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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.33 no.1 Lisboa fev. 2017

 

CLUBE DE LEITURA

Ausência de associação ou associação inversa entre o LDL-C e a mortalidade no idoso: a queda do mito?

Low-density lipoprotein cholesterol and mortality in the elderly: the end of a myth?

Micaela Prata, Mafalda Gonçalves

Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Anta


 

Ravnskov U, Diamond DM, Hama R, Hamazaki T, Hammarskjöld B, Hynes N, et al. Lack of an association or an inverse association between low-density-lipoprotein cholesterol and mortality in the elderly: a systematic review. BMJ Open. 2016;(6):e010401.

Introdução

Durante décadas foi estudada a associação entre os níveis séricos do colesterol total (CT) e a mortalidade, que se revelou fraca nos idosos, quer para a mortalidade de origem cardiovascular (CV) quer para todas as causas de mortalidade e alguns estudos revelaram ainda a existência de uma associação inversa. No entanto, a literatura carece de artigos de revisão sobre a relação entre a mortalidade e os níveis séricos de low-density lipoprotein cholesterol (LDL-C), considerado fator de risco CV importante e alvo terapêutico de doenças cardiovasculares (DCV).

Este estudo pretendeu realizar uma meta-análise sobre o impacto do LDL-C como fator de risco para a mortalidade do idoso.

Metodologia

Foram realizadas pesquisas independentes na base de dados PubMed, de estudos em inglês, publicados até dezembro de 2015. Foram incluídos apenas estudos de coorte que investigaram a associação entre o LDL-C e o risco de mortalidade por todas as causas e/ou cardiovascular, em indivíduos com características representativas da população geral, a partir dos 60 anos de idade inclusive.

Resultados

Foram analisados 19 estudos que incluíam 30 coortes, correspondendo a um total de 68.094 idosos, tendo sido avaliadas todas as causas de mortalidade em 28 coortes e a mortalidade cardiovascular em nove coortes. Foi encontrada uma associação inversa entre todas as causas de mortalidade e o valor de LDL-C em 16 coortes, sendo que em 14 destas existia significância estatística, o que representa 92% dos participantes em que existia a associação inversa. A mortalidade CV revelou-se superior com significância estatística para valores de LDL-C mais baixos, em duas coortes, enquanto nas restantes sete coortes não foi encontrada qualquer associação.

Discussão

A revisão da literatura revelou não só a falta de associação entre o valor de LDL-C e a mortalidade nas pessoas acima dos 60 anos de idade, como a existência de uma associação inversa. Estes resultados contradizem a hipótese do colesterol, segundo a qual pelo facto de a aterosclerose ser mais pronunciada no idoso, o seu efeito cumulativo deveria refletir-se em mais DCV e mortalidade nos idosos com LDL-C elevado.

Contudo, há que considerar as seguintes limitações nesta revisão: podem não ter sido incluídos estudos relevantes devido ao facto de a pesquisa ter sido realizada apenas na PubMed e em inglês; não foi possível confirmar a realização do ajuste do valor do LDL-C aos restantes fatores de risco CV; alguns dos participantes com LDL-C elevado podem ter iniciado terapêutica com estatinas e, assim, ter aumentado a sobrevida do grupo.

Algumas teorias tentam explicar a relação entre baixos níveis de LDL-C e o aumento da mortalidade. A teoria da causalidade inversa afirma que doenças graves podem diminuir o valor do colesterol. Contudo, em cinco dos estudos analisados foram excluídos os idosos com doenças terminais ou que morreram e, destes, três revelaram uma mortalidade mais elevada para valores de LDL-C inicial mais baixos. Outra hipótese é que baixos níveis de LDL-C aumentem a suscetibilidade a doenças fatais, o que é suportado por estudos animais que mostram que o LDL-C inativa microorganismos. A inativação de vírus oncogénicos poderá explicar um efeito protetor contra o cancro, sendo mesmo a mortalidade oncológica menor em indivíduos com hipercolesterolemia familiar. Diversos estudos revelam ainda que o LDL-C é inferior ao normal nos doentes com enfarte agudo de miocárdio.

COMENTÁRIO

Nos países industrializados a doença cardiovascular, associada à aterosclerose, é a principal causa de morbimortalidade. Neste contexto, diversas sociedades científicas (Sociedades Europeias de Aterosclerose (EAS), Cardiologia (ESC), Medicina Geral e Familiar (ESGP/FM/WONCA), Associação Europeia para o Estudo da Diabetes (EASD), National Lipid Association (NLA), International Atherosclerosis Society e Sociedades Portuguesas de Aterosclerose (SPA) e Cardiologia (SPC)), reconhecem há décadas a importância da redução desta morbimortalidade através do tratamento da dislipidemia, uma vez que vários estudos sugerem que a redução dos níveis de CT e LDL-C diminui o risco de eventos e mortalidade cardiovasculares.

As recomendações da ESC, de 2016, sublinham a evidência limitada sobre a associação entre valores elevados de CT e a mortalidade no idoso, principalmente acima dos 80 anos. No entanto, não fazem referência a estudos que tenham em conta os valores de LDL-C e a mortalidade nesta faixa etária. Por outro lado, tendo em conta os efeitos adversos das estatinas, a ESC mostra alguma preocupação devido à farmacocinética e farmacodinâmica alteradas e à polimedicação características desta faixa etária. Deste modo, sublinha a importância do SCORE de risco na definição do alvo de LDL e no idoso recomenda o uso de estatinas:

• nos idosos com DCV estabelecida, de forma semelhante aos adultos (I, A);1

• em baixa dose, posteriormente titulada para atingir os mesmos alvos dos adultos (IIa, C);1

• de forma ponderada no idoso sem DCV e sem comorbilidades, particularmente na presença de hipertensão, diabetes, tabagismo e dislipidemia (IIa, B).1

Em Portugal, segundo as orientações da Direção-Geral da Saúde, a abordagem terapêutica das dislipidemias tem como objetivo a redução do risco CV individual tendo em conta os benefícios na mortalidade total, o valor do LDL-C e os efeitos adversos e as interações medicamentosas.2 O objetivo não é a diminuição do CT ou do LDL-C, per se, mas o controlo do risco CV.2

O estudo analisado é bastante pertinente, tratando-se da primeira revisão sistemática que avalia a associação entre o valor de LDL-C e a mortalidade nos idosos. No entanto, a sua metodologia apresenta várias falhas.3 Não existe um protocolo publicado da revisão3 e, para além das limitações na fase de pesquisa apresentadas pelos autores, como a utilização de apenas uma base de dados e artigos em inglês, não foi realizada pesquisa manual de revistas, proceedings de congressos ou artigos não publicados. Adicionalmente, 263 dos artigos foram excluídos com base em critérios genéricos, não existindo referência individual ao critério de exclusão de cada artigo, o que pode representar um elevado risco de viés por omissão de estudos relevantes.3

Por outro lado, os indivíduos com LDL-C mais elevado têm maior probabilidade de estar medicados com estatinas e este efeito na mortalidade não foi considerado. O efeito protetor de valores elevados de LDL-C poderá ser o reflexo do efeito protetor das estatinas ou das alterações de estilo de vida. Mesmo assumindo que o LDL-C elevado é potencialmente benéfico para o idoso, fica por descobrir o mecanismo pelo qual as estatinas diminuem o risco de morte por DCV.

Apesar de os autores terem excluído doentes terminais ou que morreram, não excluíram desnutrição e doença crónica que podem também associar-se a níveis baixos de LDL-C.

O papel do LDL-C como mediador de aterosclerose não pode ser confundido com o de biomarcador de risco cardiovascular modesto no idoso. Este risco não é baseado no valor de LDL-C isolado, mas combinado com a idade, tensão arterial, tabagismo, diabetes, HDL-C e antecedentes patológicos. Apenas três estudos tiveram em conta os valores de HDL-C. Este tem uma correlação inversa com a mortalidade; portanto, a associação inversa entre LDL-C e mortalidade pode ter sido influenciada por um HDL-C elevado. O papel do LDL-C no risco cardiovascular diminui com a idade, este conceito não é recente e está presente nas equações de Framingham.

Uma guerra aberta foi criada ao colesterol, como o vilão da mortalidade ocidental, o que levou a uma grande ênfase na dieta hipolipídica e a uma sobreprescrição de estatinas, cujo efeito benéfico se encontra claramente suportado.4 No entanto, é ainda necessário perceber qual o papel da inflamação na aterosclerose ou até que valores podemos e devemos reduzir os valores do colesterol LDL com segurança e ganhos em saúde nesta faixa etária tão sensível.

A escassez de estudos nesta faixa etária e a publicação de resultados contraditórios gera polémica, nomeadamente na comunicação social e é inegável o valor desta revisão como um ponto de partida para futuras investigações. Um prescritor informado avaliará o doente como um todo e a relação risco/benefício antes de prescrever antidislipidémicos pelo que a SPC aconselha os doentes a continuarem as terapêuticas prescritas pelos seus médicos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Catapano AL, Graham I, De Backer G, Wiklund O, Chapman MJ, Dexel H, et al. 2016 ESC/EAS guidelines for the management of dyslipidaemias. Eur Heart J. 2016 Aug 27. (Epub ahead of print)        [ Links ]

2. Direção-Geral da Saúde. Abordagem terapêutica das dislipidemias no adulto: norma da DGS nº 019/2011, de 28/09/2011, atualizada em 30/07/2015. Lisboa: DGS; 2011.         [ Links ]

3. Nunan D, Collins D, Brobovitz N, Mahtani KR. CEBM response: ‘Lack of an association or an inverse association between low-density-lipoprotein cholesterol and mortality in the elderly: a systematic review’: a post publication peer review (Internet). Oxford: Centre for Evidence Based Medicine; 2016 (cited 2016 Oct).         [ Links ] Available from: http://www.cebm.net/cebm-response-lack-association-inverse-association-low-density-lipoprotein-cholesterol-mortality-elderly-systematic-review-post-publication-pee/

4. Hall H. The international network of cholesterol skeptics (Internet). Washington, DC: Science-Based Medicine; 2008 Feb 5 (cited 2016 Oct). Available from: https://www.sciencebasedmedicine.org/the-international-network-of-cholesterol-skeptics/         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses

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