SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número2Magnitude, padrão e gravidade da multimorbilidade em idosos assistidos pelas equipas de Cuidados Continuados Integrados: estudo transversal índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.2 Lisboa abr. 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i2.12586 

EDITORIAL

De Alma-Ata a Astana: o futuro, hoje

Armando Brito de Sá*

*Médico de família.USF Conde Saúde, ACeS da Arrábida.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Quarenta anos depois da declaração de Alma-Ata,1 uma das referências fundadoras dos cuidados de saúde primários tal como os concebemos hoje, a Organização Mundial da Saúde voltou ao Cazaquistão, em outubro de 2018, para refletir sobre a evolução dos cuidados de saúde primários e pensar nos caminhos a seguir a partir daqui. Por cá, poucos terão dado por isso: ao googlar a expressão «Conferência de Astana 2018» só aparecem sites brasileiros; quando juntamos a palavra «Portugal» identificam-se duas notícias de jornal (Just News e Tempo Medicina) e uma peça no site MGFamiliar, da autoria de Ana Barata, que esteve presente e participou no evento.2 Ou seja, a conferência e a sua Declaração final3 terão essencialmente passado despercebidas.

Contudo, desta conferência terão saído das mais importantes reflexões em muito tempo sobre o que são os cuidados de saúde primários, qual o seu papel e para onde devem caminhar. A mensagem central é poderosa: “Estamos convencidos de que o reforço dos cuidados de saúde primários (CSP) constitui a abordagem mais inclusiva, efetiva e eficiente para melhorar a saúde física e mental das pessoas, e o seu bem-estar social, e de que os CSP são a pedra angular de um sistema de saúde sustentável para cobertura universal de cuidados de saúde e objetivos de desenvolvimento sustentado relacionados com a saúde” [tradução minha].3

Desta mensagem retira-se, desde logo, uma ilação que entretanto foi analisada em pormenor: a relação direta entre CSP e cobertura universal de cuidados de saúde.4-5 A cobertura universal é uma característica procurada há muito na Europa e que é parte integrante da matriz conceptual do Serviço Nacional de Saúde português. Poder-se-ia, assim, considerar que estamos no caminho certo. As mensagens da Declaração de Astana, contudo, não se esgotam neste ponto. É chamada a atenção diretamente para “o crescimento das doenças não transmissíveis que levam a menor saúde e mortes prematuras relacionadas com o tabaco, o uso nocivo do álcool, estilos de vida e comportamentos não saudáveis e insuficiente atividade física e alimentação não saudável” [tradução minha].

As recomendações finais centram-se na necessidade de acesso de todos a cuidados de promoção da saúde, prevenção, curativos, de reabilitação e paliativos. A pobreza extrema causada por despesas suplementares com a saúde tem de ser combatida. A promoção da saúde e prevenção da doença devem constituir prioridades e a fragmentação de cuidados deve ser combatida, tal como a falta de profissionais de saúde e a sua distribuição desigual nos territórios. O custo com os cuidados e o desperdício devem ser igualmente objeto de atenção.

Grande parte destas conclusões resultam de trabalho prévio realizado no âmbito da OMS e contido num documento preparatório da Conferência de Astana, que merece leitura atenta.6 Neste texto são identificadas as alterações contextuais ocorridas na Europa nos últimos quarenta anos, e que incluem (i) o envelhecimento da população, (ii) a escassez de recursos humanos agravada em vários países pela migração de profissionais para outros países, (iii) a alteração epidemiológica registada, com redução das infeções e problemas de saúde materna e infantil e aumento das doenças não transmissíveis, (iv) o agravamento dos determinantes sociais da saúde entre os mais desfavorecidos, (v) a alteração das expectativas sociais em relação à saúde e (vi) a crise económica global.

As soluções preconizadas neste relatório assentam nos cuidados centrados na pessoa, reforçando três áreas: inclusão, investimento e inovação. Em relação à última, vale a pena enumerar:

• Inovação na tomada de decisão e na responsabilização

• Inovação na gestão dos cuidados

• Inovação na inclusão das populações nos processos de decisão

• Promoção da colaboração intersetorial

• Inovação no financiamento

• Inovação na obtenção de recursos e na sua gestão

• Inovação na prestação de cuidados

Entre os exemplos de sucesso dados (de Portugal apenas surge uma referência fugidia a novos modelos de pagamento dos cuidados a doenças crónicas) está a Holanda, cujos cuidados primários surgem como responsáveis por mais de 95% dos episódios de cuidados de saúde do país. Segundo é ainda citado, essa forte componente dos CSP holandeses seria responsável pela diminuição de cerca de um quarto da mortalidade evitável na Holanda.7

Em suma, de Astana vieram recomendações claríssimas sobre as áreas em que devemos concentrar os nossos esforços. Saiu ainda uma mensagem poderosa: teremos de sair das nossas áreas de conforto se queremos que o sistema de saúde evolua, sob risco de progressivamente passarmos à irrelevância.

Em entrevista à MEDI-COM de dezembro de 2018, merecedora de leitura atenta,8 Nadim Habib, da NOVA School of Business and Economics, reforça a inovação da organização dos cuidados de saúde como a solução para os problemas que nos afetam, e não apenas a injeção de mais recursos nos sistemas tal como os conhecemos hoje. Subscrevo a sua tese de que temos de repensar o SNS. Os documentos vindos de Astana indicam os problemas e apontam os caminhos. Cabe-nos a todos promover a mudança.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. World Health Organization. Declaration of Alma-Ata: international conference on primary health care, Alma-Ata, USSR, 6-12 September 1978 [Internet]. Geneva: WHO; 1978. Available from: https://www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf.         [ Links ]

2. Barata AN. Global Conference on Primary Health Care 2018 [homepage]. MGFamiliar.net; 2018. Available from: https://www.mgfamiliar.net/_blog/MO/post/global-conference-on-primary-health-care-2018/.         [ Links ]

3. World Health Organization and the United Nations Children's Fund (UNICEF). Global conference on primary health care: from Alma-Ata towards universal health coverage and the Sustainable Development Goals, Astana, Kazakhstan, 25 and 26 October 2018 [Internet]. Geneva: WHO; 2018. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/primary-health/declaration/gcphc-declaration.pdf.         [ Links ]

4. Kluge H, Kelley E, Barkley S, Theodorakis PN, Yamamoto N, Tsoy A, et al. How primary health care can make universal health coverage a reality, ensure healthy lives, and promote wellbeing for all. Lancet. 2018;392(10156):1372-4.         [ Links ]

5. Hill PS. Primary health care and universal health coverage: competing discourses? Lancet. 2018;392(10156):1374-5.         [ Links ]

6. World Health Organization. From Alma-Ata to Astana: primary health care - reflecting on the past, transforming for the future [Internet]. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2018. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/primary-health-care-conference/phc-regional-report-europe.pdf?sfvrsn=cf2badeb_2.         [ Links ]

7. Van Weel C, Schers H, Timmermans A. Health care in the Netherlands. J Am Board Fam Med. 2012;25 Suppl 1:S12-7.         [ Links ]

8. Medi.com. Portugal precisa de criar um novo SNS. Medi.com. 2018;(218):20-3.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: armando.sa@arslvt.min-saude.pt

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons