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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.4 Lisboa June 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i4.12638 

EDITORIAL

A necessidade do ensino do profissionalismo

Raquel Braga*

*Médica de família. USF Lagoa, ULS Matosinhos.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Profissionalismo pode ser definido como o nível de competência, bom senso e cortesia esperados, em pessoas treinadas para executarem bem o seu trabalho. Mas o que encerra o profissionalismo não se esgota nesta definição.

Há valores contidos no profissionalismo que são inatos ou fazem parte da formação pessoal, cultivada pela educação que alguns trazem de casa. No entanto, há características do profissionalismo que têm de ser ensinadas, a par da restante aprendizagem de uma profissão, sendo para alguns a única e primeira oportunidade de potenciar determinadas qualidades do caráter ou da atitude fundamentais ao correto desempenho da profissão médica.

Sejam parte do curriculum formal ou do curriculum escondido, as questões do profissionalismo, sobretudo na área da medicina, devem ser devidamente escalpelizadas e objetivadas para que corretamente transmitidas e efetivamente apreendidas.

A par do ensino médico formal em aulas, o ensino ombro-a-ombro, resultante do contacto com os colegas mais velhos, modelos de conduta clínica, ética e profissional, é uma excelente forma de transmissão do conhecimento, sendo que o profissionalismo não foge a esta regra.1 Um bom modelo de profissionalismo como tutor é, provavelmente, mais eficaz do que várias aulas magistrais.

Estar inserido em instituições com práticas que cultivem o altruísmo, a responsabilidade, a excelência, a honra, a integridade, o respeito pelos outros e o sentido de dever e de voluntariado, levam quase inevitavelmente ao contágio e aquisição destes comportamentos, que são a essência do profissionalismo.2 Este tipo de ambiente profissional torna-se contagiante e potencia um círculo virtuoso. Um ambiente institucional em que haja falta destes valores levará inevitavelmente a um círculo vicioso de falhas repetidas e de comportamentos desajustados.

Vejamos algumas atitudes importantes para que um médico tenha um desempenho profissional.

Colocar os interesses dos doentes acima dos interesses dos médicos é uma postura que envolve alguma abnegação, mas sempre necessária a uma atitude profissional. É essa atitude que leva os médicos ao esforço e dispêndio de tempo numa permanente formação e atualização de conhecimentos,3 a uma curiosidade incessante e um real interesse por aumentar a diversidade e quantidade de contacto com novas oportunidades formativas, ou seja, com novos casos da prática clínica que vêm sustentar um saber abrangente e diversificado, a que chamamos experiência clínica. É o bem maior do interesse do doente4 que deve também potenciar a disseminação do conhecimento científico que os médicos fazem, no ensino ombro-a-ombro e através das atividades de investigação e divulgação científica.

Fomentar a autonomia do doente,2-3 potenciar a sua capacitação é também parte de uma atitude profissional, em que o médico não cultiva a dependência do doente de si próprio, ou do sistema de saúde, por motivos de egocentrismo ou de carência afetiva, mas antes cultiva a honestidade e a comunicação eficaz. Sem paternalismos e com uma atitude centrada no doente, uma boa transmissão da informação pode levar o doente a conseguir tomar decisões acerca do seu tratamento, com base nas informações dadas. Esta é uma forma de altruísmo e respeito pelos outros.

Promover a justiça e equidade é outra finalidade do profissionalismo, que visa o equilíbrio dos recursos no atendimento e no acesso, evitando todas as formas de discriminação, mas procurando dar mais aos que mais precisam.

A responsabilidade profissional é uma atitude fundamental que não se limita a não ser negligente, mas implica não ser omisso, não tentando fugir ou demitir-se das responsabilidades que as atribuições do desempenho da função imputam. Procrastinar, evitar envolvimento com casos clínicos incómodos ou difíceis, distorcer a realidade de forma a contornar os obstáculos, afastar tarefas morosas ou aborrecidas são atitudes que revelam pouca responsabilidade profissional e até, por vezes, pouca integridade e sentido de dever.

Existem algumas responsabilidades profissionais específicas que os médicos devem ter sempre presentes. Uma delas é o compromisso com a competência profissional,2 que obriga à procura do conhecimento, da atualização científica e da evicção do isolamento. Deste compromisso deriva a garantia da melhoria contínua da qualidade dos cuidados prestados e da acessibilidade, evitando os obstáculos de acesso relacionados com a educação, legislação, finanças, geografia, sexo, raça, etnia, religião, promovendo a equidade no acesso. Do compromisso de justiça que promove a equidade surge o compromisso de distribuição de recursos limitados,5 prestando cuidados com uma boa relação custo-eficiência, articulando os cuidados com outros profissionais de saúde, evitando criteriosamente exames complementares de diagnóstico e tratamentos desnecessários. A par deste compromisso de gestão dos processos clínicos, o profissionalismo envolve o compromisso com outras responsabilidades profissionais, cooperando e alocando tempo para a participação na formação dos pares, para a investigação, para a avaliação interna e externa, entre outras das múltiplas tarefas a que um médico é desafiado.

O compromisso de honestidade para com os doentes deve promover uma comunicação eficaz, com informações completas e ajustadas. A honestidade não deve ser sinónimo de crueldade e, na ótica de uma comunicação que se quer empática, antevê-se que não pode haver verdade sem compaixão. A honestidade implica ainda o reconhecimento do erro médico e do seu uso ao serviço da melhoria contínua dos processos, bem como para propósitos formativos interpares.

Outra importante responsabilidade profissional é o compromisso de manter um relacionamento adequado com os doentes, entendendo a sua vulnerabilidade, evitando todas as espécies de abuso do poder, mantendo uma relação verdadeiramente centrada no doente. É neste compromisso que se deve atentar na cortesia, uma característica que pode vir da formação de base de um médico, mas que, em certas situações, também tem de ser ensinada e aprendida, se não de forma observada, através, por exemplo, da transmissão de códigos de etiqueta.

O compromisso da confidencialidade é outra importante responsabilidade ética e um dever profissional que não se esgota no sigilo médico, mas que, atualmente, gera importantes reflexões em torno dos dados eletrónicos, com impacto na população em geral. A Deontologia Médica é uma disciplina que aborda estes aspetos de forma mais ou menos exaustiva nos cursos de medicina, mas a diversidade de desafios que os sistemas de informação atualmente encerram obriga a uma reflexão contínua e pró-ativa.

Existe uma espécie de contrato entre a profissão médica e a sociedade, que é relativamente simples e que gera todos os compromissos atrás enunciados. A medicina tem (cada vez menos…) o monopólio sobre o uso de um corpo de conhecimento, bem como considerável autonomia, prestígio e recompensas financeiras, no entendimento de que garantirá competência, prestará serviço altruísta e conduzirá a sua profissão com moralidade e integridade.2

Há ameaças ao profissionalismo, intrínsecas à personalidade de um médico, que podem passar pela ganância, desonestidade, fraude, negligência, corrupção ou mentira. Há ainda, presentemente, outras ameaças que são extrínsecas ao médico, ao seu entendimento do profissionalismo e à sua vontade de atuar de forma profissional. Diretrizes profissionais, ditadas pela crise económica, fruto de más políticas de saúde, devidas a pressões económicas ou derivadas de má gestão, podem constituir um entrave a um desemprenho médico profissional adequado e condicionar situações conflituantes. Uma ética profissional sólida, aliada à valorização do juramento hipocrático do médico, entendido como aquele que cura, podem defender a classe médica de corromper o seu compromisso social, cedendo a pressões laborais, fruto de políticas economicistas, garantindo uma atitude verdadeiramente profissional, responsável e comprometida com o bem maior do doente.1,4

No que toca a profissionalismo, não há necessidade de sermos pessimistas, uma vez que a medicina, apesar de toda a crítica, continua a ser uma profissão socialmente respeitada. Os abalos sociais ocorridos nas últimas décadas,1 com a progressiva implementação dos sistemas de saúde e com o declínio na deferência pela classe médica e uma maior disposição por parte do público em questionar decisões profissionais,5 não têm sido suficientes para aniquilar a confiança nesta profissão.

Todos aqueles que se dedicam ao ensino da medicina são tocados pelo compromisso e idealismo que os estudantes de medicina revelam. Acarinhar, estruturar, sedimentar e acalentar este idealismo é parte importante do caminho para que o profissionalismo floresça e vingue pela vida fora.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Cruess RL, Cruess SR. Teaching medicine as a profession in the service of healing. Acad Med. 1997;72(11):941-52.         [ Links ]

2. Cruess SR, Johnston S, Cruess RL. Professionalism for medicine: opportunities and obligations. Med J Aust. 2002;177(4):208-11.         [ Links ]

3. Abadel FT, Hattab AS. Patients’ assessment of professionalism and communication skills of medical graduates. BMC Med Educ. 2014;14:28.

4. Cruess RL, Cruess SR, Johnston SE. Renewing professionalism: an opportunity for medicine. Acad Med. 1999;74(8):878-84.         [ Links ]

5. Ham C, Alberti KG. The medical profession, the public, and the government. BMJ. 2002;324(7341):838-42.         [ Links ]

 

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