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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.3 Lisboa jun. 2018

 

CLUBE DE LEITURA

Consumo de açúcares adicionados na infância: epidemia do século XXI?

Added sugars' consumption in children: an epidemic of the 21st century?

Ana Rute Ferreira Marques*, Ana Margarida Magalhães Gomes*, Gema Ponce Revilla*, Ana Maria Marques Raposo*

*USF Travessa da Saúde


 

Vos MB, Kaar JL, Welsh JA, Van Horn LV, Feig DI, Anderson CA, et al. Added sugars and cardiovascular disease risk in children: a scientific statement from the American Heart Association. Circulation. 2017;135(19):e1017-34. DOI: 10.1161/CIR.0000000000000439

Introdução

A doença aterosclerótica é a primeira causa de morte nos Estados Unidos da América, parecendo ter início na infância devido à ingestão de açúcar. O seu consumo contribui para cerca de 16% das calorias diárias das crianças americanas. Os objetivos deste trabalho são: fazer uma revisão da evidência da relação entre o consumo de açúcares adicionados e o risco cardiovascular (RCV) em idade pediátrica, identificar lacunas e formular recomendações.

Método

Foi conduzida uma pesquisa na PubMed, com várias palavras-chave, limitada a estudos originais, estudos em humanos e revisões sistemáticas. Os trabalhos foram resumidos e discutidos por peritos, estabelecendo-se recomendações por consenso de grupo. Foi também consultado o National Health and Nutrition Examination Survey, de 2009 a 2012.

Foram definidos os termos a utilizar, destacando-se os açúcares adicionados (AD), todos os açúcares usados como ingredientes em alimentos processados e preparados, bem como aqueles adicionados à mesa, separadamente.

Resultados

Nos últimos anos, várias entidades recomendaram o consumo limitado de AD como estratégia para diminuir a prevalência de obesidade e reduzir o RCV. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2003, propôs um limite no consumo de AD para <10% do valor energético total (VET) diário e, em 2015, acrescentou que uma redução para <5% (equivalente a ≈25g para um adulto saudável) teria benefícios adicionais em crianças e adultos. As crianças e jovens entre 2-19 anos consomem em média 80g/dia, sendo maior em rapazes e aumentando com a idade.

Em 2014, Jacome-Sousa e colaboradores constataram que a frutose e glucose podem ser tão aterogénicas como os ácidos gordos saturados, ainda que seja importante ter em conta a variabilidade da resposta individual devido a fatores genéticos. Vários trabalhos indicam ainda que os hidratos de carbono consumidos em alimentos sólidos são mais saciantes que aqueles em alimentos líquidos, o que provocaria menor ganho de peso. Assim, importa reduzir a ingestão de todos os AD, mas principalmente das bebidas açucaradas para diminuição do RCV. Adicionalmente, estudos randomizados controlados, em que foi feita a substituição de bebidas açucaradas por bebidas não calóricas, constataram reduções de peso, o que veio fortalecer a relação entre o consumo de AD e o aumento de peso.

Durante vários anos suspeitou-se de uma eventual relação entre açúcares e HTA. Tanto a evidência epidemiológica como a que resulta de ensaios clínicos sugerem que o consumo de AD (particularmente por serem fonte de frutose em excesso) conduz ao aumento da pressão arterial em crianças e adultos jovens. Existem dados que comprovam que este efeito pode ser mitigado através do uso de terapêutica dirigida à diminuição dos níveis de ácido úrico, o que vem apoiar a hipótese de que o efeito hipertensivo dos AD é indireto.

Múltiplos estudos demonstraram também uma associação entre o consumo de AD e o aumento dos níveis dos triglicéridos e/ou diminuição dos níveis de colesterol HDL. Apesar de tudo, os valores de colesterol LDL e/ou colesterol total foram menos relatados e/ou inversamente associados ao consumo de AD em alguns trabalhos, pelo que são necessários mais estudos nesta área.

No que diz respeito aos AD e diabetes mellitus, os estudos nesta área são inconclusivos. Parece existir uma relação entre os primeiros e a resistência à insulina em crianças com excesso de peso, não demonstrada, contudo, em crianças com peso adequado.

Quanto ao uso de adoçantes artificiais em substituição dos AD, os estudos são escassos na população pediátrica relativamente às vantagens ou desvantagens a longo prazo, pelo que não podem ser feitas recomendações contra ou a favor.

Conclusões

A evidência atual apoia a associação entre o consumo de AD e o aumento do aporte calórico, obesidade e dislipidemia, fatores importantes no aumento do RCV.

A introdução de AD durante a infância parece ser nefasta e deve ser evitada. Este grupo de trabalho recomenda:

• Reduzir o consumo de bebidas açucaradas para ≤240mL/semana – (Classe I, Evidência A)

• Limitar AD <25g/dia em crianças >2 anos – (Classe IIa, Evidência C)

• Evitar o consumo deste tipo de açúcares em <2 anos – (Classe III, Evidência C)

Apesar de toda a investigação desenvolvida nesta área, permanecem por esclarecer várias questões, nomeadamente relativas ao limiar abaixo do qual o consumo de AD não tem impacto no RCV.

Comentário

Os hábitos alimentares inadequados, incluindo a ingestão excessiva de açúcares simples, constituem um dos quatro fatores de risco modificáveis para o desenvolvimento de doenças crónicas.1-2 Em Portugal, segundo o estudo Global Burden of Diseases, este fator de risco é o principal responsável pelo número de anos de vida com saúde perdidos.3 A realidade portuguesa é preocupante, especialmente atentando aos dados relativos às doenças cardiovasculares (DCV) entre 2013 e 2014, que mantêm um peso significativo como causa de mortalidade em Portugal (≈29,5%).4 Para além disso:

• 52,8% da população portuguesa com 18 ou mais anos tinha excesso de peso;5

• 31,6% das crianças portuguesas com idades compreendidas entre os seis e os oito anos apresentavam peso acima do normal;6

• 18,2% dos adolescentes apresentavam peso acima do normal.7

Internacionalmente, a OMS publicou, em 2015, recomendações relativas ao consumo de açúcar. Estas surgiram da preocupação com o facto de a ingestão de açúcar (particularmente na forma de bebidas açucaradas) aumentar a proporção calórica e reduzir o consumo de alimentos nutricionalmente adequados, contribuindo para o aumento ponderal e maior risco de doenças crónicas.2 As recomendações para uma dieta saudável são semelhantes para adultos e crianças, embora com algumas sugestões específicas para os mais novos. Nos primeiros dois anos de vida, uma boa nutrição promove o crescimento saudável e desenvolvimento cognitivo, reduzindo o risco de doenças crónicas na idade adulta, recomendando-se:8

• Aleitamento materno (AM) exclusivo durante os primeiros seis meses;

• AM complementado com alimentos ricos em nutrientes, sem adição de sal ou açúcar, após os seis meses;

• AM mantido até aos dois anos.

A OMS defende que a ingestão de açúcar deve ser reduzida a menos de 10% do VET diário ou a menos de 5% para benefícios adicionais. Esta redução pode ser alcançada limitando o consumo de alimentos e bebidas contendo grandes quantidades de açúcar e substituindo snacks doces por frutas e vegetais.2,8

Em Portugal, durante 2013-2014, a disponibilidade de açúcar per capita foi de 34,4kg/ano,9 equivalente a 94g/dia ou 376kcal/dia.1 Considerando um VET de 2.000kcal, as recomendações da OMS sugerem um consumo de açúcar máximo de 200kcal/dia, constatando-se uma ingestão claramente exagerada na população portuguesa. Relativamente às bebidas açucaradas, a disponibilidade de refrigerantes em 2012 foi de 208,5ml/hab/dia e de sumos de 34,8ml/hab/dia.10 Atendendo à quantidade de açúcar presente nestas bebidas, metade da recomendação de consumir até 200kcal/dia pode ser facilmente ultrapassada com a ingestão de apenas 330mL de alguns dos refrigerantes à venda.1

Subscrevendo as recomendações da OMS, foi criado em 2012 o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), pela Direção-Geral da Saúde. O objetivo é fomentar o consumo alimentar adequado e a melhoria do estado nutricional para conseguir impacto direto na prevenção e controlo das doenças mais prevalentes a nível nacional.11

Procurando conciliar as medidas propostas pela OMS com as particularidades culturais, geográficas e governamentais portuguesas,11 o PNPAS propõe atividades em seis áreas: estudo de indicadores do estado nutricional; reformulação nutricional na indústria alimentar e regulamentação do fornecimento de alimentos ricos em gorduras, sal e açúcar em estabelecimentos sociais de saúde e de ensino; reforço da literacia alimentar; promoção de um padrão alimentar mediterrânico sustentável e economicamente acessível; formação de profissionais e facilitação da sua articulação com estruturas influentes nesta área.12

Alicerçando estas medidas em evidência que corrobora a associação entre o consumo excessivo de AD e aumento do RCV também encontrada no trabalho em discussão, o PNPAS surge em resposta ao retrato da população portuguesa que mostra a necessidade de uma mudança do padrão alimentar. A redução do consumo de açúcar, entre outras modificações, terá certamente um impacto positivo na saúde, quer da população pediátrica quer da população em geral.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Graça P, Gregório MJ, Santos A, Sousa SM. Redução do consumo de açúcar em Portugal: evidência que justifica ação (Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável). Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2015.         [ Links ] ISBN 9789726752509

2. World Health Organization. Guideline: sugars intake for adults and children. Geneva: WHO; 2015.         [ Links ] ISBN 9789241549028

3. Direção-Geral da Saúde. A saúde dos Portugueses: perspetiva 2015. Lisboa: DGS; 2015.         [ Links ]

4. Direção-Geral da Saúde. Portugal, doenças cérebro-cardiovasculares em números, 2015. Lisboa: DGS; 2016.         [ Links ]

5. Instituto Nacional de Estatística. Inquérito nacional de saúde 2014: mais de metade da população com 18 ou mais anos tinha excesso de peso. Lisboa: INE; 2015.         [ Links ]

6. Rito A, Graça P. Childhood Obesity Surveillance Initiative: COSI Portugal 2013. Lisboa: Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge; 2015.         [ Links ]

7. Matos MG, Simões C, Camacho I, Reis M, Equipa Aventura Social. Relatório do estudo HBSC 2014: a saúde dos adolescentes portugueses em tempos de recessão – Dados nacionais do estudo HBSC de 2014. Lisboa: Centro de Malária e Outras Doenças Tropicais, IHMT, FMH; 2015.         [ Links ]

8. World Health Organization. Healthy diet: fact sheet nº 394 [homepage]. Geneva: WHO; 2015 [cited 2017 Jan 6]. Available from: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs394/en/        [ Links ]

9. Direção-Geral da Saúde. Portugal: alimentação saudável em números, 2015 (Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável). Lisboa: DGS; 2015.         [ Links ]

10. Instituto Nacional de Estatística. Balança alimentar Portuguesa (2012-2016). Lisboa: INE; 2017.         [ Links ] ISBN 9789892503899

11. Graça P, Gregório MJ. A construção do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável: aspetos conceptuais, linhas estratégicas e desafios iniciais [The construction of the National Program for the Promotion of Healthy Eating: conceptual aspects, strategic guidelines and initial challenges]. Rev Nutrícias. 2013;18:26-9. Portuguese

12. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional para a promoção da alimentação saudável: orientações programáticas. Lisboa: DGS; 2012.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

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