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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.33 no.2 Lisboa abr. 2017

 

CLUBE DE LEITURA

Rastreio da dislipidemia multifatorial na infância e na adolescência: qual a evidência?

Screening of multifactorial dyslipidemia in childhood and adolescence: what is the clinical significance?

Sara Matos Moreira, Daniela Almeida Ribeiro

Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar. Unidade Local de Saúde de Matosinhos, USF Leça


 

Lozano P, Henrikson NB, Morrison CC, Dunn J, Nguyen M, Blasi PR, et al. Lipid screening in childhood and adolescence for detection of multifactorial dyslipidemia: evidence report and systematic review for the US Preventive Services Task Force. JAMA. 2016;316(6):634-44. doi: 10.1001/jama.2016.6423

Introdução

A elevação dos valores de colesterol total (CT) e da lipoproteína de baixa densidade (LDL) são fatores identificados como precursores da aterosclerose e da doença coronária. A identificação e o tratamento da dislipidemia em adultos com mais de 40 anos é uma prática clínica comum.

As concentrações destes biomarcadores em crianças saudáveis variam com a idade e com o género, sendo geralmente mais elevados no sexo feminino.

A dislipidemia na infância é definida por valores de CT ≥200mg/dL ou LDL ≥130mg/dL. A sua etiologia é tipicamente multifatorial, com exceção dos distúrbios genéticos.

A dislipidemia na infância e na adolescência não é uma doença, mas antes um fator de risco para a aterosclerose e pode contribuir para a doença coronária na idade adulta. No entanto, o seu rastreio nesta faixa etária não permite identificar de forma precisa quais serão os adultos com dislipidemia. Uma concentração elevada de LDL na adolescência tem um valor preditivo positivo de 32,9 a 37,3% para dislipidemia 15 a 20 anos depois, sendo este valor menor se for doseado antes dos 12 anos.

O rastreio da dislipidemia permite identificar jovens com o problema e, desta forma, delinear uma intervenção estruturada no sentido de reduzir a sua prevalência, assim como prevenir ou atrasar os eventos cardiovasculares na idade adulta. Contudo, a US Preventive Services Task Force (USPSTF), em 2007, encontrou uma evidência insuficiente para recomendar o rastreio das dislipidemias nas crianças ou adolescentes.

Esta revisão tem como objetivo atualizar esta recomendação, com enfoque nos benefícios e danos do rastreio da dislipidemia multifatorial em crianças e jovens dos zero aos 20 anos.

Métodos

De acordo com a metodologia da USPSTF, foi desenvolvido um quadro analítico e colocadas oito questões-chave para avaliar a evidência do efeito do rastreio e do tratamento nos outcomes intermédios, no estado de saúde do adulto e respetivos danos; a utilidade do rastreio; a relação entre os resultados intermédios e o estado de saúde na infância e no adulto. Os outcomes do estado de saúde do adulto foram o enfarte agudo do miocárdio (EAM) e o acidente vascular cerebral (AVC) isquémico. Quanto aos outcomes intermédios, estes incluíram as concentrações do perfil lipídico e marcadores de aterosclerose.

Procederam a uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados de medicina baseada na evidência, incluindo publicações de janeiro de 2005 a junho de 2015.

Resultados

Foram revistos 7.137 resumos e 537 artigos completos. Destes, incluíram 16 artigos.

Quanto à rentabilidade do diagnóstico por rastreio foram analisados três estudos. A prevalência de concentração de CT elevada foi de 8,5%. Destes, 88% repetiram análises uma a seis semanas após e 77% tinham LDL em jejum ≥130mg/dL (valor preditivo positivo de 77%). A eficiência do diagnóstico foi de 5,8%. O valor encontrado em três grandes estudos populacionais variou entre 8-11%. O resultado dos diagnósticos simulados variou entre 4,8-12,3% para diferentes subgrupos de idade e IMC. A eficiência mais elevada do diagnóstico parece ser em crianças obesas (12,3%) e nas idades em que naturalmente ocorre um pico de CT (7,2% aos 9-11 anos; 7,2% aos 16-19 anos). O subgrupo com maior rentabilidade diagnóstica estimada foi o das crianças obesas de 10-11 anos (12,3%).

Para a hipótese se o tratamento da dislipidemia multifactorial, com modificação do estilo de vida e/ou medicação, atrasa ou reduz a incidência de EAM e/ou AVC não foi identificado nenhum estudo. Já no que se refere ao efeito do tratamento nos outcomes intermédios (melhoria do perfil lipídico, reversão ou atraso da progressão da aterosclerose na infância e adolescência), nenhum estudo avaliou o efeito do tratamento farmacológico. Para a modificação do estilo de vida foram incluídos dois ensaios. Um dos ensaios testou o efeito da suplementação com linhaça (30gr por dia) durante quatro semanas, no qual não foi encontrada uma redução estatisticamente significativa da concentração do CT (variação relativa de -4%; IC95%, -10% a 2%, p=0,20) nem na concentração da LDL (variação relativa de -5%; IC95%, -12% a 2%, p=0,15). Esta suplementação também foi associada a menores concentrações de HDL. No outro ensaio incluído foi testada uma intervenção dietética estruturada a longo prazo em crianças com concentração da LDL nos percentis 80-98. No perfil lipídico obtiveram uma modesta redução do CT e da LDL, mas estatisticamente significativa, sendo a média ajustada das diferenças entre os grupos de -6,1mg/dL para a concentração média do CT (IC95%, -9,1 a -3,2mg/dL, p<0,001) e de -4,8mg/dL na LDL (IC95%, -7,4 a -2,2mg/dL, p<0,001).

Para estudar os danos do tratamento da dislipidemia multifatorial, com modificações do estilo de vida e/ou intervenção farmacológica, apenas foi incluído um estudo, no qual não foi identificado nenhum dano da intervenção dietética com aconselhamento comportamental.

Quanto ao resultado dos outcomes intermédios no estado de saúde do adulto, avaliado pela incidência de EAM e de AVC em adultos, foi incluído apenas um estudo, o qual incluiu 9.245 participantes com idades entre os 12 e os 39 anos, sendo avaliadas as mortes antes dos 55 anos. A concentração do CT moderadamente elevada (200-239mg/dL) não foi associada de forma significativa a morte prematura. No sexo masculino o risco relativo (RR) de morte por todas as causas foi de 0,75 (IC95%, 0,42-1,37) e de 0,71 por causas endógenas (IC95%, 0,34-1,51). No feminino foi de 1,39 para todas as causas de morte (IC95%, 0,71-2,70) e de 0,77 por causas endógenas (IC95%, 0,36-1,62). Uma concentração de CT muito alta (240mg/dL) foi associada a um maior risco de morte por causas endógenas (RR 2,58; IC95%, 1,31-5,08) no sexo feminino.

Para as questões relacionadas com o rastreio, os outcomes de saúde e os respetivos danos não foram encontrados estudos.

Conclusão

A relevância deste rastreio varia em função da idade e do IMC. Não foi identificada evidência relacionada com benefícios ou danos do rastreio ou tratamento na infância em resultados na idade adulta. As intervenções nutricionais intensivas podem ser seguras, com benefício modesto a curto prazo e significado clínico incerto.

COMENTÁRIO

A aterosclerose é um processo que se inicia na infância, sendo que a sua possível reversibilidade dá suporte ao tratamento precoce da dislipidemia. Porém, o rastreio e o tratamento dos distúrbios lipídicos nas crianças continuam controversos, sobretudo porque não há estudos que demonstrem que o seu tratamento na infância previna eventos cardiovasculares na idade adulta. No entanto, há evidência de que a modificação dos fatores de risco cardiovascular em crianças atrasará o desenvolvimento e a progressão de lesões ateroscleróticas.1-2

O rastreio numa população saudável para futuras doenças nocivas tem o potencial de reduzir o risco de morbimortalidade através da identificação e intervenção precoce. No entanto, é importante que o rastreio atenda a padrões aceitáveis e os seus benefícios superem os riscos.3

As estratégias de rastreio da dislipidemia incluem o rastreio seletivo e o universal. Mas também há quem protele este rastreio para a idade adulta, não só pelos custos inerentes, mas também pela baixa prevalência de dislipidemias graves na infância.1

Vários grupos de especialistas recomendam o rastreio com base na história familiar, para excluir hipercolesterolemia familiar. As recomendações do National Heart, Lung, and Blood Institute, de 2011, preconizam o rastreio universal dos nove aos onze anos e dos dezassete aos vinte e um anos, e seletiva noutras idades. As taxas atuais do rastreio da dislipidemia em crianças e adolescentes são baixas (entre 2,5-3,2%) e as diretrizes mais recentes não recomendam terapêutica farmacológica no tratamento da dislipidemia multifatorial em jovens.3-4

O Plano Nacional recomenda o rastreio nas seguintes situações: crianças entre os dois-quatro anos com antecedentes familiares de doença cardíaca precoce ou de perfil lipídico alterado, com excesso de peso ou obesidade, outras patologias que contribuem para o aumento do risco cardiovascular ou fármacos com potencial para alterar o perfil lipídico, salvaguardando que o rastreio é desejável acima dos dois anos.5 Contudo, de acordo com resultados de uma meta-análise, a seleção da população-alvo com base nos fatores de risco familiares pode sobrestimar as crianças com dislipidemia.6

A revisão em análise evidenciou que 8-11% das crianças e adolescentes apresentavam um rastreio positivo. Após os testes de confirmação estima-se que o rastreio resulte numa eficiência de diagnóstico entre os 4,8-12,3%, maior nos subgrupos de IMC mais elevados. No entanto, não foi encontrada nenhuma evidência direta do efeito deste rastreio sobre a dislipidemia e a aterosclerose na infância ou na incidência de EAM e de AVC na idade adulta.

Também não foi encontrada qualquer evidência sobre os danos deste rastreio, nomeadamente elevações lipídicas clinicamente importantes ou doença cardiovascular. Porém, pode resultar noutros danos, como rotular uma criança como doente, ansiedade dos pais ou das crianças, testes e tratamentos desnecessários ou prejudiciais. Além disso, os pontos de corte são derivados de distribuições populacionais, que embora amplamente aceites, podem sobrestimar o problema, sobretudo nas idades alvo de rastreio que experimentam picos nas concentrações de CT e LDL.

De acordo com dados de um ensaio incluído na revisão, na dislipidemia moderada, dos oito aos dez anos, após uma dieta com baixo teor de gordura e de colesterol, assistiu-se a uma pequena diminuição nos níveis de lípidos. Contudo, esse efeito não persistiu além dos três anos. A intensidade deste tipo de intervenção limita a sua generalização para o contexto dos cuidados primários, em que os nutricionistas não fazem parte da equipa de saúde. Além disso, não é clara a importância clínica desse efeito sobre as concentrações de colesterol.

De qualquer modo, é consensual a recomendação de um estilo de vida saudável na idade pediátrica. Existem, no entanto, famílias de risco ou crianças de risco pela patologia de base, em que a intervenção atempada pode modificar a história natural da doença.5

Esta revisão não identificou nenhum estudo de rastreio com seguimento na idade adulta e incluiu apenas dois ensaios de diferentes intervenções dietéticas. O estudo maior foi dirigido a crianças dos oito-dez anos, permanecendo desconhecidos os resultados da intervenção dietética em adolescentes.

Apesar da ligação clara entre as concentrações lipídicas e a doença cardíaca coronária nos adultos, a associação entre concentrações elevadas na juventude e doença cardiovascular na idade adulta é mal compreendida. De acordo com a evidência disponível, até à data, a relevância do rastreio de dislipidemia multifatorial na infância e na adolescência continua por esclarecer, com significado clínico incerto. As recomendações continuam a favor de promover um estilo de vida saudável, o que é preconizado para toda a população, não havendo evidência para apoiar qualquer outro tipo de tratamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Yoon JM. Dyslipidemia in children and adolescents: when and how to diagnose and treat? Pediatr Gastroenterol Hepatol Nutr. 2014;17(2):85-92.         [ Links ]

2. Peterson AL, McBride PE. A review of guidelines for dyslipidemia in children and adolescents. WMJ. 2012;111(6):274-81.         [ Links ]

3. Benuck I. The rationale for universal lipid screening and treatment in children. J Clin Lipidol. 2015;9(5 Suppl):S93-S100.         [ Links ]

4. Chauhan A, Paunikar P. Update on pediatric hyperlipidemia. Curr Opin Pediatr. 2014;26(2):252-8.         [ Links ]

5. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional de saúde infantil e juvenil: norma da DGS nº 010/2013, de 31/05/2013. Lisboa: DGS; 2013.         [ Links ]

6. Kelishadi R, Haghdoost AA, Moosazadeh M, Keikha M, Aliramezany M. A systematic review and meta-analysis on screening lipid disorders in the pediatric age group.  J Res Med Sci. 2015;20(12):1191-9.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não possuir qualquer conflito de interesse.

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