados, relativos ao nudge em política de saúde, demonstram-nos que as pessoas valorizam mais os aspetos morais do que a efetividade das medidas que lhes são propostas, em particular se quando fala de aspetos relacionados com a mudança de estilos de vida.

No entanto, os poucos estudos que abordaram o papel do nudge na relação clínica parecem demonstrar diferenças significativas entre os médicos e os doentes nas respetivas apreciações. De facto, os doentes consideram que o nudge é um fator que pode potencialmente pôr em risco a autonomia (e o consentimento) e a relação médico-doente. Os médicos, por sua vez, não valorizam de idêntica forma o nudge na relação clínica. Assim, pode considerar-se que as pessoas não-profissionais de saúde valorizam mais os aspetos éticos associados ao nudge que a sua eficácia.9

Deste modo, a influência / a persuasão / o empurrão (nudge) é matéria de profundo debate ético entre os que defendem a sua necessidade e os que consideram que a sua utilização fere princípios éticos fundamentais. Encontrar o equilíbrio entre a persuasão (nudge) e o respeito pela autonomia é uma das controvérsias éticas mais recentes, que interessará valorizar.

Nesta disputa, e atendendo aos fundamentos teóricos e conceptuais do nudge e, em particular, aos mecanismos de decisão associados ao processo cognitivo de escolha, diríamos, de imediato, que um procedimento que apela ao automatismo de decisão é, por definição, contrário ao respeito pela dignidade humana e à autonomia que obriga a que os atos médicos sejam consentidos pelos doentes, ressalvando, para os mais críticos e mais próximos do paternalismo, que o consentimento livre e esclarecido é na sua maioria verbal e não escrito, decorrente da relação de mútua confiança médico-doente. Esta vincula-se mais ao direito que à relação humana própria do exercício clínico. Simulekt afirma que o nudging é incompatível com a verdade na obtenção do consentimento. Por sua vez, Kelling declara que os nudges, por não fazerem apelo à razão, não respeitam a autonomia individual.10-11 Whertheimer defende que a oportunidade para viver uma vida ou uma vida autónoma, no futuro, poderia ser comprometida se as pessoas fizessem escolhas erradas.12

Burgess, focando-se nas experiências inglesas em que a estratégia comportamental foi considerada como alternativa à regulação e ao mercado, revela-nos que a atratividade e a sedução do nudging assentam na sua maior aceitabilidade em contexto de crise económica, em que os aspetos relacionados com o direito à privacidade e à reserva da intimidade são menos problemáticos. A própria crise motivaria a perda de direitos.13

Outros defendem, como Cohen, que o conceito de nudging pode ser aplicado à prática clínica para ajudar a resolver o conflito entre dois princípios éticos fundamentais: o respeito pela autonomia e a promoção do bem-estar. O conflito surgiria no momento em que um doente tomasse uma decisão contrária aos seus interesses e à sua saúde. Neste caso justificar-se-ia, para o autor, que o médico influenciasse os seus doentes, uma vez que os médicos são os arquitetos das escolhas em saúde, a optar por uma escolha que fosse melhor para a sua saúde sem invalidar o consentimento e promovendo o bem-estar e a saúde dos doentes.14

Os médicos seriam, assim, arquitetos das escolhas e eram-no mesmo antes de existir o conceito de nudge: quando proporcionam aos seus doentes informação, recomendações e lhes apresentam as diversas alternativas possíveis, ou melhor, as escolhas possíveis. A forma como se expressa a informação, o modo como se recomenda e a maneira como são apresentadas as alternativas influencia as escolhas dos doentes. Neste contexto, diríamos que o nudge não acrescenta nada de novo à relação clínica, a medicina e o seu exercício implicam de alguma forma a capacidade de influenciar as escolhas dos cidadãos, não deixando de cumprir os princípios do respeito pela dignidade humana, da beneficência e da não maleficência.

Saghai defende a eticidade do nudge em contexto de saúde pública. Para tal, refuta os modelos de tomada de decisão de Daniel Kaheman e propõe, em alternativa, a teoria dos três procedimentos de decisão de Keith Stanovich; com base neste pressuposto conceptual que preserva a liberdade de escolha e o processo cognitivo deliberativo, o nudge seria eticamente sustentável.15-16

A arquitetura de escolha poderia constituir-se como um bom elemento conceptual de suporte à prática clínica e em saúde pública, promovendo a adoção de estilos saudáveis e melhorando a qualidade de vida de doentes e cidadãos, desde que sejam garantidos os preceitos éticos e os direitos cívicos fundamentais.

A dúvida poderá não se situar na beneficência proposta pelo nudge; se considerássemos apenas esta perspetiva seria consensual a sua adoção, quer na relação clínica quer em termos de saúde pública. Uma das questões cruciais é a de saber se as preferências e, diria, os valores dos promotores do nudge são as dos nudgees (sujeitos da intervenção) e de que forma e com que direito alguém assume que o paternalismo é afinal a melhor forma de assegurar uma relação clínica, seja ela individual ou coletiva. Existe, de facto, uma enorme contradição entre os pressupostos enunciados por Thaler e Sustein no seu paternalismo libertário e a sua concretização prática, na medida em que, em absoluto, qualquer influência não legítima, porque não foi outorgada pelo doente, pode respeitar a autonomia e a liberdade do doente.

Desde há muito que vimos defendendo a necessidade, no Serviço Nacional de Saúde, de unidades, independentes, de informação e inteligência, que nos permitam interpelar as nossas práticas e promovam a aquisição inteligente de conhecimento.17 Inteligência, que nos permita promover a saúde, tratar os doentes, reduzindo desperdícios, agilizando procedimentos e otimizando recursos. E a sustentabilidade de um Serviço Nacional de Saúde aprendente e inteligente ao serviço dos cidadãos.

A tão falada sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde não pode dispensar esta capacidade de aquisição de conhecimento crítico, que vai do delineamento das práticas à respetiva avaliação, incluindo o conhecimento epidemiológico, a epidemiologia do medicamento, as tecnologias de saúde, a qualificação terapêutica (normas e decisão de financiamento), sendo que o acolhimento do nudge como um dos componentes dessa estratégia apenas deveria ter lugar se cumpridos os preceitos éticos inerentes à prestação de cuidados de saúde individual ou coletiva.

E não poderia terminar sem acrescentar que o corpo constituinte de uma unidade de inteligência do Serviço Nacional de Saúde deve dispor da capacidade de avaliação técnica, clínica e epidemiológica, mas, obrigatória e imperativamente, deve associar a apreciação ética na ótica dos doentes, dos profissionais de saúde e do Serviço Nacional de Saúde.

E a epidemia da infeção por COVID-19 demonstrou-nos, com exaustão, a necessidade de o Serviço Nacional de Saúde dispor dessa unidade, aliando a técnica à ética na promoção de valores e de uma cultura de cidadania e de inteligência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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