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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.3 Lisboa June 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i3.12429 

FORMAÇÃO

Modos de ver e de se ver na relação médico-doente: relato de uma atividade formativa

Ways to see and see itself in the doctor-patient relationship: report of a formative activity

Eunice Carrapiço,1 Victor Ramos,1 Alexandra Mendes Gomes,2 Filipa Manuel,1 Hélder Gonçalves,2 Luísa Batista,2 Mariana Prudente,2 Tânia Varela,1 Rita Correia3

1 Médico de Família. Orientador de formação. USF S. João do Estoril (ACeS de Cascais).

2 Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF S. João do Estoril (ACeS de Cascais).

3 Psicóloga clínica. URAP do ACeS de Cascais.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Enquadramento: Os autores descrevem uma atividade realizada em grupo de formação em medicina geral e familiar (MGF) em 2015. O ponto de partida foi a assunção de que a capacidade de autoconsciência por parte dos profissionais, sobre as suas características, competências e reações emocionais em face de cada pessoa e situação, é um dos fatores críticos para a eficácia da intervenção clínica.

Objetivos formativos: a) treinar a autoconsciência das suas perceções, enquanto modos de se ver a si, ao outro e à relação entre ambos, no contexto do seu trabalho nas consultas; b) reconhecer as emoções que emergem em si, por efeito das características do outro; c) reconhecer o evoluir das suas perceções e emoções ao longo do processo relacional e comunicacional com o outro; d) identificar as suas próprias limitações comunicacionais, relacionais e técnicas, sobretudo as que derivam das emoções suscitadas; e) partilhar as diversas experiências e os resultados percecionados por cada participante ao longo da atividade formativa, para identificar, sistematizar e consolidar os ganhos de aprendizagem conseguidos.

Descrição: Análise individual e em grupo de vivências tidas em consultas de MGF. Foram considerados perceções, emoções, atitudes e comportamentos presentes em cada caso e identificadas necessidades de ajustamento pessoal para ser um recurso de ajuda.

Discussão: Os autores consensualizaram um modelo de análise e apoio à abordagem de pessoas e situações, na complexidade de elementos e interações envolvidos na relação médico-doente. Escolheram o polo «modos de ver» cada pessoa e situação e a si próprio como ponto de partida da análise. Discutiram possibilidades de ajustamento de comportamentos na interação com cada pessoa no contexto da consulta. Identificaram a necessidade de autovigilância e de aperfeiçoamento contínuos das suas competências, atitudes e habilidades pessoais e técnico-científicas. A atuação como recurso de apoio ao «outro» requer uma autodisciplina cujas bases podem ser reforçadas durante o internato de MGF. A aquisição de hábitos e de habilidades de autoperceção e autoconsciência quanto aos modos de ver, emoções, atitudes e gestos são requisitos neste processo. O internato de MGF pode ser um período decisivo para promover atitudes e comportamentos adequados, que tenderão a persistir ao longo de todo o percurso profissional.

Palavras-chave: Formação em MGF; Autoconsciência; Mudança atitudinal e comportamental.


 

ABSTRACT

Background: The authors describe a group exercise performed in the context of General Practice and Family Medicine (GPFM) training in 2015. The starting point was the assumption that the professional self-awareness concerning own personal characteristics, technical skills, and emotions during the relationship with each singular patient is a critical factor for the effectiveness of clinical interventions.

Objectives: a) training of the self-awareness of perceptions as manners of viewing the self, others and the relationship between both in family medicine consultations; b) self-recognition of the emotions derived from the communication and relation with each patient; c) self-recognition of the transformation process of perceptions and emotions along the relational and communicational processes with the patients; d) identification of one’s own communicational, relational and technical limitations; e) brainstorming of each author’s experiences and perceived results during the exercise, aiming at the identification and systematization of achieved learning outcomes.

Description: Group brainstorming of real-life situations experienced by the authors during their GPFM appointments. Perceptions, emotions, attitudes, and behaviors present in each situation were analyzed, leading to the recognition of personal adjustment needs in order for each individual to become a better help resource.

Discussion: The authors felt the need to elaborate and agree on an analytical and supportive model in the approach of people and situations, taking into account the complexity of elements and interactions that such relations entail. As a starting point, they chose relationships perceived as particularly vulnerable to them and attempted at reenacting each side’s way of seeing, in order to achieve useful effects in the adequation of their own attitudes and behavior to the interaction with other people and situations. They identified the need for continuous self-surveillance and improvement of their competences, attitudes and personal/technical-scientific skills. Serving as a help and support resource for others requires a level of self-discipline whose foundation may be enforced during the GPFM residency. The acquisition of the ability and habit of self-perception and self-awareness of one’s own ways of seeing, emotions, attitudes, and gestures are essential tools in this process. The GPFM residency is a decisive period in the promotion of adequate attitudes and behaviors that will tend to persist throughout the clinician’s career.

Keywords: Family medicine training; Self-awareness; Behavioral change.


 

Introdução

O método clínico centrado na pessoa requer a aquisição de atitudes e de aptidões por parte do médico, incluindo a capacidade de tomar consciência das suas emoções, atitudes e gestos e de os adequar, quando necessário.1-6

Os estudos focalizados nos profissionais e na mudança das suas atitudes e comportamentos, de modo a poderem atuar como recurso de apoio ao outro, salientam a importância das práticas de autoperceção, autoanálise e autoconsciência do profissional, quanto às suas atitudes e comportamentos, na relação terapêutica. Estas práticas serão mais eficazes se treinadas em grupo focalizado nesses objetivos.7-8

Os conceitos de medicina personalizada e de medicina centrada na pessoa assentam no princípio da singularidade de cada ser humano. Esta singularidade tanto diz respeito ao doente como ao médico e inclui os seus alicerces heredo-familiares, contextos sociais, histórias de vida e de saúde, ideias, valores e crenças, bem como a mundivisão pessoal que cada um desenvolveu. Todos estas determinantes se refletem nas respetivas atitudes, escolhas e comportamentos. O conhecimento dos mecanismos da motivação humana e da complexa teia e interação de fatores inerentes à mudança comportamental, tanto do médico como do doente, em especial a necessidade de envolver o próprio nesse processo, é indispensável para uma relação terapêutica mais eficaz. Considerar a pessoa no seu todo único implica procurar compreender porque age e pensa de um certo modo e não de outro. Dispor-se a ajudar alguém que pede ajuda requer humildade e saber ouvir, identificar e procurar articular vários aspetos de uma teia de polos interligados e intimamente interdependentes, como os representados de modo resumido e simplificado na Figura 1.9-14

 

 

Métodos

Os autores deste artigo são seis internos e dois orientadores de formação de medicina geral e familiar (MGF). Assumiram que cada um seria, simultaneamente, formando e formador e organizaram um pequeno grupo de formação interpares. Associaram ao grupo, como consultora, uma psicóloga clínica do agrupamento de centros de saúde onde trabalham e definiram para si próprios os seguintes objetivos de formação:

1. Treinar a autoconsciência das suas perceções, enquanto modos de se ver a si, ao outro e à relação entre ambos, no contexto do seu trabalho nas consultas;

2. Reconhecer as emoções que emergem em si, por efeito das características do outro;15

3. Reconhecer o evoluir das suas perceções e emoções ao longo do processo relacional e comunicacional com o outro;

4. Identificar as suas próprias limitações comunicacionais, relacionais e técnicas, sobretudo as que derivam das emoções suscitadas;

5. Partilhar as diversas experiências e os resultados percecionados por cada participante ao longo da atividade formativa para identificar, sistematizar e consolidar os ganhos de aprendizagem conseguidos.

A atividade formativa consistiu na discussão de relatos sucintos de casos clínicos e situações onde cada participante tenha sentido dificuldades, em especial no plano da relação e comunicação médico-doente. Os participantes eram ainda convidados a partilhar experiências, vivências e perspetivas de situações e momentos idênticos a propósito dos aspetos levantados na discussão de cada caso.

Foi realizada uma reunião semanal de uma hora, ao longo de 16 semanas. No intervalo entre cada reunião cada participante tinha atividades individuais que incluíam: pesquisa e análise bibliográfica; elaboração de resumos críticos de artigos, de acordo com os objetivos do exercício; seleção e análise de situações vividas ilustrativas dos aspetos em foco; treino de autoconhecimento e ensaio de mudanças intencionais de comportamentos associados à relação e comunicação interpessoal durante as consultas.

Foram tidos em conta os passos de intervenção descritos por French e colaboradores:16

· Quem precisa de fazer o quê de modo diferente? (especificando o profissional, o comportamento-alvo a mudar e as circunstâncias contextuais associadas);

· Que obstáculos e que fatores facilitadores da mudança pessoal devem ser considerados? (baseando-se na revisão bibliográfica, na experiência da equipa e nas ideias emergentes no grupo, e usando métodos qualitativos para identificar mediadores para a mudança comportamental);

· Que técnicas e soluções práticas podem ser aplicadas? (estabelecendo o conteúdo da intervenção e os instrumentos de apoio suscetíveis de ser usados);

· O que mudou? (identificando a mudança conseguida e os seus efeitos ou impactos).

O estudo de French e colaboradores considera 12 domínios para sistematizar os mediadores que podem facilitar intervenções de mudança comportamental focalizada: conhecimentos; competências; papel/identidade social e profissional; crenças sobre as próprias capacidades; crenças sobre as consequências da mudança; motivação e objetivos da mudança; memória, atenção e processos de decisão; contexto ambiental e recursos; influências sociais; natureza do comportamento a mudar; regulação comportamental; emoções envolvidas.

Os participantes colocaram a si mesmos algumas perguntas:

- Por que é que reajo deste ou daquele modo especificamente em presença de certos doentes?

- Como posso baixar a minha reatividade nas consultas?

- Posso tomar consciência do modo como vejo cada pessoa que me consulta e alterá-lo se me parecer conveniente?

- O modo como vejo cada pessoa influencia o meu comportamento em consulta?

- Como posso controlar a tendência para «rotular» pessoas e situações?

- Como posso treinar atitudes de presença e atenção plenas e, deste modo, controlar as atitudes de pressa?

- Como posso aumentar o meu nível de abertura para com o outro?

- Que comportamentos devo mudar em mim mesmo?

- Como posso reduzir a proporção de afirmações/perguntas do meu discurso (i.e., afirmar menos e perguntar mais)?

- Como posso aumentar o respeito para comigo e para com o outro?

Dada a complexidade da teia de fatores associados aos comportamentos humanos, tanto do profissional como da pessoa a quem se pretende ajudar, recorreu-se frequentemente ao diagrama da Figura 1, o qual foi sendo delineado e reformulado criticamente com base nos ensinamentos de António Damásio, designadamente os veiculados nas obras: O erro de Descartes, O sentimento de si, Ao encontro de Espinosa e O livro da consciência.10-13

Como ponto de partida, adotaram o polo «modos de ver - perceções» como enfoque primordial para esta atividade formativa (Figura 1).

Identificaram alguns casos em que os seus modos de ver pareciam interferir de modo relevante na relação médico-doente, tendo selecionado nove situações que, de alguma forma, lhes haviam suscitado emoções negativas.

Concentrando-se nesses casos, identificaram as influências que as «perceções/modos de ver» podiam estar a ter na relação médico-doente e nas consultas com essas pessoas. Procuraram identificar necessidades de alterar essas perceções para modificar os seus comportamentos como, por exemplo, melhorar a «escuta ativa», com a finalidade de obter melhores resultados terapêuticos.

Consideraram o conceito de «memória implícita» apresentado por Mota Cardoso, memória que será moldada pelas vivências emocionais prévias (negativas e positivas), assim como pelas imagens e modelos mentais nela gravados. Por sua vez, esta memória modela valores, crenças e preconceitos que contaminam a impossível «objetividade» do profissional.10

O método seguido nesta atividade, embora com algumas afinidades com os Grupos Balint, difere da metodologia destes grupos por ter uma duração limitada, ser mais informal e desritualizado, focalizar-se num tópico restrito do desempenho do médico e ser orientado por objetivos específicos de aprendizagem e treino associados a este desempenho.

Resultados formativos e avaliação da atividade

Os autores relataram recorrentemente experiências em que as suas perceções sobre cada pessoa e situação podem afetar desfavorável ou favoravelmente o seu desempenho profissional.

Este exercício de mudança foi considerado e vivido por todos como estritamente pessoal, tal como cada pessoa é singular. Paradoxalmente, a discussão em grupo tornou evidente que todos têm representações do outro que influenciam as suas ações e os seus modos de estar na relação, o que trouxe a cada participante uma sensação de «normalidade». Foi consensual entre todos ser muito difícil mudar sozinhos, tendo o grupo sido considerado um instrumento útil para este propósito.

O debate em grupo ajudou a tomar consciência de que o autocontrolo do profissional sobre os modos de ver o «outro» e as suas atitudes e comportamentos é muito limitado, e fortemente condicionado pela «memória implícita», que não é evocável.

Os participantes assumiram que, mais importante do que a quantidade de informação recolhida ou emitida numa entrevista clínica, são as perguntas e a forma como são feitas. Por exemplo, o autoquestionamento sobre como veem cada doente ou a procura de perguntas alinhadas com o que o doente quer saber, o que o preocupa num dado momento, entre outras.

A análise concreta de cada caso tornou mais patente que numa relação há uma co-evolução e uma co-mudança e que o apoio ao outro, quer este implique facilitar uma mudança comportamental do outro, ou não, é indissociável de algumas mudanças específicas por parte do profissional, das quais este deve tomar consciência de forma a agir intencionalmente e, de preferência, aproveitando as potencialidades das dinâmicas de aprendizagem em grupo.

Exemplos:

“Quando a consulta é mais importante do que a resolução dos problemas expressos”

A, 73 anos, sexo feminino, vive com o marido. Consulta-me frequentemente por múltiplas queixas, sobretudo por cansaço, tristeza, ansiedade, dores musculares, insónia, medo de doença neoplásica e incontinência urinária de urgência. Refere nunca melhorar com nenhum dos tratamentos propostos e apresenta sempre efeitos adversos dos medicamentos prescritos (“Não melhorei com o medicamento x e ainda me fez sentir muito mal” (…) “Mas não é isso que me traz cá… sei que não há nada que me alivie, que tenho de continuar a sofrer, …”).

Refere frequentemente os anos passados a cuidar do pai até ao seu falecimento e relata agora as idas quase semanais ao Algarve para cuidar do irmão em estado terminal por neoplasia maligna do intestino.

Marca consulta quase sempre na última vaga da manhã ou da tarde. Desloca-se devagar, fala pausadamente, vai introduzindo múltiplos motivos ao longo das consultas (apesar das minhas tentativas de esgotar todos os motivos no início das consultas). Faz notar que as consultas têm importância para ela (“Vim a correr do Algarve para chegar a horas à consulta”).

Inicialmente estabeleceu-se uma boa comunicação e relação médico-doente. Porém, com a recorrência à consulta, passei a vê-la como uma pessoa chata, sempre com as mesmas queixas, que utiliza todos os truques para me deter mais tempo. Senti-me frustrada com a repetida ineficácia no alívio das queixas. (“Talvez ela não queira realmente melhorar para poder continuar a queixar-se?”). Procurava abreviar as consultas e encaixar os sintomas num diagnóstico que explicasse a situação (“Provavelmente trata-se de fibromialgia e por essa razão…”), nos ajustes terapêuticos, no pedido de exames complementares de diagnóstico e em explicações teóricas desta ou daquela intervenção.

Depois… passei a vê-la como uma pessoa profundamente só. Talvez as queixas e a sua manutenção sejam apenas pretexto para vir à consulta obter suporte afetivo. Talvez a relação estabelecida e as consultas tenham um efeito terapêutico.

Sob esta perspetiva, perguntei-lhe um dia: “Vem do Algarve porque esteve a cuidar do seu irmão? A sua existência faz diferença para ele!”

Modificando o «modo de ver» a doente modifiquei o meu comportamento, passando a: permitir maior intimidade relacional; mostrar disponibilidade e interesse em ouvir e tentar compreender a sua narrativa e o seu estado emocional; criar espaço para a que a doente pudesse falar das suas reais preocupações, dos seus medos e das suas angústias sem ter de me dar pretextos; dizer-lhe de várias formas que é uma pessoa extraordinária, que reconheço o seu valor.

B é uma senhora de 65 anos que comecei logo no primeiro mês do meu internato a ver mensalmente na consulta, para renovação de uma baixa. Já era utente de longa data do meu orientador e, como tinha possibilidades económicas para tal, mantinha-se também seguida em variadíssimas especialidades, em medicina privada, tanto para propósitos diagnósticos como terapêuticos. Quando a conheci, o seu «cocktail» de medicação psiquiátrica mudava literalmente a cada consulta e preparava-se para se submeter a uma punção lombar, proposta pelo neurologista, para “tentar descobrir o que se passava com ela, porque aquilo, afinal, não podia ser normal”. Vinha geralmente acompanhada pelo marido, que pouco ou nada dizia.

Apesar da cordialidade da nossa relação, e da simpatia social da senhora, apercebi-me imediatamente, no primeiro encontro, que B suscitava em mim «anticorpos», que em situações posteriores me fizeram frequentemente sentir um ligeiro arrepio sempre que via o seu nome na agenda. Após reflexão e partilha concluí que essa sensação - que não era sequer subscrita pela restante microequipa - se devia provavelmente ao facto de B corresponder ao meu estereótipo da «tia de Cascais»: sempre muito arranjada, de ares «superiores», com um sorriso que eu considerava de plástico e falso; no fundo, fútil e arrogante - o género de pessoa com que, por colidir completamente com os meus valores pessoais, raramente me relaciono por escolha. Via a sua baixa, e todo o seu processo interminável de «diagnóstico» (para mim, de coisa nenhuma), como apenas uma forma de vitimização e chamada de atenção de alguém que temia desviar, por um segundo que fosse, o olhar de si própria, já que se o fizesse se veria cercada por uma existência vazia e inútil. Devido a toda esta perceção, a minha vontade, a cada consulta, era tornar a interação o mais breve possível e esforçava-me por isso.

Ao compreender de onde vinha a minha «repulsa», decidi tentar mudar a minha atitude. Comecei, nas consultas, a deixar o computador completamente de lado durante os primeiros minutos, permitindo-lhe dissertar livremente, e dedicando-lhe a minha total atenção corporal. Parei de assumir, à partida, que aquela seria só “mais uma consulta para baixa”; mais importante do que tudo isto, parece-me, comecei a tomar a iniciativa, logo de início, de lhe perguntar eu própria como corria o seu processo e que novidades tinha. Ao mesmo tempo, fui tendo a oportunidade de ver B e o marido em consultas individuais e esforcei-me por compreender melhor aquela ligação de tantos anos, que cedo compreendi ser muito sofrida de parte a parte (e, talvez, a principal origem dos problemas).

Para minha enorme surpresa, o interesse inicialmente forçado cedo se tornou real: já começava a gostar de a ouvir e a ter vontade de ser eu a vê-la. Creio, além disso, que o início do meu afeto genuíno não passou despercebido, pois também ela se começou a abrir muito mais, mostrando-me nichos escondidos de resiliência e capacidade de crítica - inclusive, para consigo própria - que não se limitaram a mudar toda a minha imagem dela: fizeram-me, mesmo, admirá-la em vários aspetos.

Na última consulta, já numa relação mais equilibrada do que quando nos conhecêramos, informou-me de que a sua incapacidade não persistira na junta médica, pelo que deixaria de fazer a sua visita mensal. Despedimo-nos com um beijinho - e, para meu enorme espanto, com uma estranha sensação de perda. É verdade, acontecera: quando dei por mim, gostava de B; e, enquanto mera depositária impotente das suas queixas e desabafos, talvez também eu lhe tivesse dado precisamente aquilo de que ela necessitava.

A avaliação do «ensino/aprendizagem» foi feita de modo qualitativo e narrativo numa reunião de discussão aberta. Após as 16 reuniões e os períodos intercalares de trabalho individual, todos os participantes declararam ter ampliado a autoconsciência de que veem o outro sempre através de uma lente «preconceituosa» (com conotações positivas ou negativas) e da qual não conseguem facilmente libertar-se, mas apenas exercitar-se a mudar de lente, ensaiando com genuíno interesse vários modos de ver cada pessoa e situação.

Os participantes reconheceram como uma mais-valia o facto de algumas das consultas terem sido realizadas ombro-a-ombro por permitirem uma identificação mais exata dos sinais verbais e não-verbais que transmitimos na nossa comunicação e relação com o outro e que desconhecemos e não nos apercebemos.

Discussão

A associação entre perícias comunicacionais, compreensão do doente e das suas circunstâncias, partilha de informação e de conhecimentos, é determinante para o sucesso terapêutico e para uma eventual alteração de atitudes e de comportamentos, tanto da parte do doente como da parte do médico. Este deve ter a noção de que é apenas um dos muitos fatores determinantes do comportamento, os quais incluem a biografia, a profissão, a família, o grupo de amigos, o contexto cultural, entre outros. Muitos desses fatores transcendem o médico e o próprio doente. Isto pode ajudar o médico a aperceber-se do que está e do que não está ao seu alcance fazer e a ter expectativas e objetivos mais realistas (Quadro I). Admite-se que esta aproximação mais realista à relação interpessoal de ajuda melhore não só os cuidados prestados, como também a satisfação profissional.10

 

 

Outro aspeto frequentemente considerado foi o da necessidade de formação e treino em comunicação em saúde, com especial ênfase na questão da relação médico-doente. Esta envolve quase sempre interações mútuas de poder e autoridade/submissão/aceitação. Entendemos por «poder»/autoridade a capacidade de determinar ou de influenciar comportamentos, quer os próprios quer os de outra(s) pessoas(s) e/ou a evolução de acontecimentos sociais ou, até, naturais. No apoio à mudança de comportamentos os poderes do médico que importa analisar e promover são os poderes do exemplo, da informação, do conhecimento e da atenção/interesse pelo doente.

Uma questão central parece ser a de conhecermos e refletirmos sobre os nossos valores, crenças e pontos de vista, quer sobre o que pensamos ser esperado de nós face ao pedido de ajuda quer sobre o que achamos que sabemos do outro que nos consulta, e que nos podem levar a orientar a relação e a ação em função da nossa «agenda» e daquilo que achamos importante e prioritário para eles. Podem ainda levar a que induzamos ou suscitemos culpabilização, medos, vergonha, embaraços, através de palavras e gestos, ainda que subtis, como por exemplo uma pergunta fechada ou uma expressão que traduza os nossos juízos de valor em relação aos mais diversos comportamentos (obesidade, tabagismo, alcoolismo, de procura excessiva de cuidados, entre outros). A consciência destes aspetos e das suas próprias limitações permitem ao médico melhorar a efetividade das suas práticas de aconselhamento e de ajuda.9,17

Alguns estudos sugerem que este processo de mudança de comportamento do próprio profissional é mais fácil se for feito durante a sua formação. Em 1976, Byrne e Long concluíram que, ao contrário das perceções dos próprios médicos, o estilo do médico varia pouco de uma consulta para a outra e chegaram a afirmar que depois de o médico desenvolver o seu estilo, há um grande risco de que esse estilo se torne uma prisão na qual é forçado a permanecer.18

Concluindo, o autoconhecimento do médico e a sua mudança de comportamento são tarefas do próprio médico. Este processo tem em si mesmo a utilidade de contribuir para ajudar o médico a compreender o quão difícil é mudar comportamentos habituais e a compreender melhor o comportamento dos seus doentes face às mudanças que lhes propõe.

O modelo de aprendizagem e treino em «grupos de formação» pode estimular exercícios e evoluções de aprendizagem concetual e comportamental como as descritas neste artigo.

 

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Eunice Carrapiço

E-mail: eunicecarrapico@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 08-06-2018

Aceite para publicação em 02-03-2019

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