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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.1 Lisboa fev. 2018

 

CLUBE DE LEITURA

Início tardio do tratamento antibiótico na infeção do trato urinário febril pediátrica e cicatriz renal: que associação?

Delayed initiation of antibiotic treatment in pediatric febrile urinary tract infection and renal scarring: is there any association?

Rita M. Oliveira*, Rita Pedro**

*Médica interna de formação específica. USF Lagoa, ULS de Matosinhos

**Médica interna de formação específica. USF Horizonte,ULS de Matosinhos


 

Shaikh N, Mattoo TK, Keren R, Ivanova A, Cui G, Moxey-Mims M, et al. Early antibiotic treatment for pediatric febrile urinary tract infection and renal scarring. JAMA Pediatr. 2016;170(9):848-54. doi: 10.1001/jamapediatrics.2016.1181.

Introdução

A associação entre o início tardio do tratamento antibiótico na infeção do trato urinário (ITU) febril pediátrica e o desenvolvimento de cicatriz renal não é consensual entre os diferentes estudos. Assim, o presente estudo teve como objetivo determinar se existe uma associação entre o atraso do início da antibioterapia e o desenvolvimento de cicatriz renal numa amostra de crianças com ITU febril, assim como com a sua extensão, mesmo depois de ajustado para potenciais fatores de confundimento.

Métodos

Foi realizado um estudo de coorte retrospetivo de uma amostra constituída por crianças dos dois meses aos seis anos de idade com um primeiro ou segundo episódio de ITU, obtida de dois estudos longitudinais conduzidos previamente nos Estados Unidos da América (RIVUR – Randomized Intervention for Children with Vesicoureteral Reflux e CUTIE – Careful Urinary Tract Infection Evaluation Study). A duração do seguimento foi de dois anos. No início foi questionada aos pais a duração da febre antes do início da antibioterapia (horas) e realizada cintigrafia renal com DMSA (ácido dimercapto-succínico), a qual voltou a ser realizada no fim do seguimento para documentar o eventual desenvolvimento de cicatriz renal (fotopenia e alteração dos contornos) e a extensão da mesma, se presente (sistema desenvolvido em RIVUR).

Outras variáveis demográficas e clínicas em estudo foram o sexo, a etnia, história de ITU prévia, presença de refluxo vesicoureteral (RVU) ou de disfunção vesical e pico febril máximo nas primeiras 24 horas (temperatura ≥39° C ou <39° C).

Foram critérios de exclusão a ausência de febre (temperatura <38° C), a inexistência de informação sobre o início do tratamento antibiótico ou a não realização de cintigrafia renal com DMSA no início do estudo.

Resultados

Das 802 crianças envolvidas, 320 foram excluídas. As 482 crianças incluídas tinham uma idade mediana de 11 meses, sendo a maioria do sexo feminino (90%) e caucasianas (78%). Em relação a fatores de risco para ITU, 78% tinham RVU, 94% não tinha história de ITU prévia e 82% não tinha controlo de esfíncteres. Do total da amostra, 7,2% desenvolveu cicatriz renal após os dois anos de seguimento. Verificou-se ainda que a proporção de crianças com cicatriz renal de novo aumentou com o aumento da duração da febre prévia ao tratamento, desenvolvendo-se em 15% das crianças que iniciaram antibioterapia após os três dias de febre. A média da duração da febre para as crianças sem cicatriz renal de novo foi de 48 horas e de 72 horas para aquelas que desenvolveram cicatriz renal (p=0,003). Esta associação permaneceu estatisticamente significativa mesmo após ajustada para as restantes variáveis confundidoras. Por cada hora de atraso do início do tratamento antibiótico, o risco de nova cicatriz renal aumenta em 0,8%.

Já a associação entre a duração da febre e a extensão da cicatriz renal não permaneceu estatisticamente significativa após o ajuste para fatores confundidores (p=0,12), verificando-se, no entanto, uma associação estatisticamente significativa com ITU intercorrentes e febre elevada (temperatura ≥39° C).

Discussão

Os resultados mostraram que, em crianças com ITU febril, o atraso no início da antibioterapia está associado ao desenvolvimento de cicatriz renal, estimando-se um aumento da probabilidade de cicatriz renal de novo em 47% por um atraso ≥48 horas. Esta hipótese é suportada pela concordância com estudos anteriores em populações semelhantes e pela robustez dos resultados após ajuste para fatores confundidores (idade, ITU prévia, etc.).

Apesar de dois grandes estudos1-2 não terem encontrado esta mesma relação, os autores referem que ambos tinham a limitação de incluir apenas crianças já com envolvimento renal, bem como uma maior proporção de rapazes, estes últimos mais propensos a lesões congénitas potencialmente confundidoras com cicatriz renal adquirida. De referir, no entanto, que um desses estudos mostrou existir um maior risco de pielonefrite aguda com o atraso no início do tratamento antibiótico, corroborando a hipótese de que os efeitos deletérios do atraso do início da antibioterapia ocorrem antes do atingimento renal ser detetável na cintigrafia com DMSA.

O presente estudo teve algumas limitações, nomeadamente a possibilidade de o relato dos pais quanto à duração da febre antes da antibioterapia ser impreciso (embora seja pouco provável que essa imprecisão explique as diferenças observadas nas crianças com ou sem cicatriz renal), a inclusão de crianças mais novas e com maior probabilidade de ter RVU relativamente às excluídas, e o número de crianças com nova cicatriz renal relativamente baixo.

Conclusão

Este estudo de coorte retrospetivo demonstrou que existe uma relação entre o atraso no início da antibioterapia em crianças com ITU febril e o desenvolvimento de cicatriz renal, com o risco de sequelas renais a aumentar face à demora na instituição de antibioterapia.

Comentário

Os resultados deste estudo vêm confirmar o impacto negativo sobre o rim da ITU febril em idade pediátrica tratada tardiamente, traduzido na forma de cicatriz renal. À semelhança de outros órgãos, “tempo é rim” e, de acordo com este estudo, por cada hora de atraso do início da antibioterapia, o risco de nova cicatriz renal aumenta em 0,8%.3

É nos cuidados de saúde primários (CSP) que frequentemente se estabelece o primeiro contacto com o sistema de saúde das crianças com febre, muitas vezes numa fase inicial (e, por isso, inespecífica), não sendo rara a não objetivação de um foco. Importa, pois, identificar quais as crianças de maior risco para ITU para que o diagnóstico se concretize e o tratamento se institua o mais precocemente possível, prevenindo o risco associado a uma ITU febril tratada tardiamente.

De acordo com a Academia Americana de Pediatria, nas crianças entre os dois e os 24 meses com febre sem foco e fatores de risco para ITU (Quadro I) deve ser excluído o diagnóstico de ITU logo no primeiro contacto com o sistema de saúde com a colheita de urina para análise. Pela especificidade do método de colheita de urina (que seguidamente se descreve), a abordagem em CSP traduz-se na maioria dos casos na referenciação para os cuidados hospitalares.4

 

 

Além da identificação dos grupos de risco que impliquem um estudo mais premente, também a escolha do método de colheita de urina pode ajudar a reduzir atrasos no diagnóstico (e, consequentemente, no início do tratamento). A Direção-Geral da Saúde estabeleceu, em 2012, que em crianças com controlo de esfíncteres e sem necessidade de antibioterapia imediata, a urina deve ser colhida por jato médio para exame sumário de urina e urocultura, o que poderá ser efetuado em contexto dos CSP. Já nas crianças sem controlo de esfíncteres e sem necessidade de antibioterapia imediata, a urina pode ser colhida inicialmente por saco coletor ou, se com alto risco para ITU, por algaliação ou punção suprapúbica – neste último caso, de índole hospitalar e, portanto, fora do âmbito dos CSP.5

Por fim, os dados deste estudo não suportam a noção generalizada de que o risco de desenvolvimento de cicatriz renal é superior nas crianças mais jovens relativamente às mais velhas.3 Esta ideia pode ser responsável pela subvalorização de uma febre sem foco em crianças mais velhas e levar, assim, a atrasos no diagnóstico e tratamento e respetivas implicações. Estes resultados suportam a necessidade de encarar a febre sem foco nas crianças como um problema de saúde potencialmente grave a requerer uma atenção especial no contexto da consulta de medicina geral e familiar, onde estes doentes em geral recorrem inicialmente, nomeadamente criando condições para aceder rapidamente à realização e avaliação dos resultados das uroculturas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Doganis D, Siafas K, Mavrikou M, Issaris G, Martirosova A, Perperidis G, et al. Does early treatment of urinary tract infection prevent renal damage? Pediatrics. 2007;120(4):e922-8.         [ Links ]

2. Hewitt IK, Zucchetta P, Rigon L, Maschio F, Molinari PP, Tomasi L, et al. Early treatment of acute pyelonephritis in children fails to reduce renal scarring: data from the Italian Renal Infection Study Trials. Pediatrics. 2008;122(3):486-90.         [ Links ]

3. Shaikh N, Mattoo TK, Keren R, Ivanova A, Cui G, Moxey-Mims M, et al. Early antibiotic treatment for pediatric febrile urinary tract infection and renal scarring. JAMA Pediatr. 2016;170(9):848-54.         [ Links ]

4. Subcommittee on Urinary Tract Infection, Steering Committee on Quality Improvement and Management. Urinary tract infection: clinical practice guideline for the diagnosis and management of the initial UTI in febrile infants and children 2 to 24 months. Pediatrics. 2011;128(3):595-610.         [ Links ]

5. Direção-Geral da Saúde. Diagnóstico e tratamento da infeção do trato urinário em idade pediátrica: norma n.º 008/2012, de 16/12/2012. Lisboa: DGS; 2012.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

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