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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.2 Lisboa abr. 2018

 

CLUBE DE LEITURA

Benefício de objetivos mais exigentes de pressão arterial sistólica no tratamento da hipertensão: uma mudança de paradigma na prevenção de doença cardiovascular e de mortalidade

Benefit of tight systolic blood pressure control in hypertension treatment: a new paradigm in the prevention of cardiovascular disease and mortality

Filipe Serrano*, Ana Rente**, Diana Tomaz**

*Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Jardins da Encarnação

**Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. USF Jardins da Encarnação


 

Bundy JD, Li C, Stuchlik P, Bu X, Kelly TN, Mills KT, et al. Systolic blood pressure reduction and risk of cardiovascular disease and mortality: a systematic review and network meta-analysis. JAMA Cardiol. 2017;2(7):775-81. doi: 10.1001/jamacardio.2017.1421

Introdução

A hipertensão (HTA) é um dos principais fatores de risco de doença cardiovascular (DCV) e de morte prematura prevenível. Existe uma relação forte e independente entre valores de pressão arterial sistólica (PAS) e de mortalidade geral ou DCV. Estudos anteriores documentaram a ligação entre a redução da pressão arterial (PA) e a diminuição do risco de DCV e da mortalidade geral. Contudo, análises post hoc de alguns ensaios clínicos identificaram uma associação de curva J entre os valores alcançados de PA e o risco de DCV e mortalidade geral. A ausência de consenso nos objetivos terapêuticos de PA leva a inconsistências nas recomendações das diferentes guidelines. Assim, definir o valor alvo ideal de PAS poderá ter implicações relevantes na redução da DCV e da morte prematura.

Neste estudo, os autores compararam a associação entre a redução de PAS e o risco de DCV major, de acidente vascular cerebral (AVC), de doença coronária (DC), de mortalidade por DCV e de mortalidade geral.

Método

Realizou-se uma pesquisa de ensaios clínicos aleatorizados na MEDLINE e na EMBASE. Através da análise das referências bibliográficas dos estudos encontrados foram selecionados ensaios clínicos adicionais não incluídos na pesquisa inicial.

Os outcomes pré-definidos foram DCV major (que incluiu AVC, DC, insuficiência cardíaca [IC] e morte por DCV), AVC, DC, mortalidade por DCV e mortalidade geral.

Efetuou-se uma meta-análise em rede que permitiu criar uma pool de resultados com evidência direta e indireta de vários e diferentes tratamentos, mantendo a comparação aleatória de cada ensaio. Estabeleceram-se diagramas para cada outcome e a rede no geral para efetuar comparações entre dez categorias diferentes de valores de PAS [<120mmHg; 120-124mmHg e sucessivamente até >160mmHg]. Utilizaram-se hazard ratios (HR) que compararam as diferentes categorias de PAS para cada ensaio.

Realizou-se ainda uma subanálise, em que se excluiu o estudo SPRINT, para averiguar a sua influência nos resultados.

Resultados

Dos 2.721 estudos encontrados selecionaram-se 42 ensaios com uma amostra de 144.220 indivíduos. Os valores médios de PAS obtidos encontravam-se entre 114 a 171mmHg nos diferentes grupos. As populações tinham diversas comorbilidades e em 30 ensaios foram incluídos participantes com DM2. A duração dos ensaios variou entre seis meses e oito anos, com uma média de follow-up de 3,7 anos. O grupo central considerado foi o de 130 a 134mmHg, com um total de 21 ensaios, que foi comparado diretamente com sete outros grupos. Encontraram-se associações lineares entre a PAS média atingida e o risco de DCV major, AVC, DAC, mortalidade geral e mortalidade por DCV.

O grupo de PAS de 120-124mmHg teve um HR para DCV de 0,71 (IC95%, 0,60-0,83), de 0,58 (IC95%, 0,48-0,72), de 0,46 (IC95%, 0,34-0,63) e de 0,36 (IC95%, 0,26-0,51) quando comparado respetivamente com os grupos de 130-134mmHg, de 140-144mmHg, de 150-154mmHg e de ≥160mmHg.

O grupo de PAS de 120-124mmHg teve um HR para AVC de 0,69 (IC95%, 0,40-1,07), de 0,51 (IC95%, 0,26-0,87), de 0,36 (IC95%, 0,17-0,68) e de 0,27 (IC95%, 0,12-0,51) quando comparado respetivamente com os grupos de 130-134mmHg, de 140-144mmHg, de 150-154mmHg e de ≥160mmHg. Foi observada uma associação similar, mas mais fraca, para o risco de DC.

O grupo de PAS de 120-124mmHg teve um HR para mortalidade geral de 0,73 (IC95%, 0,58-0,93), de 0,59 (IC95%, 0,45-0,77), de 0,51 (IC95%, 0,36-0,71) e de 0,47 (IC95%, 0,32-0,67) quando comparado respetivamente com os grupos de 130-134mmHg, de 140-144mmHg, de 150-154mmHg e de ≥160mmHg.

O grupo de PAS de 120-124mmHg teve um HR para mortalidade por DCV de 0,67 (IC95%, 0,40-1,22), de 0,55 (IC95%, 0,30-1,07), de 0,43 (IC95%, 0,22-0,93) e de 0,34 (IC95%, 0,17-0,76) quando comparado respetivamente com os grupos de 130-134mmHg, de 140-144mmHg, de 150-154mmHg e de ≥160mmHg.

Os valores de risco mais baixos foram observados no grupo de 120-124mmHg, com exceção do AVC, em que o maior benefício foi abaixo dos 120mmHg. Surgiram resultados inconsistentes para as seguintes comparações: DCV major e DC entre 125-129 vs 130-134mmHg; mortalidade por DCV entre 120-124 vs 130-134 e 120-124 vs 135-139mmHg.

Após a exclusão do estudo SPRINT verificou-se que o risco mais baixo para AVC ocorreu no grupo de 120-124mmHg e para a morte por DCV no grupo <120mmHg.

Discussão

Este estudo demonstra uma associação linear entre a PAS média e o risco de DCV e de mortalidade geral, sendo o risco menor entre 120-124mmHg. Verifica-se, mesmo após a exclusão do estudo SPRINT, uma redução de 29% no risco de DCV e de 27% na mortalidade geral comparando os grupos de 120-124mmHg e de 130-134mmHg.

Verificou-se que uma redução de 10mmHg na PAS para atingir o alvo 120-124mmHg diminui o risco de DCV em 29% (IC95%, 17-40%), tendo uma redução de 20mmHg diminuído o risco em 42% (IC95%, 28-52%), uma redução de 30mmHg correspondido a 54% (IC95%, 37-66%) e uma redução ≥40mmHg diminuído em 64% (IC95%, 49-74%).

Conclusão

A redução da PAS para níveis inferiores aos recomendados pode trazer sérios benefícios na redução da DCV e da mortalidade geral. Estes achados são a favor de um controlo agressivo dos valores de PAS nos adultos com HTA.

Comentário

Em Portugal, a DCV continua a ser a principal causa de morte, sendo responsável por 32% dos óbitos. A HTA é o principal fator de risco na população portuguesa1 estimando-se uma prevalência de cerca de 42,2%.2

Em doentes com idade ≥50 anos a hipertensão sistólica isolada é a forma mais comum de HTA,3-4 tornando-se mais importante que a PAD como fator de risco independente para DC, AVC, IC e doença renal crónica (DRC).5-7

Diversos estudos têm demonstrado que o tratamento da HTA reduz o risco de DCV, embora não haja consenso relativamente ao alvo ideal de PAS.7-9

O estudo SPRINT10 concluiu que um alvo de PAS <120mmHg em comparação com PAS <140mmHg, em doentes de alto risco de DCV mas sem DM2, resultou em taxas mais baixas de eventos CV fatais e não fatais e de mortalidade geral. Contudo, alguns efeitos adversos ocorreram mais frequentemente no tratamento mais agressivo o que tem de ser pesado relativamente aos benefícios. Em contraste, o estudo ACCORD11 não revelou evidência de diminuição do risco de eventos CV, comparando o alvo entre PAS <120mmHg e <140mmHg em doentes com DM2. Esta diferença de resultados pode dever-se ao desenho do estudo, a interações medicamentosas ou ao acaso.10

O presente artigo termina concluindo que, estatisticamente, a redução da PAS para valores entre 120-124mmHg poderá ter um benefício máximo no que concerne à DCV e, em teoria, também à mortalidade geral. A utilização de uma meta-análise em rede permitiu comparar vários níveis de PAS com os outcomes clínicos, sem comprometer a aleatorização de cada ensaio, diminuindo possíveis viés. Apresenta uma amostra considerável com diversas comorbilidades, incluindo DM2 e AVC, sendo possível generalizar a diversas populações. No entanto, neste estudo, as populações não foram discriminadas por idade, raça/etnia, história prévia de DCV, AVC, DRC ou DM2 devido à inexistência de informação, o que não permitiu a realização de uma análise de subgrupo. Apenas alguns ensaios reportaram IC como outcome, o que impossibilitou a análise desta variável assim como de outras, nomeadamente de DRC, de demência e efeitos adversos, como hipotensão e quedas. Outra lacuna é o facto de a PAD não ser considerada nesta meta-análise. As meta-análises em rede estão sujeitas a mais resultados e conclusões erróneas em relação aos que as próprias meta-análises apresentam. A inferência estatística tem uma margem de erro superior e a extrapolação estatística complica o raciocínio científico por detrás destas conclusões. Neste caso, é possível observar (e assumido pelos próprios autores) que inúmeras variáveis não foram consideradas (como supracitado), o que inviabiliza a correta valorização dos outcomes estatísticos. Para além deste facto, os estudos incluídos em cada segmento tensional analisado não são iguais nem as suas características. Contudo, não permanece uma visão interessante sobre o controlo tensional e sobre o verdadeiro e colossal impacto que a HA, e concretamente a PAS, tem sobre os diferentes sistemas de órgãos e os seus efeitos devastadores.

O debate mantém-se na tentativa de encontrar o intervalo tensional ideal para otimização terapêutica. É essencial uma estandardização do método de obtenção e registo de PA e categorização correta das populações amostrais para se compreender quais os maiores benefícios e em que doentes selecionados se obtêm diminuições máximas de risco com alvos de PAS específicos.12

Este artigo leva-nos a refletir sobre os valores-alvo de PAS definidos nas diversas guidelines e acerca do seu impacto na prevenção da DCV. Realça-se também a importância do controlo tensional que é um aspeto difícil de alcançar na prática clínica diária, requerendo habitualmente um seguimento adequado e frequente, bem como um elevado grau motivacional do doente. Essa é uma tarefa ambiciosa mesmo com as metas definidas atualmente. O presente estudo acrescenta a necessidade do estabelecimento de metas de PA mais exigentes. No entanto, é necessária uma investigação adicional para sedimentar e contextualizar esta conclusão, não descurando as especificidades individuais e os efeitos adversos que podem complicar a redefinição destas metas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflitos de interesse

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

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