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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.3 Lisboa June 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i3.12619 

EDITORIAL

Utentes sem equipa de saúde: uma prioridade e uma responsabilidade social

Paula Broeiro Gonçalves*

*Médica de Família. UCSP dos Olivais, ACeS Lisboa Central. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

A criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS)1 foi contemporânea e subsequente à Conferência de Alma-Ata, que veio evidenciar a saúde como um direito. A Declaração de Alma-Ata reconhece os cuidados primários de saúde como elemento-chave do desenvolvimento de justiça social e traçou, como objetivo, contrariar as desigualdades em saúde através de medidas políticas, económicas e sociais.2-3 Para se conseguir melhorar a saúde e bem-estar de todos e reduzir as desigualdades em saúde é preciso atingir dois objetivos políticos: criar uma sociedade que permita maximizar o potencial individual e da comunidade; e colocar no centro de todas as políticas a garantia de justiça social e de sustentabilidade nas decisões de saúde.4 O reconhecimento das desigualdades sociais e da vulnerabilidade associada inspirou o desenvolvimento de sistemas de saúde de acesso universal (e.g., Português e Inglês), vindo ao encontro dos valores da saúde pública europeia: o bem comum e a responsabilidade coletiva.5

As desigualdades podem ser definidas como diferenças no estado de saúde ou na distribuição dos determinantes de saúde entre diferentes grupos populacionais, estando intimamente ligadas à privação socioeconómica (e.g., rendimento, habitação, trabalho, educação e saúde).6 Conceito longe de ser consensual é, porém, um estado observável de desvantagem de cada indivíduo em relação à comunidade onde se insere.6

O índice de privação Europeu (EDI) é um índice ecológico, desenvolvido com base nas Estatísticas da União Europeia para o Rendimento e as Condições de Vida (EU-SILC)7 e foi especificamente concebido para medir e monitorizar a pobreza e a privação em todo o território da União Europeia (UE) de forma a melhor entender desigualdades em saúde.6 Aplicando este EDI ao território continental português verifica-se um menor índice no litoral sul (Lisboa, Setúbal e Algarve),6 resultado coincidente com a distribuição geográfica da população estrangeira residente em Portugal (68% registada nos distritos de Lisboa, Faro e Setúbal).8 O fluxo migratório,8 após o declínio no período de austeridade,7 tem mantido uma tendência crescente evidenciada pelo crescimento do número de imigrantes da UE a residir em Portugal (cerca de 29%), sendo os motivos mais relevantes na concessão de residência o reagrupamento familiar, a atividade profissional e o estudo.8 As nacionalidades predominantes são a brasileira, a italiana, a francesa e a britânica.8 No ACeS Lisboa Central os estrangeiros frequentadores provenientes da UE respeitam a hierarquia dos pedidos de residência no nosso país; dos oriundos de fora da UE destacam-se os brasileiros (8%), logo seguidos dos 12% provenientes de países asiáticos (Nepal, Bangladesh, China e Índia).

O impacto da austeridade na saúde e nos cuidados de saúde foi estudado através das necessidades médicas não atendidas e seus motivos - antes, durante e após a recessão económica em Portugal. Verificou-se duplicação, entre 2010 e 2012, da possibilidade de ter tido uma necessidade médica não atendida (OR=2,41; IC95%, 2,01-2,89),7 com maior impacto nas pessoas com emprego. As razões para não procurar atendimento foram em 68% financeiras (OR=1,68; IC95%, 1,32-2,12), o tempo de espera retirado ao trabalho ou a responsabilidades familiares (OR 2,18; IC95%, 1,20-3,98).7 O estudo ecológico realizado na UCSP dos Olivais mostrou resultados coerentes com aquele estudo - a população ativa (OR=1,2; IC95%, p<0,001) era o grupo com risco mais elevado de não ter médico de família (MF).9

No planeamento em saúde importa saber quem são os utentes SES inscritos nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), de forma a melhor adequar os cuidados de saúde às necessidades da comunidade. Partilha-se, neste editorial, a experiência da UCSP dos Olivais, ACeS Lisboa Central, uma unidade funcional urbana litoral que reflete as carências de recursos humanos e materiais das UCSP e o padrão sociodemográfico da região em que se insere, como: o envelhecimento da população portuguesa11 e os fluxos migratórios8,12 com expressão sociodemográfica. Os utentes SES estão inscritos como:

1. Sem MF atribuído - correspondendo a utentes com inscrição primária ativa (cidadãos de nacionalidade portuguesa e estrangeiros com residência em Portugal) por indisponibilidade de recursos de profissionais e de instalações;

2. Com inscrição esporádica - inclui utentes em mobilidade nacional [inscrição temporária prevista no Registo Nacional de Utentes (RNU)], com inscrição provisória (e.g., estrangeiros em regularização de residência) e os utilizadores do atendimento complementar (resposta do ACeS a doença aguda durante o fim de semana).

Excluindo este último, de resposta a doença aguda, reconhece-se a importância social do fenómeno «utentes SES»; no entanto, o conhecimento da sua magnitude não é possível por ausência de implementação da categorização prevista no RNU, publicado em agosto de 201710 [inscrição ativa, inativa ou provisória; utentes com MF; sem MF por indisponibilidade para atribuição; ou sem MF por opção].

A equipa da UCSP dos Olivais, reconhecendo a vulnerabilidade da população SES, assume a responsabilidade coletiva e pratica solidariedade dando cumprimento aos valores éticos da saúde pública europeia,5 colaborando com o ACeS Lisboa Central, desde 2016, na gestão dos cuidados a esta população. Para tal, contratualizou horas médicas para cuidados a grupos com necessidades específicas (crianças até aos dois anos, grávidas, planeamento familiar e dependentes), bem como a renovação de receituário crónico, aplicando medidas de prescrição racional. Não se conhecendo o denominador por indisponibilidade dos dados do RNU quanto a inscrições temporárias e provisórias, constata-se que a contratualização de horas médicas é insuficiente para as necessidades e não se reflete no resultado da equipa cuja avaliação de desempenho é exclusivamente centrada nos atos e resultados prestados a utentes inscritos com médico de família. Acresce que cerca de 30% das horas de secretariado clínico e de cuidados de enfermagem são permanentemente alocadas ao atendimento e à prestação de cuidados à população SES, refletindo-se na sobrecarga destes profissionais, não reconhecida nem compensada pela tutela.

O Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) de 2018, excluindo os utentes sem MF da análise, refere preocupação com a perpetuação das desigualdades no acesso aos CSP e com a prestação de cuidados de saúde em «dois níveis», ou seja, nas USF e UCSP.13 Esta assimetria não pode, no entanto, ser atribuída às UCSP mas ao desinvestimento neste modelo organizativo, a par da carência de profissionais no sul do país e ao crescimento de inscritos SES (inclui inscrições temporárias e provisórias).

O modelo organizativo USF, adequado a populações sociodemograficamente estáveis, tem trazido retorno de satisfação aos seus profissionais (autonomia de gestão e condições de exercício) e aos seus utilizadores. Contudo, revela-se como resposta insuficiente e inadequada a áreas metropolitanas que necessitam de respostas flexíveis, adaptáveis às mudanças sociodemográficas, como a mobilidade interna no país e os fluxos migratórios entre países.

A UCSP dos Olivais integra, na sua maioria, profissionais sem interesse pelo pagamento por desempenho, por escolha pessoal e ideológica. Tal como nas restantes UCSP são-lhe agregados os utentes SES que partilham dos seus recursos humanos (secretariado clínico e enfermagem) e materiais, já de si deficitários pelo desinvestimento da tutela neste modelo de cuidados holístico, biopsicossocial e centrado na pessoa e na comunidade. É, pois, necessário garantir a todas as unidades funcionais condições de exercício essenciais, de qualidade e segurança (estruturais, meios humanos, autonomia de gestão) e justas, de forma a responder às necessidades da população pela qual são responsáveis; é necessário repensar os cuidados aos utentes SES para não agravar as desigualdades em saúde, nem contaminar o desempenho das unidades funcionais, particularmente das UCSP. Subsistem, assim, críticas à evolução do modelo que mantém o foco no pagamento por desempenho ao:

1. Perpetuar a competição que estimula o individualismo, ao invés de estimular a cooperação e o desenvolvimento de trabalho colaborativo entre unidades funcionais;

2. Normalizar os modelos organizativos, não dando espaço à diversidade e à flexibilidade que possam trazer igual retorno de ganhos em saúde e adaptar-se às necessidades específicas de cidadãos e profissionais.

A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, além de ser uma região carente de profissionais de saúde, é ainda a que recebe o maior número de pessoas por mobilidade interna12 e por resultado dos fluxos de imigração.8 Ao invés de facilitar a evolução quase coerciva para o modelo USF, deveria incentivar modelos criativos que se adequem à comunidade que servem e às mudanças sociodemográficas, reconhecendo-os como um contributo para a minimização das desigualdades em saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Lei nº 56/79, de 15 de setembro. Diário da República. 1979;I Série(214).

2. World Health Organization. Declaration of Alma-Ata: international conference on primary health care, Alma-Ata, USSR, 6-12 September 1978 [Internet]. Geneva: WHO; 1978. Available from: https://www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf        [ Links ]

3. Brito-de-Sá A. De Alma-Ata a Astana: o futuro, hoje [From Alma-Ata to Astana: the future, now]. Rev Port Med Geral Fam. 2019;35(2):80-1. Portuguese

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6. Ribeiro AI, Mayer A, Miranda HP, Pina MF. A versão Portuguesa do European Deprivation Index: um instrumento para o estudo das desigualdades em saúde [The Portuguese version of the European Deprivation Index: an instrument to study health inequalities]. Acta Med Port. 2017;30(1):17-25. Portuguese

7. Legido-Quigley H, Karanikolos M, Hernandez-Plaza S, Freitas C, Bernardo L, Padilla B, et al. Effects of the financial crisis and Troika austerity measures on health and health care access in Portugal. Health Policy. 2016;120(7):833-9.         [ Links ]

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11. Oliveira CR, Rosa MS, Mota-Pinto A, Botelho AS, Morais A, Veríssimo MT. Estudo do perfil do envelhecimento da população Portuguesa [Internet]. Coimbra: Universidade de Coimbra; 2010. ISBN 978-989-8445-00-1. Available from: http://rihuc.huc.min-saude.pt/handle/10400.4/992

12. D’Uva TB, Fernandes M. Mobilidade social em Portugal [Internet]. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2017. Available from: https://www.ffms.pt/FileDownload/19af23f9-53ca-477b-9ac7-5949df7f79ef/mobilidade-social-em-portugal

13. Observatório Português dos Sistemas de Saúde. Meio caminho andado: relatório Primavera 2018 [Internet]. Lisboa: OPSS; 2018. ISBN 978-972-97492-2-3. Available from: http://opss.pt/wp-content/uploads/2018/06/relatorio-primavera-2018.pdf

 

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